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UNIVERSIDADE DE COIMBRA

FACULDADE DE LETRAS

O Cinema no Ensino da História: o Filme Tróia

Docentes: Prof.ª Dr.ª Ana Ribeiro; Prof.ª Dr.ª Clara Serrano


Discente: Diogo Silva nº2022171372
Unidade Curricular: Construção do Ensino e da Aprendizagem em História
Ano Curricular: 2022/2023
Data: 09/01/2023

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O CINEMA NO ENSINO DA HISTÓRIA: O FILME TRÓIA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Resumo

O presente relatório tem como intuito descrever a investigação desenvolvida na área


dos contributos cinematográficos na didática da História, mais concretamente do filme Tróia
(2004). Em causa está a validade histórica da obra, considerada por muitos historiadores
como uma adaptação pouco conseguida da Ilíada de Homero. A proposta defende o filme
como um instrumento de grande utilidade para explicar aos alunos e alunas, de forma mais
dinâmica, as origens da civilização grega, as tradições, e também a cultura clássica. O
professor de História, em articulação entre a fonte cinematográfica e literária, transmitiria um
conjunto de informações muito mais atrativas e captáveis pelos estudantes.

Palavras-Chave: Tróia; Ilíada; Guerra de Troia; Homero.

Abstract

This report aims to describe the research developed in the area of cinematographic
contributions in History didactics, more specifically the movie Troy (2004). In question is the
historical validity of the work, considered by many historians as a poor adaptation of
Homer’s Ilíad. The proposal defends the film as a very useful tool to explain to the students,
in a more dynamic way, the origins of the Greek civilization, the traditions and also the
classical culture, The History teacher, in articulation between the cinematographic and
literary sources, would transmit a set of information much more attractive and graspable by
the students.

Keywords: Troy; Ilíad, Trojan War; Homero.

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O CINEMA NO ENSINO DA HISTÓRIA: O FILME TRÓIA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Índice

Introdução …………………………………………………………………………………...4

1. A Didática da História …………………………………………………………………... 5


1.1. O Cinema e a Aprendizagem da História ……………………………………….…...6
1.2. O Cinema em Contexto de Sala de Aula …………………………..…………..…….7

2. A Guerra de Troia ……………………………………………………………………….. 8


2.1. Entre a Ficção e as Teorias Arqueológicas …………………………………………..8

3. O Filme Tróia …………………………………………………………………………….. 9


3.1. Contexto …………………………………………………………….………………. 9
3.2. Comparação com a Ilíada …………………………………………...……………... 10
3.2.1. As Personagens ………………………………………………..……………...11
3.2.2. A Sexualidade …………………………………………….…………………. 13
3.2.3. A Mitologia ……………………………………...……….………………….. 14

Considerações Finais ………………………………………………………………………16

Bibliografia ………………………………………………………………………………... 18

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O CINEMA NO ENSINO DA HISTÓRIA: O FILME TRÓIA
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Introdução

Os valores clássicos da Grécia Antiga, transmitidos em obras literárias intemporais


como as epopeias de Homero, marcam as origens da civilização do ocidente. Tendo isto em
mente, o presente relatório de trabalho visa analisar reproduções cinematográficas
contemporâneas inspiradas na História grega, de modo a verificar a utilidade das mesmas
enquanto fontes de conhecimento e aprendizagem para o universo escolar. A investigação
circunscreve-se ao filme “Tróia”, de 2004, uma produção norte-americana que aborda o
evento histórico particularmente conhecido como: Guerra de Troia.

Os programas do 7.º ano do 3.º ciclo do Ensino Básico e do 10.º ano do Ensino
Secundário compreendem temas organizadores no âmbito da herança do mediterrâneo antigo.
Ora, a História da Grécia Antiga não é reduzida ao ápice do século V a.C., onde a
democracia, a filosofia e as artes floresceram; apoiados nos trabalhos arqueológicos, os
historiadores corroboraram a existência de outras civilizações que antecederam os gregos: a
civilização egeia1 e a civilização micénica2. O desenvolvimento dos povos da bacia do mar
Egeu deve-se, sobretudo, ao processo expansionista amplamente otimizado pela geografia
local, que permitia o uso de meios de transporte marítimo para praticamente todas as regiões.
É nesta ordem de pensamento que os historiadores e os arqueólogos ponderam a veracidade
da Guerra de Troia3. A fonte mais promissora que narra este acontecimento militar é a Ilíada
de Homero, visto que, como evidencia Hatzfeld, “(...) a epopeia grega tem um valor
histórico incontestável, pois é o primeiro documento escrito de origem helénica a recordar
esta época de conquistas”4. Com base nestas informações - dados muito importantes no
ensino e na aprendizagem da História -, importa conferir a autenticidade do filme Tróia, e a
sua relevância enquanto ferramenta didática.

1
(Hatzfeld, 1965, p. 38): A civilização Cretense ou Egeia, com os seus 1500 anos de História, entre 3000-1500
a.C., demonstra possuir características homogéneas, o que a distinguia dos aglomerados populacionais
pré-helénicos.
2
Idem, p. 35: A civilização Micénica emerge, segundo as referências egípcias, entre 1400 e 1100 a.C. Esta teve
origem na imigração de povos indo-europeus - Italiotas, Celtas e Germanos - para a península dos Balcãs.
3
Idem, p. 34: Um conflito militar que terá ocorrido em cerca de 1200 a.C., na região noroeste da Ásia Menor.
4
Idem, p. 34.

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Embora o tema seja incomum, outros trabalhos foram desenvolvidos neste campo.
Nesta questão, além do filme Tróia e da Ilíada, a investigação apoiou-se na obra editada por
Martin Winkler, “Troy From Homer’s Iliad to Hollywood Epic”, e no artigo científico de
Matheus Cruz, “Troia: uma reflexão sobre cinema, história, tradição oral e sala de aula”,
estudos que refletem e discutem os erros historiográficos da produção cinematográfica, e
ainda, valorizam a obra como “(...) uma rica fonte em sala de aula”5. Por último, para o
contexto histórico, socorreu-se à obra de Jean Hatzfeld, “História da Grécia antiga”.

1. A Didática da História

Previamente a estudar as prerrogativas do cinema na História Escolar, é necessário


definir o conceito de Didática da História. Segundo o texto de Matheus Cruz, sustentado por
pedagogos como Klaus Bergmann, a Didática da História consiste numa disciplina que
investiga o significado da História no contexto social.6 Também o artigo de Cardoso
compartilha desta opinião, quando afirma que, “(...) essa disciplina não estuda apenas o
ensino e a aprendizagem da História escolar, mas todas as expressões da cultura e da
consciência históricas que circulam dentro e fora da escola”7.

Ainda no artigo de Cruz, o historiador descreve os três conceitos que considera


intrínsecos à Didática da História: a Reflexão Didática8, a Consciência Histórica9 e a
Mediação Histórica10. Com base nestas linhas de pensamento, o autor fundamenta uma tese
que defende a distinção entre o conhecimento histórico escolar e aquele que é produzido na
academia. Distingue-se, portanto, o saber escolar de uma simplificação dos conhecimentos
científicos investigados e disseminados nas universidades. Ora, em concordância com esta
argumentação, Cardoso reitera que:

5
(Cruz, 2021, p. 215).
6
Idem, p. 216.
7
(Cardoso, 2008, pp. 165-166).
8
(Cruz, 2021, p. 216): Dividida em três incumbências - a empírica, a reflexiva e a normativa -, a ação
compreende o processo de circulação do conhecimento histórico.
9
Idem, ibidem: Consiste numa atividade mental que trabalha a memória histórica.
10
Idem, ibidem: Implica o pensamento da produção e circulação de conhecimento escolar.

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“Se a História escolar é uma criação da escola, e não uma versão simplificada da ‘História
dos historiadores’, a Didática da História não pode ser uma coleção de métodos (...) utilizáveis tanto
no ensino de História quanto no de outras disciplinas escolares”11

1.1. O Cinema e a Aprendizagem da História

Primeiramente, pode o cinema ser considerado uma fonte histórica? Esta questão
pode, e deve, ser desconstruída. Na visão de Rüssen, o produto cultural requer um sentido, ou
seja, as fontes devem permitir ao sujeito adquirir capacidades de compreensão do mundo
onde está inserido12. Ao contrário do que muitos historiadores contemporâneos salvaguardam,
esta tese considera a narração como o método de construção de sentido; neste entender,
“narrar é um procedimento mental próprio à constituição humana de sentido [...] (e) um
narrar é histórico quando se refere a acontecimentos reais do passado”13. Equitativamente
aos historiadores de outrora, como Heródoto e Plutarco, a estrutura narrativa é usada para
ordenar e dar sentido aos acontecimentos do passado.

Tendo por base este método, tal como o historiador, também o cineasta elabora uma
seleção e análise de temas, de modo a construir um sentido narrativo.14 No artigo de Cruz, o
autor corrobora com Ismail Xavier numa perspetiva muito pertinente; o estudioso deixa claro
que o cinema é predominantemente um discurso do cineasta, “(...) de certa forma ficcional,
construído e controlado por uma fonte produtora”15.

O exercício de compreensão de obras cinematográficas, requer que os historiadores e


os professores de História tenham a capacidade de distinguir a veracidade entre as
informações expostas. Assim sendo, pressupõe-se a utilização de um conceito indispensável:
a Cultura Histórica. Tanto Oldimar Cardoso como Matheus Cruz compartilham a opinião de
Rüssen nos seus artigos; a Cultura Histórica, é pois, “(...) o campo em que os potenciais de
racionalidade do pensamento histórico atuam na vida prática”16. Mais concretamente, são os

11
(Cardoso, 2008, p. 157).
12
(Cruz, 2021, p. 217).
13
Idem, ibidem.
14
Idem, p. 218.
15
Idem, ibidem.
16
Idem, p. 219.

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poucos momentos do quotidiano em que, os indivíduos normalmente põem em prática os seus


conhecimentos históricos. Por outro lado, a Cultura Histórica é também a forma de expressão
da Consciência Histórica; esta é definida por Hans-Jürgen Pandel como um “(...) modo de
elaboração psíquica do saber histórico”17.

Em suma, é neste sentido que ocorre o consumo de obras cinematográficas na área do


ensino. O uso de filmes como materiais didáticos causa, tanto nos professores, como nos
alunos, a necessidade de criar e desenvolver capacidades de abstração, de reflexão e de
ponderação. Matheus Cruz resume os objetivos desta iniciativa em “(...) compreender o
entorno e os usos políticos, estéticos, artísticos, daquela obra, compreender os discursos
transmitidos por aquela construção narrativa da história transformada em uma linguagem
cinematográfica”18.

1.2. O Cinema em Contexto de Sala de Aula

Em retrospectiva, é interessante recordar os métodos usados em sala de aula em outras


épocas. O cinema, apesar de ser uma ferramenta tão competente e versátil, não é usado com
tanta regularidade quanto expectável. Os problemas centrais que limitam a aplicação deste
recurso áudio-visual são de domínio temporal. Por um lado, os professores têm pouco tempo
para atualizarem os seus materiais didáticos e pedagógicos, por outro, a “(...) ausência de
tempo e de estrutura da educação institucional”19, dificulta todo o enlace.

O crescimento do pensamento crítico autónomo dos alunos, embora bastante


enriquecedor, é restringido pela orientação do professor. Desde logo, o processo de seleção
do filme requer que o professor priorize os conhecimentos históricos que os alunos devem
aprender. Através das metodologias transmitidas pelo educador, conjetura-se que “(...) o
educando consiga, a partir daquela obra cinematográfica, ou parte dela, construir um saber
acerca de determinado período histórico e sobre o presente em que foi concebida”20.

17
(Cardoso, 2008, p. 159).
18
(Cruz, 2021, p. 219).
19
Idem, p. 220.
20
Idem, p. 219.

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Uma questão muito pertinente resumir-se-à ao modo como os professores fazem a


transição deste material didático e pedagógico para o contexto de sala de aula. Em teoria, esta
fonte cinematográfica é perfeitamente adequada para introduzir o tema da Herança do
Mediterrâneo Antigo, presente nas Aprendizagens Essenciais do 7.º ano do 3.º ciclo do
Ensino Básico, “Os gregos no séc. V a.C.: exemplo de Atenas”, e do 10.º ano do Ensino
Secundário, “O modelo ateniense”. Na prática, a sua complexidade pode ser uma barreira
demasiado alta para os alunos do 7.º ano, ainda em desenvolvimento cognitivo, com escassas
bases historiográficas. Contrariamente, os alunos do 10.º ano têm condições para encarar esta
metodologia, e mais concretamente esta proposta de trabalho. Portanto, considera-se esta
produção como um método interessante e bastante enriquecedor para introduzir o tema da
História Clássica.

2. A Guerra de Troia

2.1. Entre a Ficção e as Teorias Arqueológicas

O filme Tróia despertou um grande interesse entre as massas para as escavações


desenvolvidas nas ruínas arqueológicas de Troia, em Hisarlik, na Anatólia, onde os
arqueólogos teorizam que o suposto conflito militar tenha ocorrido. Consequentemente, surge
uma variedade de dúvidas e questões, sendo que as mais relevantes são: “Quem foi
Homero?” e “A Guerra de Troia realmente existiu?”.

A produção de Wolfgang Petersen tem como fonte orientadora um dos afamados


poemas homéricos: a Ilíada. Todavia, isto não significa que o filme siga escrupulosamente
todas as páginas do livro; aliás, caso isto acontecesse, “(...) the scholarly obsession with
details would have made it a boring film as well”21. O diretor alemão conhece a personagem
histórica de Homero dos seus estudos académicos, assim sendo, tem noção do debate ainda
bastante aceso sobre a existência do escritor, quanto mais da legitimidade das suas obras.22 Os
estudos mais recentes determinam que a escrita da Ilíada ocorreu no século VIII a.C., cerca

21
(Winkler, 2007, p. 20).
22
A teoria mais plausível que vai ao encontro da cultura grega, é tanto a Ilíada como a Odisseia serem a união
de um conjunto de contos orais, congregados por um ou mais autores da época.

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de quatrocentos anos após a Guerra de Troia.23 O extenso período cronológico entre as duas
ações prejudica a veracidade das informações históricas e culturais transmitidas na epopeia;
em concordância com esta tese, Martin Winkler assume que “(...) in Homer’s time Troy was
largely in ruins and probably had already become an object of legends and myths”24.
Todavia, por mais defeituosa, a Ilíada permanece a principal fonte do conflito militar, sendo
poucos aqueles que contrariam este pensamento.

Atualmente, os trabalhos arqueológicos na região de Hisarlik demonstram progressos.


Uma das mais recentes descobertas, a Troia VII25, enquadra-se com as descrições
provenientes da Ilíada. Este estabelecimento, datado entre 1300-1180 a.C., é considerado
grego por arqueólogos como Carl Blegen; contrariamente, Martin Winkler defende que “(...)
Troy was integrated far more closely into the culture of Anatolia than into that of the
Aegean”26. Porventura, os vestígios arqueológicos - como as cerâmicas locais - comprovam
que, entre 1300-1180 a.C., Troia VII era um estabelecimento culturalmente anatólico. Além
disto, as evidências recolhidas no local apontam a guerra como o principal indicador da
queda da cidade.27 Esta informação, por si só, não garante que a guerra em questão esteja
associada com a mítica Guerra de Troia; Homero pode ter usado um ou mais conflitos da
época como base para a sua obra. No entanto, Winkler acredita que, “(...) at the moment
everything indicates that we ought to take Homer seriously about the background information
of a war between Trojans and Greeks that his epic provides”28. De acordo com os
conhecimentos vigentes, a narrativa da Ilíada tem um substrato histórico fidedigno que pode
ser trabalhado em contexto de sala de aula.

3. O Filme Tróia

A obra cinematográfica estreou nos cinemas em 2004, na sequência do sucesso


mundial do filme “Gladiador”, de 2000. A produção dos Warner Brothers contou com uma
equipa técnica constituída por um jovem roteirista norte-americano, David Benioff, e um

23
(Winkler, 2007, p. 21).
24
Idem, p. 24.
25
Idem, ibidem: “(...) an exterior settlement south of the citadel of Troy”.
26
Idem, p. 25.
27
Idem, ibidem.
28
Idem, p. 26.

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diretor alemão, Wolfgang Petersen. O investimento de 180 milhões de dólares provou ser
positivo, isto porque o filme obteve uma das maiores bilheteiras entre as obras
cinematográficas com temas históricos.

3.1. Contexto

Martin Winkler esclarece no seu livro a longevidade da influência da cultura


greco-romana nos Estados Unidos. Segundo o autor, eventos como a Batalha de Alamo
(1836), durante a guerra de independência do Texas, ou ainda, a Guerra Civil Americana
(1861-1865), fornecem amplas referências à Ilíada de Homero.29 Mais recentemente, o
psiquiatra americano Jonathan Shay comparou os efeitos psicológicos pós-traumáticos dos
veteranos da Guerra do Vietnam (1955-1975) com os de Aquiles. 30

No entanto, o acontecimento contemporâneo mais associado ao episódio mítico é a


Guerra do Iraque (2003-2011). Determinados estudiosos como Mocellin, consideram mesmo
que, “(...) o filme Troia reflete o período de lançamento do mesmo, 2004, em que os EUA
enfrentavam a chamada Guerra do Iraque”31. A grande questão é porquê? Esta teoria reitera
que o lançamento do filme serve como resposta às necessidades propagandísticas de guerra,
dado que, celebra “(...) os ideais de heroísmo de quem deixa sua terra natal, patriotismo,
amor à família, a religião”32. Por mais controversa que seja, outros autores apoiam esta
teoria; Martin Winkler, por exemplo, destaca que neste período, “(...) more or less loose
analogies to the Trojan War and specifically the Iliad have become commonplace in political
commentaries and elsewhere”33.

3.2. Comparação com a Ilíada

Em declarações à imprensa, David Benioff considera o filme uma adaptação do mito


da Guerra de Troia, não somente da Ilíada.34 Todavia, Winkler afirma que, “(...) Despite

29
Idem, p. 2.
30
Idem, pp. 2-3.
31
(Cardoso, 2008, p. 221).
32
Idem, ibidem.
33
(Winkler, 2007, p. 3).
34
Idem, p. 109.

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Benioff’s declaration and subsequent similar statements from others involved in the film, the
close association with Homer’s epic refused to go away”35. Embora com determinadas
incoerências e erros históricos, a Ilíada é indubitavelmente a principal fonte dos produtores
desta obra cinematográfica. Os equívocos tanto podem ser considerados voluntários ou
involuntários, dado que, por um lado, a equipa não possuía oficialmente nenhum historiador
ou arqueólogo para executar uma revisão científica; por outro, o objetivo dos produtores não
era seguir rigorosamente a narrativa da Ilíada, isto podia ser considerado demasiado
instrutivo e pouco atrativo para o público.

Diversas informações corroboram com os dois pontos de vista. Contrariamente,


enquanto a Ilíada narra a Guerra de Troia desde os dez anos de cerco à cidade, até a derrota
dos troianos e o funeral de Heitor, o filme alude aos momentos pré-guerra - com Páris e
Helena em Esparta -, estendendo-se até ao saque de Troia. Ainda assim, como ressalta
Winkler, “As did Homer’s Iliad, Troy concerns not so much the Trojan War itself as the
conflict of Agamemnon and Achilles, two leaders in the same camp”36. O confronto entre
Agamemnon e Aquiles representa o heroísmo individual, o desejo por poder, por glória e por
fama eterna, ou seja, a imortalidade. Matheus Cruz alude aos anacronismos presentes nas
ideias de pátria e família monogâmica, mas também nas muralhas robustas e grandiosas
inexistentes no período em questão.37 Outro ponto que fortalece a visão descentralizadora da
Ilíada em relação ao filme, é a presença da estrutura enigmática conhecida como Cavalo de
Troia, cuja finalidade seria persuadir os troianos de um suposto recuo ou abandono militar
grego, o que significava o término da guerra. Portanto, comparada à obra literária, a obra
cinematográfica omite vários acontecimentos e personagens, ao mesmo tempo que adiciona
outros, muitas vezes com recurso a outras obras clássicas como a Odisseia, de Homero, e a
Eneida, de Virgílio.

3.2.1. As Personagens

35
Idem, ibidem.
36
Idem, p. 21.
37
(Cardoso, 2008, p. 222).

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O CINEMA NO ENSINO DA HISTÓRIA: O FILME TRÓIA
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Com base nas fontes, subentende-se que, com um enredo distinto, as personagens
também sofrem alterações. Isto verifica-se não só na existência física e psicológica dos
indivíduos, mas também nas suas características e ações. O processo seletivo protagonizado
por Benioff,38 resulta particularmente da necessidade de articular a narrativa do filme com o
mito histórico.

As personagens mais presentes são sobretudo masculinas, o que está inerentemente


intrínseco ao acontecimento narrado, dado o seu teor puramente militar. Todavia, convém
acrescentar que no mito o conflito inicia-se por causa do “suposto” rapto de Helena; é
interessante ter em conta que a guerra entre os homens foi iniciada, indiretamente, por uma
mulher. No filme, por outro lado, o personagem de Agamemnon usa o rapto como uma
“desculpa” para empreender a campanha militar, uma característica que coincide com os
movimentos expansionistas gregos, desenvolvidos na época micénica, em cerca de 1200 a.C.
Tanto Agamemnon com Menelau, e Hector com Páris representam o tema do fraternalismo,
demonstrado na figura do irmão mais velho, mais forte e mais poderoso, enquanto protetor do
irmão mais novo, mais fraco e mais débil. Também Aquiles e Patróclo enquadram-se nesta
conjuntura, apesar de não serem irmãos biológicos. Entre estas figuras, na Ilíada, somente os
dois irmãos aqueus é que sobrevivem, regressando posteriormente às suas devidas regiões no
mar Egeu - relato contado na Odisseia. Entretanto, em Tróia, ambos os personagens são
mortos, sendo o único sobrevivente Páris. A morte de Menelau por Heitor, após um duelo
decisivo com Páris, determina um momento crucial no desenvolvimento da guerra;
considerado por Martin Winkler como um divisor estrutural do filme: “The first half of the
film, with the possibility of peace, is dominated by dialogue; the second half is dominated by
action and spectacle”39.

Partindo do pressuposto que o final do filme Tróia não coincide com o destino trágico
do poema, não se pode desconsiderar a fatalidade dos personagens. Martin Winkler crê que,
“If it were to be true to the Iliad or to Greek myth and literature, those characters functioning
as villains would survive while more sympathetic characters would be dead or enslaved”40.

38
(Winkler, 2007, p. 112): Como evidência Martin Winkler, determinados episódios como “(...) the sacrifice of
Iphigenia, the prophecies of Cassandra, and the grief and defiance of Hecuba”, são deixados de parte.
39
Idem, p. 113.
40
Idem, pp. 113-114.

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Este pensamento é suportado por episódios das obras. Em Tróia, Menelau e Agamémnon,
apesar de terem sido aqueles primeiramente afetados pelos atos inconscientes de Páris, são
caracterizados como os vilões da obra, terminando por morrer em campo de batalha. Dentro
da mesma obra, Páris, aquele que comete esses atos, consegue escapar ileso da cidade,
acompanhado por Helena e o seu filho. As diferenças entre o filme e a fonte literária são
discrepantes em determinados momentos da narrativa, um exemplo é o destino do filho de
Páris e de Helena, que segundo Eurípides, “(...) is hurled to his death from the walls of Troy”
41
. Ainda assim, embora o filme dê valor a uma visão bastante antagónica do poema, para
muitos espectadores, torna-se ainda complicado escolher um lado na narrativa.

Embora em menor consideração, as personagens femininas também são trabalhadas


no mito. Acima dos deuses, que não têm representação em Tróia, personagens como Helena e
Briseida orientam a narrativa devido à sua capacidade de persuadir os homens; no caso de
Briseida, “(...) is more important in the film than in the myth”42. No filme, Briseida é
transformada em uma princesa de Troia, sobrinha de Príamo - rei de Troia -, e sacerdotisa de
Apolo. Isto constitui-a como o centro espiritual da lenda, responsável por influenciar Aquiles
nas causas anti-guerra e humanistas. O impacto gerado no herói grego é sentido em ambas as
fontes, principalmente no impasse da entrada na guerra com os mirmidões - guarda tessálica.
Em causa estava a fúria de Aquiles contra Agamémnon, provocada pela retirada de Briseida.
A princesa de Troia simbolizava a possibilidade de superar pacificamente as divergências
entre os campos inimigos, ou como declara Winkler, “(...) she represents the possibility of
overcoming an apparently irreconcilable opposition between Trojans and Greeks”43. No
momento em que Aquiles entrega o corpo de Heitor a Príamo, o herói prova um ato de
humanidade, eventualmente inspirado por Briseida.

3.2.2. A Sexualidade

Um dos elementos mais discutidos no mito é a relação familiar/amorosa de Aquiles e


Pátroclo. A natureza deste relacionamento íntimo entre as duas personagens é distinta entre as

41
Idem, p. 114.
42
Idem, p. 115.
43
Idem. ibidem.

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fontes; no filme é explicado como parte do contexto familiar, mais concretamente por serem
primos; entretanto, no poema é entendido como parte do contexto de amizades, visto que
eram amigos de infância. A maioria dos historiadores e arqueólogos contemporâneos
concordam com a dita relação carnal entre as duas personagens, apesar de, “(...) is nothing in
Homer concerning this, it appears in later versions of the myth”44. Matheus Cruz, por
exemplo, acredita que, “(...) pelo escamoteamento das relações entre Aquiles e Pátroclo, que
no filme são primos, mas que na Ilíada são amigos que, muito provavelmente, mantinham
relações homo afetivas”45. Nesta questão, os produtores do filme praticamente
contradisseram-se, aceitando a acusação de terem produzido uma adaptação da Ilíada; isto
porque, quando questionado sobre o assunto, David Benioff defendeu-se com: “I found
nothing in the text”46.

Aquiles, filho do herói Peleu e da ninfa Tétis, tido como o guerreiro mais forte da
Grécia Antiga, é entendido no filme como um sinónimo de masculinidade. Os críticos
acreditam que a não adaptação desta particularidade é uma forma dos estúdios
cinematográficos protegerem os atores, conservando simultaneamente uma visão homofóbica
pouco acarinhada. Martin Winkler pondera esta hipótese através de um episódio específico do
mito: a morte de Pátroclo. O autor considera que o contexto da relação entre Aquiles e
Pátroclo “(...) never seems close enough to present an adequate motivation for the
grief-driven rage that seizes Achilles after Patroclus’ death”47. No filme, Pátroclo é morto
acidentalmente por Heitor em combate, enquanto vestia os equipamentos de Aquiles; isto
gera uma grande revolta no herói, que parte para um duelo individual com Heitor, o mesmo
que termina por ganhar. A partida de Pátroclo para a batalha está conectada ao isolamento
militar de Aquiles, que por desentendimentos com Agamémnon decidiu não avançar. A
narrativa é profundamente diferente na epopeia, ainda que permaneça o confronto central
entre as duas personagens, e o impasse da entrada de Aquiles na guerra, o que mudaria o
rumo da mesma. A obra de Homero apresenta uma reação mais tradicional de Aquiles, que
conta com o célebre funeral de Pátroclo, seguido dos jogos desportivos à sua homenagem.

44
Idem, p. 113.
45
(Cardoso, 2008, p. 222).
46
(Winkler, 2007, p. 113).
47
Idem, p. 113.

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3.2.3. A Mitologia

A mitologia grega, posteriormente assimilada pelos romanos, transmite os valores


clássicos da época; o panteão dos deuses olímpicos, os heróis, as musas e as ninfas, mais do
que elementos religiosos e mitológicos, integram o quotidiano do mundo mediterrâneo.
Assim sendo, a não inclusão da mitologia em Tróia, traduz-se como o principal corte com a
Ilíada - onde todas estas figuras mitológicas interagem direta ou indiretamente com o Homem
-, ou, como menciona Matheus Cruz, os deuses “(...) são deixados em segundo plano”48. No
entender de Winkler:
“Myth is by nature concerned with humanity’s relationship with forces that they cannot rationally
explain; by contrast, Troy offers rational explanations for everything”49.

Não é de todo compreensível racionalizar um mito. Os produtores do filme


defendem-se destas pesadas críticas com alegações orientadas para o público em geral;
Petersen argumenta que, “(...) people would laugh today if you had God entering the scene
and fighting and helping out”50. O intento de incluir o filme nos épicos clássicos de
Hollywood condicionou a estratégia adotada com o tratamento dos deuses, dado que,
entidades sobrenaturais “(...) are out of place in a realistically presented ancient world that
functions according to the physical laws of our world”51.

Consequentemente, a vontade divina reverte-se para os desejos humanos.52 Esta


característica é comum em todo o filme, existindo diversos exemplos que o comprovam.
Desde logo, a origem da Guerra de Troia no mito tradicional conta com o julgamento de
Páris, uma espécie de teste onde o personagem tinha de entregar uma maçã dourada à deusa
mais bela, entre Atenas, Hera e Afrodite; persuadido a escolher a última deusa, Páris entrega
a maçã a Afrodite, que cumpre também a sua promessa, presentear o troiano com a mulher

48
(Cardoso, 2008, p. 222).
49
(Winkler, 2007, p. 114)
50
Idem, ibidem.
51
Idem, ibidem.
52
Durante o período Micénico, e mesmo posteriormente, os gregos eram os representantes da vontade dos
deuses. Construíam templos, organizavam festividades em sua honra, praticavam sacrifícios em sua
homenagem, procuravam consultar os deuses para obter respostas para os seus problemas - exemplo do oráculo
de Delfos -, derramavam libações à sua divindade, entre outras atividades.

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mais bela do mundo: Helena de Esparta. Contrariamente, no filme é a atração de Helena por
Páris, em aversão ao seu casamento infeliz com Menelau, que origina a guerra.

Na Ilíada, os deuses olímpicos estavam completamente envolvidos com a Guerra de


Troia, até ao ponto em que posicionavam-se de lados distintos no confronto, dependendo dos
seus ideais e objetivos. Atena, Hera e Poseidon ficam do lado grego, enquanto que Ares,
Afrodite e Apolo53 ficam do lado troiano. A supressão dos deuses no filme torna os humanos
totalmente responsáveis pelos seus atos, o que Martin Winkler considera como “(…) a tricky
path between free will and determinism”54. O episódio do confronto mortal entre Aquiles e
Heitor evidencia exatamente este pensamento; enquanto que na Ilíada o confronto mais
parece uma perseguição, onde Aquiles tem o apoio divino de Atenas no momento fatal, no
filme existe um duelo entre os dois guerreiros, decisivo para a conclusão da guerra.

O determinismo tradicional da obra literária é descartado na obra cinematográfica,


promovendo uma perspetiva humana onde as personagens são livres para tomar decisões
corretas ou incorretas, de acordo com as suas personalidades. Em concordância, Martin
Winkler afirma que, “Throughout its first half there are moments when a choice has to be
made that may lead to or away from war, but those choices are always freely made”55. Nos
momentos finais do filme, com a aparição do famoso Cavalo de Troia56, os troianos apoiam a
posição religiosa de um padre de transportar o “presente” para dentro das suas muralhas, o
que se prova ser fatal.

Considerações Finais

A investigação produzida constitui-se como uma forte proposta didática para o ensino
de História. O recomendável seria usar o filme como ferramenta complementar de ensino
entre o 7.º ano do 3.º ciclo do Ensino Básico e do 10.º ano do Ensino Secundário, pois são

53
A ira de Apolo com os aqueus surge com a não restituição de Briseida, no entanto, também o filme dá provas
deste confronto com o deus, através do saque do seu templo nas praias de Troia.
54
(Winkler, 2007, p. 115).
55
Idem, ibidem.
56
Os historiadores discutem a veracidade deste utensílio militar, sendo que muitos o associam à personagem
divina de Poseidon; portanto, Troia teria caído por conta do apoio do deus dos mares, o que pode significar a
ocorrência de um sismo ou de um tsunami.

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anos escolares que contêm temas programáticos na área das civilizações clássicas. O filme
Tróia comprova ser um instrumento promissor para explicar as origens da Grécia Antiga,
desde a civilização Egeia e Micénica, e todo o processo expansionista que resultou no apogeu
do século V. a.C. Infelizmente, a adaptação cinematográfica deixa a desejar com os
anacronismos, entre outros determinados elementos culturais e mitológicos presentes na
Ilíada de Homero, e ainda noutras obras clássicas posteriores.

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Bibliografia

Cardoso, O. (2008). Para uma definição de didática da História. Revista Brasileira de


História, (vol. 28), pp. 153-170.

Cruz, M. (2021). Troia: uma reflexão sobre cinema, história, tradição oral e sala de
aula. Revista de Pesquisa Histórica - CLIO (vol. 39), pp. 215-231.

Hatzfeld, J. (1965). História da Grécia antiga. Lisboa: Publicações Europa-América.

Lourenço, F. (trad.). (2019). Ilíada (1ª. ed). Lisboa: Quetzal Editores.

Winkler, M. (Ed.). (2007). Troy From Homer’s Iliad to Hollywood Epic. USA:
Blackwell Publishing.

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