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Referência: ROMANO, Santi. O ordenamento jurídico.

Fundação Boiteux: Florianópolis,


2008.

Contexto histórico do autor e da obra

Santi Romano nasceu em 1875 e morreu em 1947. Foi um grande pesquisador e


docente do campo do direito positivo. Durante a sua trajetória, ele negou aquilo que
considerava ser nuvens do jusnaturalismo e o sociologismo tão presentes naquele período,
permanecendo dentro dos limites do direito positivo. Romano nega as abstrações construídas
pelas teorias anteriores para elaborar uma calcada na realidade dos fatos.
A obra que nos propomos falar hoje foi publicada logo após a Primeira Guerra
Mundial, em 1918. Essa era um momento de grande crise, diga-se de passagem. Crise do
Estado moderno. Crise de diversas mitologias jurídicas construídas durante a modernidade.
Nesse momento, proliferavam diversas coletividades, muitas vezes antagonistas ao aparelho
estatal1. Tal fato demonstrava que o Estado estava fundado sobre uma artificial solidez que
logo poderia ruir. Romano consegue observar esses fatos. A obra O Ordenamento Jurídico foi
uma maneira que ele conseguiu de expressar as opiniões dele sobre essas crises e também as
suas insatisfações em relação à simplicidade burguesa e, consequentemente, a redução da
complexidade do direito.
Assim sendo, a grande contribuição da obra dele é a retomada da complexidade do
direito a partir de uma linguagem que se apropria do direito positivo. A retomada da
complexidade se dá pelo fato de que Romano consegue olhar para os fatos e enxergar nelas
normatividades importantes de serem tidas em conta. Normatividades que eram
desconsideradas pelo Estado moderno e pelas teorias que limitavam o conceito de direito à
norma.
É a partir desse olhar atento que Romano remodela o seu próprio conceito de direito.
Para Romano, direito não é norma. Direito é uso, regras de costume, regra de estilo e
perfeição, de necessidade, e por aí vai, como destaca Paolo Grossi. “O direito é organização,
estrutura, posição da própria sociedade” (p.18). O processo que constitui o direito não se dá

1
Veja: de acordo com Paolo Grossi no artigo O Direito entre Poder e Ordenamento, um traço
fundamental da simplicidade do direito na modernidade era a redução do público ao Estado e o
privado em sujeitos individuais. Ou seja, negava-se o eu social e o eu coletivo, assim como se negava
a produção do direito por formações sociais e coletivas (p.105). Imaginem vocês que Romano ver
florescer o capitalismo industrial e, com ele, os conglomerados de indústrias e as lutas da classe
trabalhadora. Romano vê o florescimento de coletividades que, por vezes, se contrapunham ao
próprio Estado.
no momento de emanação de uma norma pelo poder estatal, mas em um momento anterior.
Como bem argumenta, a essência do direito não está no plano da validade, mas na dimensão
da efetividade. Romano olha para a sociedade e nela enxerga o fundamento do direito. Sobre
isso, ele diz: “É a sociedade que se move mais sobre os trilhos da efetividade do que da
validade” (p. 16). Assim sendo, ele vê o direito de modo objetivo, a partir daquilo que tem
efetividade no meio social. A sociedade passa a ser referência primária para o direito na teoria
de Romano.
Qual o conceito de Estado para Romano? O Estado para Romano não assume ares
arrogantes. O Estado é apenas uma projeção parcial do direito. Ele não concentra em si toda a
juridicidade da vida. Ele é mais uma das instituições existentes no mundo da vida e que foi
formado em um contexto histórico bem específico. Como conversamos em sala, o Estado é
uma estrutura patriarcal burguesa formada por um ordenamento que contém também as
mesmas características. “O Estado é sempre e sobretudo um regime, um ordenamento
jurídico, uma instituição em que o monarca, os súditos, o território, as leis são somente
elementos” (p.110)
Quando Romano elabora a ideia de que o Estado é apenas mais uma das instituições e
ordenamentos que podem existir em uma sociedade, ele está dizendo que em um mesmo
território pode existir uma pluralidade de ordenamentos jurídicos que, mesmo não sendo
reconhecidos pelo Estado, ainda continuam válidos. A partir dessa ideia, Romano põe outras
instituições e ordenamentos em pé de igualdade com o Estado. Nesse sentido, é possível
pensar em uma comunidade indígena, um quilombo2, etc.
Passemos, então, a alguns pontos destacados por Romano ao longo da obra. É muito
importante que os conceitos de instituição, ordenamento, direito e norma estejam claros.

I A noção de ordenamento jurídico

O direito em sentido objetivo frequentemente concebido como norma. Insuficiência de


tal concepção (p.61-62).

2
Nesse sentido, vale a pena ler o artigo “Por uma história do conceito jurídico do quilombo no Brasil
entre os séculos XVIII e XX, escrito por Vanilda Honória dos Santos e Diego Nunes. A conclusão a
que os autores chegam é que o quilombo, visto como um espaço sem direito, é sim um espaço
jurídico que acaba por projetar seus direitos para outras instâncias jurídicas. Além desse artigo
específico, Vanilda Honória dos Santos tem uma ampla pesquisa na temática.
Romano inicia o livro tratando da insuficiência da teoria que enxerga o direito
somente como norma jurídica e limitado ao Estado. Ele entende que a norma jurídica também
é direito, mas o direito não é só isso. Na visão dele, é necessário, portanto, adicionar outros
elementos. Elementos que por vezes são vistos como não jurídicos.

Alguns indícios gerais desta insuficiência; em particular aqueles que têm a sua provável
origem nas definições correntes do direito.

Antes exemplos de elementos considerados não jurídicos que para ele são, sim,
jurídicos, Romano prova a insuficiência da teoria que enxerga o direito somente como norma.
Para ele, existem indícios diretos e indiretos que provam o seu ponto de vista.
O primeiro indício é uma observação feita por Romano de que todos falam e
confessam não saber conceituar de maneira clara o que é o direito (p.62). Em relação a esse
ponto, lembro de dois episódios: Jeanine sempre perguntava no processo seletivo o
significado de direito para o candidato e muitos respondiam que o direito se confundia com
norma ou nem sabiam responder; segundo, a primeira pergunta que o Diego fez a minha
turma quando começou a lecionar Teoria do Direito foi “o que era direito?” e quase todos os
alunos ficaram confusos e sem saber muito bem como defini-lo.

→ Se eu perguntasse hoje nessa sala de aula, o que é o direito, o que vocês me responderiam?

O segundo indício é o fato de que o direito definido tão somente como norma não
serve muito para disciplinas jurídicas particulares já que na prática muitas delas extrapolam
esse conceito, como por exemplo o direito administrativo, constitucional, processual, etc.

→ Aqueles que aqui advogam conseguem sustentar a ideia de que o direito seja somente
norma?

Para solucionar esse problema, Romano vai buscar as respostas no direito público. Ele
não parte do direito privado por dois motivos: primeiro por conta da formação dele,
concentrada no direito público, e também porque ele considera que o direito privado é uma
ramificação do direito público, estando sob a sua tutela e sendo dominado por ele (p.64). A
partir disso, Romano busca construir uma definição do direito que seja verdadeira e completa.
Uma definição que não seja a-histórica e cheia de abstrações e que também sirva a todos os
ramos especiais do direito (p.65).

Necessidade de distinguir as normas jurídicas do ordenamento jurídico analisado


enquanto unitário. Impossibilidade lógica de definir este último como um conjunto de
normas.
Para a construção desse novo conceito de direito, Romano esclarece alguns conceitos
abstratos que aparecem em toda a obra dele.
O primeiro conceito é o de ordenamento - essencial para a compreensão do direito e da
instituição. Para Romano, ordenamento não pode ser definido da maneira como usualmente é
definido: uma soma matemática de normas. O ordenamento jurídico é uma unidade - unidade
que é obtida a partir da vida concreta e da efetividade. Para ele, “a natureza de um
ordenamento jurídico não se demonstra totalmente e não pode ser compreendida enquanto se
tenha em exame somente às várias normas que dele fazem parte, negligenciando a unidade
que constitui. Esta unidade do ordenamento é algo de diferente das normas, e, ao menos até
um certo ponto, independente” (p.68)
Em artigo intitulado O Direito entre Poder e Ordenamento, Paolo Grossi seguindo os
passos de Romano vai dizer que ordenamento é “um direito que nasce de baixo sob a égide de
uma clara espontaneidade, uma dimensão ôntica da sociedade porque é radicado nesta e ativa
na consciência coletiva, uma dimensão objetiva já que é primeiro auto-organização e, depois,
norma” (p.95)

- Existem duas visões teóricas que enxergam o ordenamento jurídico de maneira


equivocada e que prevaleceram ao longo do tempo:
1. Ordenamento jurídico seria o resultado da intenção dos órgãos legislativos;
2. O ordenamento jurídico tem uma vontade própria, independente, inclusive, da vontade
do legislador que o emanou. Para essa teoria, o ordenamento é um organismo que vai
se adaptando de acordo com o ambiente social.

Como um ordenamento jurídico não seja somente um conjunto de normas, consistindo


também em outros elementos.

Se um ordenamento jurídico/direito não é apenas um conjunto de normas, o que ele é?


Quais são os elementos que o constituem? Quando a gente pensa em ordenamento/direito, a
primeira coisa que vem na nossa cabeça como explica Romano é o vade mecum. Mas ele não
se limita a isso. Para o autor, são três os elementos essenciais para a constituição de um
ordenamento/direito (p.76):
1. Sociedade. A sociedade não é entendida aqui como uma simples relação entre
indivíduos. Ela é uma unidade concreta, efetivamente constituída. Uma simples
afinidade de pessoas não é uma verdadeira sociedade.
2. Ordem social. O autor argumenta que isso é importante para excluir da ideia de direito
qualquer arbítrio ou força material, ou seja, força não ordenada. “Toda manifestação
social, somente devido ao fato de ser social, é ordenada ao menos no que diz respeito
aos seus consórcios" (p.76)
3. A ordem social posta pelo direito não advém da existência de normas de qualquer
origem que disciplinam relações sociais. “Isto significa que o direito antes de ser
norma, antes de se referir a uma simples relação ou a uma série de relações sociais, é
organização, estrutura, atitude de uma sociedade em que é vigente e que para ele se
constitui como uma unidade, como um ser existente por si mesmo”. (p. 78)

Considerando esses três elementos da teoria de Romano, é possível chegar à conclusão


de que o direito como ordenamento jurídico é uma instituição e, vice-versa, toda instituição é
um ordenamento jurídico (p.78).

Os precedentes doutrinários do conceito de instituição (Qual o sentido da palavra


instituição atribuída por Romano?)
Mas qual é o sentido da palavra instituição atribuída por Romano?
O sentido de instituição utilizado pelo Romano é um sentido mais amplo. Ele não
limita o significado de instituição ao sentido de pessoa jurídica, como geralmente é feito pelos
juristas. Esse conceito foi ampliado pela doutrina alemã e francesa. Para o autor, “instituição
é, na realidade, um ordenamento jurídico objetivo” (p.83) - entre eles há uma perfeita
identidade e equivalência. Todo corpo social ou ente é uma instituição.
Importante ressaltar que essa instituição e ordenamento podem se organizar de
diferentes maneiras (ex. quilombo, comunidade indigena, Estado, Igreja, família, etc).

O nosso conceito de instituição e as suas características fundamentais: 1) existência


objetiva da instituição; 2) instituição e corpo social; 3) especificidade da instituição;
instituições complexas; 4) unidade da instituição.
Após entender que instituição é entendida de uma maneira ampla por Romano, resta
saber quais são as características fundamentais dessa instituição/ordenamento. São elas:
1) Esse ente deve uma existência objetiva e concreta (p.84);
2) É um ente e um corpo social na medida em que é manifestação da natureza social e
não puramente individual de um homem (p.85);
3) A instituição pode ser analisada em si e por si porque tem uma individualidade
própria. Assim, em um mesmo território podem existir diversas instituições e,
consequentemente, uma pluralidade de ordenamentos (p.86). Isso não quer dizer que
todas as instituições são isoladas uma das outras (isso fica mais claro na segunda parte
do livro quando Romano analisa a relação entre instituições).
4) A instituição é uma unidade fechada e permanente, ou seja, ela não perde a sua
identidade devido a mudanças dos indivíduos, das pessoas que fazem parte dela, do
seu patrimônio, interesse, etc. A instituição pode se renovar, conservando a sua própria
individualidade (p.87).

13. Equivalência dos conceitos de instituição e de ordenamento jurídico.


São essas características que constituem a essência de uma instituição. Mas em que
efetivamente consiste essa essência? A essência da instituição consiste na sua equivalência
com o ordenamento jurídico. Nesse sentido, a instituição seria a primeira manifestação
originária e essencial do direito/ordenamento. O direito/ordenamento só pode se manifestar
em uma instituição, e a instituição só existe porque é mantida viva pelo direito/ordenamento
(p.90). Assim sendo, o direito é o princípio vital de toda instituição, “que anima e mantém
reunidos os vários elementos que desta advém, que determina, fixa e conserva a estrutura de
entidades imateriais” (p.92). Reciprocamente, a instituição sempre será um regime jurídico
(p.92).
Para ele, toda força que seja efetivamente social e seja organizada se transforma em
direito/ordenamento. Para Romano, não importa se essa instituição e ordenamento é
considerado ilícito para o Estado. Basta que ela tenha efetividade social para ser considerada
como tal (p. 90).
Se a instituição deixa de existir o seu ordenamento também não sobrevive. Se o
ordenamento deixar de existir, a instituição também não sobrevive. Logo em seguida darei um
exemplo mais concreto dessa relação a partir da comunidade indigena dos Yanomami, mas
fiquem com isso na cabeça de vocês.
Problemas resolvidos pela ideia de equivalência entre instituição e ordenamento

Essa equivalência entre instituição e ordenamentos resolvem alguns problemas


clássicos da ciência jurídica.
1. A questão do direito ser anterior ao Estado ou vice-versa;
2. A questão relativa ao fato do Estado ser uma entidade essencialmente jurídica ou ética
(esse problema não tem razão de ser porque a ética pode ser um componente da
instituição e do ordenamento);

Devemos ter cuidado para não confundir instituição com o conceito de direito subjetivo
Direito subjetivo é uma relação jurídica simples e, por vezes, transitória (p.108). A
instituição é posição estável de um ente (p.108) um direito objetivo na medida que em é uma
entidade, um corpo social, que possui, no mundo jurídico uma existência efetiva e concreta.
A consequência disso é que uma relação simples entre pessoas não forma uma
instituição. Uma instituição é uma organização complexa. Ex dado por Romano: relação
conjugal e família.

“[...] Isso, note-se bem, não exclui o fato de que possam existir instituições cujo elemento
pessoal seja representado por somente duas pessoas. Em tal caso, é necessário que tal
elemento seja integrado por algum outro que tenha a eficácia coesiva e unificadora que de
outro modo faltaria. É o que acontece com a sociedade conjugal, que, considerada em si e por
si, seria uma simples relação, podendo assumir, e geralmente assume, a figura jurídica da
família, ou seja, de uma instituição (p.107)
Se uma simples relação jurídica ou uma simples relação entre pessoas físicas não é o
suficiente para caracterizar uma instituição, uma pessoa jurídica sempre será uma instituição
(p.112). Isso acontece porque uma pessoa jurídica sempre terá um ordenamento de direito
objetivo. Ela terá sempre um ordenamento interno que a rege e a estrutura.

Como tais elementos sejam implicitamente postulados pela maior parte das pesquisas
sobre as características específicas do direito.
Considerando essa argumentação, para o autor, a norma jurídica representa mais o
objeto e o meio de atividade do ordenamento jurídico estatal do que um elemento de sua
estrutura (p.69)
As teorias que enxergam o direito como norma jurídica geralmente atribuem algumas
características às normas jurídicas com o objetivo de diferenciar daquilo considerado “não
jurídico”. Ao fazerem isso, geralmente se apropriam de elementos que são estranhos à ideia
de norma, ou seja, se apropriam de “elementos não jurídicos” e caem, portanto, em uma
grande contradição (p.70).
Exemplo 1: Alguns afirmam que a norma jurídica só é norma devido às suas características
formais. A formalidade de uma norma é algo que é extrínseco a ela. Dois aspectos “formais”
extrínsecos à norma podem ser analisados nesse sentido: objetividade da norma e sanção
jurídica.
- Objetividade do direito: tendo por base essa característica alguns afirmam que o
direito nasce da consciência dos indivíduos. Surgindo divergência entre eles, é preciso
que uma força maior que media as relações. Essa consciência maior é expressada pelo
direito imposta por alguma entendida. Disto advém para o autor a objetividade do
direito. Ou seja, a partir desse raciocínio, Romano prova que o direito não é só a
norma posta e escrita. Direito pode ser essa entidade que, em um momento anterior a
criação da norma, a pensou (p.72). Assim diz:
[...] “A chamada ‘objetividade’ do ordenamento jurídico não pode ser reduzida e limitada às
normas jurídicas. Refere-se e se reflete também sobre essas, mas parte sempre de um
momento lógica e materialmente anterior às normas e, algumas vezes, ou melhor,
frequentemente, alcança momentos que não podem ser identificados e confundidos com
aqueles que caracterizam as normas. O que equivale a dizer que as normas são podem ser uma
parte do ordenamento jurídico, mas estão bem longe de esgotá-lo” (p.74)

- Sanção: a sanção é considerada como um elemento formal do direito, mas ela pode
existir sem necessariamente ser objeto de uma norma jurídica.
[...] Acreditamos, de fato, que a sanção possa não ser objeto de uma norma específica. Pode,
ao contrário, ser imanente e latente nas engrenagens do aparelho orgânico que constitui o
ordenamento jurídico considerado no seu todo; também pode ser força que atua de modo
indireto, uma garantia efetiva que não dá lugar a algum direito subjetivo estabelecido por
qualquer norma; freio inato e necessário do poder social. Pode-se então dizer que apresentar a
sanção como um elemento do direito é afirmar, mesmo não querendo, que o direito não
consiste unicamente em normas jurídicas, e que estas são ligadas, ou melhor, suspensas, por
outros elementos de onde advém toda a sua força. Deste modo a sanção, ou seja, estes outros
elementos, bem longe de serem algo complementar, acessórias às normas, as precedem,
formando a base na qual fundamentam as suas raízes (p.75)
Ainda sobre as diferenças que tentam criar entre normas jurídicas de outros fenômenos
vistos como extrajurídicos, Romano diz:
“É perfeitamente vão, por consequência, propor, como acontece de modo frequente, que
sejam estabelecidas as características diferenciais do fenômeno jurídico a respeito daquelas da
religião, da moral, do costume, das convenções, da economia, das regras técnicas, etc. Cada
uma destas manifestações do espírito humano pode ser tomada totalmente ou em parte no
mundo jurídico, vindo a formar o conteúdo dele, todas as vezes que venha a entrar na órbita
de uma instituição [...]” (p.91)

Romano dá alguns exemplos de elementos que são importantes para o ordenamento


jurídico do Estado, mas que geralmente não vistas como elementos essenciais do direito: 1)
Potestade do Estado (p.116-117); 2) personalidade do Estado (p.118); 3) território do Estado
(p.118); 4) nacionalidade (p.118) e cidadania (p. 120), etc.

Casos em que a primeira posição do direito não é determinada por normas, mas pelo
surgimento de uma instituição, e impossibilidade de reduzir a instituição a normas.

Considerando o conceito de instituição que foi apresentado e a ideia de que o direito


não se confunde com norma, nós devemos nos perguntar o que leva ao surgimento de uma
instituição e de um ordenamento. Já sabemos que não é nenhuma norma pré-existente
(p.94-95). O leva ao surgimento de uma instituição e de um direito/ordenamento é um fato
social com efetividade social.

Ex: “[...] Isso é evidente, por exemplo, para o Estado, mas não somente para o Estado. Este
existe porque existe, é entidade jurídica porque existe e do momento em que tem vida. A sua
origem não é um procedimento regulado por normas jurídicas; é, como repetidamente
evidenciamos, um fato. Ora, basta que este fato seja consumado para que tenhamos direito,
basta que tenhamos um Estado efetivo, vivo e vital; a norma, ao contrário, pode ser instituída
a seguir. A primeira posição do direito não é, deste modo, determinada pela última, que é uma
manifestação mais tardia e subsidiária daquela [...]” (p.95)

Exemplos de instituições/ordenamentos trabalhados por Santi Romano


- Comunidade internacional (p. 96-104)
- Família
- Igreja

Ponto interessante para a minha pesquisa:


“Deste macrocosmo jurídico que é o Estado, se pode passar, reforçando as
observações já feitas com outras análogas, a instituições menores ou mesmo mínimas, nestas
compreendidas algumas que o jurista frequentemente não tem a ocasião de submeter à sua
análise, mas que não são, por isso, menos interessantes. Quando qualquer indivíduo, no
âmbito em que ele pode ser considerado quase como um rei no seu reino, ou seja, em sua casa
(no sentido mais amplo), estabelece um ordenamento que vale para os seus familiares, para os
dependentes, para as coisas que estão à sua disposição, para os seus hóspedes e, assim por
diante, ele, substancialmente, cria uma pequena instituição, a qual se coloca como chefe e faz
parte integrante. Tal figura não deve ser buscada nas leis do Estado. Tais leis tomam em
consideração por conta própria, individualmente e através de outros pontos de vista, o
domicílio de uma pessoa para garantir a sua liberdade, as suas relações com as outras que
constituem a sua família - ou estão ao seu serviço -, com as coisas relativamente às quais terá
qualquer direito e assim por diante. Mas tudo isso será indiferente, ao menos de modo direto,
no que concerne àquele “direito doméstico” de que falamos e o qual o direito estatal
negligencia Trata-se de um ordenamento autônomo que reúne sob um governo e uma direção
uma série de elementos diferentes, pessoas e coisas, que considera de um ponto de vista
próprio. É deste modo que, enquanto para as leis do Estado ter-se-á, por exemplo, somente o
sujeito de um direito real sobre um casa, se esta é de sua propriedade, ou de um direito
advindo de um contrato de locação; para o ‘direito doméstico’, ao contrário, tal relação será
sem importância e aquela casa será sempre e somente um elemento da instituição que nesta se
insere, o âmbito onde se exerce um poder que seu chefe somente enquanto tal, e não por ser
proprietário ou locatário.” (p.111-112)

Exemplo - Comunidade indígena dos Yanomami.


Vocês devem ter acompanhado a notícia no jornal sobre o estupro e o homícidio de
uma menina yanomami e o sumiço de uma comunidade indigena yanomami. Eu vou utilizar o
exemplo dessa comunidade para mostrar que a teoria de Romano está bem pertinho da gente,
ainda que tenhamos a tendência a fechar os olhos para aquilo que não constitui a nossa
realidade.
Os Yanomami é um dos maiores povos indígenas da América do Sul (cerca de 38 mil).
O território deles corresponde a 9,6 milhões de hectares (quase o dobro da Suíça, por
exemplo). O primeiro contato deles com a instituição Estado foi em 1940 quando o governo
brasileiro enviou equipes para delimitar a fronteira com a Venezuela. O segundo contato mais
intenso foi em 1970, quando o governo militar decidiu construir uma estrada cortando a
Amazônia ao longo da fronteira norte - contato que levou à morte de centenas de yanomami.

Como é o estilo de vida, ordenamento e instituição dessas comunidades indígenas?


Eles vivem em casas comunais circulares que podem acomodar até 400 pessoas. A
área central da comunidade é usada para rituais, festas e jogos. Cada família deve ter a sua
própria fogueira durante a noite.
Os Yanomami acreditam fortemente na igualdade entre as pessoas. Cada comunidade
é independente das outras e eles não reconhecem “chefes”. As decisões são tomadas por
consenso, frequentemente após longos debates, onde todos têm o direito à palavra.

As tarefas são divididas de acordo com o gênero. Os homens caçam animais, como
queixadas, antas, veados e macacos, e muitas vezes usam o curare (um extrato de planta) para
envenenar suas presas. Nenhum caçador come a carne que matou. Em vez disso, ele a
compartilha entre amigos e familiares. Em troca, ele receberá a carne de outro caçador.

O mundo espiritual é uma parte fundamental da vida dos Yanomami. Toda criatura,
pedra, árvore e montanha tem um espírito. Às vezes estes são malevolentes; eles atacam os
Yanomami e acredita-se que causam doenças. Os xamãs controlam esses espíritos inalando
um rapé alucinógeno chamado yakoana. Através de suas visões e em um estado de transe, eles
encontram os espíritos ou xapiripë.

Dentro da teoria de Romano, os Yanomami podem ser considerados uma instituição e


um ordenamento.

O conflito entre instituições e ordenamentos a partir de Santi Romano.


Durante a década de 1980, cerca de 40.000 garimpeiros invadiram terras Yanomami
pela corrida pelo outro. Em 1993, um grupo de garimpeiros entrou na aldeia de Haximu e
assassinou 16 Yanomami, incluindo um bebê. Depois de um clamor nacional e internacional,
um tribunal brasileiro condenou cinco garimpeiros por genocídio. Apenas dois deles estão
cumprindo sentenças na prisão. Aqui temos ao menos relação entre 3 instituições e
ordenamentos diferentes: indígenas, garimpeiros e Estado.
Essas relações entre diferentes instituições e ordenamentos será explicado com mais
calma pela minha colega.
Vídeo legal: https://survivalbrasil.org/povos/yanomami

Perguntas finais:

● O que é o direito? "[...] o direito antes de ser norma, antes de se referir a uma simples
relação ou a uma série de relações sociais, é organização, estrutura, atitude de uma
sociedade em que é vigente e que para ele se constitui como uma unidade, como um
ser existente por si mesmo”. (p. 78)
● O que é o Estado? O Estado é apenas uma projeção parcial do direito. Ele é mais uma
das instituições existentes no mundo da vida, formado em um contexto histórico bem
específico. Como conversamos em sala, o Estado é uma estrutura branca, patriarcal e
burguesa. “O Estado é sempre e sobretudo um regime, um ordenamento jurídico, uma
instituição em que o monarca, os súditos, o território, as leis são somente elementos”
(p.110)
● O que é a lei/norma? Para o Estado, a norma jurídica é o objeto e o meio de atividade
do ordenamento jurídico estatal.
● Quais são as relações entre direito e Estado para o autor? Para o autor, o Estado é uma
instituição. Como argumenta em sua teoria, a instituição tem uma relação de
equivalência com o seu ordenamento/direito. Assim sendo, o direito como
ordenamento jurídico é uma instituição e, vice-versa, toda instituição é um
ordenamento jurídico (p.78). Essa também é a relação existente entre
direito/ordenamento e Estado.
● Como direito e história se relacionam na obra do autor? O direito não é abstração. A
sua origem está na efetividade dos fatos sociais.

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