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Um poema do Piva

Esse texto não tem outro objetivo que não o de apresentar uma análise de um poema
de Roberto Piva, presente em seu livro 20 poemas com brócoli. O poema escolhido é o de
número I.

O primeiro verso começa com a frase “última locomotiva”. Há duas informações aqui,
uma de caráter imagético, outra temporal. Não há um sujeito que age em relação à
locomotiva, que espera, aguarda, adentra, senta, vê ou perde a última locomotiva. Há apenas
a imagem de uma locomotiva, que é a última. Sendo a última, supõe-se que algo está perto do
fim. O fim do dia, o fim do expediente, o fim do serviço de trens.

O verso continua com “gregos de Homero”, que se completa no verso seguinte com
“sonhando dentro do chapéu de palha”. A imagem é curiosa. O sujeito da frase, “gregos de
Homero”, estão sonhando dentro de um chapéu de palha. A aproximação entre “gregos de
Homero” e “chapéu de palha” soa estranha, ainda mais por estarem os gregos sonhando
dentro do chapéu. Tais aproximações incomuns não são raras na obra de Piva. Mas, nesse
caso, podemos pensar o seguinte: os gregos de Homero estão sonhando dentro de uma
cabeça que usa um chapéu de palha. Do chapéu surge a cabeça, e dentro dela a imagem dos
gregos de Homero sonhando. O que talvez indique que a própria cabeça que usa o chapéu de
palha também sonhe. E indica também que há um personagem se delineando no poema, que
pode ou não se identificar com o eu lírico do poema.
Os próximos dois versos são: “últimas vozes antes dos lábios &/ dos cabelos.
sonoterapia voraz”. Repete-se aqui a idéia do fim de algo, manifestada pela palavra “últimas”.
Última locomotiva, últimas vozes. Algo termina ou fica para trás. Mas outra coisa está no
horizonte: lábios e cabelos. A metonímia tem teor erótico, especialmente no que diz respeito à
“lábios”. Aqui percebemos que alguém está indo encontrar um possível amante*. E por ser o
fim do dia, a última locomotiva, as últimas vozes, vem o sono, devorador da consciência:
sonoterapia voraz.

O verso seguinte mostra que o poema se dirige a alguém: “você adora as folhas que
caem”. O eu lírico, que surge aqui já totalmente explicitado, dirige-se a seu amante. O verso se
completa com “no lago escuro”. Seria equivocado dizer que a imagem de folhas caindo num
lago escuro faz o eu lírico lembrar-se do amante, pois este já era não só lembrado como
ansiado nos versos anteriores. O que se pode dizer é que a imagem reforçou a lembrança,
fazendo com que a mente lírica ligasse a paisagem ao amante, ou que o desejo fizesse a
paisagem ganhar sentido pela relação com a lembrança do amante.

Nesse ponto, há uma mudança de tom. O poema que até então tinha uma tonalidade
basicamente imagética, ou na terminologia poundiana, fanopaico, ganha uma inflexão
reflexiva. O logos, a logopéia poundiana, faz uma breve intromissão. Os versos seguintes são:
“este é o banquete do poeta/sempre/querendo/penetrar/no caroço/da verdade.” A forma
dada a este trecho revela também sua peculiaridade. Os cortes que isolam uma ou duas
palavras impõem uma verticalidade que rompe com a horizontalidade dos versos anteriores.
Tal verticalidade pode ser associada ao verbo “penetrar”, isolado e ligeiramente recuado em
relação aos versos “sempre/querendo” e “no caroço/da verdade”. Se no primeiro par as
palavras estão perfeitamente uma embaixo da outra, no segundo os versos avançam, como a
indicar um movimento de penetração em direção ao “caroço da verdade”.

O logos se intromete no poema por esse “caroço da verdade”. Não seria a verdade o
alvo de cientistas e filosófos? Por que o poeta quer penetrá-la? O fato é que a verdade é o alvo
de todos. O ser humano tem o fetiche da verdade. A pretensão da verdade. Ela é uma musa
sedutora e, quiçá, inatingível. Note-se, porém, que o eu lírico não deseja penetrar na sua
verdade. Quer penetrar na verdade, objetiva, última, independente de qualquer subjetividade.
Mais: quer penetrar o caroço da verdade. Não apenas penetrar na verdade até o seu caroço,
mas penetrar o caroço mesmo da verdade. O poeta anseia por ir sempre além, ir mais fundo,
abrir brechas até a essência das coisas.

O meio que o poeta tem de penetrar “no caroço da verdade” é a poesia. É ela o meio e
o fim dessa busca. Pois aquilo que ele descobre talvez não seja a verdade. Mas o que ele nos
mostra é a verdade da poesia. Uma verdade avessa a métodos e sistematizações. Aberta,
porém, a sínteses, sugestões, aproximações, fantasias, idiossincrasias, intuições, palavras,
formas. Se a verdade da poesia pode conduzir à verdade última, é difícil saber. Mas a via
poética à verdade é próxima da do místico: quando certeira, corta o caminho de todas as
metodologias.

O poema retoma sua tonalidade habitual nos dois versos seguintes: “nariz do garoto
negro apontando para/praça apinhada de tucanos sambistas”. Volta a ênfase nas imagens,
volta o predomínio da horizontalidade. O próprio tamanho dos versos (doze e onze sílabas,
respectivamente), que juntos estendem-se quase que de ponta a ponta da página, sugere o
deslizar da locomotiva no trilho, rumo ao seu destino. Que chega, afinal, no último verso:
“você tranca o planeta”.

Reaparece o “você’, a quem o poema e o eu lírico se dirigem. Mas é o verbo que causa
estranheza: você tranca o planeta. Que significa “trancar o planeta”? Podemos trancar algo em
algum lugar para guardá-lo, escondê-lo, protegê-lo ou mesmo puni-lo. De toda forma, o que
está trancado está momentaneamente fora das vistas, afastado do convívio. Nesse caso, é o
planeta que é afastado. O “você” amante alheia o planeta, enclausura-o numa outra dimensão,
distinta da amorosa. Todas as imagens, sonhos e pensamentos estimulados pelo planeta
dissipam -se. Só o “você” importa agora.

Essa análise, no fundo, pretendeu mostrar duas coisas. A primeira é que há nas
imagens usadas por Piva em seus poemas muito mais que mera aleatoriedade. E que tais
imagens, muitas vezes chocantes, ríspidas, inusitadas, exigem do leitor um certo tipo de
leitura. Diria que exige um certo tipo de abandono às sugestões imagéticas, deixando a mente
rolar de imagem em imagem até que um inesperado elo surja. E quando esse elo surge, há
uma leve transfiguração no nosso olhar sobre as coisas e sobre o poema.

A segunda pretensão dessa análise é mostrar que Piva tem um grande domínio formal
sobre sua poesia. O que é um aspecto que pode passar despercebido devido ao teor altamente
imagético e alucinado de alguns de seus poemas. Nosso primeiro impulso é tentar dar conta
do conteúdo, sem atentar tanto para a forma. O que seria mutilar nossa leitura sobre a obra
de Piva, como sobre a obra de qualquer poeta.

Se para nada, essa análise serve no mínimo como uma interpretação desse poema de
Piva. O que já é um bom exercício.

*- Deixo a palavra amante no masculino, embora não haja no poema indicação de gênero. Piva era gay,
e sua poesia tem forte pendor autobiográfico, o que sugere tal leitura. Entretanto, não queremos aqui
confundir o eu lírico com o autor.

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