Você está na página 1de 4

Autor: Carolina Cantarino

Data de publicação: 10/09/2005

Revista Com Ciência

Comida revela nossos valores culturais

“Somos aquilo que comemos”. Essa frase, espécie de sentença moral recorrente na fala
de médicos e nutricionistas, é reveladora da vinculação cada vez maior entre alimentação
e saúde presente na nossa sociedade. A preocupação com o corpo, o esforço para se
evitar doenças através daquilo que seria uma “alimentação balanceada” ou mesmo o
prazer à mesa sendo posto em segundo plano em nome de uma suposta “qualidade de
vida”. Tudo isso descreve a forma como atualmente se configura a nossa relação com a
comida: o aspecto nutricional tem preponderado na nossa alimentação.

Essa associação entre alimentação e nutrição pode ser percebida no tipo de crítica
suscitada pelo documentário Super size me no qual a preocupação com os efeitos
biológicos da alimentação no organismo humano, através da associação entre um certo
padrão alimentar – a chamada junk food – e a obesidade, é explícita. Se essa relação
estreita entre alimentação e nutrição é uma característica marcante da nossa sociedade,
não se pode esquecer que comportamentos relativos à comida não são condicionados
apenas pelo seu valor nutricional. O comportamento em relação à comida revela a cultura
em que cada um está inserido.

“Na China, por exemplo, comer no McDonald’s é sinal de mobilidade ascendente e de


amor pelos filhos. Onde quer que o McDonald’s se instale na Ásia, as pessoas parecem
admirar a iluminação feérica, os banheiros limpos, o serviço rápido, a liberdade de
escolha e o entretenimento oferecido às crianças. Mas também percebe-se que eles
gostam mais dessas coisas do que propriamente da comida!”, lembra, num artigo
(“Comida e antropologia: uma breve revisão”), o antropólogo norte-americano Sidney
Mintz ao afirmar que “o produto que o McDonald’s vende e o que as pessoas compram
não são necessariamente a mesma coisa, ainda que a empresa tenha sucesso
financeiro”.

Esses comportamentos culturais variados em relação à comida do McDonald’s – seja na


China seja nos Estados Unidos de Super size me – servem para lembrar que as
representações sociais em torno de um mesmo alimento podem variar a partir dos
valores de cada sociedade ou grupo social.

Um exemplo dessa variação cultural pode ser notada em relação à carne. Se para os
vegetarianos ela é um alimento que deve ser evitado por razões ideológicas – o
“sacrifício” e a morte de animais – para as classes mais pobres, uma característica
recorrente do aumento da renda e um sinal de ascensão social é o incremento do
consumo de proteína animal.

A relação estreita entre nutrição e alimentação – que tem criado fenômenos como os
chamados “alimentos funcionais” – cria tabus fazendo com certos alimentos ricos em
açúcar e gordura, por exemplo, sejam cada vez mais demonizados em nossa cultura.
Mas todas as sociedades proíbem certas classes de alimentos e recomendam outras. A
criação de regras, de prescrições e proibições, seja para a comida mas também em
relação a outras atividades – ao casamento, ao parentesco, à política, etc – faz parte da
chamada natureza humana. Por conta disso é que muitos antropólogos têm se dedicado
à antropologia da comida ou da alimentação.

Alimentos proibidos

Se a ciência, através dos tabus e proibições criados pela nutrição, é que tem,
predominantemente, ditado as regras e os valores em relação à comida na nossa
sociedade, não se pode esquecer das barreiras de outras ordens (religiosas, ideológicas,
folclóricas) presentes à mesa. Dentre as várias teorias, escolas ou correntes de
pensamento, dois tipos de explicação para os tabus alimentares podem ser distinguidos
na antropologia: uma de ordem mais prática e outra que enfatiza as proibições
alimentares como operações simbólicas. Vejamos a questão da origem da interdição da
carne de porco entre os judeus.

Para o antropólogo norte-americano Marvin Harris, os tabus religiosos em relação à


alimentação seriam regras culturais criadas a partir de problemas de adaptação
ecológica. Ao explicar a origem do tabu da carne de porco no judaísmo no livro Vacas,
porcos, guerras e bruxas: os enigmas da cultura, Harris afirma que a criação de suínos
seria uma atividade incompatível com o nomadismo dos pastores judeus que habitavam
os desertos nos tempos bíblicos: os porcos se alimentam diariamente, ao contrário dos
animais ruminantes prescritos pelo Velho Testamento. A proibição seria, assim, uma
forma de se impedir o consumo de uma carne cuja criação era inviável economicamente
para o grupo.

Já para a antropóloga inglesa Mary Douglas no livro Pureza e perigo, a proibição do


consumo da carne de porco entre os judeus é de ordem simbólica e não prática ou
utilitária como propõe Marvin Harris. A antropóloga parte da análise dos textos do
Levítico, um dos livros do Velho Testamento, para buscar aquelas que seriam as bases
dessa interdição: a restrição à carne de porco seria expressão de um conjunto de valores
da religião judaica dos quais fariam parte noções de santidade e de integridade. A partir
dessas noções é que os mandamentos do Velho Testamento classificam os animais que
são bons para o consumo – nesse caso, os ruminantes e de casco fendido tais como os
carneiros e as cabras – e os animais que não devem ser comidos. Nesse sentido, seria
necessário atentar não só para os animais considerados tabus mas também para aqueles
cujo consumo é recomendado.

“Note-se que não conformar-se com os dois critérios [ruminação e casco fendido]
necessários para a definição de gado é a única razão dada, no Velho Testamento, para
evitar o porco; absolutamente nada é dito sobre os seus hábitos de chafurdar na sujeira.
Como o porco não fornece leite, couro nem lã, não há nenhuma outra razão para criá-lo
exceto por sua carne. E se os israelitas não criavam porcos eles não poderiam estar
familiarizados com seus hábitos”. O porco, portanto, é considerado impuro para o
consumo não por suas características ou hábitos, mas simplesmente porque ele foge à
classificação dos animais que são bons para o consumo segundo os mandamentos do
Velho Testamento. “Eu sugiro que, originariamente, a única razão para ele ser
considerado impuro é o fato de ele, enquanto porco selvagem, não pertencer à classe
dos antílopes e que quanto a isso está em igualdade de condições com o camelo e o
texugo, exatamente como se afirma no livro”, explica Mary Douglas.
Essa arbitrariedade na escolha do porco revela que a seleção e a escolha de certos
animais, seja para proibir o seu consumo, seja para recomendá-lo, não seria explicável
apenas de um ponto de vista utilitário. As regras em torno da alimentação escapam,
portanto, a uma praticidade imediata e podem variar historicamente.

Alimentos antes desvalorizados ou cujo consumo era restrito a determinados grupos e


religiões podem ter o seu status modificado. Essas transformações em relação à comida
acompanham as mudanças que acontecem no âmbito da própria sociedade.

Status do acarajé

Um exemplo de mudança de status de uma comida é o acarajé, hoje considerado como


um prato característico da culinária baiana. A comercialização do acarajé tem início ainda
no período da escravidão com as chamadas escravas de ganho que trabalhavam, nas
ruas, para as suas senhoras, desempenhando diversas atividades, dentre elas, a venda
de quitutes nos seus tabuleiros.

O acarajé ainda é tido como um bolinho característico do candomblé. Mesmo ao ser


comercializado e consumido fora do terreiro, o acarajé ainda é considerado, pelas
baianas, como uma comida sagrada. Para elas, o bolinho de feijão fradinho frito no azeite
de dendê não pode ser separado de sua religião. Por isso, a sua receita não pode ser
modificada e deve ser preparada apenas pelos filhos-de-santo. Só que as baianas, cada
vez mais, têm que enfrentar a concorrência do comércio do acarajé nos bares,
supermercados e restaurantes.

Mas sua venda como “bolinho de Jesus” pelos adeptos de religiões evangélicas – que
postam Bíblias em seus tabuleiros – é o que tem causado mais polêmica. Muitas baianas
indagam-se sobre o por quê dos evangélicos quererem vender acarajé e não qualquer
outro quitute. Para a maioria das baianas de tabuleiro, filhas-de-santo, o bolinho é
indissociável do candomblé. Porém essa indistinção não deixa de ser, também, uma
estratégia de diferenciação de seus produtos, num contexto de concorrência cada mais
acirrada que é Salvador, uma cidade que atrai muitos turistas por ser considerada como o
locus de africanismos no Brasil, a partir dos quais uma inegável comercialização da
cultura negra tem se constituído.

Brasil Colônia
As relações de poder, as hierarquias entre os diferentes grupos sociais e modo como elas
se configuram historicamente também perpassam os costumes relativos à comida. Um
exemplo presente na história do Brasil diz respeito aos hábitos alimentares dos
portugueses no Brasil Colônia. A despeito das dificuldades econômicas e de transporte,
os colonizadores portugueses mantiveram o consumo do pão de farinha de trigo, do
azeite e do vinho mesmo com o comprometimento da qualidade desses produtos ao
serem trazidos de Portugal para o Brasil.

Ao contrário da tese de que os portugueses teriam aderido rapidamente aos costumes do


Brasil Colônia devido àquilo que seria a capacidade lusitana de assimilação de culturas
diferentes, o historiador Evaldo Cabral de Mello afirma, no artigo “Nas fronteiras do
paladar” (Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 2000) que, ao longo de todo o período
quinhentista (1532-1630), os portugueses continuaram bastante apegados aos hábitos
alimentares correntes no Reino de Portugal, procurando reproduzi-los na Colônia.
“Mesmo quem, como no caso dos jesuítas, havia substituído o trigo pela mandioca, só
usando farinha nobre para o fabrico de hóstias, não dispensava os outros gêneros da
metrópole, como o vinho e o azeite, para não falar do vinagre, das azeitonas, dos queijos
e de outras coisas que deviam vir de Portugal. Era raro haver almoço ou jantar, por frugal
que tenha sido, em que não se aluda ao consumo do vinho, inclusive no tocante ao
passadio dos reinóis modestos, como aqueles artesãos de Olinda que surgem nas
páginas da documentação inquisitorial fazendo seu repasto ortodoxamente europeu de
pão, carne e vinho”, descreve o historiador.

O desprezo dos portugueses pelos produtos locais seria explicado pelo esforço de se
diferenciar socialmente dos nativos indígenas e dos africanos. Os colonizadores
deixavam, assim, de consumir a farinha de mandioca, a aguardente de cana e o azeite de
dendê por serem esses os alimentos consumidos por aqueles que eram considerados
“inferiores”.

Você também pode gostar