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“Somos aquilo que comemos”. Essa frase, espécie de sentença moral recorrente na fala
de médicos e nutricionistas, é reveladora da vinculação cada vez maior entre alimentação
e saúde presente na nossa sociedade. A preocupação com o corpo, o esforço para se
evitar doenças através daquilo que seria uma “alimentação balanceada” ou mesmo o
prazer à mesa sendo posto em segundo plano em nome de uma suposta “qualidade de
vida”. Tudo isso descreve a forma como atualmente se configura a nossa relação com a
comida: o aspecto nutricional tem preponderado na nossa alimentação.
Essa associação entre alimentação e nutrição pode ser percebida no tipo de crítica
suscitada pelo documentário Super size me no qual a preocupação com os efeitos
biológicos da alimentação no organismo humano, através da associação entre um certo
padrão alimentar – a chamada junk food – e a obesidade, é explícita. Se essa relação
estreita entre alimentação e nutrição é uma característica marcante da nossa sociedade,
não se pode esquecer que comportamentos relativos à comida não são condicionados
apenas pelo seu valor nutricional. O comportamento em relação à comida revela a cultura
em que cada um está inserido.
Um exemplo dessa variação cultural pode ser notada em relação à carne. Se para os
vegetarianos ela é um alimento que deve ser evitado por razões ideológicas – o
“sacrifício” e a morte de animais – para as classes mais pobres, uma característica
recorrente do aumento da renda e um sinal de ascensão social é o incremento do
consumo de proteína animal.
A relação estreita entre nutrição e alimentação – que tem criado fenômenos como os
chamados “alimentos funcionais” – cria tabus fazendo com certos alimentos ricos em
açúcar e gordura, por exemplo, sejam cada vez mais demonizados em nossa cultura.
Mas todas as sociedades proíbem certas classes de alimentos e recomendam outras. A
criação de regras, de prescrições e proibições, seja para a comida mas também em
relação a outras atividades – ao casamento, ao parentesco, à política, etc – faz parte da
chamada natureza humana. Por conta disso é que muitos antropólogos têm se dedicado
à antropologia da comida ou da alimentação.
Alimentos proibidos
Se a ciência, através dos tabus e proibições criados pela nutrição, é que tem,
predominantemente, ditado as regras e os valores em relação à comida na nossa
sociedade, não se pode esquecer das barreiras de outras ordens (religiosas, ideológicas,
folclóricas) presentes à mesa. Dentre as várias teorias, escolas ou correntes de
pensamento, dois tipos de explicação para os tabus alimentares podem ser distinguidos
na antropologia: uma de ordem mais prática e outra que enfatiza as proibições
alimentares como operações simbólicas. Vejamos a questão da origem da interdição da
carne de porco entre os judeus.
“Note-se que não conformar-se com os dois critérios [ruminação e casco fendido]
necessários para a definição de gado é a única razão dada, no Velho Testamento, para
evitar o porco; absolutamente nada é dito sobre os seus hábitos de chafurdar na sujeira.
Como o porco não fornece leite, couro nem lã, não há nenhuma outra razão para criá-lo
exceto por sua carne. E se os israelitas não criavam porcos eles não poderiam estar
familiarizados com seus hábitos”. O porco, portanto, é considerado impuro para o
consumo não por suas características ou hábitos, mas simplesmente porque ele foge à
classificação dos animais que são bons para o consumo segundo os mandamentos do
Velho Testamento. “Eu sugiro que, originariamente, a única razão para ele ser
considerado impuro é o fato de ele, enquanto porco selvagem, não pertencer à classe
dos antílopes e que quanto a isso está em igualdade de condições com o camelo e o
texugo, exatamente como se afirma no livro”, explica Mary Douglas.
Essa arbitrariedade na escolha do porco revela que a seleção e a escolha de certos
animais, seja para proibir o seu consumo, seja para recomendá-lo, não seria explicável
apenas de um ponto de vista utilitário. As regras em torno da alimentação escapam,
portanto, a uma praticidade imediata e podem variar historicamente.
Status do acarajé
Mas sua venda como “bolinho de Jesus” pelos adeptos de religiões evangélicas – que
postam Bíblias em seus tabuleiros – é o que tem causado mais polêmica. Muitas baianas
indagam-se sobre o por quê dos evangélicos quererem vender acarajé e não qualquer
outro quitute. Para a maioria das baianas de tabuleiro, filhas-de-santo, o bolinho é
indissociável do candomblé. Porém essa indistinção não deixa de ser, também, uma
estratégia de diferenciação de seus produtos, num contexto de concorrência cada mais
acirrada que é Salvador, uma cidade que atrai muitos turistas por ser considerada como o
locus de africanismos no Brasil, a partir dos quais uma inegável comercialização da
cultura negra tem se constituído.
Brasil Colônia
As relações de poder, as hierarquias entre os diferentes grupos sociais e modo como elas
se configuram historicamente também perpassam os costumes relativos à comida. Um
exemplo presente na história do Brasil diz respeito aos hábitos alimentares dos
portugueses no Brasil Colônia. A despeito das dificuldades econômicas e de transporte,
os colonizadores portugueses mantiveram o consumo do pão de farinha de trigo, do
azeite e do vinho mesmo com o comprometimento da qualidade desses produtos ao
serem trazidos de Portugal para o Brasil.
O desprezo dos portugueses pelos produtos locais seria explicado pelo esforço de se
diferenciar socialmente dos nativos indígenas e dos africanos. Os colonizadores
deixavam, assim, de consumir a farinha de mandioca, a aguardente de cana e o azeite de
dendê por serem esses os alimentos consumidos por aqueles que eram considerados
“inferiores”.