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parte 1

CONSIDERAÇÕES GERAIS
SOBRE A DOR
1

O SIGNIFICADO DA
DOR NO ORGANISMO
Newton Barros

1 POR QUE
SENTIMOS DOR?
?
O organismo humano é tão perfeito que possui sistemas de alerta
prontos para serem acionados de modo automático diante da ocorrên-
cia de anormalidades que possam ser ameaças à vida saudável. Esses
sistemas são, portanto, mecanismos de proteção e, entre eles, estão a
dor e a febre. A febre se manifesta nas situações em que corpo humano
é invadido por seres estranhos (p. ex.: bactérias e vírus) e decorre de
reações de certas células do sangue com produção de substâncias que
atuam no cérebro, estimulando o centro que controla a temperatura e
provocando a sua elevação. A presença da febre faz com que a pessoa
procure o médico que, por sua vez, investigará o que está causando o
problema e, depois de corrigido, a temperatura deverá voltar ao normal.
De certa maneira, com a dor acontece o mesmo, pois, diante de uma
lesão ou doença em algum órgão ou parte do corpo, são
liberadas substâncias que estimulam as terminações dos
nervos, transmitindo um sinal até o cérebro e indicando
a ocorrência de alguma anormalidade no local onde se
origina o sinal. Depois de resolvida essa anormalidade,
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a dor deve desaparecer. Um exemplo típico é a dor de dente cau-
sada por uma cárie ou inflamação que desaparece logo que solucionado

ENTENDENDO A DOR O SIGNIFICADO DA DOR NO ORGANISMO


o problema. Entretanto, diferente da febre, a dor nem sempre some
completamente e, em algumas situações, ela pode tornar-se persistente
(dor crônica), o que muda o quadro, pois a maneira de avaliar o pro-
blema, a abordagem que o médico deve ter diante da pessoa com dor
persistente e os tratamentos indicados são muito diferentes. É possível
entender, portanto, que dor e febre estão relacionadas ao cérebro que
toma conhecimento de uma anormalidade por meio do sinal de alerta
vindo do local lesionado ou infeccionado. A dor que persiste acaba por
produzir alterações no funcionamento do sistema nervoso e repercussões
em várias áreas comandadas por esse sistema, como é o caso do sono e
manifestações emocionais como ansiedade e depressão.



? COMO UMA DOENÇA OU
LESÃO PROVOCA A DOR?
2

Pelo que vimos até agora, a dor pode ser comparada a parte de um
“sistema de alarme” do organismo e, realmente, é parecido com os
alarmes que conhecemos. Tomando como exemplo um alarme instalado
em um automóvel, a abertura da porta ou o vidro quebrado aciona-
rão um mecanismo que, através de um fio, comunicam-se com uma
sirene ou buzina, sinalizando que um problema está ocorrendo. No
organismo humano, um ferimento ou lesão provocados
por doenças liberam certas substâncias que acionam as
terminações nervosas (semelhante à porta aberta do car-
ro), cujo sinal percorre o nervo (semelhante ao fio), que
se comunica com a medula e depois com o cérebro, sendo
alertado para a presença de problema em determinado
local pelo surgimento da dor (como se fosse a sirene ou
buzina tocando). As substâncias químicas citadas estão normal-
mente dentro das células e, com o rompimento da membrana que as
envolve (ocasionado pela lesão), são liberadas nos tecidos do órgão
atingido e provocam distúrbios elétricos em minúsculas terminações
dos nervos que estão espalhados por todo o corpo (Figura 1.1). Como
se não bastasse, as células próximas à lesão passam a produzir outra
substância chamada prostaglandina, que, como um amplificador, torna
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Córtex
cerebral
ENTENDENDO A DOR O SIGNIFICADO DA DOR NO ORGANISMO

Nucleo talámico
ventral posterolateral Via descendente
(bloqueia a dor)

Via ascendente
(transmite a dor
MEDULA ao cérebro)

Terminação
nervosa livre

FIGURA 1.1 MECANISMO DA DOR.

a terminação nervosa ainda mais sensível, fazendo a dor ficar ainda


mais forte (o alarme toca mais alto). Dessa forma, a dor protege o
organismo porque é um alerta para a ocorrência de algo
anormal que precisa de uma providência. A finalidade prote-
tora da dor fica mais clara ao lembrarmo-nos da intensa dor produzida
por uma queimadura solar que faz não suportar nem a camisa sobre
a pele. Com essa dor, que sinaliza a existência de uma lesão, a pessoa
acaba deixando de se expor ao sol por alguns dias, tempo suficiente
para que os tecidos da pele se recomponham.

3 O QUE É
LIMIAR DE DOR?
?
Para que determinado estímulo seja sentido como dor, ele deve ultra-
passar certo limite de intensidade. No exemplo do alarme do carro,
o fato de alguém encostar-se na porta não deve acionar o mecanis-
23
mo do alarme, e sim se alguém tentar forçá-la ou conseguir abri-la.
Então, é necessária uma força de determinado nível que ultrapasse

ENTENDENDO A DOR O SIGNIFICADO DA DOR NO ORGANISMO


o limite acionador do alarme. Na dor é semelhante, pois o contato
com algum objeto, substância ou pequenas batidas em alguma parte
do corpo são percebidos pela pessoa, entretanto não provocam dor.
A menos que ultrapasse determinado limite, o estímu-
lo não será percebido como dor pelo cérebro. Esse é o
limiar cujo significado é a intensidade do estímulo que
começa a ser sentido como dor. Ele é semelhante em todas as
pessoas como parte do funcionamento do sistema nervoso normal.
Por exemplo, ao colocar a mão na água percebe-se o contato com
uma substância líquida, mesmo com os olhos fechados, mas se a água
estiver quente, o contato da pele indicará uma sensação de dor a uma
temperatura aproximada de 45 oC, representando o limiar em que
as fibras nervosas capazes de perceber a dor são ativadas. Em certas
situações, nas quais existe uma dor decorrente de lesão do sistema
nervoso (dor neuropática), o limiar de dor fica mais baixo e a pessoa
indica dor mesmo com estímulos normalmente não dolorosos, como
é o caso do contato com a água do chuveiro, com a roupa do corpo
ou até com o vento que movimenta pelos em uma região sensível.



? TOLERÂNCIA À DOR?
O QUE É 4

Seguindo o exemplo anterior, se tivéssemos vários indivíduos subme-


tidos a aquecimento da pele acima do limiar que produz dor e eles
fossem solicitados a não retirar a mão da água quente até que a dor
se tornasse insuportável, haveria grande variação de resultados, com
uns suportando mais tempo que outros. A capacidade de manter
o autocontrole, apesar da dor, é chamada de tolerância à
dor. Isso explica, em parte, porque duas pessoas com a mesma situação
(p. ex., uma cirurgia, traumatismo, dor de dente) podem relatar dife-
rentes experiências quanto à dor: uns indicam terem tido dor extrema
diante daquela situação e outros poderão queixar-se de pouca dor. Um
exemplo de tolerância à dor é o faquir que suporta horas sobre uma
cama de pregos sem esboçar qualquer sofrimento.
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5 QUE MECANISMOS
?
ENTENDENDO A DOR O SIGNIFICADO DA DOR NO ORGANISMO

NATURAIS O ORGANISMO
UTILIZA PARA ALIVIAR A DOR?
Assim como existe a transmissão do estímulo doloroso desde o local
da lesão até o cérebro (via ascendente), o sistema nervoso tem um
mecanismo de controle próprio que minimiza aquela dor por meio
da produção de substâncias químicas e estimula fibras nervosas que
bloqueiam a dor na medula (via descendente). Essas substâncias são
as encefalinas e as endorfinas – descobertas na década de 1970 –, uma
espécie de morfina, produzidas pelo cérebro. É interessante citar que
o ópio era usado há mais de 5 mil anos para aliviar a dor; a morfina
foi extraída do ópio em 1804 e, somente em 1970, foi descoberta a
existência de receptores opioides no sistema nervoso, demonstrando
que esse é um mecanismo que o próprio organismo humano usa para
aliviar a dor. Receptores são locais específicos no sistema nervoso
igualmente existentes em outras partes do organismo, onde se ligam
substâncias (naturais ou artificiais) para produzir suas ações. É como
se fossem fechaduras em que somente a chave certa pode entrar e
abrir a porta. Várias outras substâncias também estão envolvidas
no controle da dor no cérebro, como é o caso da serotonina. Assim,
se houver níveis altos de endorfinas, encefalinas e se-
rotonina, a pessoa sente menos dor. E o contrário torna o
indivíduo mais sensível a ela. Existem maneiras de aumentar o nível
dessas substâncias e reduzir a dor por meio do uso de medicamentos
ou outros métodos, como é o caso do exercício físico que contribui
para o aumento das endorfinas.

6 UM PROBLEMA OU LESÃO
NO SISTEMA NERVOSO ?
PODE PRODUZIR DOR?
Uma alteração no sistema nervoso pode ser comparada a um defeito
no sistema de alarme do carro que dispara sem ter sido aberta a porta
ou quebrado o vidro do veículo. Um distúrbio no sistema de
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ENTENDENDO A DOR O SIGNIFICADO DA DOR NO ORGANISMO


Nervo espinal

Vasos sanguíneos
Epineuro

Perineuro
Endoneuro
Fibra
nervosa
sem bainha
de mielina Fascide
Fibra nervosa
com bainha Fibras
de mielina nervosas

FIGURA 1.2 ANATOMIA DO NERVO.

transmissão da dor (nervos [Figura


1.2], medula, cérebro) pode gerar
uma dor muito intensa e de difícil
tratamento, chamada dor neu-
ropática. São exemplos as lesões que
atingem os nervos dos membros inferio-
res e superiores, chamadas neuropatias
Nervo com bainha periféricas que podem ser provocadas
de mielina normal
pelo diabetes, por certos medicamentos
ou ainda pelo herpes-zóster. O trau-
matismo na medula ou o derrame que
atinge certas áreas do cérebro também
podem ser causa de dor neuropática pela
Nervo com bainha lesão no sistema nervoso central. A dor
de mielina danificada neuropática continua sendo um desafio
para a medicina, e, apesar de novos me-
FIGURA 1.3 A LESÃO NA dicamentos e procedimentos cirúrgicos
BAINHA DE MIELINA QUE
ENVOLVE O NERVO É UMA (como o implante de estimuladores no
DAS CAUSAS DE DOR cérebro ou medula), os resultados são
NEUROPÁTICA. ainda insatisfatórios (Figura 1.3).
26
COMO A DOR
7
?
ENTENDENDO A DOR O SIGNIFICADO DA DOR NO ORGANISMO

É PERCEBIDA
PELO CÉREBRO?
Os cerca de 100 bilhões de neurônios do cérebro formam uma
complexa rede que controla e coordena o funcionamento de todo o
organismo humano e as relações com o meio externo. É o cérebro
que mantém o coração pulsando, os pulmões funcionando, comanda
os movimentos do corpo, armazena informações (memória) e faz as
pessoas se emocionarem diante de diferentes situações. Em resumo,
é ele que protege o organismo e mantém a vida, de tal modo que,
quando se fala em “morte cerebral”, significa dizer que o retorno à
vida é irreversível, ao contrário do coração que pode ser recuperado
e até trocado (transplante).
O cérebro tem muitas maneiras de perceber o que
acontece no ambiente, recebendo sinais captados pe-
los órgãos dos sentidos e reage sempre na tentativa de
proteger o organismo e a vida. A simples visão de um animal
feroz, por exemplo, provoca uma reação de lutar ou fugir comandada
pelo cérebro, com produção de hormônios que, lançados na circula-
ção, fazem subir a pressão, acelerar o coração e tornar a respiração
ofegante, isto é, o organismo fica preparado para o enfrentamento
da situação adversa. É a chamada “reação de stress”.
A dor é um sinal enviado ao cérebro avisando da ocorrência de al-
gum problema ou lesão (perigo à integridade) para que seja tomada
uma providência. Esse é um sinal elétrico que percorre um nervo
desde o local onde aconteceu a lesão até a medula e depois até o
cérebro, tudo em frações de segundos (Figura 1.4). E a ordem do
cérebro retorna por outra via nervosa, também de maneira muito
rápida, provocando uma reação. Para entender isso basta lembrar
quando encostamos um dedo num objeto muito quente e a mão é
retirada de uma forma repentina. Essa não foi uma atitude pensada
e, sim, automática e comandada pelo sistema nervoso para evitar
uma queimadura.
Antigamente, imaginava-se a transmissão da dor como um mecanis-
mo muito simples, através de um nervo até o cérebro, o que motivou
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O neurônio motor O neurônio
envia mensagem sensitivo envia

ENTENDENDO A DOR O SIGNIFICADO DA DOR NO ORGANISMO


ao músculo da a mensagem Neurônio Parte
perna antes que á medula através intermediário motora do
o cérebro registre do nervo que passa a cérebro Parte sensitiva
a dor
mensagem ao
do cérebro
neurônio motor.

Medula
O neurônio
sensitivo envia
a mensagem
para o cérebro

FIGURA 1.4 MECANISMO DA DOR.

tratamentos que cortavam o nervo na tentativa de deixar a pessoa


livre do problema, a exemplo de cortar o fio de eletricidade para
evitar que o alarme dispare. Estudos posteriores mostraram que a
situação é muito mais complexa, pois esse sinal percorre vários se-
tores do cérebro que estão relacionados com outras questões como,
por exemplo, emoções, sono e memória de experiências prévias.
Constatou-se que as alterações no sistema nervoso provocadas pela
dor persistente permaneciam mesmo que fosse cortada a comunicação
pelo nervo, ou pior, o nervo lesionado provocava outro tipo de dor,
a dor neuropática, muito mais difícil de ser tratada e solucionada.
A dor é uma experiência individual, isto é, cada um a
sente do seu jeito, e ela provoca reações diferentes de
acordo com o indivíduo, suas características e experiên-
cias anteriores. A preocupação intensa e o medo de ter alguma
determinada doença ou lesão favorecem a percepção de dor ou ampli-
ficam a sensação de dor, mesmo sem ter ocorrido a mencionada lesão.
Em razão disso, a Associação Internacional para o Estudo
da Dor (IASP) conceituou a dor como “uma experiência
sensitiva e emocional desagradável, sentida em função
de uma lesão tecidual real ou presumida”.
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Para ilustrar como funciona a memória da dor, um exemplo interes-
sante é o de uma criança que precisa receber uma injeção. Na primeira
ENTENDENDO A DOR O SIGNIFICADO DA DOR NO ORGANISMO

vez chega alegre e brincando no ambulatório e, mesmo avisada sobre


a “picadinha igual a um mosquitinho”, chora diante da primeira ex-
periência dolorosa. Na segunda vez os pais terão maior dificuldade
em convencê-la a comparecer ao mesmo local e, outras vezes talvez
nem queira passar por perto, mesmo que seja para comprar um
brinquedo na loja ao lado. A questão é que a experiência de dor fica
“gravada” na memória e é reavivada toda vez que algum fato evoca
a lembrança do episódio que a produziu, mesmo que (dessa vez) não
esteja relacionado a algo que possa provocar dor.
Por tudo isso, é possível perceber a complexidade da dor, princi-
palmente quando persistente ou crônica, os diferentes mecanismos
e as reações envolvidas, e, diante do problema, a necessidade de
tratamentos com múltiplos enfoques, considerando questões físicas
e emocionais.

?
8 EXISTEM PESSOAS QUE
NÃO SENTEM DOR?
Felizmente é muito raro, mas existem. Aproximadamente 48
casos foram descritos no mundo de analgesia congêni-
ta ou insensibilidade congênita à dor. Trata-se de crianças
que nasceram com o sistema nervoso sem nenhuma anormalidade
aparente, porém não sentem dor quando se machucam ou sofrem
traumatismos. Os estudos sugerem que é uma doença genética e,
portanto, passível de passar de pais para filhos. Pela inexistência da
dor como alarme, essas crianças podem sofrer ferimentos, fraturas e
automutilações (mastigação dos dedos, mordedura da língua) e, ao
chegar à vida adulta, demonstrar sequelas disso, como deformidades
ósseas e articulares. Alguns indivíduos não sobrevivem a doenças que
se disseminam por não existir a dor como sinalização para procurar
auxílio médico.

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