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LIVRO DE REDAÇÃO

Quase todos os concursos públicos de nível superior, bem como


vestibulares de universidades públicas ou particulares incluem uma questão de
redação. Em algumas instituições, a redação não é apenas uma questão da
prova de português, mas uma prova à parte, frequentemente eliminatória. Esse
procedimento se justifica porquanto a redação é imbatível quando se pretende
avaliar o raciocínio lógico do candidato, sua capacidade argumentativa ou
expositiva e, sobretudo, seu domínio do idioma.

ASPECTOS FORMAIS

Sempre é bom ter em mente a intenção das bancas quando propõem o


teste de redação. Redação vem de redigir, isto é, escrever. O que se
pretende avaliar na redação é a capacidade de o candidato expressar suas
ideias em linguagem culta. Por isso, o componente mais importante da nota
será sempre a linguagem (excetuando-se talvez as redações técnicas, ou
seja, aquelas que abordam conhecimentos específicos do cargo pretendido).
Em algumas instituições, como, por exemplo, a Fundação Carlos Chagas, a
linguagem vale a metade da nota, ou seja, pesa tanto quanto a estrutura e o
conteúdo somados. Apesar disso, sempre é bom tomar alguns cuidados quanto
a aspectos formais.

O título

1. É necessário colocar título na redação?

Se não houver instruções específicas, exigindo ou proibindo o título, o


que é raro, é preferível colocá-lo. Todos os textos, sejam artísticos, críticos ou
informativos, costumam trazer um título, que é, antes de mais nada, uma
informação sobre o assunto que vai ser abordado. A partir dessa informação, o
leitor pode saber se o tema lhe interessa ou não.

2. Depois do título se coloca ponto?

Se o título for apenas uma expressão, não se usa ponto:

A reforma agrária
A pobreza nas grandes cidades

Se o título for uma oração, ou houver pontuação intermediária, sim.

Precisamos preservar nossas florestas.


Tecnologia avançada: um bem ou um mal?

A letra

A letra não precisa ser bonita (não é um teste de caligrafia), mas deve
ser legível. Você pode usar qualquer tipo de letra, mas não faça caracteres
diferentes do convencional com o argumento de que o meu "m" ou o meu "j"
sempre foram assim. Você não estará lá para dizer isso ao corretor.

As margens

Se houver margens na folha destinada à redação, você deve respeitá-


las, é claro. Se não, procure alinhar suas frases à esquerda e à direita. Não
faça margens exageradas, porque isso pode ser considerado um artifício para
aumentar o número de linhas da redação. Marque bem os parágrafos.

Os limites

Respeite rigorosamente os limites estabelecidos para a redação. Se


você não atingir o limite mínimo, algumas bancas nem sequer avaliarão o seu
texto; outras irão descontar pontos da nota final. Se você ultrapassar o limite,
as linhas a mais não serão consideradas. Conte as linhas no rascunho para
constatar se é preciso escrever um pouco mais ou cortar algumas frases para
se enquadrar no espaço concedido.

Os erros

Se você cometer erros ao passar a redação a limpo, risque a palavra


indevida de forma discreta, mas clara e escreva a seguir o termo desejado.
Procure evitar riscos e borrões, porque a apresentação do texto, embora
subjetivamente, pode influenciar o corretor.

Os parágrafos

Considerando que a redação precisa ter introdução, desenvolvimento e


conclusão, o texto terá no mínimo três parágrafos (geralmente tem mais,
porque o desenvolvimento se desdobra em dois ou três parágrafos). É
preferível que os parágrafos não sejam muito pequenos e possuam mais de um
período.

A estrutura

As redações convencionais compõem-se de uma introdução, seguida do


desenvolvimento e da conclusão. Na introdução, apresenta-se o tema; no
desenvolvimento, expõem-se os fatos que se examinam ou apresentam-se
argumentos que sustentam nosso ponto de vista; na conclusão, arremata-se o
texto.

TIPOS DE REDAÇÃO

A redação, em concursos ou vestibulares, salvo exceções muito raras, é


uma dissertação, isto é, a análise de uma ideia ou o exame de um fato.
Embora algumas bancas, como a UFRGS, por exemplo, aceitem inserções
narrativas, desde que sejam breves e estejam a serviço da análise ou da
discussão do tema, esse recurso envolve um certo risco. Em concursos, o
espaço para a redação é sempre muito reduzido (cerca de 25 ou 30 linhas) e a
experiência nos mostra que poucos candidatos conseguem ser concisos
nessas inserções. Em princípio, não aconselhamos passagens narrativas ou
descritivas, mas tampouco queremos excluí-las. A dissertação pode ser
argumentativa (mais frequente) ou expositiva.

A REDAÇÃO ARGUMENTATIVA

A redação será argumentativa quando o candidato precisa sustentar um


ponto de vista (uma tese), a qual lhe é proposta sob forma de pergunta ou
afirmação.

Exemplo de redação argumentativa com tema sob forma de pergunta:

Recentemente, num concurso para o cargo de policial rodoviário


federal, a CESPE, depois de alguns textos motivadores, pediu ao candidato
que redigisse uma dissertação que responderia à seguinte pergunta: O
principal problema das megalópoles é a superpopulação? Qualquer que
seja a resposta, teremos uma tese, que necessariamente terá de ser
sustentada com argumentos.

Primeira hipótese:

Se o candidato responder afirmativamente, terá uma tese: o principal


problema das megalópoles é a superpopulação, e deverá argumentar para
sustentar seu ponto de vista, enumerando os problemas decorrentes da
superpopulação (poluição, trânsito congestionado, verticalidade, superlotação
de hospitais e escolas, filas, violência instigada pelo tráfico, etc.), contrapondo-
os à situação de cidades pequenas, onde essas dificuldades não ocorrem ou
são mínimas.

Segunda hipótese:

Se a resposta for negativa, o candidato também terá uma tese: o


principal problema das megalópoles "não" é a superpopulação, e deverá
argumentar para sustentá-la, lembrando que os problemas decorrentes da
superpopulação podem ser resolvidos (e o foram em muitas grandes cidades)
com metrôs, técnicas modernas de tratamento de esgotos, planejamento
urbano para evitar a verticalidade, priorização de áreas como saúde, educação,
policiamento eficaz, etc. Além disso, poderá reforçar seu ponto de vista
apresentando outros problemas típicos de cidades grandes, mais graves e de
mais difícil solução, que não estão diretamente ligados à superpopulação,
como falta de fraternidade, competição, exclusão social, indiferença, etc.

Exemplo de redação argumentativa com tema sob forma de afirmação:

A mesma CESPE, num concurso para o cargo de escrivão da Polícia


Federal, depois de alguns textos motivadores, pede ao candidato que redija
uma dissertação, posicionando-se acerca da seguinte frase de Sérgio
Abranches: "A sociedade não é o retrato apenas de seus governantes, é o
retrato de seus cidadãos, em destaque, de suas elites. É o nosso retrato,
do Brasil todo, de todos nós". Aqui, a banca não está perguntando a opinião
do candidato sobre um determinado tema, mas fazendo uma afirmação sobre a
qual ele deve posicionar-se, isto é, a banca já está dando a tese. Esse
procedimento de afirmar em vez de perguntar ocorre geralmente quando o
que se afirma é uma obviedade e não uma ideia polêmica.
Agora, cabe ao candidato procurar os argumentos para sustentar uma
afirmação que lhe foi proposta pelos examinadores. Alguém perguntaria se o
candidato não pode posicionar-se contrariamente à tese proposta. Em
princípio, sim, mas esse procedimento geralmente não é aconselhável, porque
a busca de argumentos geralmente é mais difícil, e o tempo, em concursos, é
sempre muito limitado. O mais aconselhável, quase sempre, é sustentar a
tese proposta. No caso presente, isso poderia ser feito enumerando as
qualidades dos brasileiros (bom-humor, cordialidade, tolerância religiosa,
ausência de sentimentos racistas, propensão à solidariedade, etc.), que
obviamente não dependem de nossos governantes porque são permanentes.
Poderemos ainda reforçar esse argumento, enumerando alguns defeitos de
nosso povo, que igualmente não dependem de nossos governantes: tolerância
com políticos corruptos, procedimentos levianos como compra de produtos
piratas, direção irresponsável, sonegação de impostos, comportamento
antiecológico, mania de levar vantagem, etc. Poderíamos exemplificar citando
Mário de Andrade, que criou um herói brasileiro (Macunaíma) sem nenhum
caráter.

Como se faz uma redação argumentativa?

Na verdade, a pergunta deveria ser como se pode fazer uma redação


argumentativa? Existem muitas possibilidades de desenvolver um bom texto.
A experiência de muitos anos permite que possamos sugerir aos candidatos
um roteiro simples e prático, de acordo com os critérios de correção, as
exigências das bancas mais conhecidas e, sobretudo, o tempo relativamente
curto de que se dispõe.
Como o tema vem frequentemente sob forma de pergunta, é preciso
responder a ela de forma clara e objetiva. Um equívoco muito comum, que
desqualifica a redação, consiste em ficar divagando genericamente sobre o
tema, abordando aspectos diferentes daqueles que foram solicitados, sem
responder à pergunta proposta.

Vejamos um exemplo dessa última situação.

Num concurso realizado em Rio Grande, cidade do interior gaúcho,


depois de alguns texto motivadores, perguntava-se se beleza é fundamental.
Alguns candidatos tangenciaram o tema escrevendo genericamente sobre
beleza, abordando aspectos como a relatividade dos conceitos de beleza
(que variam com o tempo e com os critérios de cada região), os vários tipos de
beleza, a presença da beleza como inspiradora das artes plásticas, o viés
trágico da beleza, instigadora de conflitos como a Guerra de Tróia, etc. Ocorre
que o tema não é beleza, uma abstração genérica, mas a importância da
beleza.

Como fazer?
Para elaborar adequadamente uma redação, antes de começar a
escrever, é preciso pensar, quer dizer, planejar o texto. Diante da pergunta
proposta, existem duas respostas bem simples: sim ou não. Este é o momento
de o candidato refletir sobre os argumentos que pode utilizar no caso de
resposta positiva ou negativa. Afinal, será preciso preencher trinta linhas. Bem,
então, vejamos: é mais fácil encontrar argumentos para sustentar que beleza é
fundamental ou que não é? Bem, a resposta parece óbvia: é mais fácil
sustentar que beleza não é fundamental. As maiores expectativas dos jovens,
em geral, são uma relação afetiva feliz e sucesso na profissão. Nem um nem
outro desses projetos dependem de beleza física. Então, já é possível fazer a
primeira escolha (que é a mais importante), a escolha da tese, do ponto de
vista que se vai defender. Essa opção deve ocorrer depois de refletir sobre
os argumentos que se poderão empregar. Aí, então, teremos a nossa
mensagem e os nossos argumentos. Podemos começar.

A introdução

Na introdução, apresenta-se o tema. Existem muitas formas


inteligentes de fazê-lo. Numa redação argumentativa, uma possibilidade de
introdução que encaminha com naturalidade o processo argumentativo é uma
concessão seguida da enunciação da nossa tese. Concessão vem de
conceder, abrir mão de alguma coisa, aceitar alguns argumentos contrários à
nossa tese. Como nosso ponto de vista será o de que beleza não é
fundamental, podemos começar admitindo a importância da beleza, para, a
seguir, expor nosso pensamento a respeito do tema:

Vivemos numa sociedade que valoriza muito a aparência física.


Garotas bonitas escolhem seus namorados. Jovens fisicamente bem-dotados
empregam-se como modelos. Alguns ficam ricos e famosos. Beleza física, em
alguns casos, pode fazer a diferença; mas não é fundamental: o poeta estava
enganado.

O desenvolvimento

Apresentamos o tema e expusemos claramente nosso ponto de vista.


Agora vem o desenvolvimento, que, neste tipo de redação, é essencialmente
argumentativo. Além disso, é preciso que haja unidade no texto, isto é, tudo o
que incluirmos no desenvolvimento (argumentos, exemplos, citações) deve
estar a serviço da demonstração de nossa tese, enunciada na última frase
da introdução. Escolhemos dois argumentos (beleza não é fundamental para
ser bem-sucedido na profissão, nem para construir uma relação afetiva feliz);
por isso, vamos dividir o desenvolvimento em dois parágrafos e, em cada um
deles, desenvolveremos um dos argumentos:

I- Um dos maiores projetos da grande maioria dos jovens é o desejo de


ser bem-sucedido na profissão que escolhe quando estudante e vai exercer
depois de formado. Ora, ninguém precisa ser bonito para se tornar um
profissional exitoso. Quem adoece procura um bom médico; quem se meteu
num "rolo" vai contratar um advogado competente; quem precisa consertar o
carro, cortar o cabelo ou renovar a pintura da casa vai recorrer a pessoas que
prestam bons serviços em todas essas áreas de atividade. Ninguém contrata
profissionais pela fotografia. Mesmo em áreas que aparentemente podem ser
ajudadas por uma boa "estampa", como apresentadores de televisão, cantores,
atores, não precisamos de muito esforço para apontar profissionais (alguns até
um tanto "mal-acabados") que se tornaram ídolos pelo talento e pela
dedicação. Sem beleza também se chega lá.
II- Outro objetivo da grande maioria dos adolescentes é construir uma
relação afetiva feliz. Todos nós temos amigos ou conhecidos em quem não
votaríamos se fossem candidatos a um concurso de beleza e, não obstante,
conseguiram consolidar uniões bem-sucedidas, porque se conduzem com
doçura e lealdade. Por outro lado, também fazem parte de nossas relações
pessoas bonitas e glamourosas, que, por incontáveis razões, não conseguem
se relacionar de forma estável, "pulam de galho em galho", vivem infelizes e,
muitas vezes, terminam lastimavelmente sozinhos. A beleza, unicamente, não
consegue transfigurar o sem graça do cotidiano em sonhos, fantasias e
grandes amores, aqueles em que o instinto de posse cede à doação e ao
companheirismo.

Argumentamos para sustentar nosso ponto de vista. Chegou o momento


de encerrar o texto. A conclusão consiste em retomar a tese. Qualquer
acréscimo que se incluir no texto será válido desde que, de algum modo,
possa contribuir para consolidar nossos argumentos.

Conclusão

Os antigos já diziam que "beleza não põe mesa". Quem quiser realizar-
se em suas atividades profissionais precisa de talento ou, pelo menos, de
disciplina e dedicação; quem quiser ser feliz em suas relações afetivas trate de
substituir o egoísmo pela solidariedade. Beleza só é fundamental mesmo num
concurso de beleza.

Outro exemplo

Alguns anos atrás, no primeiro mandato do presidente Lula, ocorreu uma


consulta popular sobre a proibição de comercializar armas em nosso país.
A população manifestou-se contrariamente à proposta. Poucos meses depois,
a Fundação Carlos Chagas apresentou o tema como redação, num concurso
da época. O tema era proposto sob forma de pergunta: A comercialização de
armas deve ser proibida?
Diante da proposta, nosso procedimento deve ser sempre o mesmo.
Que argumentos nos ocorrem para responder que sim? Ou que não? Como a
maioria da população, a maioria dos candidatos também optou pela tese do
não. Sem dúvida, é mais fácil defender esse ponto de vista. Podemos
argumentar com o fato de que precisamos ter uma arma em casa para nos
defender de possíveis assaltos ou agressões; ou com o fato de que os
assaltantes continuarão armados; ou ainda com a falta de proteção policial
eficaz mesmo em áreas urbanas. Podemos ainda desclassificar argumentos
sustentados pela tese do desarmamento, como o de associar entrega das
armas a uma ideia de paz ou o de que nossas armas só servem para abastecer
os criminosos (que acabam se armando por muitos outros meios). Escolhido o
caminho, vamos pensar na introdução. Seguindo a sugestão da concessão,
poderíamos começar assim:

Introdução

Seria muito bom se o Brasil fosse um desses países do primeiro Mundo,


onde as pessoas não precisam se preocupar com assaltos, sequestros ou
agressões; ou, pelo menos, se os telefones dos postos policiais atendessem
prontamente os chamados; se esses postos tivessem viaturas; se as viaturas
tivessem gasolina. Mas, infelizmente, a situação não é essa. É uma pena que,
em nosso país apenas "as margens do Ipiranga" continuem plácidas. Ainda
precisamos de uma arma.

De acordo com nossa primeira sugestão, começamos com uma


concessão, concordando que seria muito bom se não precisássemos de
armas. A seguir expusemos claramente nosso ponto de vista. Agora chegou a
hora de sustentá-lo. Chegou a hora dos argumentos, que novamente
dividiremos em dois parágrafos:

Desenvolvimento

I- Se hoje convivemos com a violência e o crime, é muito fácil imaginar o


que poderia ocorrer quando toda a população fosse desarmada. Os criminosos
que gostam de emoções fortes iriam mudar de profissão: assaltar iria perder o
encanto. Os defensores da tese do desarmamento procuram, ingenuamente,
associar a entrega das armas a uma ideia de paz. Certamente esperam que os
assaltantes se comovam com este gesto amigo da população, que alguns se
entreguem às autoridades e ingressem na Igreja Universal do Reino de Deus.
Não é difícil calcular que a "bandidagem" deve ter votado entusiasticamente
nessa proposta.
II- Outros argumentos ingênuos sustentam que nossas armas acabam
servindo para municiar os criminosos e que as pessoas honradas não sabem
manejar as armas tão bem quanto os fora da lei. Ora, todos sabem que os
criminosos, de qualquer modo, continuarão a se armar na clandestinidade e,
geralmente, com peças muito mais poderosas do que aquelas que podemos
adquirir. Quanto ao fato de que as pessoas de bem não são peritas como os
assaltantes, não é difícil contestar que uma arma não muito bem-manejada é
preferível a nenhuma. Não se pode privar o homem honrado de defender a si
próprio e à sua família.

Chegou o momento da conclusão, isto é, de retomar a tese e


arrematar o texto. Se a inspiração ajudar, poderemos fazer isso com algum
acréscimo inteligente, que ajude a sustentar nosso ponto de vista e convencer
o leitor.

Conclusão

Não há mágica na vida: só nos circos. Ou no cinema, quando heróis


desarmados conseguem defender-se com sucesso dos malfeitores. Nesses
dias tumultuosos em que vivemos, não há sustentação para a fantasia e a
ingenuidade. Com uma arma temos uma chance. Que fazer sem ela para
sustar a ação de alguém que força a porta de nossa casa? Vamos usar um rolo
de massa? Ou reunir todo mundo na sala e rezar o terço?

Outro exemplo

Uma das dificuldades mais comuns entre os candidatos é preencher as


"malditas" trinta linhas. Recentemente, num concurso realizado no Nordeste,
uma banca local, depois de alguns textos motivadores que arrolavam
dificuldades conhecidas de nosso país, perguntava aos candidatos: O Brasil
tem solução?
Vamos lembrar uma obviedade da qual, às vezes, a garotada se
esquece: o ato de pensar antecede o ato de escrever. A tendência quase geral,
diante de uma pergunta como essa, é responder afirmativamente, porque a
atitude otimista é politicamente correta. Mas, antes, vamos pensar. Como
poderíamos sustentar esse ponto de vista? Que argumentos poderíamos
utilizar? Por que o Brasil tem solução? Qualquer pessoa medianamente
informada poderia fazer uma lista de nossos "trunfos":

-- a maior extensão de terras cultiváveis do planeta;


-- clima favorável;
-- água em quantidade (depósitos subterrâneos, rios, lagos, etc.);
-- imensas jazidas de petróleo (já somos autossuficientes, antes do pré-
sal);
-- a biodiversidade da região amazônica, de valor incalculável;
-- inesgotáveis fontes de energia (sol, rios, vento) e outras renováveis
(álcool e óleos vegetais);
-- imensas e variadas jazidas de minérios, como, por exemplo, a Serra dos
Carajás;
-- ouro, pedras preciosas, madeira em quantidade;
-- uma imensa faixa de litoral marítimo, com todas as suas riquezas e
possibilidades.

Até agora só arrolamos recursos naturais. A seguir, vamos lembrar que

-- nossa indústria cresceu e se modernizou;


-- nossa moeda estabilizou-se e se valorizou;
-- nossa democracia se consolidou, inspira confiança, atrai investimentos
externos;
-- nossos índices de analfabetismo diminuem;
-- nosso resultado na balança de comércio exterior é superavitário;
-- saldamos a dívida externa e, hoje, somos credores do FMI;
-- temos uma imprensa livre que investiga e denuncia irregularidades no
setor público;

Conclusão: quando pensamos um pouco antes de começar a


redação, nosso problema se inverte: a dificuldade agora não é preencher as
trinta linhas e, sim, encontrar espaço para dizer tudo o que conseguimos
reunir. Diante de qualquer tema que venha a ser proposto, um candidato
mediano encontrará argumentos para sustentar seu ponto de vista, geralmente
com mais facilidade do que poderia supor. Basta reservar alguns minutos para
pensar antes de começar o texto.

A redação ficaria assim:

Brasil: o país do futuro.

A sucessão quase interminável de escândalos no setor público, a


reeleição de políticos comprometidos com situações suspeitas, a escalada do
crime não parecem estimular uma expectativa otimista em relação ao futuro de
nosso país. No entanto, há muitas razões para acreditar que esse quadro
possa mudar.
Muitas nações que hoje consideramos modelos de desenvolvimento
político e ético, num passado relativamente recente, conviviam com crises
econômicas, como os EUA, em 1929, ou eram governadas por ditaduras
criminosas, como a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini, a Espanha de
Franco, ou o Japão. Educaram-se, evoluíram, transformaram-se em
democracias bem-sucedidas. Como a História se repete, temos todas as
razões para acreditar que esse processo possa ocorrer conosco. Nossas taxas
de pobreza e analfabetismo vêm diminuindo, nossa população assimilou todas
as práticas democráticas, temos uma imprensa independente, que investiga e
denuncia escândalos e atos suspeitos da vida pública; enfim, há muitos
motivos para sermos otimistas.
É preciso considerar igualmente nossos recursos naturais. Possuímos a
maior reserva de água e a maior extensão de terras cultiváveis do planeta.
Imensas bacias de petróleo, recentemente descobertas, já nos asseguram a
sonhada autossuficiência e, em breve, nos transformarão em exportadores
desse produto. A incrível biodiversidade da floresta amazônica é uma riqueza
que ainda nem sequer podemos avaliar corretamente. Nosso parque industrial
se expandiu e se modernizou, nossas safras agrícolas crescem a cada ano,
nossa moeda se fortaleceu. A estabilidade de nossas instituições gera
credibilidade externa e estimula investimentos. Quando, há cerca de cinquenta
anos, o escritor austríaco Stefan Zweig previu que o Brasil seria o país do
futuro parece ter acertado "na mosca".
Tudo indica que as próximas gerações vão crescer num país melhor,
menos desigual, mais honesto e digno. E não podemos esquecer que o
sucesso de uma nação não se limita à prosperidade econômica ou a
honestidade de seus políticos, embora esses fatores sejam muito importantes.
Com todas as suas dificuldades, nosso povo continua a dar lições de
convivência racial e religiosa, hospitalidade e bom-humor. Muitas nações
desenvolvidas poderiam aprender isso conosco.

Na introdução, após uma breve concessão, expressamos um ponto de


vista otimista, geralmente mais simpático e mais comum. Certamente a grande
maioria dos candidatos optaria por essa mesma tese. Para alunos com
facilidade de argumentação, lembramos a possibilidade de uma resposta
pessimista, que, embora possa ser considerada "politicamente incorreta", ou
menos simpática, se fosse bem sustentada, causaria forte impressão no
corretor.

Vejamos como ficaria:

Brasil: um caso perdido.

"Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe". Os
ditados populares induzem ao otimismo e estimulam a esperança. No caso de
nosso país, porém, tudo nos diz que os males, se não durarem para sempre,
no mínimo ainda vão muito longe.
As estatísticas indicam que, nos últimos anos, nosso crescimento
econômico foi vigoroso. Mas de que vale isso se as riquezas se concentram
cada vez mais nas mãos de cada vez menos pessoas? Evoluímos, há pouco,
da ditadura para a democracia. O Congresso Nacional, fechado pelos
presidentes militares, hoje está novamente atuante, mas, em vez de servir ao
povo, serve aos interesses dos parlamentares, de seus parentes e de seus
amigos, palco de favorecimentos ilícitos, escândalos e corrupção. Voltamos a
viver num estado de direito, mas os criminosos, presos depois de longas
investigações policiais, são às vezes soltos por juízes que alegam a
precariedade e a superlotação dos presídios. Temos a maior extensão de
terras cultiváveis do planeta, mas não há um canto de terra cultivável para
milhões de trabalhadores rurais que perambulam em desespero pelas
estradas.
Segundo os últimos relatórios da ONU, somos o país da impunidade,
uma das cinco nações mais desiguais do mundo. Quando aparece um político
bem-intencionado, com propostas positivas, querendo diminuir as
desigualdades sociais, ou não consegue se eleger, ou não consegue governar
em virtude do corporativismo. Cidades maravilhosas, como o Rio de Janeiro,
tornaram-se reféns do tráfico. Multidões desempregadas esperam em filas
intermináveis uma improvável oportunidade de trabalho digno que lhe assegure
e à família o quase milagre da sobrevivência. Escolas estaduais, num passado
recente, eram modelo de ensino; hoje, estão sucateadas, e milhões de jovens
que aí estudam dependem do benefício das "cotas" para ter alguma chance de
ingresso em universidades públicas. Moradores de grandes e médias cidades,
num passado recente, à tardinha, sentavam-se na frente de suas casas para
confraternizar com os vizinhos; hoje, escondem-se atrás de grades, correntes e
cadeados. A classe trabalhadora, mais vulnerável, é a vítima predileta da
"bandidagem" crescente, estimulada pela impunidade.
O exame desapaixonado de nossa condição social não deixa entrever
qualquer perspectiva de soluções a curto e médio prazo. Parecem tristemente
sábias as anedotas populares que apontam como "saídas" mais viáveis para os
brasileiros, pelo menos durante um bom tempo, o porto, o aeroporto e (para
quem acredita) a próxima encarnação. Oremos!

Aí está uma visão pessimista de nosso futuro, com a qual a


maioria dos jovens não concordaria. Para a avaliação do texto, pouco importa
que a tese seja simpática ou desagradável, animadora ou deprimente.
Qualquer ponto de vista razoável, desde que seja bem sustentado, será aceito
pelos corretores. Não se trata de ter razão, mas de construir um bom texto
dissertativo, organizado, com começo, meio e fim, isto é, tese argumentos e
conclusão. É até provável que uma opinião incomum, mas bem sustentada,
produza um efeito positivo em virtude da originalidade. A banca da UFRGS, por
exemplo, valoriza muito o que chama de "marca da autoria".

Os temas abstratos

Quando as propostas abordam temas concretos e comuns, a


argumentação fica facilitada porque estamos, a todo instante, lendo e ouvindo
informações e opiniões a respeito. Quando os assuntos são abstratos, os
argumentos são muito mais difíceis. É aí que entram os exemplos. No
concurso vestibular de 2004, a UFRGS surpreendeu os candidatos
perguntando se a esperança é fundamental para a realização de nossos
projetos pessoais.
A resposta é óbvia: sim. A dificuldade é preencher as trinta linhas com
argumentos razoáveis. Poderíamos lembrar que as pessoas ligadas à área da
motivação sabem perfeitamente que a expectativa de sucesso, ou seja, a
esperança, é o maior estímulo que podemos ter para perseverar em nossos
propósitos. Nenhuma pessoa centrada investirá recursos ou esforços na busca
de uma fantasia improvável. Bem, aí estão quatro ou cinco linhas. E o resto? É
agora que entram os exemplos.
Vamos pensar primeiro em pessoas famosas que realizaram tarefas
difíceis. Por exemplo, os navegadores do século XVI. Cristóvão Colombo teria
enfrentado mares adversos, calmarias, insubordinação de marinheiros,
escorbuto, tudo isso nas embarcações precárias da época, se não tivesse a
esperança de encontrar um novo mundo e imortalizar-se. E os estadistas
modernos? Mahatma Gandhi iria suportar a pressão do colonialismo britânico e
expor-se aos riscos que acabaram por vitimá-lo se não tivesse a esperança de
libertar seu povo? Nélson Mandela suportaria mais de vinte anos de prisão,
longe das pessoas que amava, se não tivesse a esperança de conduzir seu
país a uma condição de igualdade social, e acabar com a vergonha do
"apartheid"? E os cientistas? Jonas Salk e, depois, Albert Sabin iriam viver
anos confinados em laboratórios se não tivessem a esperança de encontrar
uma vacina e salvar milhões de crianças da poliomielite?
Vamos passar agora para pessoas anônimas. Por que razão um
jovem estuda tanto, submetendo-se às vezes à monotonia e à repetitividade de
um curso pré-vestibular, se não tivesse a esperança de realizar seu sonho? O
que leva um casal a colocar os filhos em colégios mais caros, cujas
mensalidades pagarão, às vezes, com grandes sacrifícios, se não fosse a
esperança de vê-los um dia realizados e felizes? O que poderia induzir um
missionário a abandonar o relativo conforto e a segurança de seu monastério e
embrenhar-se em regiões inóspitas se não tivesse esperança de pregar seu
evangelho e salvar as almas?
E assim por diante. Não apenas os exemplos preenchem as linhas que
faltavam como se constituem em argumentos contundentes e originais, porque
não é provável que outros candidatos tenham essa inspiração e muito menos
que usem os mesmos exemplos que elegemos. Quase todas as redações com
propostas abstratas, de difícil execução, tornam-se bem mais viáveis com esse
processo.
Vejamos outra proposta abstrata.
Em 2005, a mesma UFRGS perguntou aos candidatos se as
transgressões podem trazer resultados positivos. Num primeiro momento,
pensamos em transgressões como infrações às normas de convívio
estabelecidas pelo organismo social. Nesse caso, a resposta inevitável seria
negativa. Refletindo mais profundamente, podemos entender transgredir como
ir além, questionar, propor alternativas mais justas ou mais inteligentes
do que aquelas a que as comunidades e as pessoas, de um modo geral,
se submetem. Então, poderíamos entender que sim, que transgredir pode ser
positivo. O problema é sustentar a tese. É aí que entram os exemplos. Vamos
pensar primeiro em transgressores famosos. Não há dúvida de que o mais
famoso transgressor da história humana foi Jesus Cristo. Numa época de
conflitos e brutalidade, o Mestre questionou as leis judaicas e romanas para
trazer uma mensagem (naquele tempo absurda) de amor e solidariedade.
Quem poderia negar que os resultados de sua pregação foram positivos? E
Gandhi? Ao resistir às regras perversas do colonialismo britânico, instituir a
política da não violência e libertar seu povo, não teria sido ele um transgressor
que produziu resultados positivos? E Zumbi dos Palmares? Por não se
submeter à desumanidade da escravidão, não teria ele lançado, em nosso
país, a semente da liberdade e da igualdade entre os homens? E Einstein? Ao
ir além (transgredir é "ir além") dos conceitos científicos de seu tempo, não nos
trouxe uma nova e revolucionária visão do mundo cósmico? E quantos mais?
Jovens chineses massacrados na Praça da Paz Celestial anteciparam a
humanização do regime político em seu país; músicos brasileiros, como Chico
Buarque e Geraldo Vandré, contestaram, em suas composições, a Ditadura
Militar e contribuíram para a volta das liberdades democráticas; uma geração
de poetas e romancistas, a partir da Semana da Arte Moderna, em 1922,
rejeitando normas literárias vigentes, produziu um novo tipo de arte libertária
que facilitou o caminho para a genialidade de Drummond e Guimarães Rosa.
Todos eles foram transgressores. Todos eles contribuíram para melhorar o
mundo. Passemos agora para pessoas anônimas. Líderes comunitários, em
favelas miseráveis, que contestam o poder do tráfico para amparar pessoas
desprotegidas; trabalhadores modestos que armam uma greve para forçar
empregadores insensíveis a revisar salários indignos e condições de trabalho
desumanas; estudantes que colocam o nome de um colega momentaneamente
doente num trabalho de grupo.

Aí está mais uma amostra de que dissertações abstratas podem ficar


bem fáceis quando argumentamos com exemplos conhecidos ou mesmo
anônimos. A história, a geografia, a literatura, a biologia, a arte, enfim, o
conhecimento acumulado nos fornece dados fáceis de lembrar que podem
encorpar nossa argumentação ou até sustentá-la sozinhos.

A ESTRUTURA DA REDAÇÃO ARGUMENTATIVA

Embora seja um texto breve (as redações na maioria dos concursos


limitam-se a um máximo de trinta linhas), as redações não podem ser um bloco
único. Deve haver uma introdução (que apresenta o tema), o
desenvolvimento (é nesse espaço que iremos argumentar para sustentar
nosso ponto de vista) e a conclusão (quando retomamos a tese e encerramos
o texto). O desenvolvimento pode ser dividido em parágrafos, mas isso não
pode ser feito de forma arbitrária. Os parágrafos, em princípio, devem ter mais
de um período e necessitam submeter-se a um critério semântico, isto é,
precisa haver correspondência entre os parágrafos e as divisões do conteúdo.
Vamos exemplificar com um tema de redação proposto aos alunos do Curso
Universitário, em Porto Alegre:

Primeiro levaram os negros,


Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários,
Mas não me importei com isso;
Eu também não era operário.
Depois prenderam os miseráveis,
Mas não me importei com isso;
Porque eu não sou miserável.
Depois agarraram uns desempregados,
Mas, como eu tenho um emprego,
Também não me importei.
Agora estão me levando,
Mas já é tarde:
Como eu não me importei com ninguém,
Ninguém se importa comigo.

Bertold Brecht

Inspirado nos versos do autor, escreva um texto dissertativo


respondendo à seguinte pergunta:

A indiferença é uma atitude inteligente e eticamente aceitável?

Veja bem. Temos aqui duas perguntas:

1.A indiferença é uma atitude inteligente?


2.A indiferença é uma atitude eticamente defensável?

Nada mais razoável, diante de uma proposta como essa, do que dividir o
desenvolvimento em dois parágrafos, um para tratar de cada pergunta.
Teríamos, então, dois parágrafos unitários quanto ao conteúdo. Não haveria
bom-senso em começar a responder à primeira pergunta num parágrafo e
continuar a responder a ela no começo do parágrafo seguinte e, a seguir,
responder à segunda pergunta. Teríamos, então, uma estrutura defeituosa do
ponto de vista semântico.

A redação poderia ficar assim:

A indiferença é uma atitude inteligente e eticamente aceitável?

Nos agrupamentos primitivos e, depois, nas comunidades rurais, as


moedas de troca, que asseguravam a sobrevivência, o progresso pessoal e
coletivo eram a ajuda recíproca e a solidariedade. Com a urbanização,
deixamos de depender diretamente dos outros, substituímos a amizade pela
indiferença. Foi um retrocesso: essa não é uma atitude inteligente nem
eticamente aceitável.
Não é possível viver isolado. O destino das pessoas que vivem no
mesmo país (e até no mesmo planeta) está indissoluvelmente ligado. Uma
política recessiva, que gera desemprego, pode não nos afetar num primeiro
momento, mas, a médio e longo prazo, acabará por atingir a todos porque,
numa sociedade empobrecida, os médicos terão menos clientes, os
professores terão menos alunos, os motoristas, menos passageiros, o
comércio venderá menos, enfim, vai acabar "sobrando" para todo mundo. As
arbitrariedades de um regime totalitário, que nos pouparam num primeiro
momento, certamente irão nos alcançar no futuro, porque a ausência de reação
do organismo social diante da injustiça estimula os opressores com a
perspectiva da impunidade.
Do ponto de vista ético, igualmente, a indiferença não é absolutamente
aceitável, na medida em que se constitui na negação do amor, da amizade, da
bondade, enfim, de tudo aquilo que nos faz crescer espiritualmente como seres
capazes de partilhar nossas experiências e nossos afetos. Sociedades em que
predomina a indiferença são organismos fragmentados, que podem até
prosperar materialmente, mas não se engrandecem, e não têm mensagens
para o mundo. Aqueles que não conseguem interagir e dividir acabam isolados
como ilhas na imensidão do mar, cercadas pelo desamor e pela solidão.
Seremos pessoas melhores (e teremos uma vida melhor) quando
aprendermos a pensar coletivamente, a rir com a alegria dos outros e a chorar
com a sua tristeza. Precisamos redescobrir a alegria de compartilhar, substituir
o individualismo pela ternura e pela solidariedade. Os antigos diziam que é
"dando que se recebe". Acreditemos neles: eles tinham a sabedoria da vida.

Ainda quanto à divisão do texto em parágrafos, vamos observar mais um


exemplo. Um tema bastante frequente em redações de concurso é a
competição. Na UFRGS, esse tema foi proposto num vestibular recente, sob
forma de pergunta. Depois de alguns textos motivadores, perguntava-se aos
candidatos se a competição é positiva. Veja como poderiam ficar os
parágrafos:

A competição é positiva?

Os homens primitivos, como os animais, lutavam até a morte para


ocupar os melhores campos de caça, conquistar as melhores companheiras ou
impor-se na hierarquia tribal. Na sociedade moderna, algumas regras de
convivência amenizaram essa situação. Mas não muito. A competição continua
a despertar os piores instintos humanos.
Isso ocorre em todos os campos de atividade: nos estádios de futebol,
torcidas rivais depredam, insultam-se e agridem-se mutuamente; na indústria e
no comércio, convive-se com a espionagem, o suborno, a deslealdade; nas
campanhas eleitorais, compram-se votos, difamam-se os adversários, pratica-
se a demagogia. Vale tudo para superar os concorrentes. O objetivo é vencer.
Pouco importa que, para isso, se empreguem os processos mais sórdidos, os
meios mais desonestos. Fruto do egoísmo exacerbado, a competição induz as
pessoas a verem os "outros" não como amigos com quem se possa partilhar
experiências, mas como rivais que devem ser superados a qualquer custo.
Já nas sociedades rurais, onde quase não há concorrência porque a
sobrevivência depende de plantar e colher, as pessoas se comportam de forma
muito mais digna e cordial: ajudam-se uns aos outros, respeitam-se, cultivam
valores elevados como a honra, a coragem pessoal, a fidelidade à palavra
empenhada. Práticas como a hospitalidade, a confiança e a amizade, tão
ausentes, nas sociedades urbanas, lá são rotineiras, estimulam a convivência e
induzem à solidariedade. Onde não há competição, os vizinhos se tornam
"compadres", reúnem-se para tomar um chimarrão, contar suas experiências,
partilhar com os amigos as histórias do cotidiano, expor seus planos e pedir
conselhos.
É uma lástima que nosso egoísmo tenha criado uma sociedade
capitalista que estimula a competição, que as utopias socialistas tenham
fracassado porque os seres humanos não possuem grandeza para uma
convivência realmente amiga e partilhada. Talvez um dia possamos evoluir
para reativar esses sonhos. Até lá, é cada um por si. A solidariedade fica para
os discursos, e as orações, para os domingos.

Você percebeu a independência semântica e a unidade dos parágrafos?


No primeiro parágrafo do desenvolvimento, apresentam-se os efeitos
negativos da competição nos mais variados setores da vida urbana moderna;
no segundo parágrafo do desenvolvimento, expõem-se os efeitos positivos
da ausência de competição nas sociedades rurais.

O CONTEÚDO NAS REDAÇÕES ARGUMENTATIVAS

Nas redações argumentativas, para ser considerado excelente, um


conteúdo deve preencher três condições fundamentais: adequação ao tema,
unidade e densidade argumentativa.

Adequação ao tema

Como já afirmamos no início de nossas considerações, na redação


argumentativa, precisamos de uma tese e de argumentos para sustentá-la.
Também já vimos que essa tese pode ser proposta ao candidato sob forma de
afirmação (que ele pode aceitar ou contestar) ou sob forma de pergunta. O
mais simples, mais comum e mais fácil é enunciar a tese no início do texto
(no título, na introdução ou no começo do desenvolvimento), porque a tese vem
antes dos argumentos; mas também se pode sugeri-la, de forma sutil, durante
o desenvolvimento. Esse último procedimento é mais complexo e requer
atenção do candidato a cada frase, para que fique claro seu ponto de vista,
que, neste caso, vai sendo percebido gradativamente pelo corretor. Exposta a
tese, a tarefa agora é sustentá-la com toda a sorte de recursos que ocorrerem:
argumentos, exemplos, citações. É bastante rara em concursos públicos e
vestibulares a fuga total do tema proposto, porque os candidatos são sempre
advertidos pelos professores de que esse procedimento acarreta nota zero. No
entanto é bastante comum o que se convencionou chamar de
tangenciamento. Isso ocorre quando o candidato não se atém ao enfoque,
isto é, ao aspecto específico do tema que lhe foi proposto, ao ângulo de
abordagem solicitado pela banca. Nas redações argumentativas (que são as
mais comuns em concursos públicos e vestibulares), os temas não são
propostos de forma abstrata e genérica. O tema nunca será a paz, a violência,
a superpopulação, a beleza, o dinheiro ou a solidariedade. A proposta é
sempre específica e consiste numa afirmação ou numa pergunta sobre o tema.
Algo assim:
- A paz está cada vez mais distante. (Fundação Carlos Chagas)
- O fortalecimento das redes de relações sociais como forma de redução
da violência urbana. (CESPE)
- O principal problema das megalópoles é a superpopulação? (CESPE)
- Beleza é fundamental?
- Dinheiro traz felicidade?
- Podemos aperfeiçoar o mundo praticando a solidariedade?

Por isso, é preciso ser objetivo e abordar o aspecto específico do


tema proposto. Estaria tangenciando o primeiro tema (algumas bancas mais
rigorosas considerariam fuga parcial ou total) quem, por exemplo, no caso da
primeira redação, se pusesse a divagar genericamente sobre a paz, a
considerar sua importância histórica para o progresso material e moral das
nações e dos indivíduos, a escolher e sugerir os melhores caminhos para
chegar à paz, a comentar o caráter pacífico do povo brasileiro. A banca não
propôs um assunto genérico, mas uma tese. Cabe ao candidato aceitá-la e
procurar argumentos para sustentar que a paz está cada vez mais distante
ou, posicionar-se contrariamente a ela e demonstrar com argumentos
adequados que a paz está mais próxima.

Unidade

A partir do momento em que o candidato expôs sua tese, todas as


frases devem estar comprometidas com a tarefa de sustentá-la. Nas redações
argumentativas, o trabalho de quem escreve é convencer o leitor da validade
de seu ponto de vista. Para isso, usam-se argumentos, exemplos, citações, até
mesmo uma pequena narração pode ser incluída, desde que se constitua
claramente num exemplo que, de alguma forma, ajude a convencer que nossa
mensagem "tem tudo a ver". Vamos imaginar um daqueles julgamentos que
assistimos às vezes, em filmes americanos. O promotor cumpriu a tarefa de
acusar o réu, e agora cabe ao advogado a tarefa oposta, isto é, convencer o
júri de que seu constituinte é inocente. Para tal, ele dispõe de um certo tempo.
Seria simplesmente absurdo desperdiçar alguns minutos desse tempo precioso
contando a história de um primo seu que toca violino, recordando namoros
antigos ou ensinando os ouvintes a preparar receitas culinárias. Quando temos
uma redação a fazer, a banca nos dá não apenas um tempo, mas também um
espaço precioso (em torno de 30 linhas) para convencermos o leitor de nosso
ponto de vista. Seria igualmente absurdo gastar uma parte desse espaço
tratando de qualquer outro assunto. Estaríamos desperdiçando linhas
preciosas e quebrando a unidade de nosso texto.

Densidade argumentativa
É muito comum que o conteúdo das redações em concursos seja
considerado superficial. Isso ocorre porque o candidato não teve inspiração
para encontrar bons argumentos e limitou-se a repetir frases dos textos
motivadores, a afirmar sua tese em vez de demonstrá-la de forma
convincente. Isso ocorre por vários motivos: a ansiedade, a escassez do
tempo, mas também, e talvez até principalmente, porque as pessoas não
usam seus conhecimentos na hora de escrever. Consideremos a proposta
de redação da Fundação Carlos Chagas, que citamos como exemplo, há
pouco, no capítulo anterior. Depois de alguns textos motivadores, vinha o tema:

Fundamental para a vida, a paz torna-se um bem cada vez mais distante
de todos.

Vamos apresentar uma redação contrariando este ponto de vista. Aí


está:

Estaria a paz realmente mais distante?

Hostilidades isolados no Oriente Médio; guerras tribais na África; xiitas e


sunitas explodindo-se no Iraque; criminalidade nas periferias de grandes e
médias cidades do Terceiro Mundo: a divulgação diária desses conflitos induz à
convicção de que a paz é uma esperança cada vez mais improvável. Aí está
um engano banal, gerado pela ausência de perspectiva histórica. A paz nunca
esteve tão próxima.
Quando voltamos à pré-história, ao tempo em que éramos apenas
caçadores e coletores, constatamos que a regra era a lei do mais forte, os
territórios de caça eram disputados com ferocidade, os indivíduos mais
respeitados, aqueles que chefiavam os clãs, eram exatamente os guerreiros
mais impiedosos. A partir daí podemos escolher entre as guerras permanentes
de cidades rivais na Grécia, a brutalidade do Império Romano, as hordas de
Gengis Khan, a população muçulmana de Jerusalém, incluindo mulheres e
crianças, massacrada pelos cruzados em nome de Deus, enfim, um desfile
interminável de crueldade e destruição. Num passado mais recente, estão as
duas últimas guerras mundiais, com direito a câmaras de gás, extermínio
étnico, e o requinte da perversidade: bombas atômicas lançadas sobre cidades
japonesas, pulverizando instantaneamente milhares de inocentes. Aí está
nosso passado: genocídio, estupro, infanticídio, massacre de populações
indígenas e as fogueiras da Inquisição.
Se é verdade que ainda temos um longo caminho a percorrer, na busca
de um mundo melhor, não se pode negar que já progredimos muito. Hoje
temos a ONU, os desentendimentos entre nações se resolvem cada vez com
mais frequência, por meio de diálogos e intermediações. As trincheiras, os
lança-chamas e os gases asfixiantes tornaram-se horrores do passado. Países
escandinavos, historicamente conhecidos pela ferocidade guerreira dos
"vikings", hoje são apontados como modelos de prosperidade e igualdade
social. O Japão medieval, lembrado pela crueldade dos samurais, a serviço de
nobres corruptos e perversos, a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini, a
Rússia de Stalin, a Espanha de Franco são hoje exemplos de liberdade,
prosperidade e paz. Quantas nações da América Latina, até há pouco
dominadas pela tortura policial, evoluíram do caudilhismo para a democracia?
Se nos fixarmos em nosso país e compararmos nosso passado recente,
manchado por escravidão guerras civis e ditaduras, à situação atual, de
liberdade, legislação trabalhista evoluída e instituições democráticas de
Primeiro Mundo, concluiremos que também temos algo a comemorar.
A paz não está mais distante, não: está muito mais próxima. Em muitos
recantos do mundo moderno, ela já chegou! Não há argumentos contra os
fatos. Nem contra os livros de história. Recentemente assistimos a uma Copa
do Mundo na África do Sul. E vimos muita paz, num país que, até há pouco,
envergonhava o planeta pelo massacre da população negra. Depois de vinte e
cinco ano de prisão e maus tratos, até Nélson Mandela está em paz.

Todos os alunos a quem apresentei este texto acharam a


argumentação densa e muito convincente. Mas por quê? A resposta é
simples: porque o autor usou seus conhecimentos históricos, geográficos, as
informações jornalísticas de que se lembrava. E agora é que vem o mais
importante: qualquer pessoa medianamente informada conhece tudo que
foi mencionado aqui. Vamos começar pela introdução:
- Na introdução, antes de enunciar seu ponto de vista, o autor (como
sugerimos no início de nossos trabalhos) faz uma concessão, ou seja, admite
alguns fatos contrários à sua tese: Todos eles são amplamente conhecidos
por qualquer pessoa que lê jornais de vez em quando.
- No primeiro parágrafo do desenvolvimento, começa a argumentação
que consiste em mostrar que, no passado (distante ou recente), a paz estava
ainda muito mais distante do que hoje. Todos os exemplos históricos que
dão suporte à argumentação são conhecidos por qualquer candidato de
cultura média.
- No segundo parágrafo do desenvolvimento, menciona-se a busca de
entendimentos pacíficos através da ONU, compara-se o presente de algumas
regiões e alguns países, hoje modelos de paz, com o passado turbulento
dessas regiões, incluindo o Brasil. Mais uma vez iremos lembrar que todas as
informações aqui relatadas são conhecidas por qualquer candidato de
cultura média.
- Chegamos à conclusão. Retoma-se a tese e reforça-se a mensagem
lembrando a última Copa do Mundo, na África do Sul, e seu líder, Nélson
Mandela. Alguma pessoa medianamente informada ignora os fatos
relacionados aqui?

Então, concluiremos que uma argumentação consistente não depende


de o candidato possuir cultura diferenciada. Uma argumentação consistente
está ao alcance de qualquer pessoa de cultura mediana que se lembre de usá-
la na hora de redigir o texto. Procure habituar-se a isso, a usar seus
conhecimentos para fundamentar sua argumentação e enriquecê-la.

Vamos a outro exemplo: o mesmo tema da redação anterior com tese


diferente. Vamos à redação:

Estaria a paz realmente mais distante?

A paz é fundamental para a vida porque na guerra não temos vida, mas
morte e destruição. No campo da arte, da ciência, do trabalho, enfim, em todas
as áreas de atividade, as realizações que dignificam o ser humano foram
construídas em tempo de paz. É uma pena que essa condição, tão essencial
para que possamos progredir moralmente, esteja se tornando cada vez mais
distante.
Se pudéssemos voltar no tempo até um pouco antes da Revolução
Industrial, veríamos que nosso mundo estava em paz: os mares não eram
contaminados por toneladas de petróleo, nem os rios, pelo mercúrio dos
garimpos. As florestas, ainda não devastadas, guardavam intactos todos os
tesouros da flora e da fauna. A camada de ozônio, que nos protegia das
irradiações solares, ainda não fora destruída pelos aerossóis. A vida
prosperava. Espécies animais, já extintas ou à beira da extinção, vagavam
saudáveis pelas florestas ou pelas pradarias. Hoje, o desequilíbrio atual de
todos os ecossistemas estampa uma terrível realidade: não são mais
indivíduos em luta natural e saudável para sobreviver aos predadores ou para
reproduzir-se: espécies inteiras, como os ursos do Ártico e os tigres de
Bengala, se reduzem perigosamente com a destruição de seus "habitats". O
planeta está em guerra com a ambição, que o devasta, e a poluição, que o
corrói. Perdemos a paz e não há indícios de que possamos recuperá-la a curto
prazo.
E os seres humanos? Num passado recente, grande parte da população
vivia no campo. E vivia em paz. Era uma sociedade saudável, as pessoas
exercitavam a solidariedade e ampliavam seus laços afetivos à medida que se
ajudavam umas às outros, conviviam e partilhavam suas experiências. A
urbanização trouxe o individualismo, a impessoalidade, a competição. Hoje não
há mais amigos: apenas conhecidos, ou pior, estranhos que concorrem
conosco por um emprego, um lugar na fila, uma vaga na universidade, um
espaço no estacionamento do supermercado. Não estamos mais em paz. A
violência saiu das periferias para assaltar, sequestrar e vender drogas.
Olhamos as pessoas com desconfiança e má vontade. Os "outros" se tornaram
presenças indesejáveis, obstáculos ou perigos em potencial.
Involuímos para um estágio, pré-histórico talvez, de desamor e
beligerância, que parece agravar-se à medida que os espaços vitais se tornam
mais escassos em virtude da explosão demográfica. Nada indica que as
próximas gerações possam recuperar a tranquilidade com que as pessoas
sentavam-se à frente de suas casas, à tardinha, para conversar com os
vizinhos. Daqueles tempos de paz ficou apenas a lembrança. E a saudade.

Muitos alunos nossos se surpreendem com a facilidade de passar de


uma tese para outra, oposta, e construir uma argumentação tão consistente,
contrária à anterior. Mais uma vez vamos insistir: está ao alcance de qualquer
candidato de cultura média que se concentrar em usar seus
conhecimentos. Vamos começar pela introdução. As afirmações que ali estão
são simples, quase óbvias. No primeiro parágrafo do desenvolvimento,
mencionamos agentes poluidores que todos conhecem, estão em jornais e
noticiários de TV, além de algumas espécies em extinção que igualmente são
de domínio geral. No segundo parágrafo, comparamos a vida rural
(essencialmente cooperativa) à vida urbana (individualista e competitiva), para,
a seguir, destacar a criminalidade crescente nas grandes cidades, fato
conhecido até pelas crianças. Na conclusão, apontamos a redução dos
espaços vitais gerada pela superpopulação, e a agressividade natural que daí
decorre. Enfim, fica claro que argumentar não depende de possuir informações
privilegiadas ou inteligência superior, mas, sim, de usar com naturalidade
conhecimentos que qualquer jovem de cultura mediana possui.

A linguagem

Começou a complicação. Até aqui, tudo estava fácil, porque é muito fácil
ensinar alguém a fazer uma

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