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Clóvis

Edmar Checon de Freitas

Clóvis, rei dos francos entre 481 e 511, ocupa lugar de destaque na história da
França por seu papel unificador dos francos e por ter sido o primeiro dentre
seus reis a se converter ao cristianismo. A tradição historiográfica francesa dos
séculos XVIII e XIX fez dele na verdade o fundador da monarquia na França.
Apesar disso as bases documentais que nos permitem reconstituir historica-
mente a trajetória de Clóvis são escassas, sobretudo aquelas contemporâneas
à vida mesmo. Destaca-se aí o material epistolar, composto por cartas enviadas
por vários bispos ao rei, por exemplo, as de autoria de Remígio de Reims (†533)
e Avito de Vienne (†c.519), bem como aquelas incluídas na correspondência ofi-
cial de Teodorico, o Grande (†526), rei ostrogodo da Itália. Há ainda as cartas
trocadas entre o rei franco e os bispos reunidos por ocasião do I Concílio de
Orleans. Mas a maior parte das informações que possuímos acerca de Clóvis
provém das Histórias escritas no final do século VI pelo bispo Gregório de Tours
(†594), mais conhecidas entre nós como História dos Francos. Há ainda menções
a Clóvis em textos hagiográficos, como no caso da Vida de Santa Genoveva, es-
crita por volta de 520.
Partindo das informações fornecidas por Gregório de Tours e pelo ma-
terial epistolar podemos situar a ascensão de Clóvis no contexto da fase aguda
de desagregação do Império Romano no Ocidente, sobretudo após a supressão
da autoridade imperial na Itália, em 476. Ele seria apenas mais um dentre os
diversos chefes guerreiros germânicos a ocupar os espaços deixados pelo esva-
ziamento do poder imperial em várias regiões. Na Gália boa parte das terras ao
sul do rio Loire era controlada pelos visigodos, também senhores da Península

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Ibérica. Burgúndios ocupavam o que hoje conhecemos como Borgonha e parte
da atual Suíça. Ao norte do Loire as terras eram disputadas por francos, saxões,
turíngios e alamanos. Tais grupos germânicos alternavam movimentos de sa-
ques e pilhagens com o estabelecimento de alianças com o poder imperial, nes-
se caso passando à condição de foederati, ou seja, estabelecendo um tratado (foe-
dus) com o Império. A partir da segunda metade do século V, após uma grande
onda de invasões, como a dos hunos, por volta de 450, a tendência foi a conces-
são do controle militar das províncias imperiais a esses povos. Nominalmente
seus chefes, reconhecidos dentro de cada povo como reis, atuavam em nome
do imperador. Mas na prática foram se formando reinos romano-germânicos
nas terras imperiais (GEARY, 1988; WOOD, 1994).

Cabe destacar que a maior parte desses povos – como godos, vândalos e
burgúndios – professava uma variante do cristianismo genericamente identi-
ficada como «ariana», em referência a um de seus propagadores, o presbítero
Ário (†336). Tratava-se da crença na subordinação total de Cristo ao Pai, esva-
ziando-o de sua condição divina plena, doutrina condenada no século IV pelos
concílios de Niceia (325) e Constantinopla (382). Estabelecia-se assim uma dis-
tinção religiosa do tipo heresia / ortodoxia entre os senhores de cada reino e a
população local, em sua maior parte cristã e fiel ao credo niceno.

Os francos, porém se mantiveram pagãos até a época de Clóvis. Trata-


va de uma amálgama de diversas tribos aparentadas entre si e que original-
mente viviam às margens do Reno. De acordo com as Histórias, de Gregório
de Tours, os francos estabeleciam reis nas diversas regiões que conquistavam,
os quais portavam como sinal de seu poder uma longa cabeleira, razão pela
qual ficaram conhecidos como “reis cabeludos” (reges criniti). Desde o século III
aparecem nas crônicas e outros registros protagonizando saques e pilhagens
na Gália. Nos séculos IV-V muitas tribos francas passaram a colaborar com o
Império, integrando o exército romano. Ao mesmo tempo novos grupos fran-
cos adentraram as terras imperiais, na fronteira renana, registrando-se epi-

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sódios de saques e pilhagens. Na segunda metade do século V distinguiam-se
basicamente dois grandes grupos francos atuando no norte da Gália: os sálios,
espalhados em vários núcleos no interior da antiga Gália romana, dentre eles
aquele em que viria a prosperar a família de Clóvis; e as várias tribos que se lo-
calizavam às margens do Reno, constituindo um grupo identificado em fontes
posteriores como o dos francos ripuários.

É nesse contexto que deve ser situada a trajetória de Clóvis – Chlodweg,


na língua germânica (“célebre por seus combates”), latinizado como Chlodove-
chus (ROUCHE, 1996, p. 202). Em 481 ele sucedeu ao pai, Childerico, à testa da
província romana da Bélgica Segunda. As fontes dos séculos V-VI mencionam
Childerico, seu pai, Meroveu e um certo Clódio, talvez pai de Meroveu. Eles
aparecem nas movimentações militares no norte da Gália. No caso de Chil-
derico ele esteve particularmente ativo no caótico conflito dos anos 460 em
torno de Paris, Orleans e no vale do Loire, na qual romanos, visigodos, francos
e saxões estiveram envolvidos, sendo por vezes difícil discernir quem estava
ao lado de quem (WOOD, 1994, p. 39). Por ocasião da descoberta da tumba de
Childerico, em 1653, nas proximidades de Tournai (Bélgica), encontrou-se um
sinete com a inscrição Childerici regis. E foi na condição de rei que Clóvis o su-
cedeu em 481, embora a natureza e a extensão desse poder para além do seu
povo seja difícil de definir. Apesar da autoridade imperial ter desparecido do
Ocidente as terras romanas continuavam nominalmente subordinadas ao Im-
perador romano de Constantinopla. Assim o mais provável é que Clóvis exer-
cesse o controle militar e fiscal da referida província, em nome da autoridade
imperial (ROUCHE, 1996, p. 202-203; WOOD, 1994, p. 41).

Uma vez feito rei Clóvis progressivamente expandiu seu poder na Gália.
Inicialmente registra-se a vitória sobre um núcleo «romano» em Soissons, em
586. Seguiram-se campanhas contra turíngios (491), alamanos (495), burgún-
dios (500-501) e visigodos (507). Além disso, Clóvis atou também no sentido de
consolidar sua liderança entre seu povo, obtendo mediante intrigas e combates

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o domínio sobre todos os demais reinos francos. Mas não apenas de guerras
foi construída sua liderança. Em 492 ele desposou uma princesa burgúndia,
Clotilde, estabelecendo temporariamente uma aliança com esse povo. Embora
os burgúndios fossem em sua maioria arianos Clotilde, sobrinha do rei ariano
Gundobaldo (472-526), provinha de um núcleo burgúndio que se manteve fiel
ao credo niceno. Abriu-se assim para Clóvis um caminho de aproximação com
relação à Igreja de Roma, aos bispos da Gália e ao próprio imperador de Cons-
tantinopla. Seria na qualidade de aliado da ortodoxia romano-constantinopo-
litana que Clóvis buscaria legitimar seu poder e seu papel de conquistador na
Gália. Mas para tanto sua conversão seria fundamental.

O processo de conversão de Clóvis ao cristianismo é narrado em deta-


lhes por Gregório de Tours (Histórias II, 29-31). Inicialmente o relato registra
os esforços evangelizadores da própria rainha, sobretudo ao batizar os dois
primeiros filhos do casal, Ingomiro e Clodomiro, o primeiro tendo falecido
pouco depois de ser batizado. Mas, segundo Gregório, a opção pelo credo cris-
tão teria se dado no campo de batalha, por volta de 496. Nessa ocasião Clóvis
estava para ser derrotado numa batalha contra os alamanos. A iminência da
derrota o teria feito dirigir-se ao deus de Clotilde, prometendo abraçar a fé
cristã caso vencesse. À vitória seguiu-se um período catequético, tendo o rei
sido instruído pelo bispo de Reims, Remígio. Nessa mesma cidade Clóvis foi
batizado. Uma carta enviada a ele pelo bispo Avito de Viene nos informa que a
cerimônia se deu numa noite de Natal (Ep. Austrasicae apud ROUCHE, 1996, p.
397-400) sendo essa a data tradicionalmente assinalada para o batismo de Cló-
vis: 25 de dezembro de 496. Segundo Gregório de Tours, Clóvis aproximou-se
da pia batismal como um “novo Constantino”. A identificação explícita com o
primeiro imperador Cristão, reforçada pela narrativa da conversão no campo
de batalha – lembrando Constantino, na Ponte Mílvia, em 312 – projetava sobre
Clóvis uma liderança do tipo imperial.

Já ao falar das guerras de Clóvis como rei cristão Gregório de Tours o

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retrata como um novo Davi, embora sem citar explicitamente o rei de Israel. A
ideia é que Clóvis prosperava e aumentava seus domínios porque fazia a von-
tade de Deus (Hist. II, 40). A campanha contra os visigodos, por exemplo, é
apresentada como motivada pelo desejo do rei de livrar a Gália do arianismo.
Toda a movimentação de Clóvis e de seus guerreiros é acompanhada por sinais
que atestariam a proteção divina, sobretudo por intermédio de São Martinho
de Tours e Santo Hilário de Potiers, bispos que no século IV haviam combatido
o arianismo na região. E é na igreja de São Martinho, em Tours, que Clóvis
celebra a vitória, desfilando em trajes imperiais e recebendo do imperador de
Constantinopla codicilos consulares (Hist. II, 37-38). O favor divino é invocado
ainda para justificar seu sucesso em eliminar outras lideranças francas, prin-
cipalmente parentes seus, na verdade uma forma de garantir o poder exclusi-
vamente para seus filhos (Gregório de Tours, Hist. II, 40-42; ROUCHE, 1996, p.
330-331).
Deve-se levar em conta também a própria ação do rei no sentido de se
aproximar da imagem imperial, sem no entanto assumi-la plenamente. En-
quadram-se aí a obra legislativa, como a fixação por escrito da antiga lei dos
francos, a Lei Sálica, bem como a incorporação à mesma de dispositivos legais
romanos reproduzidos do código visigótico conhecido como Breviário de Ala-
rico (ROUCHE, 1996, p. 331-335). Clóvis determinou ainda a convocação de um
concílio geral para seu reino, o I Concílio de Orleans, que além de tratar de
questões disciplinares, litúrgicas e patrimoniais da Igreja na Gália buscou aco-
modar as tensões entre egressos do arianismo e os demais cristãos da Gália
(ROUCHE, 1996, p. 331-347; GAUDEMET; BASDEVANT, 1989, p. 67-91). Como
rei cristão e seguindo a tradição romano-imperial Clóvis mandou erguer em
Paris, escolhida para ser sua capital, uma igreja dedicada aos apóstolos Pedro e
Paulo, na qual ele e a rainha Clotilde viriam a ser sepultados.
A conexão entre o passado romano e o mundo germânico se apresenta
como o elemento central nessa trajetória e base para a construção da sua me-

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mória. Não por acaso o presidente Charles de Gaulle (1959-1969) afirmou que
a história da França, país cristão, começava com o batismo de Clóvis. E nas
comemorações dos 1500 anos do mesmo, em 1996, tanto o presidente francês
Jacques Chirac (1995-2007) quanto o papa João Paulo II (1978-2005) se referi-
ram a Clóvis como referência fundacional da nação francesa (FREITAS, 2015,
p. 17; 254).

Referências
FREITAS, Edmar Checon de. Gregório de Tours e a sociedade cristã na Gália dos
séculos V e VI. Niterói: Editora da UFF, 2015.
GAUDEMET, Jean; BASDEVANT, Brigitte (ed.). Les canons des conciles méro-
vingiens. Paris: Éditions du Cerf, 1989, vol. 1.
GEARY, Patrick. Before France and Germany: the creation and transformation of
the merovingian world. Oxford: Oxford University Press, 1988.
GREGORY OF TOURS. The history of the Franks. Tr., Intr. Lewis Thorpe. London:
Penguin Books, 1974 (Cf. original latino em https://www.dmgh.de/mgh_ss_
rer_merov_1_1/; http://www.intratext.com/IXT/LAT0783/).
ROUCHE, Michel. Clovis. Paris: Fayard, 1996.
WOOD, Ian. The merovingian kingdoms. London: Langman, 1994.

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