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21/08/2023, 11:14 ConJur - Aury Lopes Jr. e Vítor Paczek: Delação por ouvir dizer?

OPINIÃO

Valor probatório da palavra do delator: delação


por ouvir dizer?
12 de maio de 2021, 20h37

Por Aury Lopes Jr. e Vítor Paczek

A recente notícia de que a Polícia Federal pediu ao STF a


abertura de investigação contra o Ministro Dias Toffoli – com
base na delação de Sérgio Cabral – novamente traz à discussão
o valor probatório da palavra do delator e os limites,
acertadamente impostos, pela Lei 12.850. Mas o caso em
questão remete a um elemento ainda mais estarrecedor: é uma
delação de ‘ouvi dizer’. Ora, se a testemunha de ‘ouvi dizer’
(hearsay) deveria ser vedada, de proibida admissibilidade, o
que dizer de uma delação a partir do que o “delator-ouviu-
dizer”? Além da absoluta falta de credibilidade e,
principalmente, valor epistêmico, a questão já foi tratada pelo
STF no Inq. 4.244 e merece análise à luz dos últimos acontecimentos.

Em 19/3 o ministro Gilmar Mendes (Inq 4.244/STF, caso Aécio Neves/Furnas) determina o


arquivamento da investigação preliminar a pedido do PGR. O caso se inicia em 2014 com a
delação premiada de Alberto Youssef e é posteriormente arquivado. Com a delação do ex-
senador Delcídio do Amaral, a investigação é reaberta em 2016, juntando-se também
investigações em andamento contra Dimas Toledo, ex-parlamentar que estaria envolvido
nos crimes e teria vínculo com Aécio, além do depoimento de Fernando Moura, um terceiro
delator que tem seu acordo questionado por omissões e má-fé na atuação.

O fato investigado era corrupção passiva a partir do recebimento de vantagem por Aécio,
oriundo das empresas contratadas pela estatal Furnas Centrais Elétricas S.A. Os recursos
ilícitos seriam lavados por meio de pessoas jurídicas ligadas à irmã de Aécio (Andrea
Neves), bem como pelo envio de recursos a contas no exterior, utilizando-se do serviço de
doleiros.

https://www.conjur.com.br/2021-mai-12/delacao-ouvir-dizer?imprimir=1 1/4
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A decisão é paradigmática porque reforça uma interpretação constitucionalmente adequada


sobre o limite da narrativa do delator premiado: é imprestável o depoimento do delator
sobre fatos de ‘ouvir dizer’. Conforme afirmou o Ministro Gilmar, as recentes alterações do
art. 3º-C, §3º da Lei 12.850/13 introduzidas no “pacote anticrime” “vedaram expressamente
a delação de fatos que não tenham contado com a participação direta do delator”. A
decisão é um marco que deve ser aplaudido e replicado em todas as investigações
criminais, pois contribui para redução do erro judiciário das delações premiadas como se
verá na sequência.

O chamado hearsay testimony é a testemunha do 'ouvi dizer', ou seja, aquela pessoa que
não viu ou presenciou o fato e tampouco teve contato direto com o que estava ocorrendo,
senão que sabe através de alguém, por ter ouvido terceiro narrando ou contando o fato. No
nosso sistema, esse tipo de depoimento não é proibido, mas deveria ser considerado
imprestável em termos de valoração, na medida em que é frágil e com pouca credibilidade,
impedindo na prática o direito ao confronto.

Explica Malan[1] em profundo estudo sobre o tema que o direito ao confronto é fundante
da prova testemunhal e o depoimento indireto prejudica sobremaneira esse direito, na
medida em que “(i) a declaração original com frequência é prestada sem qualquer
solenidade ou formalidade, em especial o juramente de dizer a verdade; (ii) o declarante
original não pode ser submetido ao exame cruzado da parte processual prejudicada pelo
teor da declaração; (iii) o juiz e os jurados não podem observar o comportamento do
declarante original no momento em que prestou as declarações”.

Trata-se de testemunho bastante manipulável e extremamente adequado para as


colaborações premiadas, porque: (1) blinda a narrativa do delator de contradições, na
medida em que o exame cruzado na audiência é cerceado e sem plena confrontação afinal,
sobre o fato o delator nada sabe, apenas se limita a repetir o que ouviu e, eventualmente,
fazer juízos de valor sobre isso (o que é vedado pela objetividade); e (2) retira o peso da
incriminação caluniosa do delator, pois ele apenas teria ouvido de terceiro a incriminação,
compartilhando o conhecimento calunioso. Fora o fato de que há ainda o imenso risco de
existir uma verbalização ampliada, até para valorização do papel assumido como
colaborador da justiça.

A testemunha de "ouvi dizer" nada presenciou e, portanto, não corresponde aos requisitos


de objetividade e retrospectividade, na medida em que não teve a 'experiência probatória',
não conheceu diretamente do fato objeto da discussão na dimensão de caso penal. A título
de curiosidade, no sistema inglês existem três provas passíveis de exclusão (exclusionary
rules) e proibição valoratória:
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a) hearsay: testemunha de ‘ouvi dizer’;

b) Bad character: prova sobre o mau caráter. Importante para evitar o direito penal do autor
(eis outra proibição de prova que poderíamos adotar, especialmente no tribunal do júri);

c) Prova ilegal: concepção tradicional de proibição de valoração probatória da prova ilícita.

Na experiência brasileira o STJ tem fixado uma ratio decidendi importantíssima a respeito
dos limites de suficiência da decisão de pronúncia no procedimento do Júri. Quando os
indícios de autoria sejam fundados exclusivamente em testemunhos de ouvir dizer, a
exemplo do RESp 933436/SP (Rel. ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJe
13/10/2009) é vedada a pronúncia porque “tais elementos revelam-se precários, e dessa
forma, não autorizam a sua submissão ao iudicium causae”. Em outro caso paradigma,
REsp nº 1.444.372/RS (Rel. ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe
25/02/2016) segue-se a mesma linha, proibindo a pronúncia com base em ouvir dizer.

Enfim, a testemunha de 'ouvi dizer' (hearsay) não é propriamente uma prova ilícita, mas
deveria ser evitada pelos riscos a ela inerentes e, quando produzida, valorada com bastante
cautela ou mesmo não valorada. Existe uma insuperável restrição de cognição, pois não se
trata de uma testemunha presencial, daí decorrendo o completo desconhecimento do fato e,
portanto, um elevadíssimo risco de indução, deturpação e contaminação, pois ela acaba
sendo mera 'repetidora' de discurso alheio.

No âmbito das delações premiadas é correta a preocupação do Ministro Gilmar que foi
incorporada pelo pacote anticrime, pois o delator deve provar o seu discurso para receber
benefícios penais. Nesse momento é extremamente pertinente acusar com base em ouvir
dizer, pois estar-se-ia incluindo fatos novos para ‘vender’ conhecimento delatado que não
se tem. A decisão do Ministro Gilmar que limita a delação por ouvir dizer corretamente
segue a linha de que se deve presumir a falta de credibilidade dos depoimentos e dos
elementos de corroboração apresentados pelos delatores, pois são direcionados para
contrapartidas penais (INQ nº 4419, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma,
julgado em 11/9/2018).

Ademais, conforme pragmaticamente decidiu o Ministro Gilmar, constatada a omissão ou


inverdade das informações prestadas pelo colaborador, ou a mudança de versões sobre fatos
investigados que abalam a confiança do juízo sobre a credibilidade dos relatos, esses
delatores devem ser impedidos de depor a partir do art. 214 do CPP, que fixa a regra da
contradita da testemunha.

https://www.conjur.com.br/2021-mai-12/delacao-ouvir-dizer?imprimir=1 3/4
21/08/2023, 11:14 ConJur - Aury Lopes Jr. e Vítor Paczek: Delação por ouvir dizer?

A decisão proferida no Inq 4244 é um standard de legalidade importante, que deve ser
replicada nas demais investigações do país e o ‘hearsay’ precisa ser vedado como prova no
processo penal.

[1]    MALAN, Diogo Rudge. Direito ao Confronto no Processo Penal. Rio de Janeiro:
Editora Lumens Juris, 2009, p. 54 e ss.

Aury Lopes Jr. é doutor em Direito Processual Penal, professor titular da PUCRS e
membro do escritório Aury Lopes Jr. Advogados.

Vítor Paczek doutorando e mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e membro do


Escritório Aury Lopes Jr. Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2021, 20h37

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