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Estudos

em homenagem ao Professor
Washington de Barros Monteiro

Colaboradores

ADAHYL LOURENÇO DIAS


ALOISIO SURGIK
ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO
ANTÔNIO CHAVES
ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO
ARNOLDO WALD
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA
CELSO BARROS COELHO
FÁBIO MARIA DE MATTIA
FRANCISCO DOS SANTOS AMARAL NETO
HERMANN EICHLER
JOÃO BAPTISTA VILLELA
JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA
J. M. OTHON SIDOU
LUIZ FERNANDO WHITAKER DA CUNHA
PAULO TORIVIINN BORGES
RENÉ ARIEL DOTTI
112,81.6. - BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA
rv) 1111111111111161_1?Mii101111111111111
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UNWAIVA
' 1982
CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP

Estudos em homenagem ao professor Washington de Barros Mon-


E85 teiro / colaboradores Adahyl Lourenço Dias ... et ali. — 4ã,
São Paulo : Saraiva, 1982.
1. Direito civil 2. Direito civil — Brasil 3. Monteiro, Was-
hington de Barros, 1910- 1. Dias, Adail Lourenço. 1911-

índice
CDU-347
82-0695 -347(81)
Usucapião e seus elementos — Adahyl Lourenço Dias . . 5
Indices para catálogo sistemático:
Anotações histórico-críticas em torno do binômio Direito
Público-Direito Privado — Aloisio Surgik 27
3. Brasil : Direito civil 347(81)
2. Direito civil 347 Contrato de casamento, sua extinção e renúncia a alimentos
na separação consensual — Álvaro Villaça Azevedo 47
Plágio Antônio Chaves 65
Bens acessórios — Antonio Junqueira de Azevedo 95
A evolução da correção monetária na "era da incerteza" —
Amoldo Wald 111
A nova tipologia contratual no direito civil brasileiro —
Caio Mário da Silva Pereira 129
Jurisprudência como norma jurídica. Controvérsias —
Celso Barros Coelho 159
O compromisso de compra e venda, as Súmulas do Supremo
Tribunal Federal de números 166, 167 e 412 e juris-
prudência da Suprema Corte — Fábio Maria de
Mattia l 179
O SARAIVA S.A. — Livreiros Editores
Introdução à teoria geral da relação jurídica — Francisco
Belo Horizonte — MC dos Santos Amaral Neto , 209
9. Caba de Souza, 571 — Bairro Sagrada Família — (031) 461-99E2 e 461-9396

Curitiba — PIR Lateinamerikanische Lándergruppen im rahmen der Zivil-


A. Princesa Isabel, 1556 — Bigorrilho — Tela.: (041) 234-2622 e 234-2731 rechtskodifikation — Dr. iur. Hermann Eich ler . . 223
Porto Alegre no Do fato ao negócio: em busca da precisão conceituai —
Av. Chicago, 307 — Floresta — Tela.: (0512) 43.2986 e 43-1467

Rio de Janeiro — RJ João Baptista Vinda 255


Av. Marechal Hondon, 2231 — Tela.: (021) 201-7149 e 261-4311

3u Paulo — SP
Av. Marialès da San Siiconte, 1697 Tal.: 1017) Ela Mn
del Estado de Jalisco, 2. Aufl., Guadalajara, Jal., México 1965;
Código Civil para el
y S. de Hidalgo, 2. Aufl., Puebla, Pue., Méx. 1940;
Código Civil dei E.L. y S.
de Durango, Puebla, Pue., Méx. 1947; Código Civil para el EL. y S. de Chihuahua,
Puebla, Pua., Méx. 1941; Zur Geltung verschiedener Zivilgesetzbücher ia Mexiao
s. Enneccerus-Niperdey, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, Tübingen 1959,
S. 176, wo darauf hingewiesen ist, dap dia meisten Staaten ihr Bürgerliches Gesetz-
buch dem Código civil federal 1928 nachgebildet haben. Nuevo Código Civil para
el Estado de Colima, Colima, Col, Méx. 1954; Código Civil
Leyçs y Códigos dei
Estado de Coahuila, México, Lima, Buenos Aires 1941.

Paraguay:

In Paraguay trai das argentinische Zivilgesetzbuch ara 1.1.1877 in Kraft. s.


Wieland, Rvgl. HWB I 889-898; Luis De adsperi, Anteproyecto de Código Civil,
Asunción 1964.

Peru: Do fato ao negócio: em busca da precisão conceituai


Leyes y Códigos Peruanos, Código Civil, Lima, 1962;
Código Civil, bearb. v.
Jorge Eugenio Cataileda, 5. Aufl., Lima 1971; Código Civil, bearb. v. Hernán JOÃO BAPTISTA VILLELA
Figueroa Estremadoyro, 1. Anil., Lima 1976; Código de Menores,
1962; Ranzón R. Abarca Fernandez, Ley 13968, Lima Professor na Universidade Federal de
El Vinculo Matrimonial en la Legislación y la
Sociedad Peruana, Diss. S. Thomae, Arequipa 1966. Minas Gerais.

Uruguay:

Código Civil de Ia República Oriental dei Uruguay, bearb. v. Celedonio Nin


Y Silva, 5. Aufl. emeuert v. Mario Nin Pomoli, Montevideo 1962; eters. Titel, v.
Eugenio B. Cafaro y Santiago Carnelli, " I. Montevideo 1979.

Venezuela:

Mariano Arcaya, Código Civil, Tomo I, Caracas 1968;


zolano, v. Armando Hernández-Bretón, 2. Aufl., Caracas 1961;Código Civil Vene-
José Luis Aguilar
Gorrondona, Derecho Civil I, Caracas 1967; Chibly Abouhamad Hobaica,
El Menor
eu el Mundo de sú Ley, Caracas 1970.

250
Sumário

1. Direito, uma ciência de fenômenos. 2. Fundamentos


para uma tipologia dos fatos jurídicos. 3. Fatos essen-
cialmente jurídicos e fatos eventualmente jurídicos. 4.
Fatos jurídicos voluntários e fatos jurídicos involuntá-
rios. 5. Atos jurídicos: lícitos e ilícitos? 6. Aptidão e
intencionalidade nas manifestações de vontade. 7.
Atos jurídicos e atos ilícitos: por uma nova distinção.
8. Negócios jurídicos e atos stricto sensu: o quod placet
e o quod oportet.
1. Direito, uma ciência de fenômenos

Dizer que o Direito é uma ciência do comportamento, em-


bora seja verdadeiro, não é, em rigor, suficientemente extenso pa-
ra alcançar os limites mais remotos da sua identidade epistemo-
lógica. Nem sempre, com efeito, a ordem jurídica reclama ações
humanas, vale dizer, condutas ou comportamentos, para que se
ponha em movimento. Conseqüências juridicamente significati-
vas podem decorrer de fenômenos inconscientes ou involuntários.
Mas não sem que acontecimentos, de um modo ou de outro, se
produzam. O raio que tira a vida de um cavalo e libera o como-
datário do dever de o restituir; o rio que, abandonando o álveo,
faz crescer, só por isso, a propriedade dos ribeirinhos; o despren-
der-se do frito, que determina a sua aquisição pelo proprietário
do solo em que cai etc, são, todos, acontecimentos que produzem,
está-se vendo, mutações de caráter jurídico, qualquer que seja
a vontade das pessoas em cada caso envolvidas, e mesmo inde-
pendentemente de qualquer atividade que tenham desempenhado
ou de que se tenham omitido.
Com maior poder de abrangência dir-se-á, pois, que o Direito
é uma ciência de fenômenos ou do acontecer. Claro que a pro-
posição, mesmo sendo correta, está longe de ser exata, dado que
inúmeras outras ciências se ocupam de fenômenos ou de acon-
tecimentos, sem que se possam, sé por isso, qualificar de jurídi-
cas. Algumas não são sequer ciências humanas, como, por
exemplo, a Física, a Química, a Biologia. O que se perde aqui
em precisão quantitativa, ganha-se, todavia, em propriedade qua-
litativa, no caso, fundamental. De fato, comprometida esta, os
conceitos que se assentarem e as distinções que se estabelecerem,
ainda quando afinados pela correção intrínseca, podem revelar-
.t se inadequados em confronto com situações a priori, mas indebi-
tamente excluídas. 1

255
2. Fundamentos para uma tipologia dos fatos jurídicos
Fatos essencialmente jurídicos e fatos eventualmente
Assentado que o Direito é unia ciência de fenômenos, resta jurídicos
acrescentar que a fenomenidade, ela própria, não é uma catego-
ria jurídica. A intervenção do Direito dá-se, ao invés, a partir do Ao lado de fatos que podem ser jurídicos ou não, segundo a
preciso instante em que os fatos deixam de lhe ser indiferentes. variável afetação do Direito, há os necessariamente portadores
Nos exemplos antes indicados, não é o Direito que define a morte dessa propriedade, por força ainda de uma determinação ai, ex-
por caso fortuito, o abandono do álveo, a queda do fruto. Mas, trínseco. Assim, o nascimento, a morte, a privação da faculdade
ao atribuir-lhes relevância jurídica, trá-los para os seus domínios de entendimento etc, sempre produzem conseqüências juridica-
e lhes impõe um regime, em função do qual passam a produzir mente relevantes. Daí se chega a uma primeira classificação:
conseqüências típicas. O encontro do Direito com os fatos verifi- fatos essencialmente jurídicos e fatos eventualmente jurídicos.
ca-se, portanto, não no momento em que estes ocorrem, senão Os primeiros são constantes, posto que não intrinsecamente rele-
já antes, quando aquele lhes infunde potencialidade jusgenética. vantes para o Direito. Os segundos só o são sob determinadas
circunstâncias.
Logo, o fato e o fato jurídico
não são categorias ontológicas
distintas, mas atitudes axiologicamente diversas diante da mesma
fenomenidade. Assim, de novo, o desprender-se do fruto, que po- Fatos jurídicos voluntários e fatos jurídicos involuntários
de produzir a aquisição do seu domínio, quando o solo da árvore
e o da queda são de proprietários diferentes, não levará a nenhu- Entre os fatos essencialmente jurídicos cabe extremar os vo-
luntários dos involuntários. A classe, dos voluntários, por serem
ma conseqüência juridicamente relevante na hipótese contrária, fatos exclusivamente humanos, corresponde bem a expressão ato.
isto é, naquela em que os solos sejam do mesmo proprietário. No
primeiro caso, o fato é jurídico. No segundo, não. Visto como Tratando-se de atividade materialmente desempenhada pelo
fenômeno, contudo, não há diferenças a assinalar. O que houve homem, mas sem o concurso da vontade, o ato é categorialmente
assimilado a outro qualquer do mundo físico, pelo que em nada
foram avaliações diversas a que ficou submetido, por força de aproveita aqui distinguir entre fato humano e fato da natureza.
uma circunstância que, de resto, não é fenomênica, mas pura- Como bem observa De Ruggiero, "as ações humanas, que não de-
mente jurídica: a titularidade do domínio dos solos. O de que pendem de uma vontade, incluem-se nos fatos naturais: não se
o fruto proveio e o daquele sobre que caiu. Do mesmo modo o pode pôr nenhuma diferença entre o ato inadvertido de um de-
abandono do álveo, que, no exemplo, faz surgir novos direitos mente e o da força bruta" (Roberto de Ruggiero, Istituzioni di cli-
dominicais em- favor dos ribeirinhos, será absolutamente destituí- ritto civile, '7. ed., Messina, G. Principato, 1934, v. 1, p. 226).
do de conseqüências jurídicas, se o desvio de curso, que deixa des-
coberta a superfície, ocorre no interior de uma única propriedade.
Atos jurídicos: lícitos e ilícitos?
Sintetizando: a juriclicidade não é um atributo intrínseco à
materialidade dos fatos, mas uma propriedade que o Direito lhes E os atos, como se classificam? A esse ponto manifesta-se o
acrescenta, com base em puras razões de conveniência ou opor- que talvez constitua, na matéria, o mais radical desacordo entre
tunidade. Logo é equivocado pretender-se fundar uma tipologia os juristas: incluem-se os atos ilícitos no âmbito daqueles a que
dos fatos jurídicos a partir de uma angulação estática. Não há convém a qualificação de jurídicos?
fatos jurídicos a priori.
É no dinamismo da sua apropriação Kiistr, pretendendo-se baseado em Enneccerus, subsume, sem
axiológica que os fatos adquirem ou não o atributo, eminentemen- mais, os atos ilícitos na categoria dos jurídicos (juristische Hand-
te extrínseco, de serem jurídicos. lungen) (cf. Ewald K6st, Juristisches Warterbuch, 4. tir., Bremen,
C. Schtinemann, 1961, Stichw. [Willenserklarungen). De Rug-
256
257
giero, partindo da proposição alternativa de que o ato jurídico é ato jurídico, tanto faz sentido dizer que é relevante, quanto de-
conforme ou desconforme com o direito objetivo, o faz gênero de clarar que é conforme. Ou seja: relevante para o Direito, pro-
que é espécie o ato ilícito (cf. Istituzioni, cit., p. 29). No mesmo
dutor de conseqüências jurídicas, por um lado, mas também, por
sentido o ensinamento de Candian, para quem a distinção dos outro lado, conforme ao Direito, isto é, em acordo com a ordem
atos jurídicos em lícitos e ilícitos é a primeira a que conduz a ne- jurídica. O saque de uma cambial, por exemplo, que atenda aos
cessidade de uma classificação qualquer (cf. Aurelio Candian, preceitos de lei, tanto é jurídico no sentido de que é relevante
Nozioni istituzionali di diritto privato, 2. ed., Milano, Giuffrè, para o Direito, como é jurídico no sentido de que se fez em con-
1949, p. 87, 97, 121). Entre nós, Serpa Lopes considera os "atos formidade com as suas regras. Se se toma jurídico no primeiro
contrários ao direito" um dos três grupos em que classifica os atos sentido, é claro que tem inteira procedência distinguir-se os atos
jurídicos (cf. Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de direito ci- jurídicos em lícitos e ilícitos, que uns e outros são produtores de
vil, 3. ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1960, v. 1, p. 400). conseqüências para o Direito. Ao contrário, a distinção será des-
Para outros, a juridicidade do ato supõe a sua licitude, pelo propositada se se considera o segundo sentido, porque um ato ilí-
.que seria contraditório falar-se de ato jurídico ilícito e ocioso re- cito evidentemente não pode estar conforme ao Direito. É exata-
ferir-se aos atos jurídicos líbitos (cf. a propósito Carl Creifelds mente por causa da polissemia do termo que, não obstante a
(Hrsg.), Rechtszvõrterbuch, 3. tir., München, C. H. Beck'sche Ver- divergência assinalada, todos concordam em que o ato ilícito é
.lagsbuchh., 1973, Stichw. Rechtshancllung; Washington de Bar- um fato jurídico (em sentido lato).
ros Monteiro, Curso de direito civil, 14. ed., São Paulo, Saraiva, Em que se fica então?
1976, v. 1, p. 175; Silvio Rodrigues, Direito civil, 6. ed., São Paulo, Entre nós é da tradição subentender em ato jurídico a con-
Saraiva, 1976, v. 1, p. 147; Caio Mário da Silva Pereira, Institui- formidade com o Direito. É a orientação do Código Civil e a de
ções de direito civil, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1976, v. 1, reputados doutrinadores. A bem da estabilidade terminológica
p. 398-9). conviria, pois, não insistir no outro uso, cuja correção, entretan-
O dissenso ganhou clara evidência em nosso meio quando da to, não pode ser contestada. Ocorre que a língua não é apenas
um fato da razão, mas também um fato socialmente estabelecido.
discussão do Anteprojeto de Código Civil da Comissão Reale. Ali Nem sempre, portanto, o que convém em Lógica, convém ipso
se previu, na Parte Geral, um título a que se chamou "Atos ju- facto em Linguagem. Advirta-se, de qualquer modo, para o salto
ridicos lícitos". Contra tal orientação insurgiu-se Caio Mário da conceituai que se pratica, quando se passa, sem mudança aparen-
Silva Pereira, que teve réplica de Miguel Reale, a quem ainda tre- te no adjetivo, do fato jurídico para o ato jurídico, entendido
plicou (cf. Caio Mário da Silva Pereira, Reformulação da ordem como manifestação lícita da vontade, apta a criar, conservar,
jurídica e outros temas, Rio de Janeiro, Forense, 1980, p. 145, 200, modificar, transferir ou extinguir direitos.
2034; cf. ainda, José Carlos Moreira Alves, Exposição de motivos
complementar do Prof. José Carlos Moreira Alves, in Ministério
da Justiça, Anteprojeto de Código Civil. [S. 1.], Dep. de Impren- 6. Aptidão e intencionalidade nas manifestações de vontade
sa Nacional, 1973, p. 24-5).
Apta a etc. E não que tenha por fim etc., conforme se expres-
A raiz do dissídio está a ambivalência do termo jurídico.
Quando se fala em fato jurídico, segundo ficou registrado, o que sa o Código Civil brasileiro (art. 81). O fim ou destinação reside
se tem em vista é a relevância do acontecimento para o Direito. na vontade do agente, que pode adotar ou não o comportamento
Não a sua conformidade ao Direito. O nascimento, por exemplo, que a lei precisamente reclama para o surgimento das conseqüên-
é relevante para o Direito porque faz surgir uma pessoa, criando cias jurídicas pretendidas. Se o adota, os efeitos se alcançam e
prerrogativas e deveres. Não seria apropriado, contudo, afirmar- o ato pode dizer-se praticado. Se, entretanto, não o adota, os
seque o nascimento é conforme ao Direito. O juizo de conformi- efeitos não sobrevêm: não houve, pois, o ato, malgrado ter havido
dade aqui é manifestamente descabido. Já quando se alude ao correspondente destinação do agente. A aptidão, ao contrário, é
a propriedade do comportamento a produção dos efeitos dispostos
258
2.7 9
pela lei, independentemente, em princípio, da intencionalidade do
agente.
raciocínio de Clóvis, com a diferença de que este, explicitamente,
Assim, se alguém quer intervir como fiador, mas apõe a sua reconhece, ao lado dos ilícitos, atos que não são jurídicos e que,
firma em letra de câmbio, de modo a realizar a fattispecie à semelhança dos primeiros, também produzem efeitos que inde-
aval, torna-se, na verdade, avalista, sem embargo de ser outro do
pendem da vontade do agente, como a mudança de domicilio e
fim da sua ação. É que esta não é apta ao surgimento da fian- a especificação (Clóvis Beviláqua, Teoria geral do direito civil,
ça, mas o é ao surgimento do aval. Logo, a caracterização da 6. ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1953, p. 270-1). Também
categoria ato jurídico apoiada sobre a vontade é a posição de Orlando Gomes, para quem
não se deve fazer por vinculação ao fim
e, portanto, ao estado subjetivo do agente, senão antes, a partir os atos ilícitos são "ações humanas de efeitos jurídicos involun-
da objetividade da sua conduta. tários", exatamente no sentido de que "não são desejados, mas
impostos pela ordem jurídica" (Introdução ao direito civil,
Poder-se-ia objetar que o fim, na linguagem do Código, es- 4. ed.,
taria conotado à lei e não ao agente. Isto é; "Todo ato lícito, Rio de Janeiro, Forense, 1974, p. 269 e 517).
que [pela lei] tenha por fim...". Uma distinção fundada no querer intimo do agente suscita,
O argumento salva a impropriedade epistemológica, mas não contudo, inevitáveis dificuldades. A que controles objetivos sub-
salva a impropriedade de linguagem. O fim, enquanto referido meter os atos para concluir da sua natureza? Note-se que não
à lei, não concerne às ações humanas, mas às figuras categoriais se trataria de apurar se o ato foi praticado livremente ou sob
que prevê. Ora, o texto do art. 81 não se reporta a um modelo coação, isto é, se foi efetivamente querido pelo agente ou se lhe
universal de ato jurídico, dotado de um finalismo próprio, que foi imposto. A busca seria ainda mais delicada e profunda: quis
, seria a mesma aptidão. Procedimento, de resto, só possível em ou não quis o agente os resultados que a ordem jurídica vincula
sistema de numerus clausus. à tipicidade do ato?
Ao invés, o que faz o art. 81 é es- Nem se pense poder alcançar a resposta a partir da objetivi-
tender o predicado de ato jurídico a multidão inominada de ações, dade da ação • se alguém contrata a venda de um imóvel, quer
infinitamente diversas entre si. Logo, o fim só pode estar mesmo
nessas ações, como integrante de cada uma delas, e não na — preço e aceita a perda do objeto (ato jurídico); se pratica es-
Seria evidentemente forçado pretender que, ainda quando se pra- bulho, quer manter-se com a posse em que se investiu por vio-
lência (ato ilícito), e assim por diante. O mais que se poderá
lei. um ato jurídico atípico, aí está presente uma finalidade da
tica avançar aqui é que se presume ser esta ou aquela a intenção.
Entre a presunção e a certeza, porém, vai sempre uma distância,
grande ou pequena, mas que as boas teorias, em qualquer hipó-
tese, não podem ignorar. Quem poderá garantir até mesmo que
7. Atos jurídicos e atos ilícitos: por uma nova distinção autor de um ilícito, penal ou civil, não esteja buscando exata-
mente a reação emendativa da lei, em vez da subsistência do
No extremar os atos jurídicos dos atos ilícitos é freqüente seu ato?
ecorrer-se ao elemento volitivo. Assim, se os efeitos gerados são
os queridos pelo agente, diz-se que o ato é jurídico, isto é, ope- De outra parte, os efeitos que em qualquer caso efetivamente
rado de conformidade com a lei. Se, ao revés, se produzem não se condicionam apenas à ação prevista na lei,
os efeitos sobre- mas também às circunstâncias que constituem os suportes fac-
vindos são outros que os pretendidos pelo autor ou não guardam tuais e contextuais da manifestação de vontade. A que, embora
com estes relação de dependência, tem-se então o ato ilícito, ou lícita, gere, por vício de compreensão, o entendimento de ser
seja, uma ação que se exerce contrariamente à lei. No primeiro contrária à lei, continua sendo ato jurídico, posto que, de fato,
sentido é a lição de Silvio Rodrigues (Direito civil, cit., v.
1, p. provoque resultados estranhos ao querer do agente. E reciproca-
146 e 293-4). No segundo, próximo do primeiro, porém sutilmen- mente. Assim, quem intencionalmente deite fogo em objeto de
te diverso, está o ensinamento de Washington de Barros Montei- sua propriedade para investir-se na soma por que foi segurado,
ro (Curso,
cit., p. 164). Segundo a mesma linha geral situa-se o pratica ato ilícito, ainda quando o caráter criminoso do ato ja-
260 mais venha a ser descoberto.

261
Buscando objetivar-se a distinção, tem-se
resposta do ordenamento jurídico. melhor critério na
A todas as ações humanas corresponde na com a eventual desconformidade entre a reação efetiva e o modelo
ou mais dos três seguintes modelos reativos: ordem jurídica um correspondente. Cada ação há de ser subsumida ao respectivo ca-
• nal modelar, extraindo o intérprete, do processamento teórico res-
1.0) Indiferença. pectivo, a solução prática final.
O ato é ignorado, corno quando alguém
vê, fala, anda. Chamar de indiferente a reação da ordem jurí- Em favor de uma tal extremação, inerente à própria ordem
dica não significa, decerto, pretender que as ações corresponden- jurídica em si mesma, e não ao sujeito que a provoca, é de se re-
tes não estejam garantidas por ela. Significa, tão-somente dizer gistrar a sua condição de excelente suporte perimétrico para uma
que não suscitam mutação no estado jurídico de coisas, sendo,
sob este teoria geral das nulidades. Valle Ferreira fez notar, com absoluta
aspecto, rigorosamente equivalentes ao seu contrária No propriedade e fina argúcia, que é da violação da lei que surge a
caso, não ver, não falar, não andar.
2.0) Assimilação. nulidade (cf. José G. do Valle Ferreira, Subsídios para o estudo
O ato é, por assim dizer, metabolizado pe- das nulidades, Revista da Faculdade de Direito da Universidade
la ordem jurídica, que produz, em conseqüência, efeitos típicos, de Minas Gerais, Belo Horizonte, 3:30, out. 1963). Ora, a grada-
previamente
acordam definidos. Assim, quando comprador e vendedor
na coisa ção que caminha da validade plena à absoluta nulidade parece
e no preço, a ordem jurídica reage, guardar significativo paralelismo com a que vai de uma assimila-
a transferência do domínio ou a obrigação de operá-la. impondo
Este ção perfeita a uma rejeição total. E mais: os atos ditos inexis-
efeito, portanto, não é, na verdade, diretamente criado pelas par- tentes, de tão perturbadora presença na teoria das nulidades, não
tes, senão pelo Estado, que, garantindo constitucionalmente a corresponderiam precisamente à reação aqui caracterizada como
propriedade, é o único poder que determina o
seu de indiferença do ordenamento jurídico?
A percepção contrária, no sentido de que o negóciodeslocamento.
jurídico en-
contraria em si próprio motivo, validez e obrigatoriedade, é atri-
buída por Manigk a insuficiente esclarecimento da "base lógica 8. Negócios jurídicos e atos "stricto sensu": o "quod placet"
do problema" (Alfred Manigk,
Rechtsquellen, Die Privatautonomie im Aufbau der e o "quod oportet"
Berlin, Franz Vahlen, 1935, p. 84).
3.0) Rejeição.
AquiEa porque
ordem jurídica repele o ato, por aten- No interior da categoria atos jurídicos, a doutrina mais au-
tatório aos seus valores. agredida, torizada distingue entre os negócios e os atos stricto sensu. Onde,
restabelecer o status quo ante, movimenta-se para
indevidamente perturbada Rdh- porém, terminam os limites conceituais do negócio jurídico e co-
ler explica, a propósito, que as conseqüências jurídicas manifes- meça o conteúdo residual dos atos stricto sensu, ou vice-versa, é
tam-se então como "reação e contra-efeito, porque a ordem jurí- matéria a cujo respeito o consenso teórico parece longe de veri-
dica não está contente com o estado provocado pelo agente e exige ficar-se.
uma alteração" (J. K5hler,
schaft, Leipzig, a Bóhme, 1902, Einführung in die Rechtswissen- Moreira Alves parece entender que a distinção se radica nos
p. 23).
efeitos jurídicos: se produzidos em consideração à vontade do
Pois bem, quando a resposta prevista no ordenamento é
milatória, agente, ter-se-ia o ato negocial; se independentemente dela e por
o ato é jurídico. É ilícito, ao contrário, quando a assi-
posta é r2jectória. res- força da atuação objetiva que se desenvolve, ter-se-ia o não-nego-
Sendo, finalmente, indiferente, cial, ou fato jurídico em sentido estrito, ou ainda ato-fato (cf. José
situa fora do quadro produtivo de efeitos jurídicos, pelo a matéria
que nãose
Carlos Moreira Alves, O negócio jurídico no Anteprojeto de Código
se integra no circuito de situações aqui consideradas, que são Civil brasileiro, Arquivos do Ministério da Justiça, Rio de Janeiro,
aquelas de que promanam direitos e deveres. 13:3, set. 1974). Discutível como possa ser o critério, foi mérito
Observe-se que se está falando de modelos incontestável do Anteprojeto de Código Civil da Comissão Reale
prevista Portanto, não se reativos, de resposta acolher a distinção entre o ato e negócio jurídico, a que, de resto,
compromete a construção proposta
salvo a questão terminológica (cf., supra, n. 5), deu tratamento
262 impecável.

2W
Não seria, porém, o caso de se preferir, também aqui, um cri-
tério objetivo de distinção? tempo, a negação do caráter de negocialidade poderiam justifi-
car-se apenas para o implemento da obrigação e, mais generica-
Entre as figuras havidas como típicas expressões de atos e mente, para os atos devidos" (Pietro Rescigno, Manuale dei di-
situações aceitas como de negócios jurídicos, verifica-se que a dis- ritto privato italiano, 3. ed., Napoli, Jovene, 1979, p. 263).
tância ontológica parece residir no respectivo teor de indetermi-
nação da vontade. Geri e outros, explorando a taxionomia dos Assim, aplicando: pode-se fazer ou não a doação de um bem,
tatõi jurididos, notaram, com efeito, que bem cedo ela se pôde ainda ciente do mau uso que terá, emitir ou não disposições tes-
configurar como gradação de estágios da vontade, que vão desde tamentárias, pactuar este ou aquele regime de bens no casamen-
aqueles em que ela é tudo — _negócios — aos em que ela está au- to etc., mas não se pode deixar de restituir a soma mutuada, de
sente — meros fatos —, passando pela categoria intermediária recolher os alugueres convencionados, de despachar um processo
dos meros. atos, nos quais ocorre, porém, não tão decisivamente ou proferir uma sentença. Praticadas as ações, há, no primeiro
(cf. Geri, Lina Bigliazzi et al., Istituzioni di diritto civile, Genova, grupo de casos, negócios. No segundo, atos. Nos negócios pergun-
Coop. Libr. Universitaria, 1978, p. 452-3). A um critério que se ta-se pelo quod placet. Nos atos, pelo quod oportet.
. baseasse
. apenas na intensidade do componente voluntarístico fal- Resumindo, dir-se-á que o negócio se distingue do ato em[
taria, entretanto, a suficiente inelasticidade para permitir a pre- que aquele é uma ação livre, este uma ação necessária. Não de-
cisa extremação das figuras. O que se quer aqui propor é, pois, vem entrar, por conseguinte, incondicionalmente na classe dos
uma solução que também incorpore a qualidade da autonomia. atos as manifestações dependentes, como, por exemplo, a denún-
Assim, serão negócios os atos que não têm outros limites que os cia de um contrato de locação (que supõe o respectivo negócio
pressupostos de legalidade. Em regra: agente capaz, objeto lícito prévio), nem as que têm por fim a efetivação de um evento,
e forma prescrita ou não defesa (CC, art. 82). Nos atos há sem- como a anuência a uma operação. As primeiras seriam para
pre, para além dos pressupostos de legalidade, uma vinculação da Kühler atos em sentido estrito (cf. Einführung, cit., p. 22). As
conduta. Portanto, um condicionamento da autonomia. segundas classifica Creifelds como atos assemelhados aos negócios
jurídicos (rechtsgeschiiftsiihnliche Handlungen) (cf. Rechtewdr-
Relativamente ao negócio o agente pode, em primeiro lugar, terbuch, cit., Stichw. Rechtshandlungen). A luz do critério que
praticá-lo ou abster-se de fazê-lo. E depois, se opta por praticá-lo,
dar-lhe o conteúdo específico e a forma que livremente eleger. Já se está aqui propondo são, entretanto, umas e outras, também ne-
nos atos a liberdade não existe nem para a prática, nem para o gócios, sempre que o agente não esteja obrigado à sua prática
' conteúdo. Freqüentemente tampouco para a forma, aberta, em nem vinculado a resultados dela decorrentes. Certo que também
princípio, quando se trata de negócios. É verdade que, ainda nos nos negócios há submissão a vínculo. Neles, contudo, o compro-
atos, reconhece-se ao agente uma relativa autonomia: precisamen- misso surge, para usar a feliz observação de Rescigno, da liber-
te aquela necessária para o mais adequado cumprimento de um • dade e vontade dos sujeitos (cf. Manual°, cit., p. 261). O con-
dever. Mais adequado quer indicar aqui não apenas a máxima sentir em intervenção cirúrgica, por exemplo, só não tem
fidelidade ao objeto da prestação, como também o menor ônus para natureza negociai para o agente que se encontre sob o dever de
agente. Daí por que a autonomia, sendo sempre necessária, é praticá-lo, como é o caso do representante do paciente incapaz.
também, ao menos tendeneialmente, mais do que suficiente para Mas é negócio jurídico próprio e verdadeiro quando o paciente
estrito cumprimento do dever. O suplemento visa, exatamente, é também o autor da declaração, ressalvada a hipótese de um
a garantir ao agente o mais baixo custo no desempenho da pres- suposto dever jurídico para consigo próprio.
tação. Ou, indistintamente, a melhor performance e o mais re- A distinção proposta, sobre assegurar a boa extremação das
duzido dispêndio. situações concretas, contém o saudável benefício de dar trans-
Sobre a distinção em si, entre negócio e ato, é oportuno lem- parência à vinculação dos atos de império, mesmo quando, no
brar, em favor do critério aqui proposto, a lição de Rescigno, sentido do direito administrativo, eles hajam de ser considerados
segundo o qual, "em definitivo, a qualificação de ato e, ao mesmo discricionários. É que, no fundo, a discricionariedade deve enten-
der-se como condicionada aos fins sociais do ato. Isto é: auto-
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nomia para lhe dar o conteúdo que melhor promova os interesses
do Estado. Que tem o poder de livre nomeação para um cargo
público, por exemplo, não está diante da mesma autonomia de
que desfruta quem, no supermercado, seleciona os géneros que
vai adquirir. Aqui, veja-se, a questão é do quod ?Atice& Ali, do
quod oportet. Tampouco, para considerar outros exemplos, a li-
berdade do juiz que decide é a mesma do particular que elege,
entre prédios, qual deles tomará em locação.
Não só do ponto de vista psicológico, mas também do ético e
do jurídico percebe-se que são substancialmente diversas a situação
do juiz que está entre acolher ou rejeitar a demanda e a do par-
ticular que hesita entre fechar ou não um contrato de compra
s venda. A do Presidente da República que se debate entre a
sanção ou o veto e a da mulher que pode ou não consentir na A "Verwirkung", a renúncia tácita, e o
hipoteca de bens do casal. Em todos esses casos, ao agente se Direito brasileiro
assegura a liberdade de exercício das alternativas. Qualquer que
seja o uso que dela faça, realiza ação formalmente lícita. Mas
a autonomia de uns é autofundada, isto é, não exige razões exte- JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA
riores de legitimação. A de outros é heterofundada: são agen- Professor Titular de Direito Civil da
tes a quem se defere a prerrogativa para o preenchimento de um Universidade Federal do Paraná.
dever.
É por isso que uma eventual destinação a fundo perdido de
bens públicos não pode submeter-se, digamos, aos caprichos e
excentricidades que se podem permitir a quem lavra o seu testa-
mento. Sintomaticamente, contudo, é por esta mesma palavra
que se costuma designar atos generosos que se praticam ao apa-
gar das luzes de administrações pouco sérias...

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