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DIREITO CONSTITUCIONAL I

AULA 2 – PODER CONSTITUINTE. AS PRIMEIRAS


EXPERIÊNCIAS CONSTITUCIONAIS MODERNAS: ESTADOS
UNIDOS, FRANÇA, HAITI

2.1 – PODER CONSTITUINTE

2.1.1. Poder Constituinte Originário

Em sua definição mais simples possível, “Poder Constituinte Originário” é o


estado de transição entre o poder político puro e o poder juridicizado 1, ou seja,
transformado em regras jurídicas: é o poder de produzir normas
constitucionais, de instaurar um novo ordenamento jurídico, e com isso,
regular as relações jurídicas em uma sociedade. Também é utilizado para
denominar a pessoa ou grupo que detém esse poder de produção.

Há momentos críticos da vida dos povos em que o poder político


(eventualmente, mas não necessariamente democrático) se sobrepõe
completamente e sem limites à ordem vigente até então. É nestes momentos
que o Poder Constituinte se levanta.

Filosoficamente, nos remetemos a Kelsen (estudado em nossa disciplina


anterior), para dizer que o Poder Constituinte é o “SER”, que produz o
“DEVER SER”.

O poder constituinte não está sujeito às normas até então vigentes. Surge do
nada (do ponto de vista jurídica, do político não, claro) e organiza todo o
direito hierarquiza a ordem dos poderes.

Ao fazê-lo, transforma poder em norma e instituições, e limita-se a si mesmo.


Com a escrita da Constituição, transforma-se em Poder Constituído.

Esta limitação é pode tempo indeterminado, mas nunca definitiva. Quando


conclui este processo, não se extingue, apenas fica latente até novo momento
de severa ruptura política daquela sociedade, quando ressurge completamente
sem amarras de novo.
1
Substancial parte deste tópico da aula tem como fonte o livro “Poder Constituinte”: ensaio sobre as
alternativas da modernidade, de Antônio Negri, DP&A Editora, 2002.
1
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“O paradigma do poder constituinte é aquele de uma força que irrompe,
quebra, interrompe, desfaz todo equilíbrio preexistente e toda continuidade
possível.”2

E, em um segundo momento, abre possibilidades de produção imediata de


uma nova ordem. Ele é radical, imprevisível, tendo pouco ou nada haver com
a ideia de direito natural que estudamos no semestre passado.

2.1.2 A titularidade do Poder Constituinte. A relação conflituosa entre


Constituição e Democracia

O único condicionamento do Poder Constituinte, nos ensina Luís Roberto


Barroso3, é a capacidade de determinar a observância do texto que será
produzido.

O poder constituinte, como qualquer poder efetivo, envolve a manifestação


de vontade de quem o exerce e o consentimento ou sujeição de quem a ele se
submete. Dificilmente será possível falar na vigência de uma Constituição
onde haja desobediência ampla e generalizada. Na sua essência, portanto, o
poder constituinte consiste na capacidade de elaborar uma constituição e de
determinar sua observância. Nesta acepção, consiste ele em uma situação de
fato. Todo exercício de autoridade, no entanto, precisa ser justificado,
necessita de um fundamento que o legitime. Historicamente, essa justificação
foi buscada em fatores diversos: a força bruta, o poder divino, o poder dos
monarcas, a nação, o povo.” (grifos meus).

Isso nos leva à conflituosa relação entre as ideias de Poder Constituinte e


Democracia.

Este conflito se dá em duas perspectivas.

A primeira delas é que nem sempre (arriscaria dizer que, aliás, apenas na
menor parte das vezes) o Poder Constituinte é exercido pelo povo, ou, pelo
menos, por sua maioria.

2
Negri, obra citada, p. 21.
3
Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, Editora Saraiva, 2009, p. 103
2
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São inúmeros os exemplos, tanto no Brasil quanto no exterior, de Poder
Constituinte exercido autocraticamente, sem a menor participação popular.

Nestas situações históricas, o Poder Constituinte se legitima pela força bruta,


pela capacidade de um indivíduo, partido, classe social ou estamento de impor
uma Constituição à população.

No Brasil, são exemplos disso as Constituições de 1824 (Imperador D. Pedro


I), 1937 (Getúlio Vargas) e 1967 (Militares). Na elaboração dessas
Constituições, prevaleceu o controle do poder físico sobre a população
brasileira, que não foi chamada a se manifestar.

Para completa compreensão da ideia, leiam esse trecho do Discurso de D.


Pedro I, na abertura da Assembleia Constituinte de 1823, por ele
posteriormente dissolvida sem concluir seus trabalhos:

Como Imperador Constitucional, e mui especialmente como Defensor


Perpétuo deste Império, disse ao povo no dia primeiro de dezembro do ano
próximo passado, em que fui coroado e sagrado – que com a minha espada
defenderia a Pátria, Nação e a Constituição, se fosse digna do Brasil e de
mim..

A seguir, trecho do Ato Institucional nº 1, primeiro documento jurídico da


Ditadura Militar de 1964:

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se


manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais
expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa,
como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo
anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a
força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas
sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória.

Todas essas três Constituições duraram exatamente o tempo em que seus


instituidores tiveram controle físico sobre a população brasileira, podendo
impor a ela sua vontade.

Os demais textos constitucionais brasileiros (1891, 1934, 1946 e 1988) foram


o resultado de um Poder Constituinte exercido de modo cada vez mais amplo
e democrático, com crescente participação popular.
3
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Relativamente às três primeiras, é fato que a participação popular limitou-se à
eleição dos representantes congressuais que as votaram.

Relativamente à Constituição de 1988, além da votação popular para eleição


dos representantes congressuais, destaca-se intensa participação da sociedade
também durante a redação do texto. Para maiores esclarecimentos sobre
esta participação, recomenda-se a leitura do livro “1988 – Segredos da
Constituinte”, de Luiz Maklouf, editora Record.

É nestas Constituições em que o Poder Constituinte realmente teve origem na


população que uma segunda questão se impõe: como conciliar democracia,
como um governo de maioria, com a necessidade de se reconhecer e se
permitir às minorias (numéricas ou sociais) uma vida regulamentada pelo
Direito?

Esta é uma decisão, em cada sociedade, que a própria maioria precisa tomar,
Um bom ponto de partida é lembrarmos que nunca somos maioria em todos
os assuntos. Há sempre algum aspecto da nossa vida que é minoritário
em relação à posição mais comum do grupo social em que vivemos.

2.1.3 PODER CONSTITUINTE DERIVADO

Por Poder Constituinte Derivado denominam-se dois fenômenos distintos.

A) Poder Constituinte Reformador: é o poder de emendar textos da


Constituição. Por emendar, compreende-se suprimir partes, acrescentar
trechos, modificar a redação de textos vigentes.

As possibilidades e limites de exercício do Poder Constituinte Reformador


deverão estar dadas no próprio texto constitucional vigente.

No Brasil, há um núcleo que não pode ser reformado em hipótese nenhuma,


conforme previsão do texto do artigo 60, IV da própria Constituição 4. São as
4
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
4
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chamadas “cláusulas pétreas”, que somente poderão ser revisadas por novo
processo constituinte originário.

Todas as demais matérias da Constituição podem ser reformadas por voto de


3/5 dos Deputados Federais e Senadores.

B) Poder Constituinte Decorrente: a possibilidade de subunidades do país


em exame (Estados Federados, Províncias, Municípios, etc)
estabelecerem um texto constitucional próprio, para os limites do seu
território. Tal texto, contudo, não pode contrariar o texto da
Constituição Central que lhes concedeu essa possibilidade.

No Brasil, esta possibilidade é atribuída aos Estados Federados


(Constituições Estaduais) e aos Municípios (Lei Orgânica Municipal).

2.2. PRIMEIRA EXPERIÊNCIAS CONSTITUCIONAIS

2.2.1 A MAGNA CARTA

A Magna Carta inglesa, datada de 1215, muitas vezes é apresentada pelo


senso comum como a primeira Constituição da história.

Embora seja importante do ponto de vista simbólico a ideia de que um rei


tenha concordado com a limitação de seus poderes, é preciso lembrar que esta
limitação foi um rearranjo de força entre ele (João Sem Terra) e os senhores
feudais ingleses, e não propriamente uma organização do Estado ou a
preservação dos direitos da generalidade da população.

Naquele momento histórico, era difícil separar o que pertencia à organização


estatal e o que pertencia aos Reis e Nobres. E ninguém, além deles, tinha
qualquer direito reconhecido.

Não se trata de desprezar seu sentido histórico de germinação da ideia de que


algo, além da força, poderia estabelecer os parâmetros das relações políticas.
Mas dificilmente este documento pode ser enquadrado no conceito moderno
de Constituição.

5
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2.2.2 A CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA –
1787

A primeira experiência constitucional bem-sucedida, que produz um texto


vigente até a data de hoje5.

Do ponto de vista filosófico, sua inspiração é o contrato social em John Locke


(filósofo que estudamos semestre passado): seu pressuposto é que os cidadãos
das colônias inglesas da América do Norte viviam em uma situação de
liberdade (pessoal e patrimonial), e que esta liberdade foi perturbada pelos
excessos autocráticos do rei inglês em meados do século XVIII.

Assim, os colonos teriam exercido o seu direito de resistência, para


preservação dessas suas liberdades, indo à guerra para sua preservação. Com
a vitória na guerra, tornaram-se independentes e registraram seus direitos em
um texto constitucional.

Leiam, abaixo, o preâmbulo da Constituição norte-americana:

Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita,
estabelecer a justiça, assegurar a tranquilidade interna, prover a defesa
comum, promover o bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos
descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta
Constituição para os Estados Unidos da América.

Nosso grifo, acima, é para destacar o trecho em que a influência lockeana se


faz completamente evidente: o Estado Jurídico que se cria serve para ampliar
o bem-estar que já existiria anteriormente no Estado de Natureza.

Politicamente, a história de sua formação é menos idílica (menos pura, menos


idealizada).

Os Estados Unidos tornaram-se independentes em 1776 (onze anos antes),


sendo a ideia inicial é que as 13 antigas colônias conservassem um grau
bastante elevado de autonomia, unidas em uma confederação de laços mais
frouxos (algo similar à atual União Europeia).

5
Para seu texto atual, em português, consulte o link
http://www.uel.br/pessoal/jneto/gradua/historia/recdida/ConstituicaoEUARecDidaPESSOALJNETO.pdf,
acesso em 06 de agosto de 2022.
6
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Alguns elementos, no entanto, levaram ao estabelecimento da federação
centralizada, que veio a ser os Estados Unidos da América. Destacam-se:

a) A necessidade de fortalecimento de uma defesa contra uma possível


tentativa de retomado dos territórios pela Inglaterra;

b) Os inúmeros problemas fronteiriços e econômicos entre os Estados


nascentes.

A Constituição de 1787 representa a consolidação do modelo institucional


que deu origem aos Estados Unidos da América.

Inicialmente, em seu texto originário, ela é escrita apenas para organizar e


dividir o poder estatal.

Não há referências, senão genéricas e distantes, a direitos individuais. O novo


país é profundamente escravista (em uma escala que só tem equiparação com
o Brasil), e o poder constituinte foi exercido apenas e tão somente pelos
homens, proprietários de terras, que levaram o país à independência.

Frequentemente, o texto é acusado de haver criado uma república, mas não


uma democracia. Um resquício dessa ideologia é a circunstância de até a data
de hoje as eleições para Presidente do Estados Unidos darem-se de forma
indireta.

Os direitos fundamentais do cidadão foram incluídos na Carta por emendas


posteriores. Assim como o fim da escravidão, que se deu apenas após longa
guerra civil, em 1865 (Emenda XIII).

As mulheres foram admitidas ao voto em 1920, pela Emenda XIX.

O texto da Constituição é muitíssimo enxuto para os parâmetros atuais, o que


é visto pelos seus fãs como algo positivo.

No entanto, como os problemas sociais se complexificaram imensamente


desde a sua promulgação, são constantes e ácidas as disputas em torno do
significado de palavras e expressões extremamente vagas, como liberdade e
devido processo legal.

2.2.3 A PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO FRANCESA – 1791

7
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A primeira Constituição Francesa foi escrita6 no ano de 1791, dois anos após
a Revolução.

A sua perspectiva filosófica, embora também contratualista, é de ordem


distinta daquela norte-americana. Onde ali a inspiração era a obra de Locke,
aqui são as ideias de Rousseau.

Ou seja, reconhece-se uma ordem anterior, de caráter não natural, mas


inteiramente corrompida pelo luxo, pela concentração da riqueza e do
reconhecimento social, pela distinção dos homens entre nobres e não-nobres.
Com a Revolução e a nova Carta pretende-se o estabelecimento de um novo
contrato social, em que a soberania seja exercida conjuntamente por todos os
cidadãos.

Veja-se o seu preâmbulo, que sintetiza essas posições:

A Assembleia Nacional, desejando estabelecer a Constituição francesa sobre


a base dos princípios que ela acaba de reconhecer e declarar, abole
irrevogavelmente as instituições que ferem a liberdade e a igualdade dos
direitos. Não há mais nobreza, nem pariato, nem distinções hereditárias,
nem distinções de ordens, nem regime feudal, nem justiças patrimoniais,
nem qualquer dos títulos, denominações e prerrogativas que deles
derivavam, nem qualquer ordem de cavalaria, de corporações ou
condecorações para as quais se exigiram provas de nobreza, ou que
supunham distinções de nascença, nem qualquer outra superioridade senão
aquela de funcionários públicos no exercício de suas funções. Não há mais
venalidades nem hereditariedade para qualquer cargo público. Não existe
mais, para qualquer parte da Nação, nem para qualquer indivíduo, privilégio
algum, nem exceção ao direito comum de todos os franceses. Não há mais
corporações profissionais, de artes e ofícios. A lei não reconhece os votos
religiosos, nem qualquer outro compromisso que seja contrário aos direitos
naturais, ou à Constituição.

Em seu texto utiliza-se da expressão “cidadão” como algo distinto de


“homem”, como já havia feito a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, documento político promulgado logo após a Revolução Francesa.

6
Texto disponível em https://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/const91.pdf, acesso em 08 de agosto de 2022.
8
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Esta distinção, que, em alguma medida ainda é utilizada pelos textos
constitucionais por todo o mundo, estabelece que cidadão é aquele que
pode participar politicamente do Estado, com a possibilidade de influir em
sua administração. “Homem”, no caso, seriam todas as demais pessoas.

Embora isso não tenha fica explícito neste primeiro texto constitucional
francês, apenas os homens eram cidadãos. As mulheres, embora tenham
participado ativamente do processo revolucionário, só foram admitidos à
condição de cidadãs em 1945!

Outra contradição gigantesca era a manutenção da escravidão pelos


Revolucionários. O tema sequer é mencionado na Carta, mas a escravidão
(residual na Metrópole, mas intensa nas colônias) só viria a ser abolida em
1794, sendo reintroduzida em 1802, e definitivamente encerrada apenas em
1848.

Voltando ao preâmbulo transcrito, e lendo o corpo da Carta, o que vemos é


um texto voltado principalmente para a reestruturação do Estado Francês,
com a retirada da nobreza dos postos de comando, e sua substituição pela
burguesia. Naquele momento, ainda sob a chefia nominal do Rei.

Timidamente, mas de modo mais nítido que na Constituição dos Estados


Unidos, vê-se referências esparsas à assistência social (socorros públicos) e à
educação como direitos constitucionais.

Esta Constituição teve brevíssima duração, sendo substituída por outra em


1793, após o Rei ter sido mandado à guilhotina, e proclamada a República
Francesa.

2.2.4 CONSTITUIÇÃO DO HAITI - 18057

No final do século XVIII, o Haiti (então Colônia de São Domingos) era a mais
rica das colônias francesas.

7
O texto que se segue é uma resenha/resumo dos livros “Os Jacobinos Negros”, de C.L.R. James, Editora
Boitempo 2010 e “Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro – A experiência constituinte de 1823
diante da Revolução Haitiana”, de Marcos V. Lustosa Queiroz, Editora Lumen Juris, 2017.
9
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A riqueza vinha de uma intensa produção agrícola, principalmente de açúcar
e café8. A colônia, que ocupava a parte ocidental da ilha de Hispaniola, tinha,
à época, uma população de aproximadamente 500 mil negros escravizados,
trabalhado para aproximadamente 30 mil brancos franceses, entre
proprietários de terras, suas famílias e auxiliares.

Mesmo para os padrões humanitários baixíssimos escravidão na América


Colonial, a situação na Colônia de São Domingos era considerada
particularmente ruim, com alimentação escassa, jornadas extenuantes e
castigos corporais horrendos aos escravizados.

Com a Revolução Francesa, a Espanha (que ocupava a outra metade da ilha),


invadiu a Colônia de São Domingos em 1791, sendo repelida pelos
escravizados, convertidos em soldados pela Metrópole.

À vitória contra as tropas espanholas, seguiu-se inevitável rebelião contra a


situação de escravidão, que levou à primeira abolição do regime pela França,
em 1794, considerando-se sua completa incapacidade de exercer o controle
sobre a colônia naquele momento.

Esta decisão francesa levou a uma acomodação inicial, com a formação de


um governo local autônomo dos ex-escravizados, mas ainda ligado à França.

Quando a França restabelece sua força militar, coma a ascensão de


Napoleão Bonaparte, no início do século XIX, busca não apenas retirar a
autonomia dada à colônia, como também restabelecer a escravidão em 1802
(como também visto no item anterior).

Segue-se uma guerra de independência entre o Haiti e a França, com a


surpreendente vitória daquele que se torna o primeiro país independente
das Américas, em 1805.

Esta é a única revolta de escravos bem-sucedida da História, e as


dificuldades que tiveram de superar colocam em evidência a magnitude dos
interesses envolvidos. A transformação dos escravos, que, mesmo às
centenas, tremiam diante de um único homem branco, em um povo capaz de
se organizar e derrotar as mais poderosas nações europeias daqueles

8
Estima-se que produzia metade da produção mundial de cada um desses bens naquele momento histórico.
Queiroz, obra citada, p. 64
10
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tempos é um dos grandes épicos da luta revolucionária e uma verdadeira
façanha.9

Com a independência, foi redigida a Constituição do Haiti, ainda em 180510.

Vamos ao exame de alguns tópicos do texto.

No preâmbulo vemos a frase:

“Em frente à natureza inteira, da qual nós temos sido injustamente e depois
de tanto tempo considerado como os filhos repudiados...”

A ideia filosófica de que existe uma natureza entre os homens é


contrabalanceada pela realidade de que, na condição de escravizados, eles
eram os filhos repudiados dela. A “mágoa” do texto tem origem na profunda
contradição entre uma revolução na metrópole sob o slogan “Liberdade,
Igualdade e Fraternidade” e a manutenção da população local na condição
de escravizada.

Ao preâmbulo segue-se, logo no artigo 2º, a abolição da escravidão para


sempre.

No artigo 12, a vedação a que pessoas brancas não residentes naquele novo
país pudessem vir a adquirir ali novas propriedades (respeitados os direitos
dos brancos residentes não franceses).

E no artigo 14 encontra-se o artigo mais famoso deste texto constitucional:

“Necessariamente deve cessar toda discriminação de cor entre os filhos de


uma só e mesma família, em que o chefe do Estado (Haitiano) é o pai. A
partir de agora, todos os haitianos serão conhecidos pela denominação
genérica de negros.”

O restante do texto alinha-se com as duas constituições estudadas


anteriormente, com estruturação do Estado e garantias ao direito de
propriedade.
9
C.L.R. James, obra citada, p. 15
10
Para o texto, em espanhol, veja o link https://decolonialucr.files.wordpress.com/2014/09/constitucion-
imperial-de-haiti-1805-bilbioteca-ayacucho.pdf, acesso em 09 de agosto de 2022. As traduções dos artigos
foram feitas livremente por este professor.
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A Constituição de 1805 do Haiti teve duração muito breve, e o país está
longe de ser um modelo institucional, por seus conflitos internos e
constantes intervenções estrangeiras, inclusive do Brasil (mas
principalmente da França e dos Estados Unidos).

Seu texto é trazido ao estudo por dois motivos distintos:

a) Para ilustrar da forma mais evidente possível que o tema de cada


Constituição é sempre aquilo que é mais relevante para quem a
escreve, tese que desenvolvemos na última aula;

b) Pela profunda (ainda que silenciosa) influência que este texto e a


revolução a ele subjacente teve sobre toda a América, especialmente
Brasil e Estados Unidos, que passaram todo o século XIX
amedrontados de que sua população escravizada repetisse o feito da
população haitiana, aprofundando sua repressão e excluindo-a
completamente de direitos constitucionais enquanto isso foi
minimamente possível. Em grande medida, este ainda é o principal
problema constitucional moderno, a contradição entre a pretensão à
universalidade e a realidade da repressão.

“Finalmente, todos os brasileiros, e sobretudo os brancos, não percebem


suficientemente que é tempo de se fechar a porta aos debates políticos, às
discussões constitucionais? Se se continua a falar dos direitos dos homens,
de igualdade, terminar-se-á por pronunciar a palavra fatal; liberdade,
palavra terrível e que tem muito mais força em um país de escravos do que
em qualquer outra parte. Então toda a revolução acabará no Brasil com o
levante dos escravos, que, quebrando suas algemas, incendiarão as cidades,
os campos e as plantações, massacrando os brancos e fazendo desse
magnífico império do Brasil uma deplorável réplica da brilhante colônia de
São Domingos.”11

11
Queiroz, obra citada, p. 117
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