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KIT COMA E MORTE ENCEFÁLICA

O termo coma deriva da palavra grega “koma”, que significa sono profundo, e descreve
uma situação clínica de inconsciência com extrema irresponsividade, durante a qual o
paciente é incapaz de reagir ao ambiente.
O estado de coma é o comprometimento mais grave da consciência. A consciência tem
dois componentes principais: conteúdo e despertar. Eles têm substratos anatômicos
diferentes, o conteúdo localizado difusamente no córtex cerebral e o despertar
dependente dos neurônios da substância reticular ativadora ascendente (SRAA),
localizada no tronco cerebral.

As lesões corticais localizadas acarretam perda de uma ou algumas funções cerebrais,


mas não levam ao coma. O comprometimento cortical bilateral ou difuso é necessário
para a perda completa da consciência. O maior papel da SRAA é despertar e manter o
córtex alerta e capaz de interpretar e reagir aos estímulos ambientais. Desta forma, um
paciente pode perder a consciência por dois mecanismos diferentes: comprometimento
difuso do córtex cerebral ou lesão da SRAA no tronco cerebral.

O estado de coma situa-se num extremo das alterações do nível de consciência.


Dependendo do seu conteúdo e da capacidade de despertar, o nível de consciência
pode ser classificado desde o estado acordado e alerta até o estado de coma,
passando pelos estados de sonolência, obnubilação e torpor.

As causas que podem levar um paciente ao coma podem ser classificadas como
metabólicas, supratentoriais e infratentoriais. As causas metabólicas levam ao coma por
causar uma disfunção ou injúria neuronal cortical difusa. A maioria destas causas pode
ser reversível ou não dependendo da intensidade da disfunção ou da injúria neurológica
acarretada. As causas supratentoriais e infratentoriais que causam coma são
praticamente as mesmas. As lesões infratentoriais causam coma por acarretarem
distúrbio direto no funcionamento dos neurônios da SRAA, seja por lesão direta ou por
compressão e isquemia. As lesões supratentoriais só levam ao estado de coma se
produzirem um comprometimento difuso dos dois hemisférios cerebrais. Em geral, este
comprometimento pelas lesões supratentoriais decorre de 2 mecanismos: aumento da
pressão intracraniana e/ou herniação cerebral.

O aumento da pressão intracraniana pode causar uma diminuição crítica da pressão de


perfusão cerebral e isquemia difusa. As síndromes de herniação cerebral geralmente
cursam com aumento da pressão intracraniana e podem contribuir para o coma por
causar distorção, isquemia e hemorragia de extensos territórios encefálicos.

Os neurônios corticais são muito sensíveis a uma grande variedade de alterações


metabólicas ou tóxicas, como, por exemplo, hipoxemia, hipercapnia, hiponatremia,
hipernatremia, hipoglicemia, hipotermia, hipotensão arterial, drogas, etc., enquanto o
tronco cerebral é mais resistente a estes mesmos estímulos. Portanto, causas
metabólicas tendem a comprometer muito mais precocemente o córtex cerebral que o
tronco encefálico.

O Exame do Paciente em Coma

O coma é uma condição clínica frequentemente encontrada na prática clínica e somente


algumas vezes sua causa é evidente. Entretanto, muitas vezes a etiologia não é
conhecida, mas um exame neurológico sistematizado pode levar ao diagnóstico correto.

a) Exame geral: o exame inicial do paciente em coma obrigatoriamente começa com a


avaliação das condições respiratórias e hemodinâmicas gerais. Antes de prosseguir no
exame neurológico, o paciente em coma deve estar ventilando, oxigenando e
perfundindo adequadamente. Da mesma forma, medidas para garantir uma via aérea
patente, com boa ventilação e oxigenação e perfusão sistêmica adequada devem estar
sendo tomadas concomitante ou prioritariamente ao exame neurológico. O exame
neurológico do paciente em coma deve ser realizado na seguinte sequência: nível de
consciência (aplicação da escala de Glasgow), padrão da respiração, tamanho e
reatividade da pupila, movimento dos olhos e resposta motora.

b) Respiração: vários padrões anormais da respiração são conhecidos. A respiração


periódica ou Cheyne-Stokes é caracterizada por períodos de aumento na freqüência e
na profundidade da respiração, intercalados com períodos de respiração mais lenta e
superficial até sua parada completa (apnéia), a qual dura de poucos até trinta segundos.
Disfunções cerebrais difusas metabólicas ou lesões cerebrais supratentoriais são as
causas mais frequentes. Na hiperventilação neurogênica central a respiração é rápida,
profunda e regular. Este padrão geralmente identifica lesões mesencefálicas ou
pontinas altas. A respiração apnêustica é caracterizada por uma fase inspiratória lenta
seguida de uma fase expiratória rápida e aparece nas lesões da ponte. E a respiração
atáxica é completamente irregular com períodos de respiração normal ou
hiperventilação, intercalados por períodos de apnéia.

c) Pupilas: uma resposta pupilar normal à luz indica que o nervo óptico e as vias
simpáticas e parassimpáticas que governam a atividade pupilar estão intactas. Em
geral, as condições metabólicas não alteram a função pupilar até estágios muito
avançados. Algumas exceções são pupilas puntiformes e reativas nas intoxicações
opióides e pupilas dilatadas e fixas nas intoxicações anticolinérgicas (p.ex. atropina).
Uma lesão do III par (n. óculo-motor) acarreta dilatação pupilar não reativa à luz. Este é
um sinal importante nas lesões supratentoriais porque indica uma provável hérnia
temporal com compressão do III par ipsilateral. As lesões mesencefálicas podem
apresentar pupilas na posição média e não reativas à luz. As lesões pontinas bilaterais
acarretam pupilas puntiformes.

d) Movimento dos olhos: o movimento dos olhos pode ser observado com a rotação
rápida da cabeça para um lado e para o outro, e o movimento da cabeça para cima e
para baixo. No paciente comatoso os olhos devem se mover para o lado oposto ao do
movimento da cabeça (reflexo óculo-cefálico). Quando a cabeça é mantida na posição
neutra, os olhos devem rapidamente retornar à posição de repouso.

Desvios conjugados dos olhos ocorrem por lesões do SNC. Nas lesões destrutivas
hemisféricas os olhos são desviados para o lado da lesão (contrário à hemiplegia).
Lesões hemisféricas irritativas desviam os olhos para o hemisfério cerebral sadio. As
lesões destrutivas do tronco cerebral podem desviar os olhos para o lado contrário da
lesão e para o lado da hemiparesia. Desvio conjugado para baixo e persistente pode
aparecer nas lesões mesencefálicas.

Durante o teste do reflexo óculo-cefálico, uma falha na abdução de um olho é indicativa


de lesão no n. abducente do mesmo lado e uma falha na adução sugere o envolvimento
do fascículo longitudinal medial também do mesmo lado.

Informações adicionais a respeito do movimento dos olhos podem ser obtidas com o
teste calórico. Nos pacientes inconscientes, o estímulo com água gelada é seguido pelo
desvio tônico dos olhos para o lado irrigado, desde que a função do tronco cerebral
esteja íntegra (reflexo óculo-vestibular). O reflexo óculo-vestibular é pesquisado
injetando 5 a 10 ml de água gelada no canal auditivo externo (o qual deve estar
desobstruído) com o paciente na posição supina e a cabeça fletida a 30o.

e) Resposta motora: a resposta motora deve ser estimulada com dor no paciente em
coma (beliscão na região cervical, roçar das articulações interfalangeanas no osso
esterno ou estímulo doloroso nos membros). Toda a resposta motora pode estar inibida
no coma profundo. Nos comas mais superficiais, qualquer resposta deve ser observada
e anotada. Se um lado do corpo não se move ou se move nitidamente menos, uma
hemiparesia é diagnosticada. Uma flexão dos membros superiores acompanhada de
extensão dos membros inferiores é característica da atitude de decorticação e é
indicativa de lesões no nível mesencefálico. E uma resposta com extensão dos
membros superiores e inferiores é característica da atitude de descerebração e é um
sinal de lesões pontinas.

Tratamento do Paciente em Coma

Desde que a causa do coma pode rapidamente levar à lesão cerebral grave e
irreversível (p.ex. hipoglicemia, hipertensão intracraniana, herniação cerebral,
meningite, etc.), as abordagens diagnósticas e terapêuticas iniciais devem ser
realizadas concomitantemente!

O primeiro passo na abordagem de um paciente em coma é assegurar as funções vitais


com o ABC de qualquer emergência médica, assegurando uma via aérea aberta, uma
ventilação e oxigenação adequadas e uma boa circulação do sangue com perfusão
cerebral e sistêmica otimizadas. Em todo paciente em coma, uma possível lesão
cervical deve ser sempre presumida e uma proteção da coluna cervical deve ser
instituída rotineiramente em todos os pacientes e somente retirada após certeza do seu
não comprometimento.

A abertura e proteção das vias aéreas nos pacientes em coma geralmente exigem uma
intubação orotraqueal. Aspiração brônquica é um problema comum nestes pacientes e
é uma razão para a proteção das vias aéreas. Além disso, estes pacientes devem ter
um controle da PaCO2, já que hipercapnia causa vasodilatação cerebral e pode
aumentar perigosamente a PIC e a hipocapnia causa vasoconstrição, podendo
acarretar isquemia cerebral global ou em áreas susceptíveis.

Rapidamente deve-se iniciar também o controle do sistema circulatório e a manutenção


de uma PAM mínima ao redor de 80 mmHg (PPC maior que 60 mmHg após
conhecimento da PIC). Um acesso venoso calibroso deve ser instituído e uma amostra
de sangue para exames de rotina deve ser prontamente colhida. Hipotensão arterial
deve ser prontamente tratada com fluídos e vasopressores. Hipertensão arterial deve
ser cuidadosamente avaliada. Pacientes com hipertensão intracraniana frequentemente
têm hipertensão arterial reflexa para manutenção da pressão de perfusão cerebral, e
uma diminuição rápida desta hipertensão pode acarretar isquemia e piora da lesão
cerebral. Hipoglicemia deve ser uma preocupação constante no início da abordagem de
qualquer paciente em coma. Se uma glicemia capilar não puder ser imediatamente
obtida (e hipoglicemia afastada), o paciente deve receber um bolus de 25 a 50 g de
glicose IV com 100 mg de tiamina (para profilaxia da encefalopatia de Wernicke), após a
coleta de sangue para o laboratório.

Os exames iniciais propostos para pacientes em coma sem uma causa definida são:
hemograma, glicemia, uréia e creatinina, eletrólitos e gasometria arterial.
Posteriormente, e somente quando houver suspeita clínica, avaliação da função
hepática e da tireóide, coleta de culturas, exame do líquor, coagulograma, exames
toxicológicos, etc. devem ser solicitados na dependência de cada caso.

A avaliação clínica, após a instituição do ABC e da estabilização das funções vitais do


paciente, deve incluir a história clínica, o exame físico geral e o exame neurológico.

Na história clínica devem-se ressaltar dados sobre trauma, epilepsia anterior,


medicações, drogas e álcool em uso e diabetes mellitus, entre outros. Também é útil
conhecer sintomas e sinais imediatamente antes do coma (paresia, cefaléia, febre, etc.)
e o modo de instalação da perda de consciência. Uma instalação súbita sugere etiologia
vascular ou epilepsia, enquanto uma instalação aguda ou insidiosa sugere uma causa
metabólica ou infecciosa.

O exame físico geral deve focar nas alterações vitais e na procura de sinais clínicos de
doença sistêmica (doença hepática ou endócrina, infecção, trauma, etc.). E o exame
neurológico deve enfatizar os elementos já descritos: nível de consciência através da
escala de Glasgow, padrão respiratório, exame das pupilas, reflexos de tronco e a
resposta motora à dor. Embora estes 5 elementos sejam fundamentais para a análise
inicial da causa do coma, vários outros elementos do exame neurológico também são
importantes, como a avaliação dos reflexos e a busca de sinais meningoradiculares (ver
exame neurológico nos apêndices).

A avaliação clínica auxilia a caracterização de um padrão de etiologia do estado de


coma.
Após esta avaliação clínica inicial, segue-se uma avaliação clínica sequencial. Tanto
para complementar a avaliação inicial, como pelo fato do paciente em coma ser
bastante dinâmico, é fundamental revisar frequentemente a avaliação inicial e
prosseguir na avaliação posterior. Assim, esta avaliação sequencial inclui repetir
frequentemente a avaliação inicial (revisar o ABC e o exame clínico e neurológico) e
solicitar outros exames complementares.

A revisão do ABC e dos exames clínico e neurológico visa certificar-se de que a


otimização da ventilação, oxigenação e perfusão estão em curso e que o paciente não
apresenta piora neurológica (piora da consciência aferida pelo Glasgow, alterações
pupilares, aparecimento de novos sinais motores, etc.). Todo paciente em coma deve,
após estabilização do ABC, ser submetido a uma avaliação tomográfica para confirmar
ou afastar as suspeitas clínicas. Outros exames poderão ser úteis neste momento
também, como coleta de líquor para avaliar suspeita de meningite e
eletroencefalograma se houver suspeita de um estado de mal não-convulsivo. As
alterações metabólicas, coagulopatias e disfunções orgânicas devem ser prontamente
corrigidas ou tratadas.

Herniações

A presença de uma síndrome de herniação num paciente em coma torna esta situação
de extrema emergência clínica. Poucos minutos podem ser suficientes para deixar um
paciente com uma herniação cerebral com sequela neurológica grave ou levá-lo ao
óbito. Portanto, as síndromes de herniações devem ser prontamente suspeitadas e
reconhecidas clinicamente.
Tão logo uma síndrome de herniação cerebral seja reconhecida, 3 condutas
simultâneas devem ser tomadas:

1. Providencie uma consulta neurocirúrgica imediatamente. Geralmente, uma


herniação decorre de uma lesão intracraniana com efeito de massa e uma
neurocirurgia descompressiva é o tratamento definitivo;
2. Solicite e realize uma tomografia de crânio (TC) o mais rápido possível. É a TC
que confirmará a lesão, que deverá ser tratada cirurgicamente. Se isto se
confirmar, Imediatamente após a TC o paciente deverá ir para o centro cirúrgico.
Lembre-se que o paciente deve receber o ABC inicial antes de ser transferido
para a TC.
3. Inicie um tratamento de emergência para controlar a hipertensão intracraniana:
administre manitol 0,5 a 2,0 g/Kg em bolus e/ou instale uma hiperventilação
otimizada para diminuir a PaCO2 para 25-30 mmHg. Os pacientes com
herniação desenvolvem lesão neurológica secundária rapidamente e devem ter a
PIC diminuída, mesmo sem que esta esteja sendo aferida acuradamente. Se
tumor ou abscesso intracraniano for a provável etiologia da lesão primária, está
indicado administrar dexametasona na dose de 10 mg IV e manter 4 mg IV de
4/4 h.
MORTE ENCEFÁLICA
No Brasil, em 1997, a lei 9.434, de 4 de fevereiro, determinou que competia ao
Conselho Federal de Medicina (CFM) o estabelecimento dos critérios de ME que,
por meio da resolução 1.480/97, definiu que a ME seria considerada nas condições
de quadro neurológico de causa conhecida e consistiria em processo irreversível.
Para tanto, seria necessária a realização de dois exames clínicos e um
complementar.

O decreto 9.175, de 18 de outubro de 2017, reforçou a incumbência do CFM para


determinação dos critérios de ME. A partir de então, a resolução 2.173 do CFM, de
23 de novembro de 2017, definiu a ME como a perda completa e irreversível das
funções encefálicas, definidas pela cessação das atividades corticais e do tronco
encefálico.

De acordo com o primeiro artigo da resolução, os procedimentos para determinação


de ME devem ser iniciados em todos os pacientes que haja suspeita de ME: coma
não perceptivo; ausência de reatividade supraespinhal; apneia persistente, desde
que atendam aos pré-requisitos descritos na tabela 2.
COMUNICAÇÃO E RETIRADA DO SUPORTE VITAL

A. A comunicação adequada do processo de diagnóstico da ME aos familiares é


tratada de modo expresso, tanto na nova resolução quanto no Decreto Presidencial.
A comunicação clara deve ser feita ao longo de todo o processo pela equipe
assistencial, desde o momento da suspeita de ME até a confirmação da morte, e
documentada em prontuário. Entrevistas sobre doação de órgãos não devem ocorrer
antes da conclusão do diagnóstico da morte. É recomendado que a entrevista
familiar para doação seja conduzida por profissional com treinamento específico
para esta atividade.

B. A retirada do suporte vital já era contemplada na resolução 1.826/2007 do CFM.


Agora, tanto a resolução 2.173/2017 do CFM quanto o Decreto Presidencial
9.175/2017, que regulamenta a Lei dos Transplantes, de 1997, definem a legalidade
da interrupção do suporte vital quando a doação de órgãos não for viável, hipótese
em que o corpo deve ser entregue à família ou encaminhado à necrópsia.

DOCUMENTAÇÃO

A determinação da ME é um ato legal que deve ser documentado pelo médico no


Termo de Declaração de ME (TDME), no prontuário e na Declaração de Óbito (DO).
Houve modificação significativa no novo TDME. O preenchimento completo e
apropriado deste documento é de responsabilidade da equipe médica que realizou
os procedimentos diagnósticos. Os dados devem corresponder aos registros em
prontuário e a laudos de exames, garantindo que todos os pré-requisitos fisiológicos
tenham sido atendidos. A exigência do TDME para todos os casos favorece o
exercício do direito ao diagnóstico de ME a cada cidadão e dá a possibilidade de
informações mais confiáveis sobre a epidemiologia da ME no país. Além do TDME,
todas as etapas do diagnóstico e comunicações com familiares devem ser
documentadas no prontuário. O preenchimento da DO é atribuição de um dos
médicos que determinaram o diagnóstico de ME ou dos médicos assistentes ou
seus substitutos. Nos casos de morte por causas externas (acidente, suicídio ou
homicídio), confirmada ou suspeita, a DO é de responsabilidade do médico legista. A
data e hora da morte correspondem ao momento da conclusão do último
procedimento para determinação da ME.

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