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A FILOSOFIA COMO PROBLEMA

1. ESSÊNCIA INTERROGATIVA DA FILOSOFIA

Duas primeiras interrogações se nos deparam perante a expressão Filosofia do Direito: o


que é a Filosofia? E o que é o Direito?

A Filosofia não é, como os outros tipos de saber, um corpo de doutrina, um acervo de


conhecimentos ou um conjunto articulado de soluções e respostas, mas um processo,
uma actividade permanente de interrogação sobre o próprio saber, seu valor e seus
fundamentos.

O que constitui a sua essência é a busca constante e sempre recomeçada da verdade e


não a sua posse. Não é um saber feito, que possa transmitir-se e se vá adicionando, mas
um conjunto permanente de interrogações, nunca definitivamente respondidas e em que
cada resposta que o filosofar a si próprio se dá é sempre uma resposta provisória, que se
converte em nova interrogação.

Enquanto a solução resolve, dissolve, elimina ou suprime o problema, a resposta


filosófica não é solucionante, deixando irresoluto o problema e viva a interrogação 1. Daí
que, e diversamente do que acontece com os restantes tipos de saber humano, a
Filosofia seja, ecenssial e radicalmente, interrogativa, problemática e não solucionante.

Apesar da referida essência filosófica, afigura-se considerar que há progresso em


Filosofia, quer na descoberta de novos problemas filosóficos ou na melhor formulação
ou dilucidação ou maior aprofundamento de problemas já conhecidos ou identificados,
que na invenção de novos métodos ou na descoberta de novos campos de reflexão, que
no alargamento dos horizontes da actividade especulativa.

2. REFLEXÃO E ESPECULAÇÃO

Sendo essencialmente, interrogativa, problemática e não solucionante, a filosofia é,


igualmente, reflexão, especulação ou pensamento especulativo.

Quando, a propósito da Filosofia, falomos em reflexão e em especulação, estmos a usar


termos que nos remetem para a imagem do espelho, a qual nos pode elucidar,

1
«Só pensamamos na medida em que interrogamos. Filosofar é assumir incessantemente a
interrogação, podendo em cada resposta deixar o vivo apelo para o germe subtil do interrogar
imperituro» José Marinho, teoria do ser e da verdade, Lisboa, 1961, p. 29.
significativamente, sobre a natureza e o processo do próprio filosofar e da actividade
filosófica.

Tal como o espelho torna outro o sujeito que nele se reflecte, devolvendo dele uma
representação ou uma imagem, também o pensamento reflexivo e especulativo faz o
que o sujeito que pensa se torne outro para si, ao pensar-se a si próprio, ao mesmo
tempo que aquilo que o pensamento nos dá não é a realidade que dele é objecto ou sobre
que pensa mas uma sua imagem ou representação mental.

Também a etimologia da palavra reflexão, quando referida ao pensamento, nos


esclarece sobre o seu sentido eminentemente interrogativo, de pensamento que
constante e permanentemente regressa a si e se interroga.

A palavra reflexão provém do latim reflexio, que se refere a acção de reflectere, a qual
significa, precisamente, «voltar para trás», atitude que, quando aplicada ao pensamento,
aponta com clareza para o seu caracter interrogativo, para o seu permanente regressar ao
ponto de partida, ao problema, ao que questiona o espírito2.

Daí que, confirmado o saber antigo de Platão, segundo o qual o pensamento ou o pensar
é o diálogo da alma consigo mesmo3.

Do carácter interrogativo problemático e não solucionante do pensamento filosófico


resulta, naturalmente, não ser ele susceptível de ser ensinado. Não é possível ensinar
Filosofia como não é sequer possível ensinar filosofar.

A Filosofia é uma actividade que consiste na própria reflexão filosófica, é um caminhar


gradual na busca da verdade. Assim como a lição e o exemplo socrático nos advertem,
só filosofando se aprende a filosofar, pois a filosofia é uma iniciação ou um saber
iniciático, a resposta de um anseio íntimo ou uma interrogação do próprio ser filósofo e
não uma disciplina ensinável ou um saber transmissível4

3. ORIGEM DA FILOSOFIA

Qual, porém, a origem da filosofia? O que leva o homem a filosofar?

2
Cf. Joel Serrão, Iniciação ao filosofar, Lisboa, 1970, Cap. I.
3
Sofista, 263, e Teeteto, 189.
4
Cf. Delfin Santos, ob. Cit.; José Marinho, Filosofia – ensino ou Iniciação?, Lisboa, 1972,...
A sua origem parece dever procurar-se no espanto (Platão)5 ou na admiração
(Aristóteles)6 do homem perante a existência e a realidade, que o leva a interrogar-se,
primeiro sobre elas e depois sobre si próprio, sobre o problema da sua origem e o
destino e sobre o sentido da sua vida , sobre o que depende do homem e o que ele
depende (a natureza, os ourtros, Deus ou deuses), sobre o amor e a morte, o mal e a dor,
a liberdade e a justiça, a verdade e o destino, até chegar à interrogação fundamental:
«porque há o ente e não o nada» (Heidegger)7.

O ensino que move o homem à interrogação filosófica é, assim, o de compreender o ser


e a sua verdade, o de desvendar o «mistério ontológico» (Gabriel Marcel), o de saber a
que ater-se na sua vida no mundo (Ortega y Gasset).

Indo porém um pouco mais fundo, veremos que a mais autêntica origem da interrogação
filosófica se não encontra no espanto, na admiração ou na simples curiosidade perante a
multiplicidade dos seres, a imensidade cósmica ou os essênciais problemas humanos,
pois que uns e outros são, ainda, do domínio psicológico e limitadamente humano,
devendo antes buscar-se no plano ontológico mais radical do enigma ou do mistério, no
qual e pelo qual todo o ser e toda a verdade, em instantânea visão, simultaneamente, se
ocultam e patenteiam ao espírito do homem.

Esta se afigura ser a profunda razão por que, no pensamento contemporáneo, ambas
estas radicais noções adquirem, ou readqueriram, decisivo e primordial sentido, pela sua
essencial relação com a primeira de todas as interrogações, a que se refere à origem do
ser ou a de tudo quando existe ou para nós existe.

Daí, também, a importancia que, no nosso tempo, voltou a assumir a reflexão sobre
mito, dada a relação matricial ou principial que a Filosofia mantém com ele, enquanto
narrativa ou relato sobre a origem dos deuses, do mundo e dos seres ou teogonia ou
cosmogonia poética, bem como a paralela impotância hodiernamente conferida às
relações entre Filosofia e Poesia.

4. FILOSOFIA DO DIREITO COMO PARTE DA FILOSOFIA

5
Teeteto, 155, d.
6
Metafísica, liv. I, 982 b.
7
Introdução à Metafísica, trad. Port. De Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro, 1987, p. 33.
A Filosofia do Direito é parte da Filosofia 8. Todavia desgarrou-se de maiores
atrelamentos com sua matriz, produzindo a sua própria outonomia, podendo-se mesmo
falar da existência de uma Filosofia do Direito implícita como algo diferente de uma
Filosofia do Direito explícita9. A Filosofia do Direito explícita ramifica-se da Filosofia
Geral. De facto, a partir de Hegel, nota-se crescente movimento de investigação
exclusivamente jurídica que acentua a especificidade do pensamento do Direito.
Percebia-se que pensar o Direito, em virtude da própria complexização dos Direitos
positivos, demandava do teórico compreensão específica das injunções, das práticas, das
técnicas jurídicas... Com isso, formou-se toda uma corrente de especialistas na filosofia
do Direito, que sem serem filósofos de formação, dedicavam-se a pensar o seu próprio
objecto de actuação prática (Savigny, Puchta, Ihering, Windscheid, Stammler Hans
Kelsen...

No entanto, toda forma de especialização que acantone o conhecimento de sua matriz


genérica acaba por significar apenas um modo de alienação, determinado pela ideologia
positivista. O saber jusfilosófico, portanto, não é exclusividade do jurista. Mas o
filósofo não pode menosprezar o conhecimento adquirido na área do Direito, de onde se
extrai a ideia de que a Filosofia do Direito é parte da filosofia.

Aí está a chave para a compreensão das actuais medidas do pensar filosófico do Direito.
Ao mesmo tempo que se reconhece que o pensador do Direito, não pode prescindir de
conhecer o ramo ao qual se dedica, não pode muito menos estar despreparado para
pensar filosófica e adequadamente os problemas. Em outras palavras, quer se dizer que
reconhece impotância ao facto de que a filosofia lance luzes sobre a filosofia do Direito,
e vice-versa, mas não se pode afirmar que a Filosofia do Direito, esteja atrelada,
perdendo a sua autonomia, à Filosofia. O que ocorre é que, especialização, a Filosofia
do Direito tornou-se, historicamente, um conjunto de saberes acumulados sobre o
Direito (objecto específico), distanciando-se da Filosofia, como a Semiótica se
distanciou da Lógica. Ocorrendo isso, não significa que se deva menosprezar a sede
primigena do contrato histórico, ou muito menos a importância da ligação teórica ou,
ainda a necessidade de a espécie relacionar-se com o género10.

8
Apud: Bittar, Eduardo e Almeida, Guilherme assis, Curso de Filosofia do Direito, 13ª Ed. Gen atlas, p. 47
9
Idem
10
Ob. Cit., Bittar, Eduardo e Almeida, Guilherme assis, É impossível distanciar definitivamente a Filosofia
do Direito da Filosofia..., p. 49.
Deve-se no entanto, ressaltar o facto de que o saber filosófico continua influenciando a
história das ideias jusfilosoficas; pense-se de que as Filosofias do agir comunicativo de
Jurgen Harbermas e da arquiologia das práticas humanas de Michael Foucault têm sido
motivo de largo impacto intelectual e reflexão entre os Juristas 11. Saliente-se que, por
vezes, as metodologias jusfilosoficas (Stammler como jusfilósofo neokantiano)
aperfeiçoam-se na medida dos aperfeiçoamentos filosóficos (Emmanuel Kant como
filósofo), e que, por vezes, as metodologias jusfilosoficas aperfeiçoam-se
independentemente das contribuições filosóficas. Colha-se no pensamento de Chaim
Perelman, com a sua retórica, o exemplo de uma metodologia que, não obstante a matriz
aristotélica, mostrou-se numa projecção inversa, partindo do jurídico para o filosófico,
assim como tem ocorrido com o pensamento de Ronald Dworkin. Pode-se dizer que é
do convívio e do diálogo constantes que se obterão melhores e mais salutares produtos
nessa área do saber humano.

5. O SURGIMENTO HISTÓRICO DA FILOSOFIA DO DIREITO

A Filosofia do Direito é um saber que brota das práticas gerais da Filosofia, ao modo de
espécie que se revela a partir do gênero, em meio de um buliçoso movimento de
aprofundamento do conhecimento e de especialização dos saberes no bojo da
modalidade (séc. XVII). Alguns registros indicam mesmo sua identidade promanando
as obras de certos autores (Pufendorf, Grocio, Victoria e Suarez)12,...

Neste momento histórico, em plena marcha o processo de autonomização do


pensamento, por obra e força do renascimento, em meio as demais disciplinas jurídicas
já existentes e tradicionais (Direito Canônico, Direito Romano, Direito Civil), a
disciplina “Filosofia do Direito” haverá de se identificar com problemas fundamentais
da ordem da reflexão (natureza humana, sociabilidade, extensão dos direitos),
confundindo-se em seu início com todos os estudos da escola Jusnaturalista 13 - seu título
é correspondente, quando parece, Direito natural, ou Direito racional, ou Teoria do
Direito natural -, representando uma espécie de reflexão associada a todos os problemas
trazidos com a cultura europeia, expandida após a descoberta das Américas, e que
começava a ter de desafiar suas noções de espaços, de cultura, raça, do Direito de
dominação, entre outros temas caros à reflexão Jusnaturalista14.
11
Apud: Bittar, Eduardo e Almeida, Guilherme assis, p. 49.
12
Idem, p. 50
13
Ob. Cit,. Bittar, Eduardo e Almeida, Guilherme assis, p. 50.
14
Apud: Bittar, Eduardo e Almeida, Guilherme assis. P. 51.
Isto nos fornece uma clara marcação topografica para que seja identificado o surgimento
da Filosofia do Direito como saber autónomo. Agora se pode dizer com segurança que a
Filosofia do Direito é fruto da modernidade, mas também dizer especialmente, que seu
surgimento se dá ao longo da própria história da modernidade, quando os anseios pela
difinição racional dos espectros do saber humano, se desenvolvia no sentido da tomada
de consciência sobre a autonomia humana, diante do destino e da predisposição divina
das coisas. Se a modernidade surge imbuida de um escopo, este sentido lhe é dado por
um anseio muito específico, que é aquele de conferir instrumentos satisfatórios para o
desenvolvimento da independência humana, e propriamente humana, porque racional,
em face do determinismo teológico mendiaval, este que tudo fazia no sentido de que as
explicações remontassem ao terreno das indicações dos mistérios bíblicos e das grandes
leis exegético-canônicas.

5.1. FILOSOFIA DO DIREITO: CONCEITO, ATRIBUIÇÕES, FUNÇÕES

Ao tentar definir os quadrantes filosóficos, devem-se apontar os elementos que


diferenciam a sabedoria filosófica de outras experiências humanas com o conhecimento.
De facto, a Filosofia distancia-se da mitologia (fantasia e cultura), da relegião (crença e
fé), do saber vulgar (prejulgamentos e limitações analíticas)... A a Filosofia é, o
princípio: saber racional, saber sistemático, saber metódico, saber causal e lógica.

Para alguns autores, a Filosofia do Direito deve ocupa-se do justo e do injusto, é esse
seu objecto. Para outros, o justo e o injusto estão fora do alcance do jurista, e são
objecto de estudo da Ética. Para outros ainda, a Filosofia do Direito deve ser um estudo
combativo, politicamente, uma vez que inata é sua função de lutar contra a tirania.
Existem propostas que enfatizam que a tarefa da Filosofia deve consistir na escavação
conceitual do Direito, muitas vezes, os autores atribuem à Filosofia do Direito a tarefa
de fazer derivar da razão pura a estrutura do próprio Direito, ao estilo dedutivo-
kantiano. Há quem faça partecipar toda a especulação filosofica a necessidade crítico-
valorativa das instituições jurídicas. Não se confundindo com as práticas científicas do
Direito, é lhes superior, não qualitativamente, mas pelo facto de pairar para além da
visão que possuem do fenómeno jurídico. As ciências jurídicas partem das normas para
os seus resultados aplicativos e/ou consequências; a especulação filosófica volve da
norma a seus princípios, as suas causas, a sua utilidade social, a sua necessidade, as suas
deficiências... De qualquer forma, possui compromentimentos com a história, com a
ideologia, com a sociedade, com a política..., destacando-se por suas preocupações
universais e não sectoriais.

A Filosofia do Direito é um saber crítico a respeito das construções jurídicas erigidas


pela Ciência do Direito e pela própria práxis do Direito. Mas que isso, é sua tarefa,
buscar os fundamentos do Direito, seja para cientificar-se da sua natureza, seja para
criticar o assento sobre o qual se fundam as estruturas do raciocínio jurídico, por vezes,
fissuras no edifício que por sobre as mesmas se ergue.

A Filosofia do Direito possui um objecto tão universal, e um método que faculta que a
investigação se prolongue tamanhamente, que abre mão da possibilidade de
circunscrever seus umbrais. Aliás, faze-lo seria o mesmo que podar o alcance crítico da
filosofia sobre determinado problema ou grupo de problemas de interesse jusfilosófico.

Por isso deve se dizer que a reflexão filosófica sobre o direito não pode extenuar-se. De
facto, seu compromisso é manter-se acesa e atenta as modificações quotidianas do
Direito, a evolução ou involução dos instintos jurídicos e das instituições jurídico-
sociais, às práticas de discurso do Direito, as realizações político-jurídicas, ao
tratamento jurídico que se dá à pessoa humana... Então a Filosofia do Direito é sempre
actual, é sempre de vanguarda, pois reserva para si esse direito-dever de estar sempre
impregnada da preocupação de investigar as realizações jurídicas práticas e teoréticas.

Não se pode olvidar que a Filosofia é o exercício do pensamento, que tem por finalidade
o próprio exercício do pensamento. Não visando outro resultado senão à interpretação
pela interpretação, seu exercício é desprovido de pretenções finalistas. Causas de
causas, razões, fundamentos, explicações e justificações são buscados no próprio iter do
pensamento.

É, portanto, no próprio caminho de investigação que reside a ratio essendi da filosofia.


A contribuição está na perene abertura que proporciona, diferenciando-se das demais
ciências por fazer-se prática teórica desvinculada de pressupostos (dogmas, o que está
na raíz da diferênça entre dogmática e zetética). Por vezes, a ênfase na resposta somente
torna ainda obtusa a possibilidade de se questionarem os fundamentos de uma prática
jurídica, humana ou social; aí a ênfase na investigação serve como forma de abrir os
horizontes para outras possibilidades de sentido, para outras alternativas, para outras
propostas e entendimentos.

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