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INTERCÂMBIO DAS

PSICOTERAPIAS
Como cada Abordagem Psicoterapêutica
Compreende os Transtornos Psiquiátricos

Organizadora
Roberta Payá

Coordenadores
Ana Lúcia Faria
Celina Giacomelli
Guilherme Messas
Liliana Liviano Wahba
Marcia Almeida Batista
Neliana Buzi Figlie
Raphael Cangeli Filho

ROCA

Criado com Scanner Pro


MÓDULO
Il
Psicologia Analítica
COORDENADORA: LILIANA LIVIANO WAHBA

24 Depressão na Visäo Analítica.. .. 203


25 Transtorno Bipolar do Humor - a Perspectiva da Psicologia
Analítica. .... 216
26 Dependência Química a Partir da Psicologia Analítica.. ... 228
27 Estresse Pós-traumático e Psicologia Analitica....
... 235
28 TranstornosAlimentares - Obesidade na Visão Analítica... 244
...
29 Transtornos Psicossomáticos na Visão Analítica.. .... 254
30 Transtornosdas Relações Conjugais - uma Visão da Psicologia
Analítica 263
31
Autismo na Visão da Psicologia Analitica .273

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Introdução 199

PSICOLOGIA ANALÍTICA guladora, para Jung, no cerne da psique e do


inconsciente há uma disposição criativa e não
somente destrutiva e desintegradora.
LILIANA LIVIANO WAHBA
Pesquisasatuais coroboram o postulado de
Life is crazy and meaningful at once.
C.G. JUNG Jung. Estudos de Stern (2004) demonstram que
o signi cado emerge em interações dinâmicas.
A profícua obra de Carl Gustav Jung em 19 volu-
Segundo esse autor, a organização da psique
mes do Collected Works, além de semináios, depende da dinâmica de sistemas que se auto-or-
conferências, memórias, entrevistas, cartas e es- ganizam. Ele asinala que a teoia do desenvolvi-
critos dentre os quais muitos ainda não vieram a mento segue a teoria de sistemas dinâmicos:
público, revelam um fervoroso estudioso da psi- uma sucessão de contextos mais amplos que
que, um desbravador do mistério da existênciae se interpõem em sistemas dinâmicos. No caso
do fenômeno da consciência imersa no desco- da criança e cuidador, o sistema da cultura
nhecido, tarefa à qual dedicoU SUa vida inteira. contém osistema de representações dinâmicas.
De formação psiquiátrica, colaborador de Assim como lya Prigogine, Nobel de química,
Eugene Bleuler em Burghölzi, Jung compreendia postula que há fenômenos da natureza não
a profundidade do sofrimento psíquico e foi meramente causais, mas que provêm da dinâ-
precursor da atribuição de sentido simbólico às mica do sistema em que se encontram e que,
produções delirantes, em uma época ainda in- por sua vez, ajudam a formar.
uenciada pela predominância orgânica que Pesquisas das neurociências demonstram a
explicavaa degeneração mental. Antecipa a possibilidadede unir informaçãoememóias expli-
abordagem biopsicossocial da doença mental. citas com o trabalho interno de memórias implícitas,
Desenvoveu um modelo estrutural (comple- entendido pela psicologia como constituintes do
XOS, arquétipos, Self, ego, inconsciente pessoal e inconsciente. Consciente e inconsciente não seriam
coletivo) e processual dinâmico (autorregulação, atributos xos, mas dinâmicos, e há um constante
compensação, processo de individuação). A registro de experiências que são avaliadas para
psique possui conteúdos representacionais e cria determinar seu signi cado e importôncia.
imagens simbólicas, nas quais interagem a expe- De certo modo, a teoria de Jung sobre autor-
riência do indivíduo, a história de sua cultura e de regulação da psique antecipa a teoia moderna
outras, e a bagagem universal da humanidade. da avaliação (appraisal). A experiência nova é
Segundo Samuels (2008), em sua teoria, ape- constantemente organizada por modelos de
sar de incompleta em alguns desses aspectos, trabalhointernosinconscientes, em queo papel
Jung inseriu os temas do século XXI: gênero, raça, predominante das emoções vincula-se à cogni-
nacionalismo, análise cultural, religiosidade, im- ção, oU seja, razãoe emoção associam-se para
portância do signi cado. aconstrução dasubjetividade humana. A emoção
Suas formulações foram desbravadoras na seria gerada em função de interpretação oU ava-
psicologia, como o postulado nalista segundo o liação subjetiva de determinada situação ou
qual as leis psicológicas não seguem somente a
evento. A neurociência contemporânea aponta
causalidade, mas há um direcionamento da
os processos de comparação e integração de
energia psíquica e um processo de organização
informação no cerne do processo de construção
da psique.
do conhecimento e estuda uma base neuro sio-
A psique é dinâmica e mobiliza um uxo
lógica para a capaccdade de metaforizar e o
constante de informações e representações.
papel das emoções na autoregulação. O cére-
Estas têm caráter pessoal, coletivo histórico e
bro está totalmente envolvido no processo de
coletivo universal. A energia psíquica, ou libido,
avaliação do signi cado da experiência e, via
tem natureza neutra e será investida nas distintas
motivações humanas, das quais a sexualidade
emoção, integraprocessosdistintos, desde ação
è certamente uma das mais poderosas, mas não motora até a abstração (Knox, 2007).
a única. A canalização da libido é, em última Esse complexo sistema se estrutura em função
instância, direcionada à nalidade pautada por de arquétipos, ou seja, a psique não é uma tó-
um sistema de autorregulação. bula rasa e, assim, existe a possibilidade de contar
A dinâmica psíquica consiste em constante com predisposições inatas no desenvolvimento
Uxo de interação de opostos, uma tensão vital nalista. O Self é mais amplo que o ego, de nido
na qual se opera divisão e síntese, diferençae como centro da consciência, e con gura a to-
identidade, um movimento dialético de união e de talidade jamais plenamente alcançada e seu
Separação. Devido a essa capacidade autorre- centro impulsionador.

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200 PsicologiaAnalíitica

A concepção de um centro que transcende isto é, fenômenos acausais sincronísticos.(Jung, 1978.


o egoé embasadanasreligiões e loso asorientais, par. 660) (Tradução nossa)
mas Jung formula o conceito para a psicologia O símbolo tem um poder de uni cação em
quando oferece uma compreensão da ativida- prol de uma totalidade que transcende acons.
de do inconsciente que, se não deixa de ser ciência e a fragmentação desta. "E o portador
primitiva e dominada por impulsos contraditórios, da salvação e do desastre ao mesmo tempo. o
tem também a capacidade de contenção e de que ocorrerá, para o bem ou para o mal, de-
centralização a favor do desenvolvimento. Trata- pende da compreensão e da decisāo ética do
-se do percursSo da vida - e estamos nos indivíduo" (Jung, 1978. par. 733).
referindoàvida psíquica,com suacon agração A fantasia é sempre simbólica, assim como a
entre os opostos integração-desintegração, fantasia do incesto, que remete à libido de rela-
sempre atuantes. Ou seja, haveria um fator se- cionamento e à fusāo do consciente com o
melhante a um instinto que "busca"' a totalidade. inconsciente. Somente seria patológica se con-
No entanto, seria um equívoco entender um cretizada. Jung também antecipa aimportância
deus interior que dirige todas as ações humanas, da mãe no desenvolvimento, o que seriadesen-
apesar de ser a imagem divina quem melhor volvido por Bowlbi com a teoria do apego, aqual
representa o Self. Trata-se de uma força que
também se alinha - ainda que não sejaesseum
impulsiona a psique para seu pleno desenvolvi- construto do autor-com a teoria dosarquétipos.
mento, desprovida de racionalidade, a qual só
Destaca-se em sua teoria o processo de indi-
pode ser conferida pelo ego. viduação; Jung antecipou na psicologia profunda
Os princípios assinalados conduzem a um
o estudo da personalidade saudávele dasetapas
postulado emergencial simbólico. Jung era aves-
da vida, com interesse no desenvolvimento da
So a interpretações redutivistas e via no símbolo
personalidade de modo harmônico, ainda que
a união de consciente e inconsciente em que,
enfrentando embates e dicotomias.
por meio da função transcendente (termo pro-
O inconsciente é formado no seu aspecto
vindo da matemática), a consciência adquire
pessoal-em grande parte-viarepressão e fxação,
conhecimento e sentido. O signi cado independe
também decorente da tendência àdissociabil-
de um tipo de decodi cação; ele é múItiplo e in-
dade de conteúdos que formarão complexos.O
terativo e. para con gurá-lo, a razão por si é
insu ciente. A riqueza da fantasiae sua inerente mesmo Ocore com os grupos, que podemncons-
pluralidade revela-se para a consciência que, tituir uma espécie de complexo grupal derivado,
por sua vez, a insere na temporalidade e espa-
principalmente, de trauma coletivo (porexemplo,
guerras, catástrofes naturais). Mas, além de conteúdos
cialidade. Desse modo, háespecial consideração
subliminares, não necessariamente contraditóios,
pelas fantasias espontâneas, pelos sonhos e
produtos da imaginação, mediante técnicas existe um potencial que se funde ao inconscien-
como a imaginação ativa ou a ampli cação te pessoal e grupal e que nasce da condição
simbólica e, assim, o símbolo é passível de ser universal da psique humana.
integrado à consciência. De acordo com o modelo deautossustenta-
Jung entendia que a'natureza transcendental ção via mecanismos de autoregulação psíquica.
do simbólico" provinda de sua origem arquetípica há um movimento nalista cujo objetivo, por
compunha parao sersigni cados que, ao mesmo assim dizer, seria a atualização das potencialida-
tempo em que ligam a psique à sua origem uni- des do indivíduo, a m de constituir o ser único
versal, inscrevem ahistóia passada e adirecionam que ele é.O processo de individuação fazparte
para o futuro. De certo modo, antecipa o des- da natureza humana e, assim como os demais
construtivismo póS-moderno, já que nada pode afetos e emoções, tem papel impulsionador, ou
ser traduzido, "interpretado" e tão somente re- seja, mobiliza imagens, sentimentos, ideias que
constituído em sUa essência e transmutado a aparecem via símbolos de centralidade, de
cada momento de vida. união, de totalidade. Desse modo, oComponen-
te religioso e espiritual da psique seria primáño e
Como a experiência demonstra, os arquétipos pos-
não derivado de repressāo ou de sublimação.
suem a qualidade de "transgressividade": podem
às vezes se manifestar de tal forma que parecem
Perspectivas atuais em psicanálise focam a
pertencer tanto à sociedade como ao indivíduo; análise na relação com o analista, em que se
são, consequentemente, numinosos e contagiosos daria a internalização de um novo modelorela-
em seus efeitos. (..) Em certos casos, essa transgres- cional trazendo uma mudança de estrutura,com
Sividade também produz coincidências sigi cativas, dissolução de xações.

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Introdução 201

Jung foi o pioneiro no reconhecimento do rico e aplicabilidade clínica, demonstrando a


papel fundamental do analista em um processo riqueza ea consistência da abordagem.
dialético,assim como priorizoUa compreensão da Mario EugenioSaizLoureiro realiza una revisāo
contratransferência e seu emprego como instru- atualizada do transtorno depressivo e tece a in-
mento analí co. Mas enfatizoU que a mudança terface entre neurociências e psicologia profunda.
na análise não provém primaiamente darelação Ateoria ea prática da psicologia analítica são
e da interpretação, e sim do próprio inconsciente empregadas para propor uma organização de
do paciente, o qual tem papel ativo na promo- quadros depressivos de acordo com os distintos
ção de mudançae de desenvolvimento. Nesse sistemas arquetípicos. A depressão é entendida
sentido, a relação é um modelo da relação do como uma disfunção que a psiquiatria isoladamen-
analista com seu próprio inconsciente e do pacien- te não consegue atingir via psicofarmacologia.
te com o dele. OU seja, apesar de restritamente A morte simbólica e o restabelecimento do eixo
a transferência evbcar repetição de modelos ego-Self necessitam ser compreendidos para
familiares, ela é eminentenmente simbólica, e assim que a integração psíquica se viabilize eo sofr-
deve ser compreendida. mento se atenue.
Por considerar limitante a interpretação redu- LuizPaulo Grinberg faz uma consistente revisāo
tiva, na qual os componentes são desmembrados sobre o transtorno bipolar do humor enfocando,
até sua causa pregressa, Jung introduziu a formu- principalmente, o diagnóstico de alguns subti-
lação denominada prospectiva. Ou seja, toda pos, como os estados mistos. Discorre sobre
análise deve ser seguida de uma síntese, pois, distintas abordagens psicodinâmicas e se detém
caso contrário, provoca um tipo de fragmenta- na abordagem da psicologia analítica e a leitura
Ção e uma aparência de cura. Mais do que o do mito de Dioniso, que remete à eterna procura
termo cura - apesar de poder se curar uma neu- humanapor superar seus limites e ir ao encontro
rose obsessiva, por exemplo, ou uma depressão do divino. Por outro lado, é considerada a ferida
- trata-se de realinhar a personalidade, de en- narcísica primária. Assim como os outros autores,
contrar o sentido de vida que corresponda à LuizPaulo assinala que a abordagem terapêutica
autenticidade intrínseca do ser. deve, em alguns casos, ser mista: psicofarmaco-
O sintoma precisa ser entendido em seu as- lógica e psicoterápica.
pecto prospectivo, simbólico, apesar de xado Dartiu Xavier da Silveira e Victor Roberto Pa-
no momento. A terapia utiliza-se de recursos de lomo abordam a dependência química, os
imaginação e de fantasia, posto que nela se padrões de consumo de substâncias psicoativas
encontra uma vertente salutar. e os limites da patologia. Esclarecem os estados
A análise cria condições que permitem mobi- alterados de consciência, seu signi cado na
lizar o processo de desenvolvimento interno do cultura e nosritosiniciáticos ea trajetória mítica
paciente. A pessoa distingue-se como uma unida- doherói. A adiçãoea droga são ampli cadas
de autore exiva em interação com um outro e enquanto símbolos. e a delicada atuação do
com seu Mundo interno. É Um processo de trans- psicoterapeuta equilibra-se na árdua tarefa de
formaçãomútua em que o analista estáerngajado diferenciação que os pacientes requerem.
plenamente, apesar de manter o o condutor. Iraci Galiás e Nairo de Souza Vargas descreve
Importa que o paciente continue em contato com o estresse pós-traumático, a diferença entre crise
seu inconsciente após nalizar a análise, já que se e traumae as pesquisas em neurociências que
trata de"uma arte, uma técnica, uma ciência da ajudarama elucidar tal transtorno, acentuado
vida psicológica" (Jung. 1966, par. 502) cujo domí- na atualidade em decoência de tensões e con-
nio pertence à pessoa e não ao terapeuta. tos nos distintos espaços geográ cos e culturais.
Em uma descrição de um processo analítico A compreensão psicodinâmica sinbólica é subli-
com crianças, Denise Gimenez Ramos refere-se nhada com endosso do substrato arquetipico,
à necessidade de cultivar um "espaço psíquico", principalmente com foco no herói, na criança
tarefa essencial a toda análise. pois a restrição divina, nos dinamismos parentais e no processo
imposta por adversidades externas e por pres- de individuação, quando cabe ao terapeuta o
sões internas coíbe um espaço onde se possa discernimento dos limites de sua intervenção.
habitar com plenitude e vigor existencial. No capítulo de minha autoria, trato da obesi-
Os analistas que colaboram neste módulo são dade inserida nos transtornos alimentares, com
experientes clínicos e professores, e nos capítulos uma revisão desses transtornos, das terapias em-
a seguir abordam temas atuais de interesse teó- pregadas e dos fatores subjetivos que costumam

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202 PsicologiaAnalitica

ser atrelados a tais quadros. Uma análise simbólica arquetípica simbólica. Particularmente notório é
érealizada e a intervenção terapêutica vislumbra- o alerta para o reconhecimernto de um desen-
da mediante a metáfora da fome existencial. volvimento de "identidades diferentes", de um
Denise Gimenez Ramos trata da complicada padrão arquetipico distinto do desenvolvimento
nosologia dos transtornos somatoformes em uma normal, para o qual o terapeuta precisa empre-
perspectiva psicossomática junguiana e sua gar sua capacidade de reconhecer o diferente.
polêmica distinção até os dias atuais. Apesar Poderá assim ajudá-lo a conviver com a família
dessa di culdade, a autora aponta a compreen- ea sociedade, sem o desejo ilusório epernicioso
são psicodinamica simbólica para lidar com de trazê-lo à "normalidade".
sintomas que, na maioria dos casos, cauSam Em suma, os capítulos oferecem uma leitura
graves limitações psicológicas e funcionais. O enriquecedora e um diálogo cientí co em termos
conceito de transdução é empregado para do paradigma inovador criado pelo fundador
Compreender tais sintomas e sua remissão ou da psicologia analítica, acrescido de descober-
atenuaÇão mediante a inserção simbólica de tas posteriores e da prática clínica dos autores
uma "psique do corpo". a seguir apresentados.
Nairo de Souza Vargas debruça-se sobre as re-
lações conjugais e familiares, sua vertente criativa
REFERÊNCIAS
e os transtornos decoentes da relação paralisada,
extenuada. A partir da estrutura e dinâmica da JUNG, C. G. Fying saucers: a modern myth. In: Civilization in
personalidade, demonstra o papel do relaciona- Transion, CW 10.Princeton: Princeton University Pres,1978.
mento íntimo que, além de externo, re ete um
JUNG, C. G. Two Essays on Analytical Psychology, CW 7.
relacionamento interior. C processo terapêutico Princeton: Princeton University Press, 19%6.
empregaa teoria dos vinculos e a andise sinbólica
KNOX, J. Who owns the unconsciouss? Or why psychoanalysts
e dos ciclos arquetípicos para enfrentar um desa o
need to "own" Jung? In:CASEMENT, A. (Ed). Who Owns
do conviver nesta época da pó-modernidade
Jung? London: Karnac Books, 2007. p. 315-338.
quando padrões estabelecidos foram rompidos e
Os novos ainda estão em formação. SAMUELS, A. New developments in the post-jungian eld.
Ceres Alves de Araujo discore sobre o autis- Junguiana., n. 26. p. 19-30, 2008.
mo enquanto distúrbio do desenvolvimento, o STERN,D. The PresentMoment in Psychotherapy and Everyday
conceito geral desse transtorno e a perspectiva Life. New York: W. W. Norton, 2004.

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CAPÍTULO
24

Depressão na Visão Analítica

MARIO EUGENIO SAIZ LAUREIRO

INTRODUÇĀÃO de Doenças - décina revisão(CID-10), da Orga-


nização Mundial da Saúde (OMS), e a quarta
A históia da depressão é tão antiga quantoa edição do Manual Diagnóstico e Estatíistico de
própria humanidade. A depressão como expe- Transtornos Mentais- texto revisado (DSM-1V-TR,
riência está presente não apenas nos humanos, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disor-
mas também em todos os primatas que desen- ders IV - text revision), da American Psychiatric
volveramumsistema limbico. Adepressão é uma Association (APA, 2002). Neste último, a chave
estratégia adaptativa eindividuante queevoluiu para compreender o sistema diagnóstico é o
Com a emergência dosistemacérebro-mentee conceito de episódio, base sobre a qual se funda-
que, em vista da plasticidade e capacidade de menta toda a ávore nosológica das depressões.
gerarconsciênciaapartir dainter-relaçãocom A combinação de um ou outro episódio, como
Oscontextossimbólicos, participa da criação do atender ou não aos critéios diagnósticos, ééo que
Ser e dacon guraçãode umaculturapropria- vai con gurar a de nição dos diferentes tipos de
mente humana. Nessecontexto, a depressãoě transtornosdepressivos, tendo como eixo o diag-
,uma estratégia emocional estruturadora do de- nóstico de episódio depressivo maior.
|senvolvimento e da elaboração simbólica que Esse critério embasa-se no requisito cronoló-
caracteriza todo o processo de individuação, gico de duas semanas e o acréscimo de pelo
Itanto pessoal como coletivamente. menos cinco sintomas de uma lista de nove (APA,
De acordo com os estudos clínicos atuais, 2002).Trata-se, de nitivamente, de um consen-
sentir-se deprimido ou triste nãoé su ciente para so entre psiquiatras para possibilitar intercâmbio
diagnosticar-se a depressão. A depressão, en- e pesquisa.
| tendida como sintoma, está presente na maioria Sob a perspectiva da psicologia analítica, a
dos transtornos psicopatológicos (esquizofrenia, atitude epistemológica de Jung foi visionária para
obsessões, ansiedade) e também em transtornos a sua época, e chega até nós por meio desta
Imédicos oU por abuso de substâncias. É o con- primeiraa rmação:"O critériosegundo o qual
junto de sintomas e sinais, bem como sUas estudamos a doença não deve e não podelinmi-
relações, o que constitui a síndrome depressiva, tar-se àdoençaem simesma(.] Devebasear-se
oU seja, um conjunto covariante de sintomas na variação do normal" (Jung,1980,par. 1737).
relacionados (tristeza, insônia, abatimernto, falta Portanto, a proposta de uma psicopatologia
simbólico-arquetípica deve, necessariamente, ser
de energia, etc.). Portanto, se empregássemos
o fermo temperamento depressivo como único construída a partir do conhecimento do desen-
critério para de nir a depressāo, incorreríamos volvimentonormal,jáqueapsicopatologia éuma
em um excesso de falsos diagnósticos positivos.
variação desse conhecimento. Jung também nos
diz: "Toda vida individual é, ao mesmo tempo, a
vida eterna da espécie" (Jung. 2008b, par. 146).
CARTOGRAFIA DIAGNÓSTICA antecipando assimuma psicopatologia centrada
E PSICOPATOLÓGICA na teoria da evolução, ou seja, uma psicopato-
logia evolutiva. Para essa psicopatologia, as
Atualmente dispomOs de dois sistemas de classi- emoções são sistemas de resposta ou formas
cação diagnóstica: a Clasi cação Internacional especiaisde funcionamento prefxados genetica-

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204 PsicologiaAnalítica

mente e produtos da evolução, que nospermitem genoma-ambiente, a adaptação não é alcança-


a adaptação ao ambiente, a suas ameaças e daeamodulação ansiedade-depressão, queerg
oportunidades. adaptativa, torna-se des-adaptativa (rígida,repe-
Os padrões arquetipicos de organização do titiva, compulsiva), ou seja, torna-se um sintoma.
comportamento são experiências tipicas da espé- |Oser ca des-centrado, des-organizado eemerge
cie cuja evolução se deu da mesma forma que a em umanova organização patológica, com uma
evoluçāo da anatomia e siologia humanas: são estratégia autônoma que se expressa como an-
programas muito básicos que, mesmo estando siedade oU depressão patológica.
contidos no genoma humano, não podem ser Na perspectiva de construir uma nova carto-
separados das variáveis ambientais para a sua gra a psicopatológica, as diferentes modalidades
expressāo. As contribuições de MacLean (1970) e clínicas da depressão unipolar" são a expressão
as pesquisas dos etopsiquiatras Wenegrat (1984). de uma organização disfuncional de necessida-
Gardner (1988) e Stevens e Price (2000) nos con r- des arquetípicas que alteram ou desorganizam
mam a proposição de Jung de que osarquétipos nossa capacidade de funcionar oU, como pro-
tinham um substrato neuronal relacionado a anti- põe Beck (1983), de nos relacionarmos com o
gas partes logenéticas do cérebro. mundo, conosco e com o futuro.
Stevens e Price (2000) mostram que os trans- No ser humano, essas estratégias adaptativas
tornos psicopatológicos mais importantes podem evoluíram com o processo de psiquização e,
ser concebidos como expressões inadequadas portanto, não abrangem somente as alterações
oU desordens das tendências evolutivas que têm neuroimunoendócrinas, mas também aquelas
a ver com comportamentos adaptativos, gera- nos processos psíquicos de elaboração simbólica
dos por estratégias evolutivas compartilhadas da relação eu-outro e de elaboração do signi -
por todos os membros da espécie, sejam eles cado pessoal e do sentido existencial. Nesse
saudáveis ou doentes. Os processos psicopato- contexto, propomo-nos a continuar analisando
lógicos são de nidos, segundo Montañés e De a depressāo comno uma estratégia evolutiva que
LUcas (2006), como processos não adaptativos, modula os processos em direção à adaptação
ainda que estejam organizados a partir de meca- e, também, à individuação.
nismos desencadeadores inatos que inicialmente
são adaptativos. Depressāo como estratégia
A inadaptação aparece quando a emergên-
cia do programa arquetipico setornadisfuncional evolutiva: adaptativa e individuante
na interação genoma-ambiente emetapas-chave Ossentinmentos de abatimento ou de depressão
da vida e especiaimente quando o ambiente, de São velhos companheiros dos seres humanose,
forma parcial ou total, não satisfaz uma ou mais em suas formas menos graves, tênm, segundo
necessidades arquetípicas básicas para o de- Gilbert (1992), funções logenéticas adaptativas,
senvolvimento individual. Essas necessidades como exigir a atenção e o cuidado dos demais,
fazem referência a padrões de organização constituir uma forma de comunicação de situa-
arquetipicos que são cruciais à espécie (apego, ções de perda ou separação, oU uma maneira
cuidado, proteção, alimento,status,sexualidade) deconservarenergia para poder fazerfrentea
e que evoluem em cada ambiente em particU- posterioresprocessos de adaptação, conforme
lar, para otimizar a sobrevivência do organismo ressaltado por Whybrow et al. (1984). Contudo.
eaperpetuação dos genes (Stevens e Price,2000). seja por sUa duraçāo, frequência, intensidade ou
As necessidades arquetípicas são sustentadas aparente autonomia, esses sentimentos podem
em programas arquetipicOs, Os qUais se desenvol- interferir intensamente na capacidade adapta-
vem na interação genoma-ambiente e são tiva da pessoa, tornando-se patológicos. A causa
modulados pela polaridadeansiedade-depressão. imediata de muitas condições psicopatológicas
Normalmente, ansiedadee depressãosão estra- dos transtornosdepressivos éa previsãosubjetiva
tégias emocionais que evoluíram modulando o de um provável fracasso na competência dedois
processo de adaptação. Em termos gerais, e como recursos sociais atamente valorizados na adap-
exemplo, podemos dizer que a depressão e a |tação, como o apego e o status (Stevens, 2000).
ansiedade são experiências universais e naturais
978-85-7241-9154
que nós humanos Compartilhamos com todas as
espécies mamíferas. Quando a necessidade ar- As modalidades clínicos da depressão unipolar constituem um continuum
entre personalidade e patologia, um espectro depressivo unipolar que com
quetípica não é satisfeita porque o programa não preende personalidade depressiva, transtorno depressivo dapersonalidade.
se desenvolve adequadamente na interação transtorno distimicoe transtorno depressivo maior.

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Depressāo na Visão Analitica 205

Em outras palavras, a depressão é arquetipica estresse da vida cotidiana. É esse fenótipo que
como estratégia emocional moduladora do desen- produz. posteriormente, mudanças biológicas
volvimento das estratégias evolutivas necessárias na ativação do eixo adrenal e do sistema ner-
à adaptação. Além de serunma estratégia adap- voso autônomo, assim como as mudanças de
tativa, é também uma estratégia individuante. comportamento e do signi cado pessoal que
especi camentehumana e que,portanto,tem, são características da depressão.
deser compreendida na dinômica do processo de A descentralização do eixo neuroimunoen-
individuação, descrito por Jung como o processo dócrino observada na depressão emerge, em
que geraum 'indivíduo" psicológico, ouseja,uma parte, como resultado de um apego desadap-
unidade, uma totalidade independente, indivisí- tativo (ansioso, evitativo ou desorganizado) que
vel (Jung, 2002, par. 490). Em outras palavras, a acameta biologicamente um aumento da secreção
individuação consiste na realização mais com- de glicocorticoides com repercussões sistênicas,
pleta possível do programa arquetípico de ser um que produzem especialmente degeneração
Só, uma unidade, uma totalidade, Contanto que cognitiva por alterações e interrupçāo do cres-
issoseja compatível com a responsabilidade ética. cimento e do tro smo neuronal. Esses fatores
A depressão como estratégia adaptativa par- modelam também os aspectos psicodinâmicos
ticipa da modulação homeostática do programa e cognitivos dos diferentes traços de personali-
arquetípico que se desenvolve na inter-relação dade. Aqui in uem, de maneira determinante,
genoma-ambiente, da qual também participa a por um lado, as caracteristicas e a duraçāo do
polaridade resiliêncig-vulnerabilidade. A experiên- estimulo, e por outro, as estratégias de enfrenta-
cianosmostra que há quem tenhamaiorresiliência, mento dos sistenas biológicos e psicológicos de
entendida como a capacidade de superar a que dispõe o indivíduo ameaçado.
adversidade de determinadas situações e sair A depressão como estratégia individuante
fortalecido delas. Outras pessoas apresentam caracteriza-se por contribuir para a modulação
maior fragilidade, maior vuinerabilidade. Esta últi- homeostática do programa arquetípico em de-
ma não vem predeterminada no genoma, mas senvolvimento. participando da interação entre
resulta da participação de aspectos logenéticos o consciente e o inconsciente, entre o individual
e da história ontogenética do indivíduo. isto é. das eo coletivo, entre o ego e o Self". Em outras
contingênciasambientais que con guram sua palavras,participa da modulação nosprocessos
biogra a e dosfatoresepigenéticos que acompa- deelaboraçãosimbólicanecessóriosaoproces-
nham seu neurodesenvolvimento. so de individuação.
Seguindo essalinha de pensamento, Kandel Adepressãopode serconsiderada
,
(2005) propôs o desenvolvimento de uma nova arquetipicamente um processo afetivo, tão
neuropatologia das doenças mentais, com base antigo quanto a própria vida. O transtorno
no conhecimento da maneira como determinadas |depressivo é um processo dentro de outro
moléculas, em regiões especí cas do cérebro, processo, um processo psicopatológico no
tornam as pessoas vulneráveis a certos tipos de
doença mental.
"contexto do processo de individuação. Um
processo queregquera elaboração simbólica.
bangounas
n
Na emergência dos programas arquetípicos, Como estratégia individUante, para gerar a
podemos encontrar uma vulnerabilidade genética
que, diante de eventos adversos precoces (trau-
mas, abUSo infantil, estresse cotidiano, eventos
transformação do sentidoexistencial que toda
depressão reclama.Isso requer que se possa
fransitarpela experiência da morte simbólica dos
punucr
t.
aversivos), con gurará um fenótipo vulnerável. Ese aspectosnegativos do ego e seu posterior
fenó po caracteriza-se pela hiperatividade do eixo renascimento, a partir de seu retorno da mel
adrenal, do sisternanoradrenérgico e da liberaçāo centroversãopara oSelf possibilitandoassim a
sinhola
de hormônio liberador de corticotropina pelo hipo- reemergência doErosprofundo e, com ele, a
falamo, bem comopor alterações na neurogênese transformaçãodapersonalidadee da vida.donaspmeg
e na neurotoxicidade no hipocampo. No estadoatual daneurociência,um dos(à
Esse modelo das estruturas nervosas, produ- horizontes depesquisa que permanece inatingí-
zidas pelas experiências vitais, nos mostra como
as experiências do mundo externo modi cam 978-85-7241-915

moléculas e circuitos biológicos determinados De acordo com Jung. o termo Self (Si mesmo) pode ser entendido como
gene camente e nos quais o fenótipo resultante Totalidade. e como Arquétipo Central enquanto principio ordenador e regu-
lador de todo o processo da psique em dreção à totalidade. Em relação à
Con guradistintos modos de processare respon- denominação EixoEgo-Self de Neumann (1970). a expressõo Sell corespon-
der às frustrações, dependências e ao próprio de a Arquétipo Central.

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206 PsicologiaAnaliítica

vel éprecisamenteoprocessodeelaboração na função transcendente descrita por Jung


simbólica no desenvolvimento pessoale coletivo (2004. par. 131: par. 145) como a função respon-
e, em consequência, na elaboração hermenêu- Sável, em suma, pelas mudanças que ocorrem
tica daquilo que épropriamentehumanocomo apartir da dimensão neuropsíquica dosmodelos
universo simbólico. Possivelmente,esse é um Ca- representativos e dos complexos, até a dimensão
minho difícil de percorrer por sua diversidade e existencial da construção simbólica de um novo
grande complexidade, mas é crucial para a sentido existencial, próprio de cada processo de
construção de uma dimensão integral da vida individuação (Jung. 2004, par. 131: par. 145).
humana. Esseé o desa o para o futuro.Precisamos
construir, entre todos, um caminho aberto e criati- CONSTRUINDO UMA CARTOGRAFIA
vo de diálogo entre neurociênciasepsicociências.
PSICOPATOLÓGICA DA DEPRESSÃO
Precisamos cooperar com o desenvolvimento
de um domínio especial do saber: aPsiconeuro- yA consideraçãopsicopatológicadostranstornos
ciência Simbólica. depressivos requer, antes de mais nada, que nos
Em suma, a nossa iniciativa de estudar, a situemos no modelo antropológico de como
partir da Psiconeurociência Simbólica, os padrões concebemos o homem e, em consequência, o
que intervêm na psicopatologiasimbólico-arque- homem doente. De uma perspectiva antropo-
típica responde à proposta de Jung de ter uma lógica, sistênica e analítica, o homem como
visão sistêmica oU de totalidade em relação ao uma totalidade que abrange a diversidade ea
fenômeno da vida, da psique e do corpo. Diz Hil- complexidade do humano pode ser conceituado
man (1999):"Sem psicopatologia não hátotalidade: como um sistema cuja organização inteligente
de fato, a psicopatologiaé uma diferenciação é aberta, dialética e simbólica. Podemos dife-
dessa totalidade". A alma vê por meio da a - renciar, pelo menos, três dimensões interativas,
Ção, e nossa proposta de desenvolver uma nova que denominamos biológica, psicológica eexis-
cartogra a psicopatológicaé contibuirtambém tencial. Por sua vez, enquanto ser humano, ele
para um novo olhar da alma sobreo humano, é um ser-no-mundo e não podemos dissociá-lo
em que a depressão não é apenas um fenôme- de seus ambientes estruturadores: familiar, educa-
no desadaptativo, mas também adaptativo no tivo, sociocultural e ecoambiental. As interações
sentido de um fenômeno queresponde aumă entre essas dimensões e seus contextos possibili-
estratégia individuante. tam a emergência da quarta dimensão, a
Se, ontologicamente, o modo humano de ser dimensāo de totalidade.
no mundo consiste em buScar e criar signi cados, A depressão como transtorno podeexpressar-
em ser uma possibilidade dentro da dimensão -se, inicialmente, em qualquer das trêsdimensões
intersubjetiva, nosso desa o atual é poder identi- contextualizadas, na qualidade de constitutivas
car a permanência de padrões de organização do ser humano. Em qualquer das dinâmicas da
do signi cado pessoal como base para a psico- depressão (matriarcal, patriarcal, de alteridade
patologia, da mesma maneira que identi camos oU de totalidade), encontramos uma alteração
diferentes constituições físicas na constância - uma descentralização - de todo o ser, ouseja,
morfológica do corpo humano. de sua dimensão de totalidade. Biologicamente
Mathers (2001) fala do quanto pode serimpor- apresenta uma alteração do eixo bioneuroendó-
tante chegar a se compreender a psicopatologia crino proposto por Bonet (1995): psicologicamente,
como uma desordem do sentido. A psicologia uma descentralização do eixo de nido por Neu-
analítica, ao conceber os símbolos como estru- mann (170) como eixo ego-Self ou, nas palavras
turas-estruturadores que dinamicamente tecem de Byington (1996). como eixo simbólico, o qual
a trama psíquica do signi cado pessoal, confere inclui a descentralização daquilo que Vargas
ao símbolo, de acordo com Jung. uma função (2000) denomina eixo tristeza-alegria. Por m,
transformadora de vital importôncia para o existencialmente, Saiz (2002) o de ne emtermos
equilíbrio e a criatividade, que se desenvolve no ( de uma alteração do eixo axiológico. A depres-
sistema cếrebro-psique. Os símbolos, como es- são se expressa como uma perda da harmonia
truturas-estruturadores, emergem da atividade do corpo psíquico, do equilíbrio, do centro: nas
(intersticial daquilo que Saiz (2003) de ne como palavras de Binswanger (1973), uma verdadeira
a fronteira entre consciente-inconsciente, indivi- descentralização da existência.
dual-coletivo, saúde-doença, cérebro-psique A psicopatologia da depressāo caracteriza-se
para con gurar osdiversospadrões do signi cado por umadescentralização da relaçãoego-seli.
Spessoal. A atividade geradora do simbólico está muitasvezes originadana persistência desituações

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Depressão na Visão Analitica 207

de estresse crônico, gerado por faltas oU por totalidade do ser na qual, sistemicamente, estão
excessos,em relação às polaridadesfrustração- implicados processos biológicos. psicológicos e
grati cação, apegos-desapegos oU depen- existenciais.A partir da psicopatologia sinbólica-
dências-independências, e que a pessoa não -arquetípica, essa descentralização pode ser
pôdeconfrontarou elaborarsimbolicamenteno analisada como uma alteração que se expressa
transcoer desuaindividuação. na dinâmica dos sistemas que Byington (2003)
Na dinânmica das inter-relações genoma-am- chama de matriarcal, patriarcal, de alteridade
biente, vulnerabilidade-resiliência, o paciente não e de totalidade. Descreveremos, de forma sin-
encontrao caminhopara elaborarossímbolosdo tética, a dinâmica depressiva prevalente em
Self ou Si mesmo (Jung. 2007. par. 274). os quais cada um desses sistemas, com o propósito de
cam aprisionados nas estruturas defensivas da nos aproximarmos de uma compreensão psico-
sombra, impedindo uma adequada estrutura- patológica da organização depressiva.
Çūo da relação eu-outro e eu-si mesmo. Essa
descentralizaçãodoSerpode ser compreendida Depressāo na dinâmica matriarcal
psicodinamicamente como um movimento dual,
o ego que se des-centra do Self, e o Self gerando QUandoo sistema arquetípico comprometido
um movimento de transformação a partir da pró- pela patologia depressivase con gura de acordo
pria enfermidade, para nos abrir as portas a uma com o padrão de organização matiarcal, damos
realidade que permanece fechadapara a saúde. ao transtorno a denominação psicopatológica:
Nossos complexos não são somente feridas que depressão matriarcal. Sua alteração estrutural
causam dor e vozes que naram nossOsmitos, mas neuropsicoexistencialexpressa uma disfunção na
também olhos que veem o que as partes sās e dinâmica dosistemaarquetípico que gira em
normais não podem vislumbrar: os novos caminhos torno do padrãOmatriarcal de apego, em res-
de reintegração do uxo axial ego-Self e as possi- posta àsnecessidadesprecoces e básicas de
fbilidades de elaborar criativamente a depressão cuidado,contenção.proteçãoesegurança.
l como um chamado à transformação do Ser. Psicopatologicamente, a organização defen-
Siva no sistema matriarcal se expressa, disfuncional
A elaboração criativa ou defensiVa dessas
e simbolicamente, em nível de corporalidade,
alterações, de acordo com Byington (2008).
sensualidade, afetividade, assim como no mundo
determina a modalidade como o processo de
imagético e do desejo. Esse sistema arquetípico
doença é vivido pelo paciente. A modalidade
matriarcal corelaciona-se à atividade do hemis-
defensiva implica estreitamento da consciência
fério cerebral direito, do sistema límbico e do
em torno do queé velho e estabelecido. A mo- sistena neuroimunoendócrino. De acordo com
dalidade criativa supõe, pelo contrário, uma MacLean (1970). podemos relacionáHo à mente
ampliação de consciência que possibilite a paleomamífera que emerge das estruturas subcor-
construçãode uma nova atitude eestilode vidg. ticais que compõem o sistema límbico* e a
para os quais é necessária a elaboração simbó- hipó se, onde estão presentes emoções como
lica doprópriosofrimento.Issopossibilitaque os apego, raiva, ódio e amor com seussistemas com-
transtornosdepressivos evoluam em direção a portamentaisassociados, de união e pareamento.
Umanovacompreensãona qual o própiodesejo Bowlby (1977a: 1977b) introduz a ideia de
damorte sicapodeser elaborado simbolicamen- apego na psiquiatria evolutiva para conceituar
te como uma experiência de morte-renascimento a tendência dos seres humanos a estabelecer
nosentidodaindividuação. fortes laços emocionais com outras pessoas. O
Portanto, saúde e doença podem ser vistas, apego provém danecessidadede proteção,
Como propôs Ramos (1994), como representa- segurança e contenção.desenvolve-se preco-
ções sinbÓlicas da relação ego-Self - a saúde cemente.dirige-seapessoas especíicas e tende
como harmonia e a doença como ruptura, fra- aperduraraolongo dociclo vital.A conduta de
Casso ou carência, que reclama atendimento apego tem um valor de sobrevivência, proteção
para restabelecer a homeostasia não só no sen- e segurança, está presente nos lhos de quase
tido biológico, mas em todas as dimensões do ser. todas as espécies de mamíiferose, quando a -
gura de apegodesapareceousevê ameaçadg.
DEPRESSĀO E SISTEMAS ARQUETÍPICOS arespostgé deintensaansiedade e de forte
reaçãoemociongl.
Emnossa perspectiva analítica, a depressāo éa
coniguração de um modo de estar no mundo Sistemalimbico: hipotálamo, tálamo. hipocampo, amigdala. corpo caloso e
que emerge como uma descentralização da septo.

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208 PsicologiaAnalitica

QUandooSpaisproporcionam àcriançauma as estruturas da medula, do tronco encefálico,


base de atuações seguras,issodeterminará a dos núcleos da base e do bulbo olfatório. Essas
Capacidade da criança paraestabelecer,na estruturaspossibilitanm comportamentos instintivos
idade aduita, laços afetivos seguros.Se a meta do e automáticos, como a necessidade de domínio,
apego for manter o vínculo afetivo, as situações status, competência por intimidação e ligação.
Sque põem em riscoessa relação ativam condutas Nessenível, tem-se uma avaliação instintiva e
Sde apego mais poderosas: agarrar-se, chorare inconsciente do perigo, a estratégia escolhida
coagir por meio de aborecimento. QUandosuas para se defenderé inconsciente e. em muitas
ações são bem-SUcedidas, o vínculo é restabele- situações, consiste em queda do humor (depres-
cido, as atividades cessame aliviam-se os estados São) quando se prevê um fracasso (2000).
de estresse e mal-estar (1977). Se o perigo não Desde época ancestral,nossos antepassados
desaparecer, sobrevém a rejeição, a apatia e o competemporrecursosbásicosde comida, teitóio
desespero. QUando os pais frustram ou grati cam e parceiro. Os aninmais podem medir sUa capaci
em excesso as necessidades arquetípicas básicas dade de manter o poder em relação aopotencial
{ para o desenvolvimento, surge uma ciança an- de seus adversários, o que lhes permite perceber se
siosa, insegura, que vivencia a si mesma como devem fugi, atacar ou submeter-se ao outro. Quan-
carente de con ança, tímida. inadequada e in- to mais xitos se tenha, maior será a capacidade
capaz. Muitas vezes, apresentam di culdades para de manter o poder ea otimização reprodutiva. O
manterrelações duradouras e, diante de situações equivalentehumano da capacidade de manter o
de estresse crônico, desenvolvem transtornos de poder éaautoestima,e ofracassotemefeitos simi-
ansiedade, fóbicos edepressivos. laresna qutoestima tanto nosseres humanos Como
Portanto, a depressão matiarcal é vivenciada nos répteis, maníferos e primatas.
como uma disfunção ou uma alteração nas rela- Evolutivamente, a competição pelo domínio
ções de apego, proteção, segurançaecontenção, teritorial diminuiu para dar lugar à competição
que se expressa nos níveis de afetividade, sensua- pelo status, o qual, uma vez adquirido, possibilita
lidade e corporalidade. Em síntese, a depressão o acesso aos recursos desejados. A ativação des-
matriarcalé uma descentralização do eixoego-Self se mecanismo adaptativopode se expressar como
em relação àsestratégiasafetivasdeadaptação. sintoma, ao atuar comestratégia autônoma.Muitas
dosentir-se contido, amado,seguroafetivamente vezes,odesenvolvimentodadepressãopatiarcal
e, em consequência,capaz de lcançar umde- estáligado acaracterísticasdepersonalidade.
senvolvimento afetivo-cognitivo adequado às como orgulho,perfeccionismo,ambição,tenden-
necessidades de cadaindividuação. cia àculpaounecessidadede voltararaivasobre
Simesmoparapreservaro objeto amado. Nade-
pressão patriarcal, como destaca Vargas (2000).
Depressão na dinâmica patriarcal São ativadas estruturas defensivas obsessivas, sen-
Quando o sistema arquetipico comprometido na timentos de culpa e autoacusações.
patologia depressiva se con gura de acordo com Em suma., a depressão patriarcal expressa-se
o padrāo de organização patriarcal, damos ao em uma descentralização do eixo ego-Self vincu-
transtorno psicopatológico a denominação jlado a estratégias basicamente cognitivas-afetivas
depressão patriarcal. Sua alteração estrutural de adaptação, destatus de domínio, de delimita-
neuropsicoexistencial expressa uma disfunção na çãoe ordeme dehierarquia.Essa descentralizaçā
dinâmica do sistema em torno do padrão de caracteriza-se por uma unilateralidade na discri-
domínio, que responde àsnecessidadesdestatus. minação das polaridades, especialmente da
posse e posição. A organizaçãodepressivade- função avaliadora pensamento-sentimento. Isso
fensiva, no sistema patriarcal,expressa-se Conduz a uma desvalorização de si mesmo, uma
psicopatologicamente de maneira disfuncional quedanaautoestima,uma alteração naherarquia
e simbólicaem relação adelimitação,ordem, dosvalores,com tomada dedecisõesinadequadas
planejamento,hierarquia,usodo podere modo que geram con itos e pensamentos-sentimentos
de pensar efazer. đe culpa, deruína, de castigo esuicídio.
A dinâmica do sistema patriarcal comesponde
à atividade do henmisfério cerebral esquerdo e os Depressão na dinâmica
sistemas volitivo-sensório-motor e associativos
corticais. Na descrição de MacLean (1970),esse
de alteridade
sistema arquetipico encontra suas bases mais As duas modalidades de depressāo anteriormen-
arcaicas no cérebro archypallium que abrange te descritas, uma caracterizada pelo dinamismo

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Depressão na Visão Analitica 209

matiarcal con gurado em torno de apego, sensua- toda polaridade.Portanto, adepressãona alte-
lidade,a liação e cuidado, e a outra caracteizada ridade é vivenciada como uma disfunção na
pelodinamisno patriarcal organizado em tono de Conectividade da vida, no vínculo amoroso, na
domínio, posição, status e ordem, respondem pre- Conexão com o corpo, na relação comaecologia
cisamente a dois dinamismos que, inicialnmente e profunda, emsintese, como uma descentralizaçã0,
evolutivamente, são excludentes. É necessáńo um Como um enfraquecimento na conectividade
"novopasso no processo de piquização, o desen- do viver.
volvimento de uma consciência relacional que Viver é conhecer, e conheceré relação. A
possibilitea dialética das polaridades, isto é, a emer- capacidade transformadoradessedinamismo de
gênciadaquilo que Byington (2008) descreve como alteridade resultadesse relacionar ou coniunctionar
OArquétipode Alteridade, em que, dinamicamente. as polaridades por meio da força vinculadora de
essas polanidades se relacionanm, se complementam Eros possitbilitando, como descreve Byington
e se integram. (2003), a criatividade profunda na arte, na ciên-
Portanto, quando o sistema arquetípico com- cia, na sociopolitica, na religiosidade e no amor.
prometido napatologia depressiva é con gurado Osdistúrbiosdesse dinamismo estão em torno do
peloArquétipo de Alteridade", chamamos o trans- encontroCom oOUtroeconsigomesmo,e podem
tomopsicopatológico de depressõo emalteridade. apresentar-sesob a forma do desencontro, do
Sua alteração estrutural neuropsicoexistencial ex- pseudoencontro, da falsidade e do engano, assim
pressauma disfunção ou alteração na dinâmica Como ng falta de criatividade relacional e inca-
dosistemaarquetipico em torno do padrão de pacidoade de dar-se a si mesmno e ao Outro em
alteridade, entendido como coniunctio, como SUasmais diversas modalidades.
padraovinculanteoU relacional daspolaridades, QUando uma relação perde sua força vital e
quesereÚnemem resposta àsnecessidades de não geranenhumatransformação,encontramo-
estabelecerrelaçõessimétricas entre o ego e Q nos diante de uma disfunção na criatividade,
alter ego, oU seja, encontros autênticos, íntimos e relacional., que se expressa por vivências de de
profundoSCom o Outro, tanto em nível intrapessoal Sânimo,desinteresse,desmotivação e sensação
ego-Anima/Animus) como interpessoal(Eu-Você). de que arelaçãoestámortaeque moreupor
Essa modalidade depressiva con gura-se falta deEros.A alteração da própria relação ou
psicopatologicamente em uma organização seu saciiciopodemsernecessáriospara ores-
(detensivddosistemade alteridade, que seex- gate dosentido de vida, uma vez que não há
pressasimbolicamente em nível de encontro, de perda maior, escreve Vargas(2000), que a de uma
relações com o outro, com o mundo e consigo vida não vivida.
mesmo.Essesistema arquetípico de alteridade
correlaciona-se com a atividade coordenada
dos hemisférios direito e esquerdo através do Depressão na dinâmica de totlidade
corpo caloSo, em sua função vinculadora, inter- Quando o sistema arquetipico comprometido
mediadorae conectiva entre ambos os hemisféios. pela patologia depressivacon gura-se de acordo
Essafunçāo relacional coresponde ao que Ma- com o Arquétipo de Totalidade, damos ao trans-
clean(1970) denomina mente neopalium, que torno psicopatológico a denominação depressão
emergeda conectividade cortical entre ambos existencial ou depressāo no dinamismo de totalida-
oshemisférios e da conectividade cortical-sub- de. Sua alteração estruturalexpressa uma disfunção
cortical. Também reconhecemos essa função dosistemaemtorno do padrão detotalidade,em
relacional na conectividade entre os sistemas resposta àsnecessidadesde sentidovital,existencial
psiconeuroimunoendócrino e os sistemas asso-
ecósmico,
necessidadesdetranscendênciae
ciativos corespondentes, em diferentes níveis do Completude, de encontro como Simesmo(Jung.
sistema nervoso central.
2007. pa. 274).
Essecdinamismo promove o diálogo e a confron- Psicopatologicamente, a organizaçãolde-
tação das polaridades em direção ao reencontro fensivaIno sistema de totalidade expressa-se
dessa unidade subjacente à emergência de disfuncional e simbolicamente no construir-des-
978-85-7241-915-4 cobrirosentidoexistencial,na contemplação
da tramatranscendenteemisteriosada vida
O Arquėlipo de Altenidade é a principal contribuição da Psicologia Simbólica
Junguiana desenvolvida por Carlos Byington (2008, p. 219). Implica o desen-
comoum todo,assimcomo nosentira conecti-
volvimento da posiçāo dialélica ego-Outro e Outro-Outro na consciência e vidade das partes comessetodo.
represento o que há de mais complexo e profundo na elaboração simbólica,
dondo a todas os polaridodes direitos iguais de expressão em um espectro
Na psicodinâmica desse sistema,aalteração
que voi desde a oposição radical dos polos até a igualdade destes. noexercíciododesapego,acontemplaçõoe

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210 PsicologiaAnalitica

a funçãosacri cialnarelação- porexemplo, organização depressiva subjacente a essasmo-


na velhice-podem gerar, comodescreveByington dalidades e a suas manifestações clíinicas.
(2008), um apego desesperadó, uma ansiedade As distintas modalidades psicopatológicas
patológica diante de umaexistênciavivenciada da depressão nos mostram que, segundo o pa-
çomo vazia ou umadepressãonilistaconmoex- \drão arquetípico predominante (matriarcal,
periència defensiva diante do nada. patriarcal,alteridade,totalidade),gorganização
Omundo évazioedistante,avidanãose depressivaque se con gura, ainda quepossa
sustenta pormeio da atenção dasnecessidades ser de nida conforme a predominância dasrela-
s mais simples. É difícil suportar a vida quando ela ções de apego(matriarcal),destatusdedomínio
se transforma em uma realidade de morte, em (patriarcal),derelação com oOutro(alteridade)
que a morte nãoévivenciada comosímbolode OU de sentido com o todo (totalidade), sempre
transformação, mas comoo nada, como algo e em cada uma dasmodalidadesencontramos
sem sentido. Prevalece a atitude nilista quesusS- umg descentralização de todo o Ser, em que
tenta que o mundo, e em particular a existência fodas asSUGSdimensões são afetadas efodos
humana, não possuinenhum signi cado, propó- oSseussistemas são alterados.
sito, verdade ou valor essencial superior a que Em outras palavrasita depressão é uma es-
nos apeguemos. tratégia arquetípica, adaptativa eindividuante.
Há desvalorização dos valores supremos, na que mesmo tendo sUa expressāo inicial em uma
qual o contato com o absoluto é impossível modalidade especí ca determinada pelodina-
porque, como escreve Nietzsche(1988),"Deus mismo arquetípico prevalente, quando se torna
está morto"; enm consequência, gera-se uma uma alteração (desorganização) patológica
crise do sentidoe a convicção de que a exis- compromete todas as dimensõese contextosdo
tência é absolutamente insustentável, vazia e Ser, além de ter uma expressāo própria de acor-
carente de signi cados. Esta é uma atitUde do com a históriaevolutiva individual. !
niilista defensiva, passiva, que não crê em ne- Portanto,9que de ne o padrãogrquetipico
nhum valor, visto que considera que este só é dessa organização depressiva? Em um primeiro
possível se Deus existir e, como não existe, aca- esboço, podemosdizer, ymadescentralização
ba em desespero, inação, renúncia ao desejo, doserna qual estão comprometidas asrelações
suicídio. Jünger e Heidegger (1994) descrevem ego-Self,expressando-senas relaçõesdeapego,
isso como um estado em que nadaresta doSer de statusde domínio,de autoestima,assimcomo
em si: é um nilismo que se apoia na redução has relações com o alter ego e com a totalidade,
| do Ser a um mero valor. oUseja, com a própria vida. Caracterizamosessa
Por outro lado, o nilismo criativo, ativo, tencio- organização depressiva como uma descentrg
na a destruição completa dos valores vigentes e lização, por insu ciência ou porexcesso,na
propõe sUa substituição por outros valores radi- dinämica doEroscomo força vital, comopoder
Zcalmente novos. Esseé o polo criativo do niilismo, vinculante, entreo Eu e o Outro, entre oEu eo
que não se encerra no fato de que tudo termina Mundo, entre e o Eu e o Si mesmo.
no suicídio, mas se abre a um novo momento na Essa dinâmica expressa-se no fato de que a
história da cultura, a um reencontro com o senti- pessoa deprimidg não pode se sentir amada e
„do de terra, o aparecimento de uma novamoral não é capaz de amar; por isso,muitasvezes,
e de um novo homem (Stein,1973). desespera-se ou se culpapor não alcançar a
Oresgate da relação coma totalidade im- intimidade emocional, por se sentir vazia oU por
plica apossibilidade dereencontrar,de acordo ter perdido o sentido existencial de suavicda.Essa
Com Vargas (2000), um sentido maior pará a desvitalização do Erosexpressa-se em umestado
existênciae o profundosentido queamorte tem de änimotriste,abatido,pessimista,desesperan-
para a vida. ParaByington(2003),nessadimen- Çosoe vazio. Reconhecemos diferentesmaneiras
são, o ego e o Outro têm de encontrar o caminho de expressãodessa depressão, tanto nasdimen-
(para se reaproximar, para que as polaridades sões biológica, psicológica e existencial como
sejam diluídas pela emergência de uma unidade em seus contextos, e também reconhecemos
diferenciada que possibilite que a consciência outra maneira de se apresentar, aquela das
vivencie o Todo. modalidades que formam o continuum do es-
Por m, perguntamo-nos em que contribuem pectro depressivo unipolar que compreende
essas diferentes modalidades do depressivo (personalidade depressiva, transtornodepressivo
(matriarcal, patriarcal, alteridade e totalidade) da personalidade, transtorno distímico e trans-
para nossa compreensão psicopatológica da torno depressivo maior.

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Depressāo na Visão Analítica 211

MODALIDADES DE INTERVENÇÃO vas, psicoplásticas, caixa de areia e outras, que


possibilitam a anmpli caçãonecessária a todo
Dispomosde três modalidades de intervenção processode elaboração simbólica.
parao tratanento da depresão:psicofamacoló- Seessas vivências simbólicas não são elabo-
gico, psicoterapêutica e tratamento combinado.! radas, passam a se organizar como estruturas
Dequalquer maneira, as indicações são especí cas depressivas defensivas e se apresentam, por
em cada paciente. de acordo com diagnóstico, exemplo, como desânimo, desinteresse, deses-
evolução, comorbidade e caracteristicas da per- perança, isolamento, decepção, indignidade,
sonalidade.Porsua vez, os melhores resultados são fúria, raiva, hostilidade e agressividade, contrasi
obtidos, como mostra a pesquisa, combinando-se mesmo e contra os outrose, muitas vezes, como
a psicofarmacologia com a psicoterapia. Balon culpa e morte.
(2004). Kaplan (2004) e a revisão sistemática de A pessoa deprimida vive em função do
Pampallonae Bollini (2004) sobre tratamentos com- passado, um passado de saúde, de menor
binadosde psicoterapia e psicofarmacoterapia em dependência, de maior vitalidade. Vive na
depressãocon rmam o benefício do tratamento negação do presente, como possibilidade de
combinado; contudo, em vista de nosso espaço criar uma nova experiência existencial a partir
disponível,limitamo-nos ao campo especí co da da compreensāo do sentido de suUa doença. E
psicoterapia dos transtornos depressivos. vive, por m, carente de um futuro real. já que
Só persisteum futuro irreal, cheio defrustrações,
Psicoterapia incertezas e autodestruição.

Naperspectiva da psicologia analítica, os símbo-


lossão a linguagem em que se expressa a psique
Depressão como morte física: suicídio
e,portanto, a modalidade em que a própria Os pacientes com transtornos depressivos fazem
depressāopode ser compreendidae trabalha- uma imperiosa tentativa de retornar à situaçāo
da.Porconseguinte.,o trabalho com ossímbolos passada. ao velho núcleo de sentido egoico. A
nosrevelaem que sentido se dirige a transforma- depressão qparece como um distúrbio especí -
çãodoser.OtranstornodepressiVOComo emergente co do euvinculadoaoprocessodeintrojeção.
do uxoego-Self con gura-se como uma descen- Para Byington (1987), o eu vê negativamente o
tralização do processo normal de elaboração outro, o mundo, mas issose deve ao fato de ver Matuaap
a si mesmo como muito pior do que é na reali-
simbólica cuja fìnalidade, além de transformar
a identidade do eu e do outro, é gerar uma dade. Culpa-se. critica-se e, muitas vezes, a mo.avd
ampliaçãoda consciência e do sentido de vida, autodestruição aparece como única opção.
quenos conecta, por sua vez, com a dimensão A prevalência de estruturas defensivas de-
existencial,em seus níveis axiológicos e transcen- pressivas tem sua expressão extrema no suicídio
dentes;em suma, com a dimensão de totalidade como morte sica. Em uma personalidade com
do ser humano. predomínio do dinamismo matriarcal, a morte é
Esse desvio do processo se deve, segundo valorizada como uma forma de acabar com oParuanal
Byington(2003),à ativação das estruturas defen- sofrimentoe ador. Prevalece um sentimento de
sivOssobreasestruturas criativas, que se organizam descansar e se aliviar. Por outro lado, se o dina-
Comosombra patológica ou croni çada. Porsua mismo dominante é patriarcal, predomina a
vez, o dorínio do Self faz com que o símbolo crítica a si mesmo, o paciente se sente conde-
Iguaimenteseexpresse a partir da sombra pa- nado auma vida derecriminações,injustamente
fológica,sobformas de conduta inadeguadas castigado e. portanto, a morte é valorizada como enoloou
ousintomáticas
própriasdadepressāo Nadé resposta à culpa e à necessidade de castigo
su cientesuprimir o sintoma; isso é a reduÇão đo (Byington. 1996). ce caut
tratamentoem detrimento do enfermo. As ex- A alternativa criativaé dada pela elaboração
pressõesde tristeza, dependencia, frustração, simbólica dos diferentes sintomas, em especial
perda e morte, em sua estruturação defensiva pelos sofrimentos gerados de dependências,
OU patológica, estão na gênese da depressão frustrações, perdas e mortes. sso possibiita que os
eprecisam ser transformadas signi cativamente transtornosdepressivos evoluam para uma nova
para que o paciente se recupere. compreensão, em que o desejo da morte sica
Essasvivências simbólicas podem ser traba- podeserelaboradosimbolicamentecomo una
Ihadasmediante diferentes técnicas expressivaş: experiência demorte-renascimentono sentido da
verbais, corporais, psicodramáticas, imaginati- individuação.

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212 Pcoiogia Anafca

Depressāo como morte simbólica: deprimido deve viajar por um processo de pesar,
egocídio pesor pela perda da imagem e identidade do
eu (Rosen, 1993).
A partir da psicologia anaitica. queremosconsi- Nasegundaetapd opaciente sesentege-
derar. de forma breve, esta segunda alternativa caimente "moto" eextremamentedependente.
como um caminho efcaz para o tratamento dos Torna-se ansioso, confunso, abatido e retraido.
pacientes deprimidos e. muitas vezes, com risco Tem uma importante dependência do pro ssio-
de suiciio. Podemos descrever esse enfoque. nal, do tratamento ou de algum famiiar, osquais
segundo Rosen (1993). como morte do eu e funcionam como se fossem uma grande mãe
transfomação. nutriz Oego começa areconstituir-se,reintegrar-se
A pessoa deprimida não ten por quemomer efotolecerse, à medidaquefazumaregressão
completamente: $ó uma parte dapsique do a serviço do self, oU seja, uma volta a um nível
indivíduo deve morer: oaspectonegotivodo mais profundo de contato com o seu centro: o
eu quesentefaita davidapassodo.Opaciente simesmo. No naldessa segunda etapa, o pacien-
deve renunciar, sacrí cor oUtransfomaressa te çomeçaateraesperonçadeumamudança
parte destrutiva da psiquecorespondenteao signi cativa ern sua vida e, enm consequência, a
sey velho eu. Aimnagemdo eudorminantee a depressão diminui.
identidade negativa devem morrer para possi- Em urna jerceia etapaļproduZ-5e asepara-
blitor o transfornação psiquica. A ident dade Çãosimtbóicado paciente dessarelaçãode
consciente do eu more. Os pacentes,simbol- dependência ciada com o terapeuta, com a
camente. sacri cam ou motom ospróprias farria oUComo póprio tratamentomultidiscipl-
perspectivas que nham desimesmoSedavido nar. É uma experiência de mote-renascinmento,
Não obstante. seu simesrno nãoé destrýdo.
na qualsetrabalhaparapôr rnàdependência,
Dessamaneira, o pociente podedesenvolver medianteamortesimbóicadoego-dependente.
uma novoidentidgdedo e permitindoqueo Aodição àvidaanteriorse tonoU umaadiçãoà
seu simesmo o conduzaa umnovosentidoeris ineaidade, própria do deprimido, e deixa pouco
tencial. A pessogtransita por umgsérie de espaço para uma vída nova e um sentido dife-
eTopas, que passamos a descrever de acordo rente desta.
com Rosen(1993). em que ela expeimenta uma Qualquer que seja a cousa a ímpelir uma
morte sirnbólica, morte do eu ou egocídio, mas pessoa a buscar o morte, existe sempre uma
não amortedoser. alfternativa melhor que o suicidio. Conternplar a
AAPAmostraresstêncioootratomerntoe
Na primera etapa.ļo pociente quasesempre
àtronsformoção
morte do eué um ato de transformação criativo:
humihante, nas curativa. Ern conclusão. podernos
que isso impica, eexpressamuitanegotividade observar que existe urna ampla díferença entre a
e raiva.É um comportamento que põe à prova mortedo eu-egocido-eamorte sica-suicidio.
So terapeuta em sua copocidade de oceit64o e De qualquer forma, essas experiências sõo
¿construir urn víincuo de con ança consgo mes- sernelhantes ern um aspecto crucial: ao longo
imo. que por sua vez possibte umaconstrutiva do carminho é precisootravessar, tanto no su-
regressãO a serviço do ego.O regesso aum ego cidio como no egocidio, uma mesmaangústia
positivo. no qual sejam enfatizadas todas as e urna mesrna e intensa dor. Dizer queo egocí
vantagerns, capocidades e talentos do pocien- dio é urmsuicídio sirrbólico nõo o torna un ato
te, para gerarossimum uggrseguIOno qual menos desa ante e violento (Rosen, 1993). A
possarn se identi car, confrontar, cornpreender chave para compreender essa transformação
e elaborar os medos, termores e aspectos nega- reside ern se poder apreciar a função estrutu-
vos deseuestardeprimido. radora do sofrirnento hurnano como sirnbolo de
Alcançadoesseprimeroobjefvo, é guaF transformação.
mente importante considerar asintrojeções Uma das chaves de todo o tratamento dos
negotivas do ego paraconfrontálascomas transtornos depressivos, sob essa perspectiva
partes negodos do ego (transtorno nenta. per- psicológica e existencíal, é que a vída do
das.dependências)e poder reazat a mote paciernte deprimrido irnpica um sofrimento que
simbóica:oegocidio. Durante a parte nal des- querernos cornpreender sinbolicamente a
sa primeta etapa. o paciente term uma vivência partir de sua própria história. Nenhum homem
muito intersae. airda que a mote doeubseiese pode viver e superar seu próprio sofrirmento se.
em dear moer somente uma parte do eu, o de algurn rmodo, não conseguir dar um sentido
pociente sente-se morto. Por isso, o paciente go que padece (Saiz, 1998). Nessa atribuição

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Depressão na Visão Analiítica 213

de sentido realiza-se a função sacri cial da velho e onovo, entre opuer e osenex*, entreoego
Dsique: elaborar o sofrimento como sacrifício eo Self(Saiz,2002).Nasce simbolicamente um
comoexperiência de morte-renascimento - a novo lho: Cronos, "o semeador". Nasce um novo
experiênciada morte de uma vida que temos ego, um alter ego. A temporalidade é restabele-
deabandonar,que perdemos, e o renascimento cida (Sai, 1986). A criatividade da vida volta a
deuma nova forma de existência, de um nọvo uir novamente sob a forma de Eros.
sentido ético-transcendente da vida e da
morte,que vamos elaborando e descobrindo CONSIDERAÇÖES FINAIS
a partir do sofrimento.
Surgeassim um novo sentido existencial que O artigo "Depresión, Arquetipos y Neurociencia:
digni ca a vida ao integrar, de forma humaniza- construyendo un diálogo entre psicología analiti-
da, a doença e seu tratamento ao processo de ca y neurociencia", publicado por Amézaga y
individuação do paciente, em que o depressivo Saiz(2006), propõe aimportância de pesquisar o
é somente um monmento constitutivo na crise de padrão de organização do depressivo como pa-
transformação da vida. drão arquetípico que tem sua expressão na
Sob a perspectiva mitológica, o mito de
organização de estratégiasevolutivas que servem
para a adaptação OU podem se transformar em
Cronos-Saturnofħosintroduz no caminho arque-
desadaptativas e, nalmente, patológicas. Pos-
tipico da individuação, mostrando-nos quatro teriormente, consideramos a depressāo não
momentos constitutivos na transformação do ser
apenas em sua função adaptativa, mas também
quebusca renascer para uma nova vidaa par- individuante. Nesse sentido, a conferência dó
tir de seu estar deprimido. Professor Carlos Byington (2007), "La Depresión
Trata-sede compreender o processo arquetí- Normal y el Futuro de la Civilización - Un Estudio
pico implicado nesse desenvolvimento mitológico, de la Función EstrUcturante de la Depresión por
o qual começa com o nascimento do lho (Cro- la Psicología Simbólica Junguiana"* nos introduz
nos) a partir da morte do pai (Urano); dito de Q conceito de depressão como umafunção estru-
outra maneira, é a emergência do puer a partir turadora muito importante no desenvolvimento
da morte do senex. Logo, Consolidado em seu da elaboração simbólica, podendo se tornar
poder, o puer se transforma em um pai-senex patológica quando se torna rígida, fbxa, repetitiva
(Cronos-Rei) que resiste a toda possibilidade de e, portanto, não elaborada.
mudança, a todo nascimento do que é novo, Retomando esse conceito de depressão
porque não quer perder o conquistado: porque como funçãoestruturadoranormal.,vemos que
se sente ameaçado, em seu poder constituído, estasetorna ativadiante do sofrimentoe faz com
precisamentepelos lhos de uma.nova geração que o ego, de acordo como dinamismo preva-
(Zeus-Olimpicos). Esses dois estágios iniciais do lente, se des-apegue (dinamismo matriarcal). se
desenvolvimento mostram psicologicamente a des-potencialize(dinamismo patiarcal), se des-
ruptura radical entre as forças conservadoras, una(dinamismode alteridade) ouse des-integre
sOcialmente estabelecidas e as forças de uma no sentido de experimentaro vazio, o nada, a
novaordem heroica, entre onúcleo do velho ego perda da integridade (dinamismo de totalidade)
earenovação proveniente do Self (Stein, 1973).
em relação a otras funções estruturadoras da
O ciclo de morte-renascimento perpetua-se.
elaboraçãosimbólica.Essaretiradada libido das
funções estruturadoras em curso "desanima" a
As di culdades do crescimento e o medo de
personalidade de qualquer outro projeto em
Cronos de aceitar a transformação necessária
ÇUrso.Em outraspalavras, a ativação da função
para seu desenvolvimento, para sUa individua-
estruturadoradadepressãodiminuioentusiaşmo
çãopessoal e.coletiva, constituem a base para einstalaodesânimo,oabatimento,atristeza,o
a queda da ordem estabelecida e para o seu pessimismo, a falta de energia. É um procedi-
próprio desterro, que dará origem a uma nova mento normal, necessário e imprescindível para
geração de deuses Olímpicos. elaborare integrar o sofrimento oriundo dos
Cronos, desterrado na profundidade da ter- símbolos feridos. A função estruturadora do sofri-
ra, em contato com as forças argquetípicas mento, isto é, a dor psíquica, está presente em
Inconscientes, renasce transformado e se torna toda elaboração simbólica (Byington, 2007).
Um soberano sábio e bené co dos homens. O
ego renasce, a depressão conclui seu ciclo e a • Puer (latim): menino: senex (latim): velho.
** Conferência apresentada no V Congresso Venezuelano de Psicoterapio.
esposta criativa expressa a uni cação dospolos realizado pela Asociación Venezolana de Psicoterapia(AVEPSI)em Caracos,
Opostos- ou, pelo menos, o reencontro entre o no dia 15 de junho de 2007.

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214 PsicologiaAnalíitica

A transformação no trabalho pessoal requer \AMEZAGA, P: SAIZ, M. E. Depresión, Arquetipos y Neurocien-


que o velho possa moer para dar lugar ao nasci- cia: construyendo un diálogo entre psicologia analí co
yneurociencia. In Proceedings of the l6h intenational
mento, à criação do novo: por isso, a função
Congress for Analytical Psychology. Einsiedeln:Daimon
sacri cial, que é a função estruturadora da trans-
Verlag. p. 1012-1032, 2006.
formação e do intercâmbio, estápresenteem toda
elaboração simbólicajunto à função transcendente BALON, R. Developments in treatment of anxiety disorders:
que posibilita a enmergência dos novos símbolos.O Psychotherapy, Pharmacotherapy, andPsychoSurgery.
Depression and Anxiety, v. 19, p. 63-76, 2004.
ego velho more (egocídio) para dar lugar ao ego
que renasce transformado. Da mesma maneira BECK, A. T. Cognitive Thergpy of Depression: New perspect-
que, para um médico, a queixa de dor é um ves. In: CLAYTON, P.; BARRET, J. (eds.). Treatment of
pedido de ajuda do organismo ferido, a depressão Depresión. New York: Raven Press, 1983.
deve ser considerada umsínmbolodo organişmo BINSWANGER, L. (1958) El caso de Ellen West, estudio antro-
psíquico que pede umnovOsentido.oqualemerge pológico-clínico. In: ROLLO MAY et al. Existencio.
a partir dareconexãocom a sombrae com a Madrid: Gredos, 1973.
qualidade recreativa doinconsciente. BONET, L. Psiconeuroinmunoendocrinología. Buenos Aires:
Byington (2008) destaca, com muita ênfase, a Vertex, 1995.
relevância de que o terapeuta aceite adepressão BOWLBY, J. The making and breaking of affectional bonds.
ea acolha, pois está admitindo que foi solicitado a Brit. J. Psych., v. 130, n. l,p. 201-210, 1977a.
atendera um pedido de ajuda e a cooperar na
BOWLBY, J. The making and breaking of affectional bonds.
elaboração simbólica das ivências de um ser hu-
Brit. J. Psych., v. 130, n. 2, p. 421-421, 1977b.
mano que sofre. Recordemos o que Jung (2008a,
BYINGTON, C. La Depresión Normal y el Futuro de la Civilizo-
par. 450: par. 460) escreve no prólogo do livro de
ción – Un Estudio de la Función Estructurante de la
Víctor White, "God and the Unconscious":o objeto
Depresión por la Psicología Simbólica Junguiang, Con-
de nossos esforços é constituído pelo ser humano ferencia Presentada en el V Congreso Venezolano de
que sofre e se encontra enfermo enmtermos aními- Psicoterapia, realizado por la Asociación Venezolana
cos e precisa tanto de uma atenção somática, oU de Psicoterapia (AVEPSI), Caracas, 15 de junio de2007.
|seja, biológica, como espiritual, isto é, religiosa. Uma
BYINGTON, C. A Construção Amorosa do Saber: o fundo-
neurose não é um fenômeno encerado em uma
mento e a nalidade da Pedagogia Simbólica
cápsulae circunscrito a alguns limitesprecisos, mas Junguiana. São Paulo: Religare, 2003.
uma reação do homemintegral.
BYINGTON, C. Arquétipo da Vida e Arquétipo da Morte.
Ao perceber a depressão como umna função
Junguiana, v. 14, p.92-115, 1996.
estruturadora que é ativada no sofrimento e nas
frustrações humanas, vemos seu potencial para BYINGTON, C. Arquétipo e patologia. Introdução àPsicopo-
confrontar a alienação do Ser e de propiciar a tologia Simbólica Junguiana, v. 5, p. 79-26, 1987.
busca daintegridade (Byington,2008).A depressão, BYINGTON, C. Psicología Simbólica Junguiana, A viogem de
como a própria vida, é a expressão de um para- humanização de cosmos em busca da iluminação.
doxo: pode tanto nos levar ao suicídio como São Paulo: Linear B, 2008.
também à transformação criativa: submerge-nos GARDNER, R. Psychiatric syndromes as infrastructure for intra-
na introversão para alcançar uma centroversão speci c communication. In: CHANCE, M. R. A. (ed.).
profundana direção do encontro como Self.Com Social Fabrics of the Mind. New Jersey: LEA,1988.
isso, a vida volta a brotar, a emergir com um novo GILBERT,P. Depression: The evolution of power-lessness. New
sentido que, uma vezmais, no dinamismo da psique, Jersey: LEA, 1992.
terá de momer para continuar renascendo. É claro HILLMAN, J. Re-imaginar la Psicología. Madrid: Siruela, 199.
que isso só é possível se Eros estiver presente como
JUNG, C. G. (1957) Prólogo al libro de Víctor White God an
força vinculadoraque nosreconecta de umanova
The Unconscious. In: Obras Completas, v. 11. Madid:
maneira aos outros, à vida, ao próprio mistério do
Trotta, 2008a.
amor, no qual o sofrimentoé a experiência mais
JUNG, C. G. (1941) Transformations of dream problems from
profunda de sua transformação e de sua morte.
romanticism to the present, In: Collected Works, v. 18.
New Jersey: Princeton University, 1980.
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Depressão na Visão Analítica 215

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CAPÍTULO 25
Transtorno Bipolar do Humor - a
Perspectiva da Psicologia Analítica

LUIZ PAULO GRINBERG

Nós que pertencemos ao ofício temperamento in amável e selvagem, sofria de


somos todos loucos alcoolismo e, provavelmente, cometeu suicídio.
Alguns são afetados pela alegria, Após a morte de sUa primeira mulher, John Byron
outros pela melancolia, casou-se com uma escocesa, Catherine Gordon
Mas todos somos mais ou menos tocados de Gight, cuja fortuna ele rapidamente dilapidou.
LORD BYRON
O lado materno da família de George era
mais comprometido que o lado paterno. SUa
INTRODUÇÃO mãe, Catherine, foi descrita como uma mulher
de temperamento violento e apresentava inten-
George Gordon, conhecido como Lord Byron sas alterações de humor que iam da oscilação à
(1788-1824), era descrito como um sujeito mer- loucura. O avô materno, de quem Byron herdou
curial e extravagante e apresentava episódios o primeiro nome, George Gordon, provavelmen-
recorentes de melancolia agitada que pioraram te se suicidou, morrendo afogado, assim como
progressivamente com o tempo. Seu tempera- seu bisavô. Finalmente, a lha de Byron, Ada ou
mento era volátil, acompanhado de ataques condessa de Lovelace, apresentava delirios de
Ocasionais de raiva. grandeza, também foi uma jogadora compulsiva
Em sua família havia fortes antecedentes de e tinha episódios recorentes de melancolia grave.
suicídio e instabilidade emocional que remonta- Lord Byron morreu aos 36 anos, de uma febre
Vam à sUa bisavó paterna, Frances, que teve inexplicável, enquanto servia na guerra da Grécia
cinco lhos com Wiliam, lorde Byron IV. A lha contra os turcos, em 1824.
mais velha desse casal era considerada altanmente Essa breve descrição a respeito de cinco
excêntrica e teve muitas di culdades nanceiras. gerações da família de um famoso poetaromân-
William, seu irmão, cou conhecido como wicked tico inglês - baseada no livro de Kay Red eld
lord-o "lorde perverso". Era de temperamento Jamison, "Touched with Fire - Manic-Depressive
violento, comportamentos bizarros, cometia extra- I lness and The Artistic Temperament" (1994) -
vagâncias nanceiras e foijulgado peloassassinato aponta diversas peculiaridades do que hoje
de um primo. O quinto LordByron, avô de George, consideramos transtorno bipolar, denominado
tornou-se vice-almirante da marinha britânica e até a década de 1980 de psicose maníaco-
sofria de crises em que perdia a razão. CasoU-se -depressiva (PMD). Nesse livro, Jamison faz um
com uma prima de primeiro grau, Sophia Treva- interessante estudo sobre algumas árvores
nion, hipersensível e de temperamento mercurial genealógicas de artistas sabidamente maníaco-
que apresentava altos e baixos de humor. So- depressivos, a m de demonstrar a distribuição
phia, aVó de George, era sobrinha de Frances, do espectro bipolar em famílias de artistas.Ari-
a bisavó. gor,constata-se apenas uma associaçãoentre
O pai de George, John Byron, era conhecido criatividade e bipolaridade, não sendopossível
como "Mad Jack" porsuas extravagâncias nan- a rmar que exista uma relação causal entre tal
ceiras no jogo e estilo de vida sombrio. Era de associaçāo e fatores genéticos. Ou seja, não é

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TranstornoBipolar do Humor - a Perspectiva da Psicologia Analitica 217

possíveldemonstrar, ao menos retrospectivamen- ponto de vista existencialista, corelacionando o


te, se o temperamento artistico simplesmente se transtorno bipolar com alguns mitos de nossa
desenvolveu por in uência do meio familiar. cultura. Por m, traçaremos alguns comentários
Mesmoassim, nessa descrição que acabamos sobre o manejo terapêutico do paciente bipolar,
de ver, percebem-se, nitidamente, três elementos com ênfase na importância da associação entre
fundamentais: farmacoterapia e psicoterapias.
978-85-7241-915-4

•Aincingção genéticadadoenca.Conforme HISTÓRICO DO CONCEITO DE BIPOLARIDADE


demonstrado em estudos de agregação
familiar, o risco de um ho apresentar trans- Todas essas manifestações - hoje em dia
torno afetivo quando um dos pais é portador englobadas sob a moderna denominação de
é de 27% e de 74% quando ambos os pais espectro bipolar - vêm sendo descritas desde a
apresentam o transtorno (Gershon et al., Antiguidade. O estudo dos temperamentos
1982). Este, muito provavelmente, foi o caso afetivos remonta aos escritos hipocráticos
de Byron. (século IV a.C.) que consideravam a melancolia
• O grave problema do suicídio. Pelo menos umaforma de doençacausadapelodesequililbrio
80% dos pacientes bipolares exibem com- da bile negra e o temperamento melancólico
portamento suicida e 51% tentam suicídio como um tipo de personalidade pré-mórbida
ao longo da vida (15% com sucesso) (Val- associada à doença (Angst e Marneros, 2001).
tonen et al., 2005). particularmente os Asprimeiras descições da mania e da melancolia
bipolares tipo Il (depressões recorentes + como fenômenos da mesma enfermidade
hipomania) durante as fases de episódios remetem-nosa Aretaeus da Capadócia, médico
mistos (ver Os Estados Mistos, a seguir), grego que viveu no século I (Del Porto, 2004).
devido à impulsividade associada à de Embora omoderno conceito de bipolaridade
pressāo (Balazs et al., 2006). Vimos que o tenha nascido em meados do século XIX, com
próprio Byron apresentava episódios mistos os médicos franceses Jean Falret (1851), que
de "melancolia agitada" (mista) e houve, descreveu a folie circulare (forma de doença
pelo menos, três suicídios em sua familia (o mental caracterizada pela reproduçāo sUcessi-
pai, o avô e o bisavô materno). vae regular de um estado maníaco, um estado
Asinúmerasalteraçõesde temperamentoe melancólico e de um intervalo lúcido mais oU
utuações de humor. presentes tanto em menos prolongado), e Jules Baillarger (1854).
seusfamiliares quanto ao longo do curso de que, na mesma época, descreveu a folie a doble
SUa doença: excentricidade, extravagância, forme (Haustgen e Akiskal, 2006), foi Emil Kraepe-
temperamento sombrio, in amável, sel- lin quem, em 1913, uni cou essa diversidade de
vagem, volátil, mercurial, violento. expressões da doença sob o rótulo de "insani-
dade maníaco-depressiva" (Kraepelin, 2002).
Conhecero conjunto deexpressõesda doen- Essa concepção abrangia uma gama variada
ça bipolar - como vimos a partir desse breve de quadros clnicos que incluíam não apenas a a-
relato sobre a biogra a de Lord Byron - é muito ternāncia de episódios de tristeza patológica
importante. pois essas peculiaridades apresen- (melancolia) e periodos de euforia, exaltação
tam algumas implicações terapêuticas que OU alegria exageradas (mania), mas uma séie
discutiremos ao longo deste texto. de ocoências maissutis de utuações do humor
Seguindo a perspectiva enfatizada pelo psi- que englobavam desde traços normais de tem-
quiatra e lósofo alemão Karl Jaspers em seu peramento afetivo até quadros de mania e/ou
tratado, "Psicopatologia Geral" (1997) - obra na hipomania crônica, além dos chamados estados
qual ele organizao campo dos fenômenos do mistos, quer dizer, a concomitância de sintomas
adoecer da alma humana -, por uma questão depressivos e maníacos.
metodológica, abordaremos em primeiro lugar a A síntese realizada por Kraepelin (2002)
descrição da fenomenologia do transtorno bipo- enfatizou não apenas a questão da polaridade
lar-a evolução histórica do conceito e algumas -oU seja, a alternância dos episódios de mania
das controvérsias atuais em relação ao diagnós- e depressão-, mas principalmente a ciclicidade.
ico. Em seguida, esboçaremos algumas tentativas oU seja, a recorência dos episódios. Com base
de compreensão do signi cado da vivência des- na similaridade dos sintomas nucleares, na
se transtorno, tanto a partir da perspectiva da presença de história familiar e no padrão de
psicologia analtica e da psicanálise quanto do recorrência, na 6ª edição de seu tratado,

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218 PsicologiaAnalitica

publicada em 1899, Kraepelin empregoU o termo principais: três quadros clínicos fundamentados
maníaco-depressivo para se referir tanto aos na sintomatologia fundamental da mania (ma-
quadros de mania simples (ou seja, as formas nia depressiva-ansiosa, mania com inibição do
monopolares da doença) quanto às psicoses pensamentos e depressão excitada/agitada) e
circulares (formas bipolares). Na 8ª ediçāo (1909), três formas baseadas na sintomatologia funda-
ele incluiu também grande parte dos quadros mental da depressão (estupor maníaco, depressão
de melancolia (forma monopolar). De acordo com fuga de ideias e mania inibida) (Kraepelin,
com Goodwin e Jamison (2007), o principal 2002; Marneros, 2001).
insight de Kraepelin - de que todosostranstornos Aimportância desses quadros tem sidobastante
maiores recomentes pertenceriam juntos à rubrica enfatizada, principalmente. porque o que se tem
doença maníaco-depressiva - ainda provê o visto na prática médica são inúmeros quadros de
melhor modelo para a compreensão de dados "depressão agitada" refratáios ao tratamento os
clínicos, farmacológicos e genéticos que se quais, em realidade, foram eroneamente diag-
conhece hoje em dia acerca do transtorno nosticados como "depressão unipolar" e, por
bipolar. conseguinte, inadequadamente medicados com
antidepressivos sem a proteção de um estabilza-
dor do humor. De fato, hoje se sabe que até 50%
Os ESTADOSMISTOS
dos pacientes "deprimidos" - principalmente
Diversos autores (Hagop Akiskal, de San Diego; aqueles que não respondem ou respondem mal
Athanasios Koukopoulos, de Roma; NassirGhaemi, a antidepressivos - pertenceriam, em realidade,
de Atlanta; Frederick Goodwin, da George Wash- ao espectro bipolar (Akiskal et al. 1995).
ington University) têm resgatado a ideia clássica Como evidenciaranm Goodwin e Jamison(2007),
de que, embora a fenomenologia maníaco-de- essas hipóteses têm sido con rmadas por alguns
pressiva se manifeste por meio da recoência dos estudos familiares que demonstram que tanto o
ciclos de sintomas depressivos e/oU maníacos/ transtorno bipolar como algumas formas de
hipomaníacos, existiria uma "conexão natural depressão unipolar altamente recorrente (mais
intrínseca entre mania e depressão" que não se de três episódios, segundo alguns autores) po-
deve perder de vista (Akiskal e Tohen, 2006). deriam representar uma diátese comum que
De acordo com Del Porto (2004), o conceito levaria a características clínicas sermelhantes em
de "estados mistos" pode ser considerado a ambos os quadros, Como menor idade de início,
pedra angular paraaformulação da concepção história familiar de mania, características atipicas
unitária de Kraepelin sobre a doença maníaco- da depressão (hiperfagia, hipersonia, fadiga) e
-depressiva. Ao sistematizarem seu estudo, resposta pro lática ao litio.
Kraepelin e seu discípulo Weigandt basearam-se
na clássica divisāo da atividade psíquica nos DIAGNÓSTICO
domínios do humor, intelecto e psicomotricidade
(volição). Assim, nos estados maníacos ou de- Um problema que tem permeado a questão
pressivos "puros", as três esferas encontrar-se-iam diagnóstica em psiquiatria éo fato de muitos
alteradas na mesma direção. Na mania típica pro ssionais, mesmo os especialistas, basearem-se
Ocorre aceleração do pensamento (até fuga de nos manuais o ciais de classi cação das doenças
ideias), exaltação/elação do humor e agitação mentais (APA, 1995; CID-10, 1993) para diagnos-
psicomotora, enquanto na melancolia ocorre ticar as síndromes (conjunto de sinais e sintomas)
psiquiátricas. Entretanto, essas publicações, que
humor deprimido, inibição do pensamentoe pretendem ser ateóricas, prestam-se mais à
alentecimento psicomotor.
Já nos estados mistos inúmeras combinações pesquisa do que propriamente ao diagnóstico
- que, em psiquiatria, se faz, fundamentalmen-
podem surgir. Trata-se de quadros que tanto te, observando-se todo o qUadro da alteração
podem ser considerados formas de transição (da de comportamento ao longo do tempo. Embo-
mania para a depressão oU vice-versa) ou epi- ra tenhamos evoluído em relação à técnica de
sỐdios de duração prolongada que se iniciam e avaliaçāo de imagens e funcionamento cere-
terminam com a simultaneidade dos dois gru- bral, nenhum método ainda veio substituir a
pamentos de sintomas. Assim, partindo-se da abordagem clíinico-evolutiva, inaugurada porKatl
excitação maníaca, passandopelopolo oposto Kahlbaum (1863) e desenvolvidaelevada acabo
da depressāo para novamente se alcançar um por Kraepelin (apud Jaspers, 1997). Ou seja, não
novo episódio de mania cheia, podemos encon- dispomos, até o momento, de marcadores bioló-
trar, segundo Kraepelin, pelo menos seis formas gicos em psiquiatria.

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TranstornoBipolar do Humor- a Perspectiva da Psicologia Analitica 219

Uma segunda cri ca que se faz ao uso dos um estado mistodepressivo - uma vez que a agi-
manuais de classi cação para se fazer diagnós- tação motora con rmaria a presença de agitação
ticodizrespeito à linitação dos critérios propostos, psíquica (ou intensa tensão interna). Entretanto, se
que acabam por restringir sua aplicabilidade na não houver agitação motora, para diferenciar
prática clínica. Segundo a quarta edição do "agitação" de "ansiedade", o autor propõe que
Manual Diagnóstico e Estatistico de Transtornos pelo menos três dos seguintes sintomas devam
Mentais(DSM-HV,Diagnostic and Statistical Manual estarpresentes em um episódio depressivo maior:
of Mental Disorders IV), para se caracterizar um curso do pensamento acelerado ou profusāo de
episódio misto, seria necessária a presença de pensamentos; irritabilidade ou sentimento de
um episódio depressivo maior, ou seja, humor raiva não provocada: ausência de sinais de re-
deprimido na maior parte do dia, acompanhado tardo psicomotor logoreia; descrições dramáticas
de perda ou diminuição do interesse oU prazer e de sofrimento ou crises de choro: labilidade
quatrosintomas de uma ista que inclui três alterações emocional e marcada reatiidåde emocional;
naesfera do intelecto (sentimento de inutilidade insônia terminal.
oU cUlpa excessiva; diminuição da capacidade
de pensar ou concentrar-se/indecisão; ideação TEMPERAMENTOS AFETIVOS
ou tentativa de suicídio) e quatro alterações na
esfera da volição/corpo (alterações do peso, Além das variadas formas típicas, de transição
apetite e sono, além de retardo ou agitação psi- e estados mistos que acabamos de abordar,
comotora, fadiga ou diminuição de energia), fażem parte dadiscUssãoatual sobreo espectro
concomitantes a um episódio de mania aguda, bipolar os chamados temperamentos afetivos.
quer dizer, humor expansivo ou iritável e três ou Kraepelinobservou que muitos casos de doença
quatro dos seguintes sintomas: autoestima in ada/ bipolar remitiam, mas não voltavam totalmente
grandiosidade: fuga de ideias; distraimento; di- ao normal, retornando a um temperamento basal
minuição da necessidade de sono; logorreia; já presente em sua históia pré mórbida. A partir
hiperatividade/agitação; comprar/gastar em ex- dessa constatação, ele postulou a existência de
cesso; indiscrininação sexual. Ou seja, um episódio quatro tipos básicos de temperamento ou predis-
cheio de mania e de depressão simultâneos - o posição da personalidade ("Konstitution") dos
que é quase impossivel de se observar na prática. quais emergiria a doença afetiva. Essas formas de
Poressa razāo, diversos autores têm proposto constituição poderiam afetar também alguns
critérios clínicos menos estreitos para discriminar parentesdessespacientes de modo mais atenua-
tanto feições depressivas em um episódio de do, quer dizer, subclínico, conforme vimos na
mania (mania mista ou disfórica) como para familia de Lord Byron.
diagnosticar um episÓdio misto depressivo. Desse Aesses quatro tipos de temperamento Kraepe-
modo, SuUzan McElroy et al. (1992) propuseram lin deu a denominação de estados fundamentais:
critérios para mania mista, de nida como um o depressivo praticamente se sobrepõe ao que
episódio cheio de mania (como vimos anterio- hoje conhecemos como distimia (depressāo
mente) e a presença concomitante, nas 24h, de crônica):o maníaco (hipertimia); o ciclotímico se
pelo mernos três sintomas depressivos (sintomas sobrepõe ao "transtorno ciclotímico" (perturbação
estes que, obviamente, não se superpõem aos crônica e utuante do humor); e, por m, o imitá-
de mania): humor deprimido; marcada diminui- velseria uma combinação de feições depressivas
ção do interesse ou prazer em qUase todas as e hipertimicas.
atividades; ganho de peso substancial ou au- Uma importante implicação clínica dessa
mento do apetite: hipersonia; retardo psicomotor, concepção diz respeito à formulação feita por
fadiga oU perda de energia; sentimentos de Akiskal(1992) de que os estados mistos emergiiam
desvalia oU culpa excessiva ou inapropriada: quando um episódio de humor se interpolasse
desesperança ou desamparo; pensamentos sobre o pano de fundo de um temperamento afe-
recorrentes sobre morte, ideação suicida ou tivo oposto. Desse modo, se um episódio maníaco
planos especí cos de cometer suicídio. se instalar sobre um temperamento depressivo, te-
Já o estado misto depressivo, oU seja, o epi- remos um quadro misto psicótico com feições
sódio depressivo com sintomas hipomaniacOS, incongruentes com o humor, ou seja, euforia
temsido menos estUdado. Athanasios Koukopou- (aceleração do pensamento, grandiosidade e
los (1999) considera que uma depressão com hipersexualidade) acompanhada de imitação,
agitação motora (hiperatividade não dirigida a raiva, agitação psicomotora, insônia grave, crises
Um objetivo) seria su ciente para diagnosticar de choroe ideação suicida,associadosa delíios

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220Psicologia Analítica

de perseguição, alucinações auditivas e perple- que busca possibilidades de interpretação - e


xidade. No caso de um episódio depressivo maior não conclusões" (Barnaby e D'Acierno, 1990).
iomper sobre um temperamento ciclotímico, Jung estava ciente de que todo fenômeno
estaremos diante de um quadro grave e de difícil psíquico possui um "caráter iracional que prova
manejo: depressão com características atípicas ser refratário a qualquer tipo de sistematização
(hiperfagia, hipersonia, fadiga) associada à hipo- losófca" (Jung, 1989). Dada sua irracionalidade,
mania (aceleração do pensamento,jocosidade, o fenômeno psíquico não deve. portanto, ser
hipersexUalidade impulsiva e outras manifestações compreendido em sua totalidade apenas pelo
de desinibição do comportamento). Finalmente. ntelecto, pois, diz Jung, a dimensāo psíquica
quando um episódio depressivo maior se instala consiste não apenas de signi cado, mas tam-
sobre um temperamento hipertimico, vê-se um þém de valor - e isto depende da intensidade
quadro de agitação (disforia,irascibilidade,acele- da tonalidade afetiva que o acompanha" (Jung.
ração de pensamento, insônia e excitação sexua) 1990). O objetivo do método de ampli cação é.
associado a inibição motorae extrema fadiga. por conseguinte, iluminar o núcleo psíquico cen-
Outra vertente interessante de pesquisasque tral (arquétipo dotado de uma carga afetiva).
derivam dessa ampliaçāo do conceito de es- relacionando-o a uma trama de signi cações
pectro bipolar diz respeito à discussão em relação interligadas que se manifestam por meio de uma
ao polo criativo de alguns traços de tempera- grande variedade de símbolos. É o que preten-
mento de caráter adaptativo. Sob essa óptica, deremos quando relacionarmos a experiência
Akiskal e Akiskal (2005) sugerem que determina- maníaco-depressiva com a mitologia.
das"classes" de temperamento desempenhariam Jung aborda o tema da psicose maníaco-
papéis-chave nos processos de comunicação e -depressiva em_ dois artigos. No primeiro,
sobrevivềncia. Por exemplo, em sua função publicado erm 1903,)"Sobre o Transtorno deHumor
criativa, o temperamento depressivo facilitaria Maníaco", ele relaciona a mania crônica com
a dedicação ao trabalhoea permanência em uma identi cação do ego com o complexo,
casa para cuidar da prole e da sobrevivência: embora ainda não houvesse desenvolvido este
o temperamento hipertímico estaria mais rela- conceito. Entretanto, já àquela época, Jung
cionado a comportamentos de exploração e intuía a noção de arquétipo: nos estados manía-
liderança; o ciclotímico seria mais envolvido em cos, diz ele, "o intelecto é levado a reboque
romances e na criatividade. Segundo essa pers- pelas emoções (...) e por um excesso de drives
pectiva, determinados indivíduosnasceriam com instintivose inclinações positivas (..) evidenciando
disposição mais oU menos criativa da distribui- o elemento afetivo primário" (Jung. 1983). Além
ção de alguns traços de temperamento afetivo desse ensaio, há também um pequeno texto
que, combinados, poderiam levara maior ou escrito à guisa de prefácio (Jung, 1989) para um
menor adaptação. relato autobiográ co de um paciente maníaco-
depressivo (Custance, 1952). A interpretação de
PSICOLOGIA DA COMPREENSÃO Jungé bastante semelhante à psicanalítica (como
abordarenmosa seguir) - baseada, obviamente,
Segundo Jaspers (1997), no campo da Psicologia em um constructo diferente: "durante a fuga de
da Compreensão, por meio da empatia, esta- ideias, unma vez renmovidas as restrições da cons-
belecem-se conexões compreensíveis, buscando ciência, oU seja, no estado maníaco desinibido.
penetrar dinamicamente na situação psiquica o inconsciente se desnuda, revelando algumas
a m de compreendê-la a partir de dentro, oU de suas estruturas tipicas e fundamentais. par-
seja, de que modo um evento psíquico é produ- ticularmente, o simbolismo dos opostos, o
zido por outro. Assim, atribuímos nexos de sentido arquétipo da anima e o encontro coma própria
oU signi cado a determinadas experiências. realidade da psique" (Jung. 1989). Portanto, a
O método queutilizaremosé método da am- explicação de Jung para o transtorno bipolar.
pli cação desenvolvido por Jung -o qual nada tanto no artigo de 1903 quanto nesse texto es
mais é que uma hermenêutica do símbolo (Grin- crito quase 50 anos depois, é bastante genérical
berg. 2006). Como o próprio nome diz, a técnica aludindo somente a uma possessão pelos com
Visa "ampliar o símbolo-texto adicionando a ele plexos ea um inconsciente que se revela.
uma riqueza de (...) correspondências e paralelos A psicanálise baseia-se nessa dinâmica de
pessoais, coletivos, históricos e culturais (...). (e] um inconsciente que se desnuda para tentar
envolveo desenvolvimento de uma exegese explicar a recorrência cíclica dos episódios
exível, pluralística, comparativa e interdisciplinar maníacos e depressivos. Otto Fenichel (1966)

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Transtorno Bipolar do Humor- a Perspectiva da Psicologia Analítica 221

traça um paralelo entre os episódios de mania tizaram de uma exacerbação de seus impulsos
e os festivais, como o carnaval, em que as pro- sexuaisem uma espécie de pródromo que ante-
bições do superego sãosUspensase as tendências cedia a iupção de um episódio maníaco e, por
hostis às instituições vigentes represadas são conseguinte, foram capazes de prevenir novas
extravasadas. "Na mania uma vez abandona- crises, aumentando naquela fase a dosagem de
das as inibições", diz o autor, '"todas as atividades litio (que pode ser monitorado por meio de dosa-
São intensi cadas e impulsos agressivos, sensuais gens plasmáticas regulares).
OUde ternura transbordariam para a consciência, Essa alternância entre os estados de in ação
já que, desimpedidos, buscariam toda possibili- de um ego grandioso (mania) ou que se sentel
dade de descarga, como se um dique hoUvesse aruinado (depressāo)demonstra empiricamen-
sido rompido" (Fenichel, 1966). te o mecanismo de compensação inconsciente
O modelo é o freudiano clássico: os sintomas descrito por Jung. Como a rma Vitale, na me-
maníacos seriam a resultante de um jogo de lancoliaé como se
forças entre ego, id e superego. O próprio Freud a atividade incessante da fase maníaca... (fosse]
(apud Fenichel, 1966) a rmou que, no estado revertida para dentro, manifestando-se como lu-
maníaco, aparentemente desapareceria a di- cidez exagerada na percepção dos aspectos
ferença entre o ego e o superego, levandoaum negativos da existência (...) Assim, a inatividade
aumento da autoestima (in ação) e a uma di- melancólica [exterior] associa-se a uma hiperati-
minuição do grau de consciência-embriaguez. vidade interior bloqueada em suas possibilidades
Conhecemos o célebre artigo "Luto e Me- de manifestação. Isso provoca umna estagnação
lancolia" (Freud, 1974), em que Freud diferenciou da libido (...) e, ao mesmo tempo, um aumento
a tristeza normal, associada à perda de um ente na tensão endopsíquica. (Vitale et al., 1979)
querido, da melancolia, um distúrbio do Self. À semelhança da psicanálise, Jung, assim
Neste caso, o paciente se identi ca com o ob- como váiosautores,também considera amania
jeto perdido e busca incorporá-lo dentro de seu uma vivência narcísica por excelência, em que
eu. Å pressão psicológica, segue-se uma cliva- não se estabelece nenhuma relação dialética
gem e os ataques e autorreproVações de um nem com o outro, nem consigo mesmo, por meio
Superego sádico, como se o próprio eu fosse o da re exão. Por conseguinte, estão ausentes as
objeto perdido. Dessa forma, poder-se-ia com- indicações claras de um processo de individua-
preender a extrema baixa autoestima presente Ção, cujo prerrequisito se baseia em um rela-
na melancolia, em uma situação na qual o pa- cionamento intenso com um outro. Aqui, diz Jung,
ciente se encontra inteiramente impotente, não há diálogo; apenas um "monólogo confes-
subjugado diante do superego e massacrado sional dirigido a um crculo anônimo de ouvintes"
com a sombra e a hostilidade do objeto perdido (Jung, 1989).
978-85-7241-915-4
dirigida contra seu próprio eu.
Segundo essa perspectiva, na mania o ego PERSPECTIVA EXISTENCIAL
celebra o triunfo da recuperação de sua onipo-
tência narcísica graças ao alívio repentino da Uma terceira abordagem que nos será bastante
pressão exercida pelo superego, emergindo en- útil na compreensão do fenômeno bipolar é a
tão no polo oposto de sua ambivalência-ou seja, perspectiva desenvolvida por Ludwig Binswanger
o extremado amor a si mesmo. Em seguida, ad- que, durante a década de 1920, aplicou à psi-
vêm a culpa e a depressão, após a liberação. quiatria a nova visāo de ser humano formulada
Sob essa óptica,o triunfo narcísico do maníaco pela loso a fenomenológico-existencial, consi-
é ilusório: a mania surge meramente como de- derando que, na compreensão do paciente, é
coência da descarga da energia que antes fundamental se entendero seu mundo e a es-
estava sendo empregadana luta depressiva. Não trutura que condiciona sUa existência. Para
éà toa que o paciente maníaco se queixa da Binswanger, o ser humano, em seu Ser, estrutura
eutimia e nega sua patologia. Kahn (1993) suge- seu próprio mundo em conformidade com cate-
re que a psicanálise pode ser e caz na diminuição gorias existenciais universais, matrizes formadoras
de recorências, assim como na melhora da adap- de signi cado que organizam a expeiência de
fação dos pacientes bipolares durante asintercrises acordo com a intencionalidade e o sentido. Essa
(conforme discutiremos a seguir). Em interessante ideia, com o devido cuidado. poderia ser apro-
trabalho, Loeb e Loeb (1987) descrevemo trata- ximada ao conceito de arquétipo de Jung
mento psicanalítico de sete pacientes bipolares (1974). que, em diversas passagens de sua obra,
em uso de lítio, durante o qual estes se conscien- de niu arquétipo como "princípio", "protótipo"

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222 PsicologiaAnalítica

inconsciente e ativo, "estrutura a priori" que pré- das coisas [e..] dos pensamentos" (Binswanger,
-forma e in uencia nossos pensamentos, senti- 1973). Tal concepção se aproxima da noção de
mentos e ações. defesa maníaca da escola kleiniana.
Binswanger (apud McCurdy, 1987) denomina Do ponto de vista criativo, essa alegria festiva
essas categorias existenciais universais ou matrizes constante que nãopode ser prejudicada represen-
formadoras de signi cado que organizam a ex- tora a '"a rmação natural e despreocupadamente
periência de transzendentale Kategorien. Para otimista com a existência" (Binswanger, 1973).
ele, a mais importante dessas categorias é, a
priori, o tempo como base da experiência, da DIONISO
intencionalidade, e sua função de temporaliza-
ção (estruturação temporal) que condiciona a Praticamente todos os autores revisados neste
historicidade da existência humana, caracteri- capítulo associam esse otimismo despreocupado
zando uma continuidade sempre projetada em com a existência, essa "alegria existencial festiva"
direção ao futuro. Desse modo, Ser é um pro- e a falta de limites do maníaco com Dioniso, por
cesso contínuo de autoatualização, à semelhança sUa associação com os ritos de fertilidade que
do processo de individuação descrito por Jung. originaram o carnaval. O analista junguiano Jole
Em seu artigo "Sobre a Forma Maníaca de Cappiello McCurdy (1987) considera que descrever
Vida", Binswanger (1973) descreve a perda do s aspectos de Dioniso – seus surgimentos e de-
o da estruturação temporal como o distúrbio saparecimentos, peregrinações, oposições e
fundamental na psicose maníaco-depressiva. No contradições - é fornecer uma descrição feno-
deprimido, esse o se enfraquece até a disso- menológica da psicose maníaco-depressiva.
lução; no maníaco, a temporalização se fragmenta De acordo com o professor Junito de Souza
em inúmeros pedaços, obrigando-oa viverum Brandão (1983). as mais antigas e importantes
presente isolado, desconexo, sem evolução, sem festas em homenagem ao deus são asAntestérias
a possibilidade de ordenar o tempo em uma ("festas das ores"), celebradas durante trêsdias,
continuidade biográ ca. Desse modo, o sentido no mês de Antestérion (oitavo mês do calendáio
da historicidade individual é perdido. Existiriam ateniense, corespondente a m de fevereiro e
apenas momentos isolados. O maníaco viveria, início de março). Ainda hoje, em Atenas, esses
assim, um eterno presente, desconectado de rituais costumam ser celebrados a cada ano por
sUa história passada ou de seu futuro, ao passo Ocasiāo da vindima, durante a festa do vinho
que o melancólico tornar-se-ia prisioneiro do novo, na qual os participantes cantame dançam
passado (Binswanger, 2006). freneticamente, embriagando-se até cair.
Não estando mais em contato como sentido O própio ritual de celebração a Dionisocon-
de uma biogra a interna, de identidade e con- tém os aspectos de vida (êxtase, hierogamia,
sistência, o ego se encontra sem direção oU fertilidade, panspermia) e de morte (sacri cio,
intencionalidade. Por essa razão, torna-se difícil sangue, desfalecimento). Deus das polaridades
tentar xar ou agrupar suasexperiências -o que e desorganizador da vida, Dioniso é, portanto,
confere à experiência maníaca suUa caracterís- "um símbolo aptoà natureza paradoxal dosofr-
tica de super cialidade, mutabilidade, simples mento domaníaco-depressivo" (McCurdy, 1987).
excitação e descarga imediata, como demons- fornecendo tanto alegria imensa, excitação.
trou a psicanálise. Por isso, o contato torna-se frenesi. paixão, música, dança, barulho - mania
praticamente impossível. Daísó serpossível, duran- - como sofrimento terível, mote edesmembra-
te a fase aguda, uma intervenção farmacológica mento - depressão.
com estabilizadores do humor (litio oU anticonvul- A experiência extática de umapossessãomais
sivantes) em monoterapia ou em associação a oumenos violenta (manía) encontrava-se sempre.
antipsicóticos atípicos, como concorda a maioria de certa forma, no centro do ritual dionisiíaco.
dos autores. Segundo Mircea Eliade (1978), as orgias (de órgia,
Como princípio de compreensão da desor- "in ação anímica incontrolável'") do culto frené-
dem noplano da existência maníaca,Binswanger tico e extático de Dioniso re etiam o elemento
(1973) aponta uma "alegria existencial festiva", mais original e, provavelmente, o mais arcaico do
um estilo de vida oscilante e brincante. Esseser- deus: um tipo particular de experiência religjiosa
no-mundo otimista e truão re etiria, segundo o oU ato de devoção. O verbo bakkheúein, que
lósofo, uma defesa diante das di culdades e deu origem a "bacantes", signi ca "agitar-se in-
seriedade, tanto dos objetos como dos proble- ternamente, ser tomado de delírio oU de um
mas, "um assustar-se com os contornos e limites transporte divino" (Hillman, 1984).

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TranstornoBipolar do Humor- a Perspectiva da Psicologia Analitica 223

O mistério era constituído pela participação ultrapassando o métron, a medida humana. Em


das mênades na epifania total do deus. Os ritos suas celebrações, conta-nos Junito Brandão
eram celebrados à noite, longe da cidade, nas (1983), bUScava-se essencialmente o conheci-
montanhas e orestas. A vítima era sacri cada mento divino (gnosis), a puri cação da vontade
por despedaçamento (spargamós) e, com o (kátharsis ) e a imortalidade (atanasía). Pelo pro-
consumo da carne crua (omophagia), realizava-se cesso de ékstasis ("sair de si mesmo"), a condição
acomunhão como deus. humana era superada, advindo a descoberta
A falta de consciência provocada pela em- de uma total libertação dos interditos e regula-
briaguez orgástica, diz McCurdy (1987), é mentos institucionais: eu saio de mim, deus entra
semelhante à negação absoluta do paciente em mim. Após a ultrapassagem do métron -a
maníaco, assim como a energia que se transfor- medida humana-, o homem comum transfor-
mou em violência. Tanto que, na prática clíinica mava-se em herói (anér). Porém, ao se identi car
é bastante comum os pacientes, principalmente com a divindade (enthusiasmós - de en "no
os bipolares tipo Il (depressões recorrentes + hipo- âmago"e théos "deus", ou seja, "ter deus dentro
mania), demorarem a receber um diagnóstico, de si", estar possuído), ele cometia uma violência
pois só procuram tratamento quando se encon- (hýbris) que provocava uma espécie de ciúme
tram em um quadro de depressão ou, o que divino (némesis). O preço era pago com a ce-
costuma ser bastante frequente (como aponta- gueira da razão (áte), que lançava o herói
mos), após piorarem com antidepressivos. embriagado de Dioniso nos braços de ferro da
Como vimos nas descrições dos estados mis- Moira, o destino cego. Dessa maneira, o herói
tos, vários autores reconheceram a presença passava para o "outro" lado para conhecer a
frequente de sintomas depressivos que surgem verdade. Assim, arebatado pelo deus e trans-
em meio ao torvelinho de vida crescente do portado para seu reino por meio do êxtase, o
maníaco. E aqui, diz Binswanger (1973), se colo- homem cotidiano sofria uma metamorfose.
ca o problema da morte e do suicídio diante do Eis, segundo o analista junguiano James Hill-
desmoronamento da alegria existencial festiva man (1984), a principal característica de Dioniso:
- a estrutura essencial da forma maníaca de "umdeuS da transformação, da transposição do
vida. Para o lósofo, existiria, portanto, uma coe- sensível através da própria sensibilidade". Um
rência essencial entre a forma antitética de vida novo modo de encarar a vida: o homem passa-
maníacae depressiva, que re etiria essa con- ria a ser tão divino quanto os deuses.
tradição imanente da vida e da morte. QUanto Um útimo aspecto que permite uma asocia-
mais alto, rápida e selvagemente ascende a ção entre Dioniso e a psicose maníaco-depressiva
vida, mais próxima se encontra a morte. "O que diz respeito aos ciclos de seus surgimentos e desa-
denominamos delírio maníaco-depressivo nada parecimentos. Como vimos, Dioniso é um deus
mais é que o aumento e con guração patológi- ligado à agicultura, aosritmos da natureza. Como
cas deste princípio geral da vida e da morte, de diz Eliade (1978), por suas ocultações periódicas,
ele se situa entre os deuses da vegetação. É, por-
imbricação geral da morte na vida e da vida na
morte" (Binswanger, 1973). tanto, um deus que surge e desaparece, vai e vem.
Seu desaparecimernto e retirada em silêncio é tão
Encarada simbolicamente, a morte, nesse
importante quanto sua epifania (McCurdy, 1987).
contexto, também poderia ser interpretada
como transformação, metamorfose. A própria
Se, por um lado, ele traz vida, energia ciativae
"loucura" dionisíaca era valorizada como expe-
força limitada-mania - aopartir,deixa umsilêncio
riência religiosa. pois tinha o sentido de cura pela
de profundo desespero - melancolia. Assim, a
energia da mania se transforma, como vimos, em
comunhão com as forças vitais e cósmicas pro-
vazio desesperado.
movidas pela possessão divina (Binswanger, 978-85-7241-915-4
1973) - desde que o ego suporte tamanha
pressão e consiga voltar e integrar essas expe- DISFUNÇÃO DO EIXO EGO-SELF:
riências em seu dia a dia. FERIDA PRIMÁRIA
Segundo Eliade (1978), Baco se transformou
no "único deus grego gue, se revelando sob Assim como Jung. Freud e Binswanger, outros
diferentes aspectos, deslumbrava e atraía tanto autores consideram que a experiência maníaco-
0s camponeses quanto as elites intelectuais, -depressivaénarcisica por excelência. O analista
poli cos e contemplativos, ascetas e os que se junguiano Wolfgang Kleespies (1995) cita o fato
entregam às orgias". Seus devotos sempre que- encontrado emfamílias bipolares em queojulga-
bravam a norma, indo além de si mesmos e mento do outro funciona por meio de categorias

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224 PsicologiaAnalítica

mutuamente exclusivas, do tipo ou/ou. Conse- entre o transtorno bipolar, os temperamentos


quentemente, a autoimagem do paciente se afetivos ea criatividade artística. Muitosartistase
mostra ou totalmente dani cada e ruim, devido escritores consideraram seu sofrimento e a inten-
aos autoataques e imposições de um superego Sa experiência emocional, bem como a própia
sádico e primitivo, como no caso da melancolia, enfermidade, como parte integral,e mais,como
oU Completamente grandiosa, idealizada e aben- fonte de sua inspiração. Além disso, não é inco-
çoada, como na mania. Nessa mesma linha mum escutarmos no consultório, principalmente
'MCCurdy (1987) propõe a hipótese de que a entre pessoas muito criativase artistas, o temor
psicose maníaco-depressiva seria decorente de de que o tratamento psiquiátrico os torne medio-
uma disfunção do eixo ego-Self em consequência cres, ajustados ou apáticos. Como disse Virginia
de uma falha na relação primal. Para ele, tanto Woolf, "como experiência, posso garantir que a
na manid como na melancolia, a função execu- loucura é terrível e não deve ser aspirada; e em
tora do ego encontrar-se-ia desconectada das SUa lava ainda encontro a maior parte dascoisas
funções organizadoras do arquétipo central que, sobre as quais escrevo" (apud Jamison, 1994).
por sua vez, estaria desorientado. Essestemores, atualmente, derivam tanto de
Como consequência dessa ruptura, diz Mc- uma incompreensão acerca dos mecanismos
Curdy (1987): de ação dos psicofármacose seus efeitos cola-
O Self não pode mais se atualizar através do ego terais quanto de um preconceito romântico em
e ca incapaz de satisfazersua função diretiva ou relação à doença mental (muitas vezes, por
produzir símbolos oU uma síntese através da cons- parte até dos próprios médicos), que não consi-
ciência humana. O ego permanece suspenso dera a gravidade e as consequências de um
entre dois opostos de totalidade, entre seu lado transtorno bipolar não tratado. Hoje se conhece
escuro e luminoso, oscilando entre os dois pólos o fenômeno do kindling - mecanismo deautos-
da depressão e elação [da inferioridade e da | sensibilização que leva a doença, se não
grandiosidade]. tratada, a uma piora progressiva ao longo do
Na mania, portanto, a in ação e onipotência tempo, com aumento da frequência dosepisó-
resultariam de uma hipercompensação dessas dios, maior gravidade destes e menor intervalo
vivências de um narcisismo primário ferido. Para livre de sintomas. Foi o que aconteceu com d-
ilustrar esse fato, Kleespies (1995) lança mão da versosartistas, como Byron, Coleidge, van Gogh,
metáfora do deus Hefesto, expulso do Olimpo Edgar Allan Poe, Schumann e Virginia Woolf (Ja-
por sua mãe Hera por haver nascido defeituoso. mison, 1994).
Hefesto passa a viver em um vulcão que, psico- O Uso do lítio está consagrado há mais de
logicamente, representaria a energia psíquica meio século como tratamento farmacológico
informe e descontrolada, ligada à fúria oriunda de primeira linha para a maioria dos pacientes
de um narcisismo ferido pela rejeiçāo ao nascer. bipolares, tanto por seus efeitos antimaníacos e
Assim como a ideia de que, na mania, emer- antidepressivos quanto por sUas propriedades na
giria o material inconsciente (arquetípico) antes pro laxia de novos episódios ea diminuiçãodas
bloqueado pelas restrições do superego, a expli- taxas de suicídio (Baldessarini et al. 2007).Como
cação de uma disfunção no eixo ego-Self ou de afrmou van Gogh, "se eu pudesse ter trabalha-
um narcisismo primário ferido também me pare- do sem esta abominável doença- que coisas
cem umn tanto abrangentes e pouco especí cas eu teria feito (...) seguindoo que o agreste me
e, igualmente, poderiam se aplicar a diversas contou" (apud Jamison, 1994).
outras patologias psiquiátricas. De qualquer for- Apresença de um fator biológico notranstorno
ma, essas ampli cações podem nos servir como bipolar é incontestável. As explicações e interpre-
pontos de re exão e ser bastante úteis no traba- tações, como vimos, é que variam de acordo com
Iho analítico com os pacientes bipolares, que, as diferentes abordagens psicodinâmicas. Como
como enfatizado, precisam estar medicados para a rmam Frederick Goodwin (2007) e ThomasWehr
se bene ciar de um trabalho psicoterapêutico. (1987), o caráter episódico e a própria ciclicidade
de nema doença que se constitui em um tipo
PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS anormal de itmo do relógio biológico circadiano
(diánio) ou infradiano (quer dizer, que se perpetua
Os dois lados complementares de Dioniso - cria- por semanas, meses ou anos).
ção e destruição - levantamndifíceis questões Esse fato obriga-nos a considerar que o es-
éticas na clinica, sobretudo quando se está dian- quema terapêutico ideal no transtorno bipolar
te de evidências que demonstram a sobreposição consiste na associação entre psicofármacos e

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TranstornoBipolar do Humor-a Perspectiva da Psicologia Analitica 225

psicoterapias. Estas englobam desde os proces- interligadas que levariamà recorrência dos epi-
SOs analíticos profundos até as abordagens sódios (Franket al., 1997:2000): eventos estressores,
psicoeducativas - cujos objetivos visam tanto à quebra dos ritmos sociais e não adesão ao tra-
reabilitação de di culdades no relacionamento tamento medicamentoso.
intra e interpessoal, como o manejo das conse- Segundo Miklowitz (1996), diferentes fases da
quências psicossociais da doença, quanto a doença requerem estratégias psicoterápicas dis-
facilitaçāo do aumento da adesão ao tratamen- tintas que, por sua vez, deverão acompanhar o
to medicamentoso. Hoje se sabe que os índices estratagema farmacológico. Um planejamento
de não adesão ao tratamnento medicamentoso terapêutico deve. por conseguinte, considerar a
no transtorno bipolar costumam variar entre 32 condição clínica atual do paciente, quer dizer,
e45% (Rothbaume Astin, 2000), o que aumenta uma avaliação de suas capacidades emocionais
a vulnerabilidade a recorrências. Esses dados e cognitivas para receber determinada interven-
reforçam anecessidade de seeduUcaro pacien- ção, de acordo coma fase da doença. Durante
te em relação ao transtorno e a importância da afase aguda, os focos principais serão a construçāo
medicação em longo prazo. de uma aliança terapêutica, o reasseguramento
Além da falta de conhecimento sobrea medi- eo apoio emocional. Na fase de estabilização, é
cação e osefeitos colaterais, bem como anegação importante contar com a participaçāo ativa do
da doença, Frank et al. (1997) discutem alguns paciente, tanto em relação às dúvidas e questões
fatores psicológicos que podem propiciar não relativas à adaptação ao esquema medicamen-
adesão, como a sombra do estigma trazido pelo toso quanto ao planejamento de tarefas. Por m,
transtorno, o luto pela perda de um sentimento durante a fase de manutenção, a psicoterapia
saudável de identidade, o medo de perder a au- pode se aprofundar e voltar-se paraaexploração
tonomia e a consequente necessidade de doinsight,resolução de problemas ou modi cação
autoa rnmação ea agressão (inconsciente) à fa- dos estilos de comunicação intrafamiliar, depen-
milia.Portanto, uma boa comunicação, dentro de dendo da estratégia proposta.
um enfoque mais abrangente que inclua as di- Com base nesse modelo cronobiológico do
mensões psicológica e social, permitirá queo transtorno bipolar que postula a existência de uma
processo terapêutico promova opapel do próprio vulnerablidade que levaia a anormalidades no
paciente como colaborador ativo no tratamento, ritmo circadiano que, por sUa vez, contribuiriam
explorando as fantasias ligadas à medicação, para o desencadeamento dos episódios, Frank et
facilitando o reforço de seus sentimentos de au- al. (2000) desenvolveram a terapia interpessoal e
tocontrole. Como vimos, Kleespies (1995) traz a do ritmo social(TIPRS).uma psicoterapia individual
transformação sofrida por Hefesto, que se tornou que combina algumas técnicas comportamen-
um ferreiro, um mestre da fornalha e, por conse- tais, como automonitoramento e regularização
guinte, das energias vulcânicas, como uma das rotinas diáias, estabelecimento de objetivos
possivelproposta terapêutica. O paciente bipolar realísticos e planejamento gradual de tarefas.
deve poder desenvolver uma capacidade de Note-se a importância do que vimos em relação
Controlaros próprios inpulsos que, durante a crise. à alteração da função estruturante da tempo-
arrastam o ego no torvelinho da exaltação. ralização como distúrbio básico no transtorno
Vale lembrar que, muitas vezes, o terapeuta bipolar, conforme proposto por Binswanger (1973)
irá se deparar com questões nas esferas social, e também por Goodwin e Jamison (2007), e sua
familiar, conjugal, nanceira e até mesmo judicial, ênfase nesse modelo terapêutico.
em razão dos comportamentos abuSİvOSe/ouU de A hipótese dos autores consiste no fato de
risco presentes na doença. Tais situações obriga- que, ao regular os fatores sociais que modulam
rão o trabalho multidisciplinar a m de que o os ritmos circadianos, aTIPRS possivelmente "al-
paciente possa ser ajudado não apenas a se teraria a circuitaria neuronal envolvida na
adaptara sua nova condição, mas a manejar patogênese da sintomatologia bipolar" (Frank
problemas concretos decorrentes do transtorno. et al., 2000). Desse modo, oS relacionamentos
buscando objetivos de vida realísticos e tangíveis. interpessoais, assim como as demandas sociais
Esses aspectos têm sido bastante estudados e as tarefas do dia a dia, funcionariam como
por autores como Goodwin e Jamison (2007). fatores de proteção (Zeitgebers) para a ma-
que propuseram um "modelo de instabilidade" nutenção do relógio biológico (Ehlers et al.
no transtorno bipolar, postulando que determi- 1988). A perda de um desses reguladores pode-
nados fatores psicossociais, em interação com a ria levar a rupturas nos padrões de ritmo social
vulnerabilidade genética, produziriam três vias e, indiretamente, disparariao gatilho da crise.

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226 PsicologiaAnalítica

Por conseguinte, ajudar o paciente medicado clinical and temperamental predictors in 559 patients.
a modular sua rotina diáia, principalmente no Arch. Gen. Psych., v. 52, n. 2, p. 114-231, 1995.
que dizrespeito aos horários de sono e refeições, AKISKAL, H. S.: TOHEN, M. (eds.). Bipolar Psychopharmaco-
pode funcionar para prevenir novas crises, em therapy: Caing for the Patient. WestSussex: John Wiley
especial os episódios maníacos. & Sons Ltd., 2006.
Para isso se utiliza o Social Rhythm Metric AKISKAL, K. K.; AKISKAL, H. S. The theoretical underpinnings of
(SRM) (Frank et al., 1997: 2000), um inventáio affective temperamernts: implications for evolutionary
autoaplicável com 17 itens no qual o paciente foundations of bipolar disorder and human nature. J.
registra suas atividades diárias, se estas foram Affect Disord. v. 85, n. 1-2, p. 231-239, Mar. 2005.
realizadas individualmente ou em companhia AMERICANPSYCHIATRICASSOCIATION. Manual Diagnóstico
de outras pessoas, a qualidade do contato e o eEstatíisticode Transtornos Mentais (DSM-V). Tradução
humor. A partir do SRM pode-se estabelecer um Dayse Batista. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
mapeamento das conexões entre possiveis pa- ANGST, J.:MARNEROS, A. Bipolarity from ancient to moden
drões de sono, ritmo social e utuações do times: conception, birth and rebirth. J. Affect Disord.
humor. Determinados padrões de atividade e v. 67. n. 1-3, p. 3-19, Dec. 2001.
interação social poderão se tornar tópicos de BALAZS,J.:BENAZZI, F; RIHMER, Z. et al. The close link between
discussão durante o processo terapêutico, SUicide attempts and mixed (bipolar) depression: impli-
visandoaum maior controle sobre a doença por cations for suicide prevention. J. Affect Disord. Ap.
parte do paciente. v.91, n. 2-3. p. 133-138, 2006.
Esse modelo tem sido testado em alguns BALDESSARINI, R. J.: TONDO, L.: DAVIS, P. Decreased risk of
trabalhos cientí cos. Em estudo randomizado e suicides and attempts during long-term lithium treat-
controlado, Frank et al. (1999) veri caram signi- ment: a meta-analytic review. Bipolar Disord., v. 8, n. 5
cativamelhora doponto devistadaestabilização Pt 2. p. 625-639, Oct. 2006. Erratum in: Bipolar Disord.
das rotinas diárias em 18 pacientes submetidos a v.9, n. 3. p. 314, May 2007.
TIPRS por um período de cerca de 52 semanas BARNABY, K: D'ACIERN0, P. (ed.). C. G. Jung and the Humo-
quando comparados a 20 pacientes submetidos nities - Toward a Hermeneutics of Culture. London:
a um tratamento clínico padronizado (Clinical Routledge. 1990.
Status and Symptom Review Treatment), suge-
BINSWANGER,L. Melanconia e Mania -studi fenomenologici
rindo que a TIPRS pode trazer algum bene cio
-A Cura di Eugenio Borgna. Torino: Universale Bollati
na prevenção de recaídas e recoências. Boinghieri. 2006.
Passada a fase de estabilização da crise
BINSWANGER,L. Sobre la forma maniaca de vida. In: Articu-
(episódio maníaco oU depressivo), os objetivos de
losy ConferenciasEscogidas. Madrid: EditorialGredos,
uma psicoterapia profunda seriam, como vimos,
1973. p. 413-422.
a reparação e estabilização do eixo ego-Self,
como atestam Kleespies(1995) e McCurdy (1987). BRANDĀO, J. S. Apostila do Curso de Mitologia Grega. Pon-

Uma abordagem complementar que com- tifíicia Universidade Católica, São Paulo, agosto de
1983. p. 10-16.
bine estabilizadores do humor a longo prazo,
Suporte familiar e social que permita intervenção CLASSIFICAÇÃOINTERNACIONAL DE DOENÇAS - DÉCIMA
apropriada durante as crises, modulação dos REVISĀO(CID-10). Clasi cação de TranstornoSMentais
ritmos sociais diários ou um trabalho psicoedu- e de Comportamento - Descrições clínicas ediretrizes
cativo, associados a um trabalho analítico que diagnósticas. Organização Mundial de Saúde. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1993.
exigirá um confronto do ego com imagens ar-
quetipicas de grandiosidadee deinferioridade. CUSTANCE, J. Wisdom, Madness and Foly: The Philosophy of
pode funcionar como um esquema terapêutico a Lunatic. New Yotk: Pellegini & Cudahy, 1952.
su cientemente adequado para o tratamento DELPORTO,J.A. Evoluçāo do conceito e controvérsias atuais
das variadas manifestações do chamado es- sobre o transtorno bipolar do humor. Rev. Bras.Psiquia-
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CAPÍTULO26

Dependência Química a Partir


da Psicologia Analítica

DARTIU XAVIER DA SILVEIRA


VICTOR ROBERTO PALOMO

INTRODUÇÃO apenas uma manifestação comportamentalines-


pecí ca, um sintoma de desarranjo psíquico,
O consumo de substâncias psicoativas constitui frequentemente relacionado a outrostranstornos
um fenômeno frequente: considerável contin- como depressão, ansiedade, transtornosneuropsi-
gente de pessoas experimenta tais produtos. cológicos ede personalidade. Assim,a dependência
Uma parcela delas passa a fazer uso dessas química não seria considerada uma patologia as-
substâncias de forma ocasional, na maior parte sociada aoutro transtorno psíquico (comorbidade),
das vezes sem consequências danosas. Uma mas um possível sintoma assessório dessa outra
pequena proporção dessesusuários ocasionais condição mórbida.
parte para padrões de uso de risco, alguns deles O dependente químico pode ser descrito
vindo a se tornar dependentes. como um indivíduo que se encontra em uma
O que faz com que algunsindivíducosexperi- situação vivencial insuportável que não conse-
mentem substâncias psicoativas oU as utilizem gue resolver ou evitar, restando-Ihe como única
apenas ocasionalmente e outros se tornem usUĆ- alternativa alterar apercepção dessarealidade
rios de risco ou mesmo dependentes de drogas? intolerável por meio da droga. Essa forma de
Existe ampla variabilidade de padrões de compreender o dependente se coaduna com
consumo de substâncias, envolvendo distintos a concepção de dependência enquanto sinto-
graus de risco e correspondendo a diversos graus ma de um mal-estar psicológico mais amplo.
de dano potencial. O padrão de consumo de- Mesmo na ausência de uma condição psiqui-
corre da interação de diferentes fatores, entre ca diagnosticável, deparamo-nos comsituações
os quais se destacam o tipo de droga utilizada, existenciais em que a droga pode, igualmente,
as características biológicas e psicológicas do ser utilizada como alívio do sofrimento. Seria o
USUárioeo contexto enm que se dá esse uso. caso dos contextos ambientais patogênicos,
A perda do controle referente ao consumo como famílias disfuncionais e situUações sociais
da substância é um dos elementos essenciais na desfavoráveis, propiciando oUSO indevido desubs-
diferenciação entre uso recreacional e depen- tâncias psicoativas. Os próprios grupos de
dência. Essa incapacidade de gerenciar a autoajuda identi cam a existência de membros
relação com um produto indicaria a instalação da família de dependentes químicos que. porsuas
de uma dependência. atitudes, reforçamo comportamento de depen-
Entretanto, o própio conceito de dependência dência do dependente de álcool e de outras
abrange uma gama tão ampla de comportamen- drogas: os assim chamados codependentes.
tos que muitos especialistas questionam se a Saindo do campo da patologia, temos de re-
dependência química pode ser considerada uma conhecer a existência de diversos padrões de
entidade nosológica distinta e autônoma. Dessa consumno de substâncias que não podem ser
forma, a dependência poderia ser considerada considerados prejudiciais e que não necessaria-

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Dependência Química a Partir da Psicologia Analitica 22

mente levam à dependência. Os usUários tanto servirão no futuro. Somos. portanto, seres humanos
de álcool quanto de maconha são, em sua falíveis e criamos modelos provisórios que devem
grandemaioria, usUários ocasionais, gerenciando ser constantemente questionados e reformulados:
Oconsumo desses produtos sen consequências caso contrário, estaremos defendendo apenas
danosase sem maiores riscos para sua saúde. O uma crença pessoal. Além disso, não podemos
USOContextualizado de uma substância psicoativa esquecer que cada ser humano é único em sua
con gurauma situação relativamente protegida, busca e em sua trajetória de vida e que seu en-
oferecendo, potencialmente, poucos iscos. contro com a droga também con gura uma
Seriam exemplos disso o USo de álcool em con- situação singular que vai adquirir um signi cado
textode celebração, amplamente difundido no especí co para sua existência. Antes de mais
Ocidente:; o uso de maconha entre grupos de nada, diante do uso de drogas, ocasional ou não,
jovens perfeitamente adaptados; e o USo de cabe investigarjunto àquele usUário qual o signi-
alucinógernos em contexto de ritual religioso cado maior daquela relação que se estabelęceu
(SantoDaime e União do Vegetal, entre outros). entre oindivíduo eo produto, em determinado
Ao longo da História, percebemos nas diver- contexto sociocultural. 978-85-724 1-915-4
sas sociedades e culturas uma tendência à
alternância entre movimentos de caráter mais PSICOLOGIA ANALÍTICA
repressivocom outros de caráter mais tolerante.
Essastendências tendem a car polarizadas em Apredisposiçãoinerente ao indivíduo de procurar
situaçõesde extrema intolerância ou, alternati- estados alterados de consciência aparece em
vamente, de injusti cada liberalidade com diversos mitos, sejam eles os antigos oU OS mais
relação às drogas. Um aspecto que complica próximosda contemporaneidade. O contato com
ainda mais essa questão é que, muitas vezes, os regiões desconhecidas da psique desperta uma
própriospro ssionais de ajuda que trabalham fascinaçãoinquestionável pelo aspecto numinoso
com dependentes também perdem de vista o da experiência. A droga atuaria como facilitado-
cabedal de conhecimento cientí co disponível ra dessa vivência anímica, como mensageira e
epassama agir de acordo com essas tendências, condutora para esse mundo desconhecido, para
o que resulta, por exemplo, em propostas de tudo aquilo que transcende a consciência.
intervenção terapêutica extremamente repressi- Jung descreve essa descida ao inconsciente
vasou em modelos preventivos excessivamente de forma poética quando fala da imersão na água
tolerantes com relação aos possiveis riscos do e datravessianoturna do mar como uma espécie
USo de drogas. Assim sendo, a intervenção re- de descensus ad ínferos (descida aos infernos).
pressivanão é capaz de tratar o dependente e Seriauma descida ao Hades, uma viagem ao país
a prevenção liberalizante não é su ciente para dosespíitos, portanto a um outro mundo que ca
evitar o uSO de indevido de drogas. Ambas as além deste, ou seja, da consciência, sendo assim
situações são ine cazes. uma imersão no inconsciente (Jung, 1971). Diversos
O grande limite com que nos deparamos é relatos míticos, em diferentes culturas, legaram às
discriminar entre tendências ideológicas e co- gerações subsequentes imagens análogas de ri-
nhecimento cienti camente embasado. Cabe tuais de entrada no reino das profundezas como
acada um de nós avaliar, com a maior isenção ritoiniciático, de confronto como desconhecido.
possivel,a serviço de quê assumimos determina- Nessas, o ego rende-se a uma força maior
das posturas. O que nos leva a ser liberais ou insconsciente, signi cando sua morte simbólica,
radicaiscom relaçāo ao uso de drogas? O quan- em que se morre para um tempo para propiciar
Tonossa formação, nossa história de vida, nossas o renascimento para outro dinamismo psíquico,
experiênciaspassadas estão in uenciando nossas sendo a consciência transformada.
atifudescom relação ao usUáriooU dependente Omito é paraser vivenciadoe posteriormen-
dedrogas? Que recursos podemos disponibilizar te formulado. Vive-se um mito por meio de um
para agir com discrenimento e isenção diante ritual, não compreendido como uma comemo-
de um problema dessa esfera? ração ou festa, mas como vivência subjetiva,
Sejaqual for a saída que cada um conseguir que possibilita abolir o tempo profano (linear),
encontrar,não se deve perder alguns fatores de recuperando o tempo sagrado (eterno). Essa li-
VIsta. O conhecimento cientí co é mutáel e bertação do temporal colocaria o homem em
Tansitório.Em medicing e em psicologia, as ver- contato com o novo, daí os diversos rituais iniciá-
dades de hoje serão relativizadas amanhā. Os ticos presentes em diversas culturas serem
paradigmas atuais não necessariamente nos utilizados para a estruturaçāo de novos padrões

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230 PsicologiaAnalitica

de consciência. Essesrituais são sempre descritos ca de funcionamento da consciência para uma


como descida a cavernas, labirintos, profunde- exogâmica, pelo sentimento de pertinência a
zas, regressus ad uterum, catábases, em que um grupos externos ao grupo familiar. Muitas vezes,
personagem heroico empreende uma viagem o contato com a droga está presente nesse mo-
para realizar tarefas, transformando-se durante mento, facilitando e catalizando essa tentativa
a empreitada e modi cando a realidade que de ampliação do campo vivencial.
deixara quando retorna ao lugar de origem.É Evidentemente, podemos considerar que
importante enfatizar que, etimologicamente, a outras vivências sāo facilitadoras para o conhe-
palavra herói signi ca guardiāo, defensor,.aque- cimento de até então obscuras regiões da alma:
le que nasceu para servir. a tristeza, o cansaço, a prática de exercícios ri-
Podemos observar que, em todo relato mítico, gorosos, a meditação, a literatura, o cinema, a
o herói tem nascimento conturbado, sendo lho alegria, a vergonha... Poderíamos propor que
de um mortal e um imortal. Afastado do núcleo todas essas funções contribuem, criativa ou de-
familiar, cumpre tarefas nobres e grandiosas às fensivamente, para a estruturação egoica, oU
vezes consideradas impossíveis, como matar seja, toda experiência humana contribui parao
monstruosidades, conquistar teritórios, participar desenvolvimento do conhecimento de si mesmo.
de lutas, ser acometido porsofrimentos.Cumprida No entanto, qual seria a especi cidade da
essa missāo iniciática, retorna à sUa tribo de ori- droga?
gem para destronar a gura masculina de poder, Para Luigi Zoja (1992), a lacuna está justamen-
anunciando um novo tempo para o seu grup0. te no fato de praticamente inexistirem, na
E, por ter como atributos uma honorabilidade contemporaneidade, rituais de passagem. O
pessoal (timé) e uma excelência, uma superiori- desaparecimento dos ritos de iniciação marca
dade (areté), sua morte é sempre trágica e uma das grandes diferenças entre o mundo ar-
abrupta. Seu descomedimento, a transgressão caico e o mundo moderno, acrescentando que
dos limites (hybris), necessários ao bom cumpri- "o voltar-se para as drogas pode ser visto como
mento de seu destino, são também responsáveis uma tentativa de iniciação, falha já de início por
por sua morte, como se esta constituÍssesua última falta de consciência". O autor pontua que, nas
prova iniciática, transformando-o em um interme- sociedades primitivas, a iniciação conferia ao
diário entre o homem e os deuses, entre o ego e adolescente uma identidade adulta e quenosso
o inconsciente (Brandão, 1989). adulto contemporâneo é "perdido, passivo,con-
A problemática da dependência química sumista". Tambémn, o que é mais dramático, ele
remetea uma analogia com esse herói que, na não viveria no seu desenvolvimento uma morte
|tentativa de impulsionar o ego no sentido da iniciática, a qual consistiria em uma renúncia do
I transformação, aprisiona-se quando do contato estabelecido, permeada pela angústia inerente
com o numinoso. A experiência do numinoso se a esse processo, em direção a um renascimento
daria por intermédio da religiosidade, entendida iniciático, qual seja partilhar com outros a ex
como religare, uma condição universal que pro- periência do novo.O abusoea dependência na
duz modi cação no sujeito quando do contato nossa sociedade se dariam porgue o indivíduo
com aquilo que é desconhecido e, por conse- salta a experiência de "morte iniciática", que se
guinte, fascinante. A experiência religiosa, de constituiria em um estado de depressão,renúncias,
contato com "potências" que transcendem as etc. Haveria a inexistência de uma interioridade
fronteiras do ego, pode se dar de diversasmanei- continente para os rituais exteriores, a serviço da
ras. Dizendo de outra maneira, os rituais de renovação.
catábase, de descida do espaço luminoso da Estamos, portanto, falando de um heróiin ado.
consciência em direção à penumbra do incons- identi cado com o poder transformador, queglo-
ciente, acontecem de maneira repetitiva em ri ca a façanha, esquecendo-se do sacri cio
diversas etapas da vida, como movimento arque- necessário para obtêla. É como se, ao enfrentar
típico de estruturação e ampliação da própria monstruosidades e conquistar teritóios, achasse
consciência. O uso de substânciasquimicascons- |que pudessedispensarespada, capacete,sandó-
titui um importante facilitador de tais vivências, |lias aladas, barbantes e os ensinamentos dd
podendo ser compreendido como uma forma natureza. Falamos de um ego que se identi ca
contemporânea de ritualizá-as. De fato, há de se com o arquétipo do herói, negando as etapas
considerar que muitos adolescentes experimen- necessárias e difíceis para a transformação na
tam as primeiras formas de socialização, de busca de si mesmo, tema central na psicologia de
abandono necessário de uma forma endogâmi- Jung referindo-se ao processo de individuação.

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Dependência Químicaa Partir da Psicologia Analitica 231

Jung entende a individuação como o cami- A droga atuaria então como símbolo, tendo
nho para a realização do Self, um sistema cuia diferentesexpressõesna vida psíquica, dependen-
funçãoprincipal é estruturar a consciência, cons- do basicamente do grau de diferenciação da
tituindoumsistema coordenador central que não consciência e do arquétipo subjacente aele. Antes
fazparte do consciente, mas o inclui e afeta: de compreender essa especi cidade, contudo,
visto queo ego é apenas o centro do meu cam-
faz-se necessáio enfatizar que diferentes padrões
po de consciência, ele não é idêntico à arquetipicos organizam a consciência em diferen-
totalidade da minha psique, é apenas um com- tes fases da vida. Jung não escreveu sobre o
plexo entre outros complexos. Por isso eu desenvolvimento do ego na primeira metade da
discrimino entre o ego e o Self, já que o ego é vida, cabendo a Erich Neumann e. posteriormente.
apenassujeito da minha consciência, enquanto a Carlos Byington postularem que os arquétipos
oSelfé o sujeito da minha totalidade. (Jung, 1991) parentaisestruturam a consciência desde o nasci-
Self, em psicologia analí ca, não é sinônimo mento, por meiodessa ação coordenadora do Self
(Byington, 1983).
de ego, mas o inclui; abrange também, além do
materialpessoal reprimido, o potencial comum a
Observa-seinicialmente um estágio formado
toda a humanidade, o qual foi denominado in-
pela psique da mãe e da criança, como num
consciente coletivo. Este seria uma con guração
todo indiferenciado. Neumann formulou o
energética ativada pelo desenvolvimento bioló- importante conceito de eixo ego-Self, por onde
gico, pela dimensāo interpessoal, pela própria
mecanismos arquetipicos coordenam a expres-
con itivapessoal, constelando seu conteúdo na
São simbólica. Byington amplia essa noção ao
sugerir a existência de quatro dimensões simbóli-
tentativa de organizar a consciência, a qual seria
casestruturantesda consciência, motivadas pela
regidapor padrões arquetipicos que se expressam
interaçõo eu-eu, eu-corpo, eu-outro (social) e
tanto biológica quanto psicologicamente. Os
eu-meio (natureza). De modo gradativo, símbolos
sonhos,os mitos (sonhos de uma época) e as vi-
se apresentam à consciência, regidos primordial-
vências psicóticas seriam explicitações desse
mente pelo arquétipo da Grande Mãe, o que foi
constructo. Seriam sistemas de prontidão que
denominado estágio matriarcal do desenvolvi-
coordenariama atividade psíquica, possibilidades
mento. Carinho, proteção ecuidado sãosímnbolos
herdadas para representar imagens similares,
desse dinamismo, que tem como princípios a
matrizes arcaicas resultantes de impressões resi-
sensualidade (o desejo) e a fertilidade. É uma
duaisde vivências comuns a todos os humanos.
con guração que se ocupa da sobrevivência e
Umavez que, ao atualizar seupotencial, nem se con gura de forma insular, com intervalos de
todo conteÚdo arquetípico cabe na consciên-
inconsciência e amnésia (Byington, 1983).
cia, forma-se progressivamente uma instância
Progressivamente, O ego começa a adquirir
denominada sombra, composta basicamente
uma separação maior do inconsciente, com a
de todo o material que é incompatível com a
socialização e a necessidade de submissão a leis
atifude consciente, o que coesponderia à no-
enormas queregem aorganizaçãoe a orientação
ção de inconsciente pessoal. A sombra seria
coletivas. Regido pelo arquétipo do Pai, o
composta de conteúdos inativos e reprimidos
dinamismo patriarcal tem como princípios a hie-
queJung conceituou como complexos. Dotados
rarquia, a abstração e a causalidade. O ego já
de forte carga energética, atuariam de forma
discrimina as polaridades do símbolo, escolhendo
autônomana consciência, consistindo de núcleos
um desses polos (certo/errado) e reprimindo o
poucoelaborados da experiência pessoal, po- outro ("'o erado").
rèmregidos arquetipicamente. O arquétipo não Os dinamismos matriarcal e patriarcal não
seexpressaria à consciência na sua forma "em
organizam a consciência somente na primeira
SI",mas por meio de imagens típicas OU simbolos,
metade da vida, mas durante todo o seu curso:
OSquais funcionariam como ponte entre o in-
Conscientee a consciência. Como com muita Apesar do ciclo matriarcal, por exemplo, ceder em
propriedadetraduziu Jacobi (1995), o sínbolo é muitos casos sua dominância ao patriarcal já nos
primeiros anos de vida, ele nunca terminará pois o
avisibilidade do arguétipo. Sendo a manifesta-
ego, na medida em que se estrutura matriarcalmen-
Çao da própria energia psíquica, trata-se do
te, passa a participar ativamente na estruturação
novo,do estrangeiro, daquele que chega indis- matriarcal de si próprio". Assim, continuaremos a
Criminadoà consciência e ao ser elaborado, estruturarnossa consciência de forma produtiva ou
ganha sentido: "ele só é único enguanto está destrutiva quando nos posicionarmos mais e mais
enhe de sentido. Mas, após O nascimento do matriarcalmente em função da nossa cultura ou da
Sen do...O símbolo está morto". natureza à nossa volta. (Byington, 1983)

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232 PsicologiaAnalitica

Os princípios matriarcal e patriarcal podem de drogas - um comportamento possível em


ser con itantes. A consciência inicia um diálogo qualquer fase da vida, se considerarmos que
entre os opostos, regida pela entrega, pelo co- experimentar estados alterados de consciência
nhecimento, pelo encontro. O arquétipo da é um atributo arquetipicamente determinado,
alteridade (alter, outro) luta pela interaçāo livre uma possibilidade da psique - do caminho em
e igualitária dos dois dinamismos parentais, vi- direção ao abuso e ao estado de dependência.
venciando o desejo e a norma sem identi car-se O que se impõe ao dependente é um movi-
com um desses polos. É o arquétipo da criativi- mento imperativo de retorno a uma posição
dade, em uma bUSCa pela transcendência, por insular de consciência, em uma tentativa de
meio de uma síntese (Byington, 1983). evitar a angústia que a polarização patriarcal
Oquarto grande arquétipo seriao da sabedoia, da consciência mobiliza. A superação desses
que tende a predominar em fasesmais avançadas con itos, por meio de uma forma dialética de
da vida econsistiria em uma atitude contemplativa enfrentamento das diferenças e incongruências
e meditativa a respeito da existência. da realidade característica do dinamismo de alte-
Todas as modi cações dos estágios da cons- ridade, levaria à integração gradativa desímbolos
ciência são mobilizadas pela ativação do dominantemente matriarcais em uma consciên-
arquétipo do herói, sobre o qual já discutimos. cia polar patriarcalmente estruturada.
Mas é na adolescência, quando se explicita a Ao dependente, porém, tal tarefa parece
necessidade progressiva de deslocamento da impossível. Faz-se com a droga um casamento
libido, até entāo predominantemente endogâ- aparentemente insolúvel; um duo indissociável,
mica para exogâmia, que esse arquétipo tem como descreve Olievenstein (1985), no qual o
função estruturante fundamental. Utilizoa noção divórcio será vivido como uma experiência de
de adolescência a partir dos conceitos postula- morte, de aniquilamento da própria identidade.
dos por Hall (1904), em que o amadurecimento dos É como um turista que viaja para a Terra Pro-
órgãos sexuais marca o início de transformações metida e, fascinado com a diferença, com o
consideráveis tanto do ponto de vista biológico estrangeiro, perde seu passaporte, seu direito de ir
quanto psicológicoe social. Os linites dessa fase e vir. O ego se aprisiona em uma vivência de
e a fase adulta são absolutamente imprecisos, êxtase e entusiasmo.
até porque consideramos a inexistência, no Muitas são as expressões mitológicas desse
mundo contemporâneo, de rituaisiniciáticos que fenômeno, mas talvez o mito de Dioniso seja sUa
delimitem essa passagem. melhor representação.
Mas é na vulnerabilidade desse momento Do relacionamento de ZeuS e Perséfone nas-
humano transitório que devemos nos focar e ceu o primeiro Dioniso, o Zagreu, que iria suceder
atentar para o que descrevemos em outro texto: o pai no reino do mundo. Para protegêlo da es-
posa Hera,Zeus decidiu ocuitáo, mas a iumenta
O adolescente precisa aprender a deixar sua
deusa, ao descobrir seu paradeiro, ordenou que
identidade infantil morrer para poder assumiruma
outra identidade da qual pouco conhece (...) À osTitäs o matassem. Estes " zeram-no em pedaços:
exigência de eternidade que acompanha a ta- cozinharam-Ihe as carnes num caldeirão e as de-
refa heroica do adolescente contrapõe-se o voraram'" (Brandāo, 1989). Zeus fulminou os Titās e,
princípio tanático. Os fracassos e frustrações são segundo algumas variantes do mito, Atená, para
essenciais para propiciar o amadurecimento es- outros Deméter, teria salvo o coração de Dioniso
truturante. Entretanto, a angústia de morte ainda vivo e feito com que a princesa tebana
inerente às múltiplas perdas Vivenciadas pode Sêmele o engolisse. Para outros, Zeus, após engolir
levar o indivíduo à procura de algo que o proteja o coração, fecundoU Sêmele. Hera, atenta, decidiu
de todo esse sofrimento. Esse algo pode ser a dro- matá-la.Travestida de ama, estimuloua princesa
ga, embora essa proteção possa signi car a própria a solicitar ao amante que se apresentasse em todo
morte. (Silveira, 1995)
o seu esplendor. ZeuS, para não contrariá-la, apre-
Voltamos ao ponto em que estamos diante sentou-se em sua forma epifânica, ou seja, como
de um herói que quer chegar a sêlo sem viven- raios e trovões. O palácio de Sêmele se incendiou,
ciar as di culdades das provas iniciáticas, ou que mas o pai conseguiU salvar o feto e colocá-Ho na
se lança a elas desprotegido. De fato, dissolver-se SUa própria coxa, para que se completasse a
nos con itos impostos pela necessidade de ela- gestação normal. Após o nascimento do lho, a
boraçāo simbólica inerente ao processo de perseguição de Hera continuou, razāo pela qual
individuação é um caminho tentador. E aqui Zeus transformou-o em bode e encaregou Hermes
estamos diante do que talvez diferencie o uso de levá-lo para ser criado pelas Ninfas e Sátiros no

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Dependēncia Química a Partir da Psicologia Analitica 233

monte Nisa. Nesse monte, o então jovem deus mento, necessário é que se desconstrua o
descobriumadurOS Cachos de uva, de onde es- estereótipo do sofrido, da vitima ou do esperto,
premeuo vinho. Todos em sua corte começaram do que consegue driblar quaisquer riscos ineren-
atomara bebidae dançaram embriagadoS,sob tes ao consumo de substâncias tóxicas, na bUSCa
o comando do deus. Por onde andou, Dioniso do especí co, do singular em cada indivíduo. E,
cultivou o vinho. Uma passagem que merece nessa "vontade de tratar-se", a busca da singu-
reaistroé que ele desceu ao Hades para resgatar laridade do drogado con gura uma prima
Sugmãe, Sêmele. Juntos subiram para o Olimpo, matéria em uma clínica igualmente particular,
onde ela se tornoU imortal. onde a "cura" pode ser compreendida como a
Oscultos a Dioniso na Grécia Antiga eram rea- mudança da relação do indivíduo com o pro-
izados, basicamente, por mulheres em regiðes duto, dasua motivação pessoal para o consumo.
selvagensdas montanhas: "Com vinho ou oUtros Uma dada experiência terapêutica tem difícil
liquidossagrados inebriantes e com danças rítmi- reprodutibilidade, daí a di culdade de se criar
COs acompanhadas pelos sons frenéticos das modelos oU protocolos e cazes que se apliquem
autas de bambu, dos tambores e címbalos, os a todos que procuram ajuda. Metaforizando, a
celebrantes entravam em estado extático, e se função do terapeutaseria, gradativamente, ajudar
sentiamunos com o deus" (Bolen, 2002). A expe- opaciente a procurar'"autoridades competentes",
riência religiosa com esse deus punha em risco refazer sUa foto, recuperar seu passaporte, legiti-
todo um sistema de valores previamente estabe- má-lo no pais estrangeiro em que se encontra e
lecidos, principalmente se atentarmos para os legitimar-seenquanto alguém digno e competen-
aspectos do desmembramento (di culdade de te para movimentar-se livrenmente.
sintetizar,de manter junto, de conservar a coesão Olievenstein (1985) faz referência a esse vai
egoica) ou, traduzindo simbolicamente, a emer- e vem, ao movimento próprio da clínica do to-
gênciadeuma consciência insular,de incoporação xicômano, onde empatizar, "ocupar o lugar da
dodeus (entusiasmo), da embriaguês, do desco- droga", inicialmente, torna-se mais importante
medimento. Vemos que a tradução psicológica que imprimir um ritmo rigido na relação transfe-
desse arquétipo é vida, energia, transformação, rencial. Eé no exercício da paciência atenta e
êxtase,em contraste com o racional, formal com acolhedora, na repetição, na intuição (atributos
olimite. Podemos inferir que o estado de depen- do dinanmismo matriarcal) que, aos poUcos, in-
dênciaseria uma identi cação com esse princípio troduzem-se leis e códigos nessa tarefa de
dionisíaco, uma di culdade de elaboração dos rematrizar o que foi inicialmente rachado. A arte
simbolos, predominantemente matriarcais, mobi- do analista,nessa delicada tarefa de rematriza-
lzados por esse arquétipo. ção, é mobilizar ambas as polaridades dos
Convém retornar ao conceito de símbolo. arquétipos matriarcal e patriarcal na tentativa
como precaução diante de uma interpretação de aquisição de uma consciência de alteridade.
reducionistado mito, para enfatizar que a vivência Alertamos para esse detalhe em outra obra,
dionisíaca, quando estruturante, abre caminho quando descrevemos o risco de substituição da
inquestionávelpara a criatividade e a ampliação da dependência da droga pela dependência do
Consciência. Ao dependente., no entanto, isso tratamento (e do terapeuta). fato observado
parece negado. Em outra obra, descrevemos o principalmente nasinstituições de caráter religioso
dependentecomo alguém que vive umarealida- que utilizam estratégias normatizadoras e repres-
deobjetiva ou subjetiva insuportável, o que o leva sivas na base de sUa abordagem. Desloca-se,
a ter na droga a sua única possibilidade de ser e nesse caso, a dependência. Na verdade, o tra-
existir. Acrescentamos aindoa que um estado de- balho do analista é reencaminhar o paciente
pressivoem qualquer fase da vida pode conduzir em busca de si mesmo e do sentido da sua exis-
a uma atitude drogaditiva que, não elaborada, tência. É Mostrar-lhe que navegar é preciso (e
pode evoluir para um estado de dependência possível), mas que viver também é preciso.
(Siveira, 1995). Nessesentido, penso que algumas estratégias
Estamos diante de uma clínica em que a podem serúteis nessa árdua tarefa. A coterapia
OSposiçãodo paciente para tratar-se é de fun- é, em alguns casos, bastante mobilizadora, uma
damental importância para a formação da vez que cada terapeuta pode desempenhar
aliança terapêutica. Esse aspecto é tambem papéis diferentes na relação transferencial, de-
Importantena abordagem de outros transtornos senvolvendo um campo dialógico enriquecedor
mentais;porém, para que seja possivel empatizar e criativo. O acompanhamento terapêutico
cOma angústia do paciente que prOcUra tratd- pode também ser e caz em muitas situações,

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234 PsicologiaAnalítica

ao tentar promover a reinserção social do de- de drogas na sociedade contemporûnea. Em


pendente em uma perspectiva de respeito às vez de estar inserida em um contexto de trans-
especi cidades de cada caso. O grupo terapêu- formação, a substância é veiculada e utilizada
tico pode ser igualmente criativo. Entretanto, um apenas como fonte de prazer imediato. Nenhu-
caminho terapêutico di cilmente terá êxito,enm ma frustração é tolerada. A tensão decoente
uma perspectiva de alteridade, caso não haja de con tos inerentes à existência humana não
empatia por parte do analista e não se instale, é suportada, sendo imperativo seu alívio instan-
talvez, uma considerável dose de empatia, afe- tâneo, di cultando ou impedindo transformação
to e humor na relação. e transcendência. Caracterizada fundamenta-
O humor é um dos atributos mais sublimes do mente pelo consumismo, a sociedade atual não
contato humano, mas nãoé domínio de muitos: permite espaço para a falta.
pode caminhar para posiçõesdissociadas,até Esses fatores contribuem para o aumento do
hipomaníacas, tanto no analista quanto no pa- consumo de drogas, assim como de outros trans-
ciente. QUando criativamente invocado, todavia, tornos de controle dos impulsos. Perder o controle
colabora para mobilizar o ego xado em uma em apostas de jogos, passar horas a o na internet
posição unilateralizada, facilitando a integração e diante da televisão, jogar video games, praticar
daquilo que habitualmente caUSa vergonha, exercícios sicos, comer ou trabalhar compulsiva-
tristeza, dor, embaraço, etc. Trata-se de uma mente são alguns exemplos de comportamnentos
proposta e um desa o - oU da busca por um que provOcam alterações siológicas, que propi-
caminho para a compreensão do mistéio do ciam sensações sicas prazerosas e são estimulados
prazer que um produto químico promove quan- pela nossa cultura. Trata-se de comportamentos
do encontra um indivíduo, uma busca do passíveis de um padrão repetitivo e compulsivo
especí co sem o qual é impossível tratálo. que tornam-se meios de anestesiar e postergar,
quando não impedi, a elaboração de con itos.
Na dependência, oindivíduo, em vez de enfrentar
CONSIDERAÇÕES FINAIS
a realidade e lidar com suas vicissitudes, apenas
A examinarmos a história da humanidade, cons- altera suapercepção da realidade (Silveira,1995).
tatamos que o homem sempre prOCurouestados Dessa forma, o uso da substância ou certos com-
alterados de consciência. Săo conhecidosregistros portamentos deixam de ser exercidos de maneira
de uso de drogas nas mais diversas culturas desde criativa, levando o indivíduO à embriaguez e à
a Antiguidade. A necessidade de transcender a intoxicação, alienando-se.
experiência imediata parece ser arquetípica, assim
como a curiosidade humana que levou ao co- REFERÊNCIAS
nhecimento e ao desenvolvimento do homem
enquanto homem, ao desenvolvimento da cultu- BOLEN, J. S. Os Deuses eo Homem. São Paulo: Paulus, 2002.
rae dosmeios de sobrevivência. BRANDÃO, J. Mitologia Grega. v. 3. Petrópois: Vozes, 1989.
A utilização de drogas psicotrópicas é bas-
BYINGTON, C. O Desenvolvimento Simbólico da Personali-
tante difundida em rituais, serndo um meio
dade Junguiana 1. Petrópolis: Vozes, 1983.
privilegiado de transcerndência e de buSCa de
vivência de totalidade. Tradicionalmente, essas HALL, J. Adolescence: Its Psychology and its Relations to

drogas eram empregadas nos rituais de passa- Physiology. Antropology. Sociology. Sex, Crime, Religion
and Education. New York: D. Appleton & Co. 1904.
gem, que marcam etapas de transição da vida:
a criança torna-se homem em um processo ini- JACOBI, I. Complexo, Arquétipo, Simbolo. São Paulo: Cultrix, 1995.
ciático, marcado por morte e renascimento. JUNG, C. G. Ab-reação, Análise dos Sonhos e Transferência.
Zimberg (1984) aponta a importância do rito para Obras Completas, v. 16/2. Petrópolis: Vozes, 1971.
preservar o indivíduo do risco de dependência JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Obras Completas, v. 6.
quando consome drogas psicotrópicas. O rito Petrópolis: Vozes, 1991.
circunscreve o uSO a um contexto determinado
OLIEVENSTEIN,C. O Destino do Toxicômano. São Paulo:
e lhe confere signi cado. Entretanto, a socieda-
Almed, 1985.
de atual perdeu amaioria de seus itos iniciáticos
e essas substâncias vêm sendo utilizadas indiscrimi- SILVEIRA,D., Drogas -Uma Compreensão Psicodinâmica das
nadamente. Zoja (1992), conforme mencionado Farmacodependências. São Paulo: Casa do Psicólo-
anteriormente, aponta essa ausência de rituais go, 1995.
iniciáticos como fator responsável pelo abuso ZOJA, L. Nascer Não Basta. São Paulo: Axis Mundi, 1992.

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CAPÍTULO 27
Estresse Pós-traumático e
Psicologia Analítica

IRACI GALIÁS
NAIRO DE SOUZA VARGAS

INTRODUÇÃO de orderm sica, psíquica, infecciosae outras,


capazes de perturtbar-lhe a homeostase.
Com a crescente procura psicoterápica porvítimas Situaçõesde intenso impacto emocional cada
de violência, dentre as quais vitimas de sequestro, vez mais nos atingem, diretamente ou pela infor-
todo psicoterapeuta hoje precisa atentar ao tema mação. Nosso mundo às vezes cruel, competitivo
do trauma e dos efeitos do estresse. Também a e violento, com con itos de toda ordem, assume
violência doméstica, assunto cada vez mais estu- crescente dimensāo em nosso cotidiano. Isso pode
dado, temrecebido maior atenção dospro ssionais levar a um "estado de alerta" muitas pessoas que
de ajuda. se veem ameaçadas e desenvolvem mecanismos
A re exão nos prepara para oferecer assis- de defesa contra toda essa agressão.
tência mais apropriada e é útil para nossa Selye (1976) falava do estresse siológico, ou
própria proteção. Aliás, um fator é indissociável seja, da adaptação normal entre indivíduo e meio.
do outro. A alta ansiedade dos clientes, bem Em indivíduos mal-adaptados, a resposta é pato-
lógica, com distúrbiostransitórios, doenças graves
como nossa própria convivência com crimes
OU agravamento de doenças preexistentes.
tão violentos como o sequestro, aumenta a chan-
O termo trauma, da cirurgia, foi introduzido
ce de sermos contaminados pelas dolorosas
emoções das vítimas. Ou seja, o risco de nos
na psiquiatria por Oppenhein (apud Santos,
2007), que atribuía as "neuroses traumáticas" a
identi carmos com as vítimas é alto. A re exão
lesões cerebrais.
é dos mais e cientes instrumentos de que dis-
Freud (1969a) propõe que em um local da
pomos para esse trabalho, associada à troca
mente, o inconsciente, poderiam car registra-
de experiências. das experiências desagradáveis, os traumas, que
Pretendemos aqui focar esse tema com o desencadeariam as neuroses, principalmente a
olhar da psicologia de Jung. histeria. Chamou de "traumáticas" quaisquer
excitações su cientemente fortes para atraves-
BREVE RESENHA HISTÓRICA sarnossas bareiras, provocando grande distúrbio
e gerando possiveis defesas.
Trauma e estresse são dois conceitos que desper- Situações que caracterizam um trauma são
tam dúvidas. Em 1936, Hans Selye usou a palavra agentes estressores:oestresse éa resposta sica
stress para caracterizar qualquer agente, nocivo e/ou psíquica do organisno ao evento traumático.
oU bené co, capaz de desencadear no organis- Jacobson (1979) de ne crise como um estado
mo mecanismos endócrinos de adaptação. em que a pessoa, diante de um obstáculo (trauma)
Etimologicamente, a expressão vem do latim para atingir uma meta de sua vida ou seguir adian-
stictus (estreito, apertado). Em português,USOVA-se te na sua trajetóia cotidiana, vê se paralisada,
o termo estricção (pressão; atualmente, estresse) impossibilitada de transpor tal obstáculo com os
para de nir reações do organismo a agressões métodoshabituais para a resolução de problemas.

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236 PsicologiaAnalítica

O estudo das crises, chamadas de reações pel importante para o futuro reajustamento da
de ajustamento, e das "neuroses de guerra" pessoa envolvida. Etimologicamente, vem do
assinalou uma séie de sintomas que, com frequên- latim crisis -momento difícil, de decisão. Interes-
cia, apareciam em conjunto. Neurologistas sante lembrar que o ideograma chinês que
defendiam que as "neuroses de guera" possuíam representa crise é formado pela combinação
substrato anatômicoe Freud(1969b)asvia como pictográ ca de "perigo" e "oportunidade", sU-
"neuroses traumáticas", como reativação de gerindo as duas alternativas possíveis para a
con itos anteriores, ressaltando a importância saída da crise: fortalecimento pelo aprendizado
da intensidade dos estresses traumáticos e a ou fracasso em sua elaboração e superação,
ausência de "descargas" apropiadas para aliviar com consequente agravamento do estado psí-
o ego das tensões e do despreparo dosindivíduos quico do sujeito (Santos, 2007).
para enfrentar tais situações. A ansiedade surge como resultante da situg-
Vários estudos surgiram descrevendo quadros ção de con to, pois um obstáculo só resultará
clínicos semelhantes, nomeados de acordo com em crise quando di cultar o manejo da proble-
o agente estressor:síindrome do campo de concen- mática envolvida.
tração, trauma da criança abusada, etc. Nãohavia As crises podem ser acidentais (incidentes
consenso na medicina para a classi cação dos claros) ou de desernvolvimento (adolescência,
transtornos mentais até que a Organização Mun- senescência, etc.). sendo estas potencialmente
dial da Saúde (OMS) incluiu na Classi cação críticas e não necessariamente crises, pois são
Internacional de Doenças - sextarevisão(CID-6) fases de transformação.
uma seção para transtornos mentais para ns de Na crise propriamente dita, há falência intensa
estudos clínicos e estatísticos, sem a possibilidade dos mecanismos de adaptação e de defesa do
de uma classi cação etiopatogênica gera. indivíduo. Os resultados da crise variam em amplo
Em 1980 foi introduzido o diagnóstico de trans- espectro, desde a solução criativa do problema
torno de estresse pós-traumático (TEPT)na terceira até manifestações neuróticas ou psicóticas.
edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Consideremos psicodinamicamente o trauma
Transtornos Mentais (DSM-I, Diagnosic and Statis- como a vivência que mobiliza uma intensidade
tical Manual of Mental DisordersIlI). resultante de simbólica maior que a força egoica seja capaz
listagens de sintomas mais comuns nas "neuroses de suportar.
traumáticas" e em veteranos de guera, corela- Assim, a vivência traumática não depende,
cionado-o com a severidade doestressor.Estudos até certo ponto, do evento ocorido. Este é re-
mostraram que víitimasde crimes, quando há séia lativo. Depende de como esse fato foi vivenciado.
ameaça à vida, têm grande possibilidade de É claro que há fatos de tamanha contundência
apresentar oTEPT.Nos Estados Unidos, constatou-se que funcionarão como fator traumático para
prevalência ao longo da vida de 7,8%.A natureza qualquer ser humano. Somos uma espécie gre-
do trauma propriamente vaiou: guerra e testemu- gária: portanto, com um lado coletivo, ao lado
nho de ferimento ou morte para ps homens e das variações individuais.
ataque ou ameaça sica para as mulheres. Em É comum que a vivência traumática seja as-
pesquisa com pessoas com TEPT,O evento desen- sociada a dor, sofrimento dramático ou trágico.
Cadeante mais relatado foi a morte súbita e Porém, é importante considerarmos que também
inesperada de uma pessOa amada, sugerindo ser prazer e alegria intensos podem complicar a vida.
esse o estressor mais frequente. As mulheres pare- Imaginemos um eixo com as polaridades dor-
cem ser mais propensas a desenvolver oTEPT. prazer e alegria-so mento. Cada vivência polar
A CID-10 da OMS coloca o TEPT não nos muito intensa pode mobilizar símbolos com inten-
transtornos de ansiedade, como o DSM, mas nos sidade tal que o ego não tolere. Ås vezes é muito
transtornos relacionados ao estresse. Muitas ve- difícil lidar com o sUcesso, principalmente se for
zes, pacientes com TEPT não são reconhecidos muito grande. Também pode ser difícil lidar com
em atendimentos primários. Há um crescente situações em que, inesperada ou subitamente.
consenso de que oTEPT depende mais de fato- ganha-se muito dinheiro oU se conquista algo
res subjetivos do que da severidade doestressor. muito desejado. Sāo conhecidas experiências de
ganhadores de altas somas da loteria que per-
CRISE E TRAUMA dem tudo rapidamente oU outras formas de
ascensão social oU econômica muito rápidas que
A crise é um fenômeno de duração limitada, não se sUstentam. E muito difícil tolerar uma ale-
cUjo resultado não é predeterminado, com pa- gria muito grande sozinho: a alegria pede um

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EstressePós-traumático e Psicologia Analitica 237

compartilhar. O ego precisa dividir o peso de vi- ral maisvelhos) serem afetivamente abuSados por
vências muito intensas, mesmo agradveis. É hos (em geral adolescentes ou adultos) - uma
conhecida a história de que Jung. jocosamente, espécie de " lhocracia" - OU, ao contráio, pais
costumava dar os pêsames (e não os parabéns) mais velhos abuSando dos lhos (via poder ou
a quem '"sofria" um sUcesso, pelo risco da in ação chantagem afetiva) -uma espécie de "geronto-
ou de outras defesas consteladas diante do peso cracia". A doença grave oU crônica de um lho,
desseseventos e do consequente trabalho psíqui- sobretudo se ele for criança, costuma ser bastan-
co que eles acaretam. Assim, não é necessário te estressante para os pais. Por isso, é frequente
que sejamos masoquistas para que alegria e que o diagnóstico de um ho que aponte um
prazer muitos intensos sejam, às vezes, complica- prognóstico mais difícil seja negado pelos pais
dores de nosso equilíbrio emocional. O peso (como autismo, de ciências, doenças crônicas
dessasvivências pode também funcionar como ou terminais, etc.).
fator traumático. Os lhos já crescidos podem desenvolver
Seja como for, o mais frequente é que as quadros como o de "adolescência tardia", abu-
diferentes conceituações de trauma estejam sando deseuspais, podendo chegar a ameaças
mais associadas a vivências de do, sofrimento e concretizações de matricídios e/ou paricídios,
e desprazer. como discutido no artigo "Pais e Filhos: uma rua
de mão dupla" (Galiás, 2003).
FATORES DESENCADEANTES
QUanto ao outro desconhecido, o fator trau-
mático dá-sesempre por abuso, como a violência
Oevento traumático pode estar relacionado ao contida em qualquer crime. Aqui, violência urba-
meio ambiente sico (por exemplo, desastre na, estupros, assaltos e principalmente sequestros
natural). à esfera socioafetiva (por exemplo, desempenham importante papel.
perda de pessoa signi cativa). biológica (por
exemplo, doença grave) oU evolutiva (por exem- O meio 978-85-7241-915-4
plo, adolescência).
Então, podemos considerar que o fator traumá- Nosso psiquisno interage e depende bastante
ticoseja desencadeado pelo outro, pelo meio, pelo do meio para seu bom funcionamento. Assim,
corpo ou pelo próprio desenvolvimento, sempre eventos que atinjam o meio podem funcionar
havendo com isso uma mobilização da sombra. como fatorestraumáticos, com maior potencial
estressorquanto mais próximo ocorem de onde
Vivemos (ou de onde vivamnoSsos"'outros" afetiva-
O outro mente importantes). As catástrofes são conhecidas
O outro provocador do trauma pode ser conhe- como altamenteestressantespor trazerem à cons-
cido (próximo) ou desconhecido. Se conhecido ciência, de maneira súbita, o risco de morte.
e afetivamente próximo, poderá funcionar como Fenômenos como tsunamis, acidentes ecológi-
fator traumático por perda (ruptura de relaciona- cOs, etc. atestam esse fato.
mento, afastamento, morte, etc.) ou por abuso As gueras, com seus desdobramentos, funcio-
(afetivo, de poder, sexual, etc.). Aqui se sifua a nam como outro importante fator desencadeante
violência doméstica. QUanto mais intensa a relação de estresse.
afetiva, mais potencial traumático ela contém.
Assim,as relações familiares São fonte importante
deestresse. Relações entre pais e lhos, conjugais,
O corpo
fraternase com a famíilia maior estão presentes, O corpo, dimensão natural de acesso de símbo-
desencadeando o trauma tanto por perda como los à nossa consciência, pode funcionar como
porabusSo.São conhecidas as di culdades de se fator estressante e traumático. Doenças graves,
lidarcom orfandade precoce, perda de um lho, crônicas oU agudas, que trazem intenso sofrimen-
con tos conjugais, viuvez precoce, ruptura abrup- to ou risco para a vida (como côncer, AIDS, etc.).
ta de uma relação conjugal, etc. Não são bem como acidentes, trazem di culdades às
Também raras as situações de lhos abusados por vezes tão insuportáveis ao ego que desenca-
pais,seja pelo exercício arbitrário do poder (sobre- deiam quadros de estresse.
TUdo com crianças e jovens), seja sexualmente. Todos esses fatores mobilizam intensamente
Como aumento da longevidade e a relativizaçāo símbolos, muitas vezes contidos na sombra, que
muitointensa do poder patriarcal dos pais sobre invademo campo da consciência,sermque o ego
os lhos, também é comum vermos pais (em ge- tenha a força necessáia para integrá-los.

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238 Psicologia Analitica

Desenvolvimento • Revivência do evento traumático: lembran-


çasintrusivas,pesadelos, lashbacks, et.
Durante nosso processo de desenvolvimento, ou • Presença de sintomas de entorpecimento
seja, durante nosso processo de individuação, e esquiva de tudo que se ligue ao trauma.
Ocorrem períodos mais criticos e que, portanto, • Presença de sintomas de reatividade: hiperes-
nos deixam mais sujeitos ao estresse. timulação, insônia, iritabilidade, dí culdade
O próprio nascimento, a adolescência, o de concentração.
Casamento, a gravidez, o parto, o tornar-se mãe • Duração superior a um mês.
e/ou pai, a senescência, etc. são, por um lado, Sofrimento clinicamente signi cativo e
eventos muito criativos; por outro, podem, ao comprometimento da performance social.
mesmo tempo, funcionar como traumáticos.
É necessário fazero diagnóstico diferencial
REAÇÕES NORMAIS AO TRAUMA com transtorno de ajustamento (CID-10), cuja
origem se deve a fatores que não têma gravidade
A avaliação psicodinâmica das vuinerabilidades de ameaça real à integridade sica da pessoa,e
psicológicas especí cas do indivíduo énecessá- também com transtorno de estresse agudo(TEA).
ria paraa compreensão doTEPT.A maioria das se os sintomas ocoreram e se resolveram em até
pessoas não desenvolve TEPT mesmo quando um mês depois do evento estressante. É necessá-
enfrenta teriveis traumas. riodiferenciá-Ho também de quadros desimulação,
Nossa psique conta com recursos adequados de outros quadros que não tenham comelação
para lidar com situações traumáticas. Assim, a direta com eventos traumáticos ou que tenham
maioria reage normalmente, apresentando sin- início anterior a esses eventos.
tomas passageiros. Os transtonos de ajustamento são reações ma-
Insônia, irritabilidade, cansaço e memórias adaptadas a pressões psicossociais identi cáveis.
intrusivas costumam aparecer com intensidade Sinais e sirntomas são muito variáveis e enmergemnos
decrescente com o passar do tempo, durando três meses seguintes ao evento estressante. Esse
aproximadamente quatro semanas. quadro difere do TEPT porqueé menos grave, no
âmbito da experiência comum, e não apresenta
DIAGNÓSTICO sintomas típicos do TEPT, Como a revivência e a
duração.Surge emperíodos de adaptação auma
OTEPTé especi cado como o desenvolvimento mudança signi cativa de vida oU como consequêr-
de sintomas caracteristicos após exposição aum cia de evento estressante. O estressor pode afetar
extremo estressor traumático (critério A). O diag- relações sociais (perdas, separações) ou osistema
nóstico não será difícil se houver história clara de de suportee valores sociais. O mais provávelnesses
exposição a evento traumático, seguida por casos é a plena recuperação.
sintomas de ansiedade intensa durante pelo Apó traumas sicos agudos (traumacranioen-
menos um mês, com excitação e estimulação cefálico), o transtorno mental orgânico deve ser
do sistema nervoso autônomo (SNA), torpor e descartado ao se diagnosticar TEPT, pois há im-
esquiva da reexperiência dossintomas do evento portantes implicações terapêuticas. Concussões
traumático. É fundamental estabelecer clara- leves podem não trazer sinais neurológicos apa-
mente o início dos sintomas como subsequentes rentes, mas levar a efeitos residuais de longo
ao trauma. Há alta taxa de comorbidade com prazo sobre o humor e a concentração.
depressão, pânico e transtorno de ansiedade Mudanças na vida podem gerar certo nível
generalizada (TAG). sendo esses transtornos fa- de estresse que pode ser positivo (eustress) ou
tores de risco para oTEPT.Há muita justaposição, negativo (distress).
em especial, com transtornos importantes do A Ocorência de TEPT é maior em crianças
humor. Depressāo maior é complicação frequen- que em adultos que sofreram estímulos estres-
te e traz risco aumentado de suicídio. Com santes. A in uência parental é grande e amplia
frequência, sintomas distímicos são secundáios as implicações sobre vítimas primárias e secun-
ao TEPT; se forem graves, são considerados co- dárias de um trauma intenso: por exemplo.
morbidades. sequestro de paise mães vitimando crianças.
Os critérios para o diagnóstico de TEPTSão: A incidência de TEPT Varia, conforme o esti-
mulo estressante, de maior (sequestros e perda
• Exposição a um extremo agente estressan- de pessoas afetivamente importantes, como
te traumático. mães que perdem seus hos) a menor (incêndio).

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Estresse Pós-traumáticoe Psicologia Analitica 239

O sequestro é uma das injúrias mais associadas autonômica crônica. Esse processo dá origem
ao medo de morte, assumindo magnitude maior aos sintomas positivos do TEPT (invasivos e de
que o abuso sexual e a violência parental. hiperexcitação). Em pacientes comTEPT, reações
Ainvestigação sobreTEPTdeve incluir questões siológicas autönomas, aumentadas aos estímu-
da natureza humana como traços de personali- los estressantes, são bastante documentadas
dade, resiliência ao estresse, necessidade ou não de (aumento da pressāoarterial, frequência cardía-
o estimulo ser extremo e o própio papel da cultu- ca, frequência respiratóia, etc.). São alterações
ra de nindo o que é aceito como transtorno envolvidas na preparação do organismo para
(Galiás, 2006). reações de luta ou fugae constituem consequên-
Assim, pode-se compreender o fato de que cias da estimulação simpática mediada pela
algumas pessoas, mesmo expostas ao agente excitação noradrenérgica.
traumático, apresentem poUcas alterações ou Redução dosníveisde cortisole aumento do
desenvolvam um TEA que logo se resolve. A re- fator de liberação de corticotro nas são reações
siliência pode explicar por quê. para alguns,o consistentes e parecem ser um dos marcadores
trauma produz crescimento e reformulações de biológicos de tal condição, indicando uma de -
vida e. para outros, graves transtornos. ciênciaparainibirrespostasnaturais de adaptação
OTEPTserá agudo se a duração dos sintomas e defesa ao trauma.
for inferior a três meses, crônico se superior e com Resposta exagerada de catecolaminas e
início tardio se o início ocorrer pelo menos seis neuropeptídeos na época do trauma levaria à
meses após o estressor. Superconsolidação de memórias relacionadas
ao trauma, facilitando o desenvolvimento do
PSICONEUROCIÊNCIAS- TEPT.Há maior quantidade de receptores perifé-
ricos de glicocorticoides.
ASPECTOS NEUROLÓGICOS O sistema noradrenérgico (organizador das
Ainda são incipientes as pesquisas que procuram
reações de ansiedade). que tem sua origem no
mostrar o vértice neurobiológico que seria a base locus ceruleus, regula a excitação. Sabe-se que
para a ocorrência de TEPT. Alterações foram
essa estrutura do tronco cerebral tem papel
central no estado de alerta e é altamente respon-
mostradas na siologia e na anatomia cerebral.
Sİivaaestimuloseliciadores deestresse. Hiperatividade
A redução volumétrica do hipocampo tem sido
o achado mais consistente. A neuroimagem noradrenérgica com aumento da epinefrina e
norepine na urinárias tem sido constatadano TEPT.
funcionalrevela hiperativação do corpo amigdaloi-
Imitabilidade e acessos de raiva podem estar rela-
de e resposta atenuada do córtex pré-frontal
medial, do córtex órbito-frontal e do giro do cionadosa dé citserotoninérgico.A e cácia dos
inibidores seletivos de recaptura de serotonina
cíngulo anterior. São estruturas que integram
(ISRS) noTEPT Comprova a desregulação seroto-
circuitos potencialmente relevantes para a sio-
patologia do TEPT (Bernik et al., 2007).
ninérgica. Uma desregulação do eixo HHA é
altamente caracteristica do TEPT. Ele se torna
Estudos com gêmeos homozigóticos em que
um deles foi à guerra e o outro não parecem
hiper-reativo ao estresse e aos efeitos do cortisol.
apontara redução hipocampal como um dos Diversosachados de neuroimagem começam
fatores predisponentes, e não uma consequên- a delinear um modelo que sugere sensibilização
cia do transtorno. límbica e menor inibição cortical, com disfunção
Em virtude da semelhança entre os sintomas especi ca em áreas cerebrais envolvidas na me-
doTEPTe da depressão e ansiedade, os modelos móia, emoção e processamento visoespacial.
biológicos existentes para a descrição destes
últimos sāo os mais adotados para explicar as CURSO E PROGNÓSTICO
manifestações do TEPT, envolvendo os mecanis-
mos de neurotransmissão realizados pelas Diante do trauma, pessoas não suscetíveis po-
catecolaminas e o papel do eixo hipotálamo- dem experimentar uma onda adrenérgica de
hipó se-adrenal (HHA). sintomas, mas estes não persistem. Indivíduos
Aresposta neurobiológica ao estresseenvol- predispostos têm níveis de ansiedade mais altos
ve a liberação de vários hormônios do estresse e sintomas de dissociação. preocupação e res-
(catecolaminas e cortisol) proporcional à sua postas exageradas ao trauma. Persistindo esses
Intensidade, o que permite que o organismo sintomas, podem surgir sentimentos de desam-
reaja adaptativamente. Sob trauma grave ou paro, perda de controle e revivência do trauma
repetido, estabelece-se uma hiperatividade com sintomas de ativação autonômica. Pode

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240 PsicologiaAnalitica

haver esquiva fóbica,hipersensibilidadeeexplo- Grande Mãe. Essa ativação nos prepara para a
Sões de raiva, com alterações na personalidade açãonecessáriapara lidar como atendimento
e no funcionamento social e pro ssional. Pode de nossas necessidades básicas, como fome,
desenvolver-se então oTEPTCrônico, com inca- sede, sono, sexualidade, etc. Também é ele que
pacitação, desânimo e desmoralização. Pode nos ajuda a lidar com vivências dolorosas rela-
haver sintomas somáticos e depressão, assim cionadas a esse arquétipo, como o abandono.
como abuso de substâncias. A recuperação do As ameaças dessa ordem mobilizarão nosso
TEPT Crônico em seguimentos de 5 anos foi de herói ligado à grande-mãe, um herói de ação.
apenas 18%, mostrando a importância do trei- Temos um herói ligado ao arquétipo do Pai,
namento prévio para enfrentar situaçõesdifíceis ativado quando a ordem patriarcal é ameaçada,
como guerra, terremotos, catástrofes, etc. (San- sendo necessáio que se estabeleça oU se reesta-
tos, 2007), como também o tratamento precoce beleça. Esse herói organiza o caos. É. portanto,
do TEPT.Em pelo menos um terço dos indivíduos tambémum herői ligado à ação, sempre mobilzado
comTEPT.,o quadro tem evolução crônica, per- diante de vivências traumáticas desorganizadoras.
sistindo por muitos anos. O herói ligado aos arquétipos do animus e
anima também nos prepara para a ação de
ASPECTOS PSICODINÂMICOS "oferecer a outra face", mediante a interação
simétricae dialética com o outro, com a possi-
ARQUETÍPICOS DO TRANSTORNO
bilidade de troca de lugar com esse outro, no
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO caso o agressor.
O herói ligado ao arquétipo da Sabedoria.
Morte, luto e transformação porém, éo herói não da ação, e sim da contem-
plação, interação com o todo. É o que traz a
A ameaça de mortepropria, do outro queido ou a
ameaça de perda do outrO traz sempre para a percepção à consciência de nossas limitações
consciência a ameaça da perda da identidade, e limites diante do Todo, de nossa participação
característica da vivência traumática. A Vivência como pequena parte da imensidão do Todo.
da morte ou ameaça sempre trará o processo do Traz, en m, a possibilidade da troca da ação
luto para sua elaboração. Esseluto, se vivido, traza pela contemplação. Esse aspecto é bastante
possibilidade da transformação. Porém, as defesas importante para o enfrentamento da vivência
ao doloroso processo de luto. pela problemática traumática, diante da qual às vezes temos pouco
dasonbra, trazem oluto patológicoe aconsequente o que "fazer".
melancolia, impeditiva do processo de transforma-
ção queimplica a vivência de morte erenascimento, Arquétipo da criança divina
como discutiram Jung (1986). em "Símbolos da
Transformação", e Vargas (1987), em "Abordagem No processo de transformação, no qual acontece
do Paciente Terminal:Aspectos psicodinûmicos-A a vivência da morte, o arquétipo da criança divi-
morte como símbolo de transformação". na é mobilizado para que haja o renascimento,
como discutido por Jung (2000) em "O Arquétipo
da Criança", em "Morte e Renascimento". É com
Arquétipo do herói a "morte" do arquétipo do herói para a consciên-
Sempre ativado diante da vivência traumática, cia, ou seja, com a volta parao Self dessa força/
traz uma energia plus parao ego fazer face à energia plus, que os símbolos trazidos pelo arqué-
batalha do enfrentamento do trauma. Em uma tipo da criança podem vir para a consciência,
imagen, é como se, diante da necessidade de trazendo a renovação, o renascimento. Trata-se.
um investimento nanceiro maior e inesperado, porém, de um processo. Nāo é possivel haver re-
não planejado às vezes, precisássemos entrar na nascimento sem que haja a morte simbólica,
"caderneta de pOupança" temporaiamente. sendo estes exatamente os ingredientes, porassim
"Essa energia/força plus pertence ao Selfe não dizer, do processo de transformação.
ao ego, necessitando voltar ao Self após um
tempo para evitar perigosas identi cações e
Estresse e trauma
xações, como Jung (1981) discute em seu con-
ceito de personalidade-mana, em que chama Otrauma., medianteo estresseprovocado, ativa
|a atenção para os perigos da "in ação". nosso SNA, preparando-nos para as reações de
Quanto à força arquetipica do herói, pode- luta ou fuga. por entrar em ação o sistemaner-
mos tê-la ligada à mobilização do arquétipo da voso simpático, ativando nossas reações

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Estresse Pós-traumáticoe Psicologia Analitica 241

adrenérgicas, como já discutido. Ficamos, assim. pode ter uma "ação" para protegê-lo. Maria,
neuro siologicamente preparados para a ação. porém, muito tem ali "o que fazer" pela contem-
Apósalgum tempo, graças à ativação do paras- plação desse Todo. Muito há o que entender
simpático, vêm o relaxamento e a volta ao sobre os limites e as limitações de uma mãe hu-
estado de equilibrio siológico. O problema se dá mana. Ali Maria pode compreender como é não
qUando não temOs esse ciclo completo e sim a ter condições de salvar o lho, mesmo sendo
parada no estado de ação. Os estudiosos falam provavelmente o que ela mais quisesse naquele
cada vez mais em eustress, quando o ciclo é momento. Ali, em uma sitUação extrema, talvez
completo (simpáticoe parassinmpático), edistress, Maria possa compreender tantas coisas que
quando o procesSO estaciona na aceleração acontecem em um âmbito menor e que, por isso
pelosimpático por cerca de mais de 30min. mesmo, não as compreendemos. Ali talvez Maria
A ameaça de morte (própria ou de alguém possa compreender que, muitas vezes, nossas
querido) oU de perda trazida pela vivência trau- "ações" e nossa proatividade são, em certa me-
mática traz sempre uma anmeaça de dissolução dida, ilusóias.Alitalvez Mariapossa compreender
de nossa identidade. Essas vivências traumáticas que, muitas vezes, nos "distraímos", por meio de
ativam em nosso eixo ego-Self o arquétipo do tantasações, da percepção maior do sentido da
herói, buscando trazer para o ego uma força a Vida e da Morte. Ou seja, se pouco pode "agir",
mais, necessária para se empreender a dura ba- Maria muito pode "re etir" ao contemplar. Esse é
talha do enfrentamento da vivência traumática. o herói contemplativo. E é esse herói que, em si-
A meu ver, como estamos neuro siologica- tuações traumáticas, com todos os riscos citados,
mente preparados pela ativação do simpático pode, ao ser mobilizado, levar à transcendência
para a ação, o herói primeiramente mobilizado dessa mobilização/impotência.
é o ligado à ação, oU seja, ligado a garantir Após a vivência do herói contemplativo,
nossasnecessidades básicas (arquétipo da Gran- pode ser ativado o arquétipo da criança divina,
de Mãe), a reestabelecera ordem (arquétipo quetraráonovo, anovaposibilidade, arenovação.
doPai) e/ou a compreender a posição do "ou- E apenas assim se pode chegar ao renascimen-
tro" (Alteridade). to, como discutido por Jung (1981) em "Símbolos
Em muitas situações traumáticas, porém, o da Transformação".
problema é que camos impotentes ou muito É dessa forma que poderemos ter, em vez do
pouco potentes, seja pela ordem do fator trau- TEPT, O quadro de crescimento pós-traumático
Imático (como morte de outro querido, perda de (CPT), em que, após um trauma, a personalida-
alguém) ou ainda pelo impedimento à ação de tem um crescimento, uma ampliação.
pelo outro, agressor (torturas, sequestro, etc.). Um fator bastante importante a ser considerado
Esse fenômeno traz enorme sobrecarga ao é aresiliência, conceito bastante discutido pela Dra.
ego, pois, por um lado, temos a ativação para CeresAraújo (2006). Conforme aresiliência, ou seja,
a ação e, por outro, seu impedimento. a capacidade de reagir aoestresse,teremos maior
E em função dessa sobrecarga que o risco oumenor possibilidade de desenvolver TEPTOU CPT.
|de se formarem as defesas aumenta. A xação
nesseponto do evento traumático é como com-
preendemos o TEPT.
Correlação com os
Defesas como sentimento de culpa (ou falsa conceitos de Jung
Culpa) e identi cação com o agressor são fre- É interessante notar que, sob outras denomina-
|quentes como defesas contra a impotência. ções, esses conceitos tão atuais já foram, de
A transcendência dessa situação é trazida certa forma, elaborados por Jung (1981).
pela ativação do herói contemplativo, ligado Assim,quando ele descreve "Restauração
d0 arquétipo da Sabedoria. Esse herói é mobili- Regressiva da Persona". podemos fazer um pa-
Zado diante da ameaça de morte, catástrofe ralelo como conceito psicodinâmico deTEPT,OU
OU perda. Se pensarmos no mito cristão,è esse seja, após um trauma, a personalidade ca "en-
o herói mobilizado em Maria ao ver seu ilho colhida", passandoa operar em níveis anteriores
Sendotorturado emortoe nada poder fazer. de funcionamento, de maneira xada.
Se pensarmos simbolicamente, o que Maria Seu conceito de regressão simbólica (Jung.
podefazer é nadapara "'salvar' seu lho: ela não 1986), isto é, de que diante de uma di culdade
978-85-7241-915-4 maior, "há que se recuar para melhor saltar", con-
forme a expressāo, corresponde ao conceito
Sindromede Estocolmo (www.wikipedia.org). atual de CPT, no qual ao "recuo" induzido pelo

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242 PsicologiaAnalitica

trauma (conceito de centroversão de Neumann Há que se tomar cuidado com o timing das
[1991]) segue-se umcrescimento da personalidade. diferentes emoções que surgem durante o pro-
QUando Jung (1981) fala em potencial de cesso psicoterápico: dor, desesperança, tristeza,
individuação, referindo-se às diferenças indivi- medo, raiva, vingança, etc. Há um longo caminho
duais com relação ao processo de individuação, até a aceitação. Éimportante que os temposnão
creio podermos fazer um paralelo com o atual sejam apressados, pois se trata de um processo.
conceito de resiliência. Aspessoas têm diferentes O trabalho coma família é importante, ha-
potenciais para lidar com as questões existen- vendo, ameu ver,riscos a serem evitados, como
ciais, podendo "aproveitá-las" ou não para o de que cada pessoa da família pode estar em
acelerar seu processo de individuação. um momento emocional diferente em relação
ao fator traumático. Por exemplo, diante da
TRATAMENTO DO TRANSTORNO morte sútbita de alguém na familia, enquanto a
mãe pode estar ainda muito tomada por emo-
DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
ções dolorosas, os irmãos já podem estar
Podemos considerar três tipos de tratamento: sentindo raiva (por exemplo, pela má sorte). o
psicofarmacológico, psicoterápico e misto, sen- que pode tornar a elaboração conjunta (terapia
do este o mais indicado. familiar clássica) muito complicada.
No trabalhopsicoterápico,emresumo,temos
de tentar evitar duas situações opostas: por um lado,
Tratamento psicofarmacológico trabalhara vivência traumática (relato, recorda-
Os ISRS con guram a primeira linha de medica- lção, etc.) para evitar que ela vá para a sombra;
mentos para oTEPT.Propranolol (betabloqueador) por outro, tomar cuidado para que o própio traba-
e clonidina (agonista noradrenérgico) foram Iho não reedite o trauma. Entre uma extremidade
USados com bons resultados em ex-combatentes le outra caminha a "arte" psicoterápica.
com TEPT, O que comprova a hiperatividade É frequente que a vivência traumática mo-
noradrenérgica na manutenção dos sintomas bilize a Sombra, onde traumas anteriores são
de ativação autonômica. mobilizados e vale a pena serem trabalhados.
Vários medicamentos foram usados para kor exemplo, a morte traumática de um ente
tratamento do TEPT, sendo os ISRS aqueles que querido pode trazer à tona vivências de perdas
apresentaram melhores resultados, em especial anteriores também dolorosas. O medo de que
quanto aos sintomas de embotamento e hi- se reediteo fator traumático é frequente.
peratividade. Especi camente para sintomas O trabalho com as defesas é necessário. Fre-
intrusivos e aumento da impulsividade, a car- quentenente, encontramos negação. Àsvezes,
bamazepina tem sido usada com sucesso. Para a vivência traumática nãoé negada, massUa
pesadelos e ashbacks, a clonidina tem sido útil. importância é relativizada, como defesa. Os
deslocamentos so também comuns, ou sej,
fatos de menor importância são sobrecarrega-
Tratamento psicoterápico dos coma força do fator traumático.
Há váias propostaspara o tratamento psicoterápi- A formação de bode expiatório atende as
co, como dessensibilzação e reprocessamento por projeções tanto de vitima (a víitima é sempre o
meio de movimentos oculares (EMDR, Eye Move- outro: a família, até mesmoo agressor,etc.) quan-
ment Desensitization and Reprocessing), criada por to de culpado (a culpa é de outro que não o
Francine Shapiro na década de 1980; expeiência agressor: familia, sociedade, etc.).
somática, de Peter Levine: e as terapias breves ou Donald Kalsched (1997), em seu "The inner
focais, com enfoque psicodramático, comporta- world of trauma", e Jerome S. Bernstein (2005).
mental Ou psicodinâmico. em seu "Living in the Borderland", discutem o
QUanto à abordagem junguiana, é importan- ponto de vista junguiano sobre essesfenômenos.
te que se foque a cadeia simbólicamobilizada Como um fenômeno complexo no qual todas
pelo trauma. Os símbolos, OU cadeia simbólica, essas defesas estão presentes, encontramos a
que aparecerem nas vivências, enmoções,sonhos, síndrome de Estocolmo, em que existe a identi-
etc.. poderão ser associados ao trauma, visando cação perigosa com o agressor. Dessa maneira,
à sUa elaboração. A tentativa é evitar que a vi- o agressor é inocentado, podendo passar, na
vência traumática, ou parte dela, vá para a vivência do indivíduo traumatizado, deagressor
Sombra, e propiciar que seussírnbolos sejam inte- a vítima. n situações de resgate devitimasde
grados ao campo da consciência. sequestro, a síndrome de Estocolmo di culta, às

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Estresse Pós-traumático e Psicologia Analitica 243

vezes, até mesmo a ação da polícia, pois o se- BERNIK,M.; CORREGIERI, F: CORHS, E.O medo, os transtornos
questrado tenta proteger o sequestrador. A ansiosos e sua siopatologia. In: BUSATTO, G. F. (ed.).
vítima pode se sentir culpada (porque se descui- Fisiopatologia dos Transtornos Ansiosos. São Paulo:
dou, etc.), sendo essa falsa culpa uma maneira Afheneu, 2007.
de lidar com a impotência. A culpa, ainda que BERNSTEIN,J. Living in the borderland. The Evolution of cons-
falsa, implica certa potência, certa quantidade ciousnessand the challenge of fealing trauma. London:
de poder para desencadear ou evitar o evento. Routhedge, 2005.
É frequernte também a esquiVa, oU seja, a evi- FREUD,S. (1919) Introdução à Psicanálise e às Neuroses de
tação do tema, transformado às vezes em tabu, Guerra. Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Edição Standard
di cultando a discuSSão terapêutica com o indiv- Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sig-
duo traumatizado sobre a situaÇão traumática. mund Freud, v. VI).
Essa situação traumática, cercada de tantas FREUD,S. (1920] Além do Princípio do Prazer. Rio de Janeiro:
defesas, tona-se objeto de preconceitos, trazendo Imago, 1969. (Edição Standard Brasileira das Obras
SUadiscuSSão OU mesmo sua lembrança sensação Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XVII).
de vergonha para o indivíduo. Os indivíduos se- GALIÁS, I. Pais e Flhos: uma rua de mão dupla. Junguiana.
questrados, por exemplo, muitas vezes se sentem v. 21. p. 69-80, 2003.
"envergonhados" por sentirem que foram incapa- GALIÀS, I. Trabalhando com Familias de Sequestrados. Con-
zesderesistirou evitar o sequestro. Vemos o mesmo ferência proferida na Pontifícia Universidade Católica
fenômeno com famílias de suicidas. de São Paulo, 2006.
JACOBSON, G. F.Crisis - oriented therapy. Psych. Clin. North.
Am., v. 2, n. I, p. 39-53, 1979.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
JUNG, C. G. A Função do Inconsciente. In:O Eu e o Incons-
A importância clínica do diagnóstico deTEPTnos ciente. Parte ll. Cap. I. Petrópolis: Vozes, 1981.
parece grande. pois ajuda a propiciar instrumen- JUNG, C. G. A Personlidade Mana. In: O Eu eolnconsciente.
tos terapêuticos. A intervenção precoce é Parte l. Cap. IV. Petrópolis: Vozes, 1981.
fundamental para evitar que as defesas quem JUNG, C. G. A Psicologia do Arquétipo da Criança. In: Os
muito estruturadas. Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes,
Busca-se tratar oU prevenir, após o tràuma, o 2000. p. 151-181.
desencadeamento do TEPT. A tentativa é, me- JUNG, C. G. Morte e Renascimento. In: Símbolos da Transfor-
diante trabalho com as defesas e a prospecção mação. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 363-364.
dossímbolos, ajudar a ativar a resiliência, promo- JUNG, C. G. Morte Simbólica. In: Simbolos da Transformação.
vendo o CPT, Coma ativação do arquétipo do Petrópolis: Vozes, 1986. p. 433.
herói da ação e contemplação, e a consequen-
JUNG, C. G. Restabelecimento Regressivo da Persona. In:
te mobilização do arquétipo da criança divina.
O Eu e o lInconsciente. Parte I. Cap. IV. Petrópolis:
Dada a intensa mobilizaçāo de ansiedade. Vozes, 1981.
contratransferencialjá mencionada, bem como
JUNG, C. G. Sentido Simbólico da Regressão. In: Simbolos da
o risco de contaminação contratransferencial
Transfornação. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 644.
também já mencionado, há que se ter cuidado
KALSCHED,D. The Inner Word of Trauma. London: Rutledge,
com o furor terapêutico, que pode atrapalhar.
1997.
Bon senso e a lembrança do primum non no-
cere(antes de tudo, não prejudique) podem ajudar. NEUMANN, E.A Criança. São Paulo: Cultrix, 1991.
Por m, é fundamental que nos lembremos SANTOS, E. F. Avaliação da magnitude do transtorno do es-
do potencial curativo do Self, que estará sempre tresse em vítimas de seqüestro. 247p. Tese (Doutorado)
ajudandoo processo terapêutico. -Faculdade de Medicina Universidade de São Paulo.
São Paulo, 2007.
SELYE,H. The Stress of Life. New York: Mc Graw Hil, 1976.
REFERÊNCIAS
VARGAS, N. S. Abordagem do paciente terminal: aspectos
ARAÜJO, C. A. Novas ldeias em Resiliência. Hermes, n. 11,p. psicodinâmicos - A morte como sinmbolode transfor-
85-95, 2006. mação. Junguiana, v. 5, p. 63-68, 1987.

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CAPÍTULO 28
Transtornos Alimentares-
Obesidade na Visão Analítica

LILIANA LıvIANO WAHBA

Você tem sede de quê? Qcentro da fomee dasaciedadeencontra-se


Você tem fome de quệ? nohipotalama foco central dosistemalímbico no
(COMIDA -TTĀS) cérebro. Ocore, no transtorno alimentar, uma
provável alteraçāo no nível hipotalâmico, assim
INTRODUÇÃO como a interação com mecanismos mais comple-
XOsdo córtex cerebral relacionados à alimentação
De modo amplo, entende-se portranstorno alinen- (Herscovici e Bay, 1997: Ballone, 2009; Rossi, 1994).
|tar um desvio do Compotamento que pode levar Principal integrador dos sistemas reguladores
ao emagrecimento extremo (caquexia) ouà obesi- básicos do corpo (fome, sede, sexo, temperatura.
dade, entre outros problemas sicose incapacidades. batimenjo cardíaco, pressão sanguínea), o hipo-
Estudos epidemiológicos demonstram aumento de tálamo recebe sinaisde todas as partes dosistema
incidência de algunstranstornosalimentares conco- nervoso, funcionando como intercâmbio central
mitantes àevolução do padrão de belezafeminino de informações voltadas para o bem-estar do
para o corpo magro, ou sejaem parte,seria uma corpo como um todo. Aexperiência docomer
síndromeligada àculturg. Há de se levar em conta relaciona-se avivênciosprévias,comosentimentos
também a mudança de hábitos na sociedade desegurançaouinsequranca.gfeto eamamen-
ocidental, que favorece alimentos sob forma de tação, bem comoo aspectosocialdeconvívio.e
produtos prontos repletos de gorduras e açúcares. decomuntcação.Oprocessodealimentaçãoé
Os transtornos principais sāo a anorexia e a regulado porfatores múltiplos, desdeconstitucio-
bulimia e, entre outros, existeaobesidade mórbida, nais atè ambientais.
a falta de apetiteea cise de comercompulsivo HerscovicieBay(1997)consideram queainges-
(binge eating disorder), que consiste em episódios tãoexcessivaéacompanhadademedode
de voracidade fágica, mas sem uso de método engordat,eque acompulsãoalimentarsegenera-
purgativo como na bulimia.Estetranstorno acome- liza como um recurso para aliviartransitoriamente
3:2 te três mulheres para cada dois homens e sUa
prevalência é de 2% na população geral e de 30%
9mal-estaremocionalque pode terciversasor-
gens,desde o aborecimentoàdepressão,juntoa
entre obesos que procuram tratamento para ema- ansiedade ouimitacão. Depois do comer compu-
grecer (Ballone, 2009). O Diagnostic and Statistical sivO,a pessoa se sente culpadae se atormenta pela
Manual of MentalDisorders,da American Psychiatric sensação de perda de controle aoproduzirperda
Association, classi ca como ENDOS (eating disorder de pesoe fome, rompe-se o circuito natural de
not ofherwise speci ed) os transtornos alimentares fome-comida-saciedade, desencadeando nova
não especi cados, cujo principal sintomaéo binge. Compulsão, e assim sucessivamente.
A obesidade em si, na quarta edição do Manual Aparece com frequência um sentimento de
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (culpa vinculado ao afeto da culpa primordial
(DSM-V, Diagnostic and Statistical Manual of Mental ldescrita por Neumann (1973), proveniente da
DisordersIM),éreconhecida como condição clínica ativacão do arquétipa da Grande Mãe negati-
e não faz parte dos transtornos alimentares. va sintetizado na avaliação de que "eu devo ser

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TranstornosAlimentares - Obesidade na Visão Analitica 245

muito ruim, por sentir algo uim". Outro aspecto erradicar um inimigo, medo de pivação, neces-
da culpa associa-se ao animus cri co e persegui- sidade afetiva, reação a separação ou perda,
dor, diante do qual sempre se falha. A tentotiva) desejo de incorporar oralmente o outroO pa-
de expurgar,de livrar-se da culpa, pode ser ciente obeso seria geralmente regredido e
cOmpulsivamenteatuada no ritualdosvômitos narcísico, com defesa de proteção e de isola-
na bulimia. mento atuada no excesso de peso. O paciente
tem di culdade de desapegar-se da imagem
OBESIDADE E RISCOS corporal introjetadae procura certo çontrole da
dor emocional por meio da comida. QUandoa
Etimologicamente, obesitas (lat.):gordura. çorpu- obesidade é estabelecida, o paciente vive em
lência: obesus/obedere: que comeu até engordar, função das di culdades que esta lhe acareta:
comer, devorar; ob- sobre; -edere: comer (Online falta de energia, limitação da exposição social,
Elymology Dictionary]). di culdade sexual, vergonha, sentimento de in-
A prevalência de sobrepeso já é considerada ferioridade. Importaperceber em que nmomento
problema de saúde pública com números im- o transtorno se instala, geralmente em fases im-
pressionantes: de aproximadamente 6,6 bilhões portantes da vida: desmame. puberdade,
de habitantes no mundo, de acordo com esti- casamento, perda, mudança.
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mativa da Organização Mundial da Saúde
(OMS), um bilhão de adultos teriam excesso de TERAPIAS
peso e.300 milhões seriam considerados obesos.
Há incidência crescentetambém em crianças. Uma combinação de medicação e psicoterapia
Uma multiplicidade detatore contribui para esse é adequada, mas há quadros, comoa anorexia,
transtorno, entre os quais fafores de predisposi- em que a medicação pouco in ui. Consideran-
ção genética, fatores ambientais eestilo de vida. do-se que a interface entre mente e cérebro,
Pesquisas têm sido realizadas em epigenética, psicologiae biologia, seja o diferenciador das
que trata do estudo de fatores ambientais in- neurociências no novo milênio, os tratamentos
uenciando a expressão gênica. para esse e outros tipos de transtornos devem
Ainda de acordo com a OMS, a obesidade sermultidisciplinares.
é o principal componente de incidência de Questiona-se se os transtornos alimentares e
doença crônica e de incapacidade, com risco do humor seriam produtos de uma diátese co-
de doenças crônicas graves como diabetes tipo mum ou se trataria de uma comorbidade. De
2, hipertensão, acidentes vasculares cerebrais e qualquer forma, em ambas as situações, o clíni-
çertos tipos de câncer. A Sociedade Brasileira de co opta pela terapêutica farmacológica, em
Cardiologia aponta que, no Brasil,80% da popu- geral associada a outras abordagens psicoterá-
lação adulta é sedentária, 32% tem sobrepeso picas. Na anorexia e na bulimia, os transtornos
e,8% sofre de obesidade. do humor podem ser comórbidos e se iniciam,
Kaufman (1998) esclarece que há doistipos de na maioria das vezes, na adolescência. A gbe-
obesidade:reativa e de desenvolvimento. Esta úti- sidade costuma ser acompanhada de depressão.,
maéobsevada desde ainfância e a pessoa tende mas é di cil dizer se seria reativa, isto é, secun-
gvivenciardesejos variados como uma necessidade dária auma alteração em relaçāo à autoimagem
de alimento. A obesidade mórbida é de nida e baixa autoestima. Diversos neurotransmissorest
quando o peso é pelo menos 100% acima do ideal associados aos transtornos do humor parecem
(índice demassa corporal maior que 40). A depres- estar também relacionados aos transtornos ali-
são e a ansiedade podem decomer da rejeição mentares: serotonina, norepinefrina, opioides
que esses pacientes sofrem, mas há transtorno do endógenos e melatonina (Messias, 2009).
humor e quadros fóbicos associados. De acordo A depressão costuma associar-se a essas
com o autor, em termos sicos, osriscos constituiiam sindromes. Segundo Saiz (1998), a depressão
uma autoagressão, via hipertensão, afecção coro- deve ser compreendida como síndrome na qual
nariana, diabetes, acidentes. O obeso tem uma intervémomicrossistema biológico. psicológico.
imagem negativa de si: luta contra seu corpo, o existencial, em interação com o contexto fami-
que é mais grave quando o quadro se inicia na liar, sociocultural e ecológico-ambiental. Esses
adolescência; o ego é frágil e as pulsõesagressivas pacientes vivem uma tríade simbólica de croni-
e eróticas São canalizadas para a oralidade. cidade, dependência e perdas. Se essas
Kahtalian (1992) descreve "traços psiconeu- vivências simbólicas não são elaboradas no
ró cos" do comer em excesso: desejo hostil de decorrer do processo de individuação, elas pas-

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246 PsicologiaAnalitica

Sam a se orgoanizar como estruturas depressivas transtorno do humor. Particularmente, quando se


defensivas; a raiva se volta para si. A pessoa trata da vergonha internalizada, consiste em
deprimida vive em funçāo do passado, na ne- "constelaçao paricular de pensamentosesenti-
gação do presente e carente de um futuro real, mentos negativOS sobre si mesmo, frequentemente
persistindo em um futuro irreal carregado de associados a memóias e cenas afetivas" (p.40).O
frustração, incerteza e autodestrutividade. autorassinala que, além da experiênciapessoal
Byington (1995) assinala que, na depressão, a de um afeto perturbador, há modi cações sio-
introjeção de conteÚdos negativos faz com que lógicas, em parte, decorentes desentimentosde
o indivíduo tenha uma autoimagem negativa. hostilidade e de rejeição que impactam os hor-
Apartir de uma revisão de publicações(Yager mônios de estresseeogrupo deneurotransmissores
et al., 2006: Francischi et al., 2000; Wilson, 2005) como dopamina e serotonina.
conclui-se que uma abordagem mista é mais Ainda,segundo o autor, a vergonhaprovoça
adequada, compreendendo medicação (quan- autocríiticae autoataques que in uenciama
do necessána), educação alinentar, apoio social psicopatologia comsentimentosdeautodespre-
e familiar, exercícios sicos e psicoterapia. As psico- ZO e de raiva dos quais o paciente quer selivrar,
terapias mais reconhecidas pela classe médica são desejandoremover oudestruiro aspecto odiado
as cognitivo-comportamentais e as interpessoais: de si mesmo.Nesse sentido, a pUrga seriaumg
terapia focal breve que trata derelacionamentos. dasformas- osintoma - deum atoinconscięn-
Reconhece-se que as terapias psicodinâmicas li- te para se livrar do mal-estar.
dam com estruturasprofundas de constituição da A vergonha é uma experiência dolorosae
identidade e da autoestima; no entanto, poucas aguda tipicamente acompanhada pelosentimen-
pesquisas com resultados comprovados realiza- to de terfalhado en algum ideal, de serpequeno,
ram-se com elas. Embora, em geral, o resultado de alguma desvalia, incapacidade: é considerada
seja mais rápido e imediato com a terapia cogni- um afeto primário. Surge no desenvolimento com
tivo-comportamental, a terapia psicodinamicaé o aumento da consciência de si, uma consciência
e caz a longo prazo quando o paciente aceita o dê ser visto cuja função seria salvaguardar a inti-
processo mais demorado. Ressalta-se a necessi- midade individual (Schmitt, 2006). As pessoas
dade de mais estudos, dado o alto índice de teriam suscetibilidade à vergonha e esta é ligada
recorência desse transtorno. ao senso de autoestima (Jacoby, 1994).Aautoes-
tima retrata o valor Qudignidade quealquém
atribui a si mesmoe liga-se à autoimagem, não
AUTOESTIMA, VERGONHA E RAIVA necessariamente conscientee anraigadaemava-
liaçõesrecebidas no início da vida. Odenominado
)Nostranstornosalimentareshádistorçãodaimg- complexo de inferioidade liga-se à baixa autoes-
lgem coporal.A imagemdesire ete-senaimagem tima e à vergonha.
çorporal e, quando háimagemCorporaldistorcida,
Aunmagemlo indivíduopensadeformaexageradaemuito De acordo com aspremissas da teonajunguiana,
qutocrítica, com atenção seletiva focandoSomen- a gutoestimapositivaestáatrelada àligação do
te algunsaspectos eConsiderandoquetodos ego comaabrangênciapsíquicadapersonalidade
pensamsobreele da forma como elese vê Cordás maisampla,o Seli,eàdisposiçãobásica decada
et al., 2004). Veremos a seguir componēntes da indivíduo para a inteqracãodapersonalidade.
maumagm Schmitt (2006), enm sua revisāo sobre o tema,
personalidade que in uenciam negativamente a
constituição da autoestima e da imagem corporal. assinala quatro tipos de estratégia defensiva
Apesar de não seremexclusivos do transtorno estu- para lidar com a vergonha, as quais são vividas
dado, constituem fatores psicológicos que nos de modo peculiar pelas pessoas comtranstornos
ajudam a compreendêlo e tratá!o. alimentares, em particular as obesas: retirada,
De acordo com Gilbert (2002), sustenta-sea levitaçao, ataque a si próprio, ataque aooutro.
Jacoby (1991) descreve o transtorno deperso-
hipótese de que perturbaçõesnaimagem cor-
poral e ng qutoestimacorporalenraízam-seem nalidade narcísica como uma autoimagem
distorcida, baixa autoestima e faso self, conceito
processos relacionados à vergonha.Essepesqui-
de si mesmo enganoso. Complexos parentais são
Sador infere, a partir deestudos,que a vergonha
na infância e na adolescênciaépassivel de efeitos ativados, a imagem materna negativa e opaique
profundos na imagem corporal e no funciona- 978-85-7241-915-
mento psicológico em geral. A vergonha corporal

Utilizomos a gra a Self com maiúscula para o termo junguiano que serelere
pode se igar a uma série de patologias que in- à totalidade da psique (consciente mois inconsciente). e self para o sentido
cluem transtorno alimentar, ansiedade social e de eu. da identidade.

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Tronstornos
Alimentares-ObesidadenaVisãoAnalitica 247

di culta a idealização positiva. O arquétipo rejei- ambos e que muitas pessoas que sofrem do
tador ou devorador da Grande Mãe predomina transtorno alimentar possuem traços semelhantes
no inconsciente: "Tais pessoas são geramente hi- aos descritos no transtorno de personalidade
persensíveisa cada nuance do comportamento narcísica. Trata-se. certamente, de abalos que
de outros, prontos a interpretar a menor dissonān- ocoem nosprimórdios do desenvolvimento.
cia como rejeição oU ofensa" (p. 179). A noção de complexo e de trauma nos oju-
Hoveriang infêncig uma xação noSelfgron- da a compreender esses abalos psicológicos.
dioso e posterior sentimento de infeioridade, com
sintomas como di culdades sexuais, inibição social
COMPLEXOS E TRAUMA
edi culdadede manterrelações,comcaracte-
risticas de personalidade como falta de humor, "Transtornonervosoconsiste primaiamente emuma
falta de empatia,tendência a raivaincontrolável alienação com respeito aos próprios instintos,
ementirapatológica. Araivaassocia-seàpresen- uma dissociação da consciência em relação a cer-
Ça desentimentos de inveja edefesas contra esta, tos fatos básicos da psique" (Jung. 1978a. par. 808).
como controle onipotente e retirada narcísica.Isso Jung desenvolveugteoriadoscomplexosa
não signifca que a pessoa sejaidenti cada como partirdeexperimentos
de associaçãomediante
narcisista,já que pode parecer timida, adaptada OSqUaispesquisOUO papel perturbador de emo-
e autocritica. Como sintomas psicossomáticos Çõesinconscientes.A causalidade traumática
aparecem hipocondria, preocupação com a deve ser compreendida junto a fatores estruturan-
saúde e distúrbios vegetativos em váios órgãos. tesinteriorese dafantasia, em que ain uência
Frequentemente se associa a depressão: oscilação externa alia-seà interna para constituir o feixe de
entre grandiosidadee depressão com necessida- associações traumáticas ou dolorosas. Os primei-
de constante de reconhecimento. "As pessoas [oSComnplexosderivam da experiência dolorosa
narcisicamente feidas permanecem famintas.pois
com ospais.Assim,um complexo materno negg-
a comidaoferecida pelo outronuncacomespon- vo ocasiong umsentimentode abandono que
de asuasexpectativase é. consequentemente. seriacompensado pelo alimento de uma mãe
rejeitada Jacoby. 1991.p. 159). nutridora.,na tentativa de apoziquar a ansiedade.
Teria havidonessaspessoas uma falta de, o medoeasolidão.
reconhecimento e deespelhamentonginfância. Kalsched (1996). reconhecido teórico no
com decorrenteexperiênciade vergonhae de campo da psicologia analítica, descreve o im-
embaraço enecessidadeenorme de atençāo pacto do troumaļe dos gfetosinsuportáveis,na
do outro,aomesmo temp0 emqueexistetemor personalidade. Observa a ansiedade primitiva e
de rejeiço edehumilhação. suas defesas personi cadas em sonhos e produ-
De acordo com Neumann (1973). quando não tos imaginários da psique mediante temas eSrvaudad
há modelopositivongrelaçãoprimal,aggressao. imagens arquetipicas demoníacas. O autor pos-
fundamental à luta pela independência, não tula que a integração constitui uma ameaca
pode ser integrada e desenvolve-se o narcisismo. insuportvel e um Self primitivo toma conta via
O ego estressado da criança registra impotência violência arquetipica.que, paradoxalmente.
e raiva, desamparo, alarme e ameaça, o que protegeo ego imaturo que não consegue uma
provoca uma reação compensatória egocêntri- mediação gdequada. QUando a ferida narcísi-
ca, narcísica. A raiva e a agressão no estágio Ça atinge ocerne da personalldade,a mortese
alimentar transformam-se no "desejo Sádico de associaà devastação dos instintos primários e
devorar a mãe" (p. 76). O ego estressado da seUCampoarquetipiço.HoUve uma quebra da
criança, sob ação da imagem de mãe terivel, autoestima e da autovalorização, sem capaci-
desenvolve experiência de si, do mundo e do dade de autoasserção e autocon ança do ego
outro, marcada e caracterizada pela fome, pela em razão de uma falha no desenvolvimento da
insegurança e pelo desamparo. criança, que não encontrou um continente ma-
Quando o ego já adquiriu estabilidade e terno em momentos de angústia. O desespero
consolidação, torna-se defensivo e ńgido. Forma-se trazsentimentosregressivosde dissolução e au-
um círculo vicioso em que a rigidez do ego, a toabandono, e o inconsciente ativa imagenş
agressãoe o negativismo alternam-se com sen- ateradoras. No entanto,essasfantasiasincons-
timentos de desvalia, inferioridade e desamor. cientes de desmembramento. desintegração e
Apesar de não podermos caracterizar o até de morte seriam também uma tentativa
transtorno alimentar como narcisismo de modo desesperada de não sucumbir novamente à
geral, percebe-se que há uma interface entre aniquilação outrora vivenciada.

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248 PsicologiaAnalitica

Feldman (1995) postula que, no desenvolvi- re, a partir de estudos clinicos, que os complexos
mento, quando há forte sensação de ameaça, podem seexpressar simbolicamente na polaidade
um sistemadefensivoemergeespontaneamente corporal como sintomas,unmavez que mecanismos
do Selfprimal:"Essasdefesasdo Selfsãodesigna- inconscientes impediiam que eles fossemintegra-
das apreservar osensO de segurança individuale dos à consciência. A partir da teoia dos complexos,
proteção, mas também criam uma bareira impe- o sintoma pode ser considerado um símbolo na
netrável entre o Selt da criança e seuambiente sUa escala inferior de possibilidade de conscienti-
numperńodoquando g ciancacomecagdesen- zação. De acordo com essa teoria, ocore uma
volver uma função simbólica" (p. 174).Como integração na psique por meio da conscientização
consequência duradoura, o desenrolar da expe- via símbolos, diferenciando-se daquela forma mais
riência simbólica e arquetipica é distorcido. arcaica, que seria o sintoma.
O assinalamento dado é importante, pois a Os pesquisadores atuais estão de acordo
função simbólica possibilita o emprego da ex- com o que Jung (1978b) enunciou sobre a fun-
periência psicológica interna e a criação de ção transcendente, ampliando o conceito para
signi cado a partir dela, a m de promover a o campo da psicossomática.por exemplo, como
integração emocional e o desenvolvimento no conceito de transdução de Rossi (1994).
Iprocesso de individuação. Oralidade e alimentação são abase dodesen-
Bromberg (2009) considera que pacientes com volvimento psico sico e o primeiro contato com o
transtornos alimentares sofrem de dissociação em outro na relação primal quando ainda não existe
decomência de trauma que abalou sua capaci- diferençaentre umeue um tu. O distúrbioalimentar
dade de con ar em si e nas relações e ocasiona costuma sinalizar uma regressão e fxação em uma
impossibilidade de fazerescolhas.O desejose tor- etapa pregressa,talvez do início da vida. Deve-se
na inimigo e estabelece-se luta entre controle e admitir, contudo, que um novo commplexose origine
soltura do desejo. Comer se torna mais autoprote- da situação traumática emergente, em qualquer
Ção do que apetite.No ato decomercompuSivo etapa dodesenvolvimento.
ohá um estreitamentocognitivo,Um padrão para
Opm escapar da consciênciae nessesentido.protetor. APSICOTERAPIAANALÍTICA
eomiDQU melhor, defensivo. O autor parte das formula- DO TRANSTORNO ALIMENTAR
Ções de Piere Janet para compreender estados
dissociativos. A dissociação seria uma forma de Bromberg (2009) assinala que o paciente deve
sobreviver ao sentido de aniquilação ocasionado tolerar a vergonha e suportar a emoção eo
pelo trauma, assim como na natureza algumas afeto trabalhando no aqui e agora. A obesidade
espécies o fazem biologicamente. não pode ser lidada meramente como uma
Sintomas que revelam estados dissociativos patologia a se livrar. Tais pacientes estimulam no
são esquecimentos, faltara compromissos,distúr- analista sUas próprias experiências dissociativas
sorgn! bios de atenção, assim como falta de contato e. por isso, são considerados difíceis. Uma asser-
com o corpo e atos compulsivos. Em decorrência ção interessante do autor é que essespacientes,
dessa dissociação há prejuízo na capacidade de por não poderem desejar, querem serdesejados
regulação dos afetos e insegurança nas relações pelo outro. No entanto, são destinados à frustra-
afetivas. O desejo torna-se desregulado e acen- ção, posto que, inconscientemente, repelem o
tua-se a voracidade compensatoriamente: em contato e, acrescentamos, como um Tântalo
última instância, uma solução não humana para que jamais satisfaz SUa sede.
compensar a experiência de perda. Em vez de Brink e Allan (1992) compararam sonhos de
voracidade pode ocorrer renúncia, como forma mulheres com bulimia e anorexia com um grupo
de antecipar e se proteger de reviver o trauma. controlee encontraram nelas temasrecomentes:
O autor embasa-se na teoria do apego, que es- desfecho negativo, ser atacada e observada,
tipula que as primeiras relações de vínculo atitude de fracasso. Aparecem conteúdos de
possibilitam que, neurologicamente, se estabele- ineiciência, raiva contra si, emoções negativas.
ça a capacidade de regulação de afetos e de inabilidade de se autonutrir, obsessão com peso.
sentimento de vínculos humanos seguros. Os autores concluem que, na terapia, o foco nos
Uma autora que trabalha com o enfoque jun- sonhosfavorece a mudança ea transformação
guiano dentro das teorias psicossomáticasé Ramos positiva de defesas, mais que a insistência em
(1994). que vê no sintoma uma forma arcaica de mudança de comportamento.
simbolismo, comregressão a formas mais primitivas Siegelman (1991) pergunta-se por que alguns
de relacionamento entre corpo e mente. Ela infe- pacientes se encontram xados em um nível oral

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Transtornos
Alimentares- Obesidade na Visão Analitica 249

em vez de desenvolver outra forma de neurose. do transtornoassume o papel de paciente iden-


Na anorexia,percebeexperiência de materng- ti cado. O arquétipo do herói necessita ser
gem inadequada e não empática. O sintoma fortalecido para estruturar a alteridade, oU seja,
alimentar seria decorente da privação de aten- psicodinamicamente, superar a xação edipica
dimento a necessidades básicas. Tais pacientes pela constelação da alteridade.
sofreriam de um desejo de amor insaciável e o Wieland-Burston(1996) também considera que
sintoma alimentar seria uma tentativa, ainda que a anorexia às vezes é desenvolvida como resposta a
patológica, de adquinir alguma identidade e sen- umaproCUrapelaindividualidade e de quererse
tido. Quando seempantumam, o enorme vazio é separar do controle familiar, Na bulimia hOveria
temporaniamentemelhoradocom acomida. uma dependência de grati caçāo materna. A
A autora descreve sintomas de enxaqueca terapia procura conscientizar os papéis familiares
e tontura como uma regressão do desejo de ea dependência,assimcomo ativar a autono-
autonomia e medo de separação da mãe. A mia mediante a conexão com o fundamento
interpretação é que o paciente tentase tornar arquetípico da personalidade. Outro sentimento
indestrutível e onipotente cómendo demaisou subjacente é a solidão que, segundo a autora, é
procura acabar consigo via inanicāo,con gu- síndrome recorente da sociedade pós-industriali-
rando um símbolo de possível ressurreição. O Zada, com acréscimo de pessoas desenraizadas
trabalhoanalitico foca oscomplexosparentais sem lugar na vida familiar que procuram atividades
e as vivências regressivas inconscientes. compensatóias como televisão, vídeos, internet.
Cancilla (2009) também considera que o foco drogas e álcool, que as ajudem a manter o sofr-
no comportamento não leva a resultados dura- mento decomente do isolamento sob controle.
douros e que o paciente se encontra dissociado: Desenvolve-seumquadro semelhante ao transtomo
a dieta é uma luta consigo mesmo fadada ao de personalidadenarcísica, com baxa autoestima,
fracasso. Assinala que a mudança deve ser feita falta de empatia,sentimentode esvaziamento.
internamente, mediante mudança psiquica e sentir-seincompreendido, ma-amado e muitosen-
compreensão de complexOs, imagens arquetipi- Sível acríticas,com expectativasingênuas a
cas, assim como ligação ego-Self, ou seja, uma respeito dos outros e sempre desapontadas. A au-
reorientação do ego e da imagem corporal em tora também descreve o circuito reforçador da
conexāo profunda com o inconsciente. rejeição e da retração e refere à metáfora arque-
Feldman (1995) relata um caso de uma jovem tipica de João e Maia, em quea bruxa emprega
bulímica que sofria de confusão a respeito da o alimento para atrair as crianças: "A necessidade
identidade e medo de initimidade. Com base na faminta de se fusionar ao materno" (p. 50).
teoria de Fordham, tece interpretações a partir Woodman(1995,2002)atritbui,em parte, o
de uma relação materna de citária. O sentimen- transtorno alimentar à predominância patriarcal
to de vazio, a depressão, a despersonalização denossacultura eo consequente afastamento
necessitaram ser contidos pelo analista, que das mulheres deSUasraizes instintivas, assim
ajudou a paciente a reconhecer emoções das como uma relação inadegquada com suasmães
quais se defende e encapsula autisticamente que, por sua vez,Sofreram com omodelo vigen-
em um universo dominado pela sensação restri- te. A mulher pode tornar-se perfeccionista e
ta à alimentação e preocupações como corpo. Obsessiva ou passivae deprimida. O resgate do
O autor descreve estados de regressão, com femininoreprimidoé buscadoem imagens de
raiva e destrutividade aumentadas Çonexão com oSelfe umadeusainteriorsimbó-
quando a
transferência atingia a relação mãe-criança. ica,assimcomo avalorizaçãodo corpo edos
Galiás e Sampaio (2006) referem na anorexia sentimentosrelacionados como feminino, na
e na bulimia um núcleo de distúrbio na estrutu- maternagem,nocUIdadodesienasensualida-
ração arquetiípica da Grande Mãe responsável de, A autoraprocuradesvendarnaanálise a
pela nutrição e fertilidade: psicodinamicamente. xação nos complexos, basicamente os paren-
um comprometimento na estruturação matriar- tais. A obesidadeseria umaresposta dein ação
cal, às vezes na relação primal. A compulsão à rejeição materna e a introjeção de um com-
glimentarrepresentariauma dependencia de ponente demoníaco destrutivo, em que a
grati cação materng. O arquétipo do pai. por infação representa o transcender delimites de-
SUG vez, é hipertró co, trazendo frieza, rigidez. fensivamente, assim como um desa o às normas.
controle, hiperexigência, obstinação, compulsão De certa forma, o corpo deformado é um ape-
e ambiguidade. Encontra-se com frequência um lo para uma necessidade de conscientização
sisternafamiliar disfuncional no qual a portadora do feminino não reconhecido e da falta primal.

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250 PsicologiaAnalitica

Um caso de bulimia foi descrito (Wahba, 2000) Jde se cuidar e maternalizar, o paciente engole
no qual se assinala- assim como Feldman (1995) comida com a fantasia primitiva de que sacia-
- que a compulsãoalimentare a purgaseriam Irá uma falta e recuperará o bem-estar.
uma manera de expelir o mal sentido em si mesmo, Há uma alienaçāo e um afastamento, um
como raiva,agressão,pensamentosautodestruti- recuar que Jung (1976) denominou medo da
vos. Mediante a análise de complexos e dos vida; e, quanto mais a pessoa recua em se
sintomas e seussimbolos subjacentes,e uma rela- adaptar à realidade, naiores a paralisação e
cãotransferencialprovedora desequranca o temor. Forma-se um círculo vicioso: O medo
possibilitQU-sea integracão eofortalecimentodo da vidae das pessoas faz com que se recue e
ego, assimcomo valorização da imagemcorporal se regrida aoinfantilismoe dependênciada
e aumento deautoestima,conmresultados
positivos mãe, esta simbolizada e não necessariamente
na eliminação do sintoma bulíimico, alivio da de- concreta, Jung aponta queo verdadeiro medo
pressāo,retomada dasexualidadee renovação é do ser instintivo, interior, que não é vivido por
de perspectivas de vida. se alienar da realidade.
Fome de quê?
Os pacientes com transtorno alimentar
(...) a gente não quer só comida, literalizam o que outros experienciam, sem ne-
a gente quer a vida comno a vida quer. cessariamente desenvolver tal transtorno. Plaut
A gente não quer só comer, (1959) descreve o que entende por pacientes
a gente quer comer e fazer amor. famintos com temas recorrentes de comida,
A gente não quer só comer, ainda que não seja o alimento concreto, e ca-
a gente quer prazer pra aliviar a dor. racterizados por personalidades imaturas com
(...) a gente não quer só dinheiro,
fraqueza de ego. Uma paciente tinha fantasias
(.) a gente quer inteiro e nāo pela metade.
de devorar o analista. De acordo com o autor,
A letra de "Comida", dos Titās, transcrita São paientes xados em objetos parciais que
parcialmente, retrata o signi cado do sintoma não apreendem a imagem completa do outro.
fome confundidocom apetite,ouafaltadefome Seu estado é de ansiedade constante, pois
enquanto negação da vida. "Querer a vida temem perder sua identidade e indiferenciar-
como a vida quer" e "querer inteiroe não pela se. Possuem núcleos de desenvolvimento
metade" é o anseio e a grande di culdade de muito vulneráveis que estariam xados em
concretizá-lo de pacientes que desenvolvem estágios primitivos do desenvolvimento, como
transtornoalimentar.Avoracidadeé umacom- g relação boca-seio, Paraproteger-se da
pensação para aquilo que não podeserassumido ameaça de desintegração desenvolvem um
por inteiroe, aodevorara comidaavidamente. falso selfQUnegam g vida. QUando um ego
exorciza-se opavor daprivação edo abandono. arcaicoé ativado, este reage sem ser capaz
QUadros diferenciados de transtornosalimentares de focar com nitidez e de sentir a continuidg-
revelam motivos inconscientes e determinantes de espaço-temp0.
arquetipicos semelhantes no que tange ao dis- A ponderação apresentada ajuda a
túrbio alimentar. compreender a di culdade desses pacientes
O simbolisno subjacente é precisamente a de se situarem no mundo, como se o que ocor-
fome - exagerada ou negada -, entendida de re em volta estivesse marcado por tempo
modo extensivo, com o signi cado atribuído pelo distinto, alheio à vivência temporal da pessoa.
afeto e pelo processamento da fantasia e de sUa Pacientes obesos chegam a estranhar SUa ima-
intrincada conexão com a história individual, fa- gem re etida e, além de sentirem o corpo
miliar e o contexto social. Consideramos fantasia alheio, o lugar e a época Ihes parecem estra-
o produto do imaginário humano mobilizado pelo nhos; uma sensação de irrealidade é frequente
inconsciente, individual e arquétipo, comum à em pacientes com transtorno alimentare traços
espécie humana. O sistena limbico tem conexões de personalidade narcisista.
com o córtex e este é prejudicado, nessescasos, Em pacientes da clínica, observamos que a
em sua capacidade discriminatória. As crises de obesidade associada a feridas narcísicas costu-
compulsão alimentar são indiscriminadas e disso- ma ser acompanhada de compulsão alimentar
ciadas. Tudo aquilo que falta confunde-se com e crises de raiva explosiva, assim como estados
a comida, necessidade básica do primórdio da dissociativos.Tais pacientes costumam "vomitar
vida, a qual é incorporada vorazmente. Incapaz verbalmente na sessão e di cilmente digerem o

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TranstornosAlimentares- Obesidade na Visão Analítica 251

que Ihes é oferecido na análise. É necessório Quanto ao sintoma neurótico de disfunção


conter antes a angústia, o medo de fragmentg- alimentar, possibilita-se sua integração na cons-
ção e de rejeição. Um sentimento de vazio e de ciência por meio do símbolo do alimento
impotência está sempre presente. materno primordial, elaborando a necessidade
Notamos homens obesos que apresentam de aprender aalimentar-seafetivamente ea
defesas paranoicas de intrusāo e ameaça a sua fortalecer o egocombatendo osentimentode
masculinidade, assim como fantasias eróticas inferioridade,abaixaautoestimge a vergonha.
tidas como perversas. Imagens introjetadas de A simbiose aliada à oralidade insatisfeita e d
pais persecutóios e de mães vitimizadase con- permanente sensação de vazio e de fome exis-
troladoras afetam a identidade e a potência. O tencial, sem poder enfrentar a vida e adquirir
corpo amedondado carece de virilidade su cien- independência, vai cedendo quando uma co-
te, o que muitas vezes é uma proteção contra nexão se faz com um sentido único de ser, com
impulsos destrutivos e agressivos. fantasias e simbolos pessoais e universais que
Observamos pacientes mulheres em que a resgatama história de cada um.
obesidade se associa a desamparo e querer ser Para restituir a imagem corporal saudável, é
alimentada pela mãe. Hápuellas com autonomia necessáńo tratar do orgulho ferido, da vergonha
afetiva reduzida, que sofrem de frio e de fome com o corpo, do desapontamento e de valores
quando amãe não as alimenta. Elas procuram os relegados. O paciente aprende a ver na vergonha
outrosde modo extrovertidoe amável, mas cum- o desejo escondido, quais são suas necessidades
prem papéis preestabelecidos, sem diferenciação. alémdapersonasocial,aprende alidar comexpec-
Pode haver, ainda, tendência à obesidade tativas e com o tempo e o espaço vivido, que foi
em mulheres que sofreram um abalo na puber- SUSpenso.Adquire con ança em um relacionamen-
dade, na época de maturação, e permanecem to seguro mediante a transferência, possibilitando
inseguras com respeito aos atributos femininos. recompor imagens internas de suporte.
São,às vezes, pro ssionais extremamente compe-
tentes e bem quistas socialmente, mas com A MORDIDA DA MAÇĀ
di culdade de relacionamento afetivo profundo
e de parceria. A partir do momento em que Eva mordeu a
Em todos esses pacientes, nota-se a ansiedade maçā, o desejo encorpou e não pôde mais ser
de ser e de pertencer, o temor de não ser visto de ignorado. O mito fundador da cultura ocidental
fato, a precariedade da identidade e da autoi- monoteísta repousa nesse primeiro ato de apro-
magem e a falha na conexão ego-Self, isto é, a priação e de incorporação. Coube à mulher
falha na integração de afetos, de imagens, de efetivá-lo. já que nela o corpo era inalienável.
pensamentos autênticos. Coube ao homerm a abstração e à mulher, a
O sentimento de solidão os acompanha, concretude. Primeiro como mãe, depois como
ainda que sejan extrovertidos, já que se sentem interlocutora de alteridade, representou para o
frequentemente desempenhando papéis para homem o corpo matriz, e neste residia o pecado.
agradar. ÁS vezes a raiva é reativa contra a pas- Pecado arquetipico da transgressão a D'eUs,
sividade e a submissão. que deixava de ser o todo poderoso nutridor
Quando a invasão de humores explosivos car- perante o qual uma atitude passiva de eterna
regados de afetos como a inveja e o sentimento receptividade embalava a humanidade no seu
de inferioridade é contida por um ego coeso, a berço dourado. Mito certamente, já que essa
agressividade canaliza-se para efetivar o protesto beatitude não se sustenta na antropologia.
enérgico de autoa rmação. Para possibilitar a Sustenta-se, quiçá, na ontogênese individual
elaboração de emoções (afetos) indiferenciadas, nos primórdios da fase uterina, registrando-se na
é necessáio um continente para a vergonhaea atualidade possibilidade de sofrimento fetal a
percepção da imagem de si, transformando o partir do quarto mês de gestação.
desprezo em observação atenta e cuidadosa. A fé cega é resquício desse mito, quando
Para lidar com a raiva atrelada às explosões -orações ao divino, olhos semicerados e bocas
narcisicas, a contenção e a anáise posterior da entreabertas aguardam o maná celestial.
dissociação e do trauma são necessáńas. A teonia De acordo com Jung, a atitude religiosa é
dos complexos oferece o instrumento terapêutico ativa e receptiva ao mesmo tempo: ativa na
para essa análise, que incorpora a relação trans- busca e no reconhecimento, receptiva na en-
ferencial com o terapeuta e o processamento trega. Cabe ainda diferenciar o que é dos
simbólico interior desse vínculo. deuses e o que é do humano.

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252 PsicologiaAnalitica

O corpo, constituinte de nossa identidade o resgate possiível se dá pelo amor que rompe
históricae terena, sÓ podia ser da alçada de seu com a tirania paterna, ainda que em proporçõo
habitante, homem ou mulher. Aos deuses o corpo de I para 50. Na terapia desses transtornos, o
celestial, ao homemomaterial. Compreendeu-se, amor e a autoestima, quando despertados, Qu-
no entanto, como: à mulher, o material. xiliam a recompor um corpo desorganizado e
Assim, a mulher tomou a dianteira eapossOU-se destruido; de fato, em proporção longe da ideal.
de seu corpo e, junto a ele, de seu desejo. A Além de explicações genéticas e constity-
oUsadia valeu-lhe o estigma patriarcal. Viu-se cionais para a di culdade de reverter hábitos
perante um paradoxo sem solução: trair a si e a alimentares e a tendência a engordar, os mitos
sUa materialidade ou trair a dominância do es- da cultura e os imperativos imbuídos nela devem
pírito cego e surdo a apelos humanos. ser tratados, já que tais batalhas di cilmente se
Ametáfora da mordidatranspõe-seàoralidade vencem individualmente.
e a sua satisfação básica ou impossibilidade
de fazê-o: estado de fome. Para compensar o
vazio, vimos que a ingestāo excessiva compensa, STE INDICADO
ainda que muito mal, tudo aquilo que está em
falta, insatisfeito. APA. Diagnostic and Statistical Manual of MentalDisorders.
Obesidade é um transtorno que atinge se- www.psych.org.
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bulimia incidem mais em mulheres, ainda que,
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ter digerido e incorporadoapromessacontida CANCILLA, D. The Psychology of Weight Loss and the War
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de mãe para lha. www.cgjungpage.org. Acesso em: 30/3/09.
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grego das Danaides. Os irmãos Egito e Danao tares. Rev. Psig. Clín., v. 31, n. 4, 2004.Disponívelem:
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Danao exila-se em Argos, onde se torna rei. Após M.; BOVENSIEPEN, G. (eds.). Incest Fantasies and Self
aparente reconciliação, os primos querem casar-se Destructive Acts in Adolescence: jungian and post-
com as primas, mas Danao convence as lhas a jungian psychotherapy in adolescence. New Jersey:
matar os cônjuges na noite de núpcias. Quarenta Transaction Publishers, 1995. p. 173-186.
e nove matam os maridos; sÓ uma se apaixona FRANCISCHI, R. P. P. et al. Obesidade: atualização sobre sua
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furado. Esse mito inspiroua tragédia "As Supli- GALIÁS, I.; SAMPAIO, S. M. D. Transtorno alimentar. In: Psico-
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Somos condenados a ter uma sede insatisfei- Montevideo: Prensa Médica Latinoamericana, 2006,p.
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TranstornosAlimentares- Obesidade na Visão Analitica 253

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CAPÍTULO 29
Transtornos Psicossomáticos
na Visão Analítica

DENISE GIMENEZ RAMOS

INTRODUÇĀÃO condições caracterizadas por sintomas médicos


inexplicáveis, as quais prejudicavam signi cati-
A categoria "transtornos psicossomáticos" vamente a qualidade de vida do paciente.
aparece como única referência naClassi cação Desde então, essa categoria sofreu críticas con-
Internacional de Doenças -décima revisão (CID- tínuas tanto pelos pacientes quanto pelos
10, 1999), sem maiores de nições, sobo termo de pro ssionais de saúde (Mayou et al., 2005). As
transtorno somatoforme nāo especi cado (F45). últimas versões sobre esse transtorno, escritas no
Embora não corresponda a nenhuma classi - nal do século XX-CID-10, em 1993 e o DSM-IV,
cação psiquiátrica da quarta edição do Manual em 1994- pouco acrescentaram no sentido de
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais dar maior precisāo aos sintomas, diagnósticoe
(DSM-IV, Diagnostic and Statistical Manual of tratamento (Kroenke, 2006: Kroenke et al., 2007).
Mental Disorders V), veremos que seu conteúdo Aacepção clássica dos transtornossomatofor-
abrange omaterial classi cado comotranstornos mes(TS)diz que estes são de nidos pela presença
somatoformes item 300.81. São incluídas aqui as de sintomas sicos os quais não poden ser expli-
subclassi cações dessa categoria: transtorno de cados por uma condição médica nem pelo
conversão (300.11), transtorno da dor (307.80; efeito de uma substância oU qualquer outra
300.89), hipocondria (300.7) e transtorno dismór- doençamental. Considera-se aqui que asqueixas
co corporal (300.7). são involuntárias, isto é, estāo além do controle
A opçāo por não usar o termo transtornos do paciente, e devem ser graves o su ciente
somatoformes deve-se ao fato de que a descri- para prejudicar seu bem-estar e sUas atividades
ção desses transtornos e sUa inserçāo como de (APA, 1994, p. 445). A caracteristica báica des-
qualidade unicamente psiquiátrica são bastan- sestranstornos é, portanto, "a presençarepetida
te confusas e, em parte, divergentes. Sob a de sintomas sicos associados à busca persisten-
mesma classi cação encontramos termos como te de assistência médica, apesar dos médicos
hipocondria, histeria (ou síndrome de Briquet), nada encontrarem de anormal e a rmarem que
transtornos da dor, somatizações e transtornos os sintomas não têm nenhuma base orgânica'"
somatoformes, os quais podem ser indiferencia- (CID-10, p. 340).
dos, neurovegetativos ou dolorosos persistentes. Portanto, além de ser uma categoria de doen-
As de nições são sobrepostas, di cultam um ça de nida por um critério negativo, ela afrma
diagnóstico preciso e re etem a falta de uma que esses transtornos seriam de qualidade ex-
teoria abrangente que possa integrar sob o mes- clusivamente psicológica. São incluídos aqui os
mo raciocinio essas patologias. pacientes que, depois de muitas visitas a dife-
rentes médicos, OUvem pela enésima vez: "Meu
TRANSTORNOS SOMATOFORMES senhor, o senhor não tem nada!" Como o pa-
ciente sente que tem (e tem mesmo algo que
A categoria de transtornos somatoformes foi in- dói), ele se retira com seu sofrimento e sua frus-
troduzida no DSM-Il em 1980, para indicar certas tração até que, nalmente, algum de seus

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TranstornosPsicossomáticos na Visão Anolitica 255

sistemasvisíveis-pode sero imunológico - con- trevistas revelaram que todas perderam pelo
cretize para o médico o seu sofrimento, por menos um ente querido torturado e assassinado
exemplo, com uma doença imunológica, tor- na sua frente, além de elas mesmas terem sido
nando-o assim tratável. vitimas de violência sexual. A fala de uma delas
O pano de fundo dessa situação é a dicoto- exempli ca a unidade psicossomática: "eu cho-
mia mente-corpo que cindiu a formação dos rei, chorei e chorei e quando parei de chorar
pro ssionais de saúde nas categorias médico/ meusolhos estavam tão inchados que eu já não
psicólogo e alimentou várias escolas de "psicos- podia mais enxergar" (após ter testemunhadoa
somática", tal como a de Franz Alexander, morte de seus lhos e marido): outra: "quando
médico fundador da Escola de Psicossomática me sinto feliz, meus olhos estão normais, quando
de Chicago. Alexander, na década de 1930, penso no Camboja e na minha familia, vejo
descreveu sete "doenças psicossomáticas" clarões de luz e escuridāo" (Smith, 1989).
cada uma delas correspondendo a um tipo de Na época, a classi cação dessas pacientes
personalidade oU a um quadro emocional. Sua e seu tratamento foram objetos de grande de-
escola caiu no esquecimento à medida que bate. Estariam essas pacientes sofrendo da
causas orgânicas atribuídas aos sintomas psico- síndrome de estresse pós-traumática? Seus sin-
lógicos foram descobertas (Alexander, 1989). tomas indicariam histeria, somatização ou
Atualmente, o paciente queixoso "somático" transtornosomatoforme? Ou um pouCo de cada?
(sem "causa orgânica")) é frequentador assíduo Um tratamento psicoterapêutico, ao evocar
de consultóriosmédicos de diferentesespecialida- memórias traumáticas, poderia retraumatizar as
des, poissUa queixa básica é de que há algo de pacientes ou liberá-las deSUas memórias aterro-
Yerrado com meu corpo". Esse "errado" pode ir rizantes Ou estariam elas simplesmente
desde dores inexplicáveis (transtornos da dor) até somatizando sua dor?
pequenas manchas de pelevistascomo melano- Veremos a seguir a conceituação básica
mas terminais (hipocondria). Nesseserntido, surge dessa nomenclatura e sua problemática diag-
jáa primeira problemática desse tipo de classi ca- nóstica e teórica.
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ção. À medida que a tecnologia diagnóstica ca
mais so sticada, Começa-se a descobrir "causas SOMATIZAÇÃO
orgânicas" para sintomas anteriormente classi ca-
dos como somatoformes. Mesmo que o paciente De acordo com Lipowski (1988). somatização é
possa mudar para a categoria de doença orgâ- "uma tendência para experimentare comunicar
nica, muitas vezes continua com suas queixas, a estresse somático em resposta a um estresse
despeito do tratamento "concreto", medicamen- psicológico e procurar ajuda para ele, provo-
toso e/oU cirúrgico adequado. cando um grave problema econômico, médico
Um caso famoso na literatura médica ilustra e social" (p. 1358). É frequentemente associada
essa polêmica. Trata-se de um grupo de cerca a transtornos de ansiedade e depressão e cons-
de 150 mulheres do Camboja, vitimas de abuso titui o cerne dos transtornos somatoformes.
físico e sexual. Forçadas ao trabalho escravo Segundo Barsky et al. (1997), 20 a 84% das vezes
durante o regime comunista do Khmer Vermelho, em que um paciente procura um clínico, não se
essas mulheres foram obrigadas a assistir cenas encontra nenhuma causa para seu sofrimento
de torturae morte por fogo e desmembramento de somático, sendo os sintomas mais comuns dores
amigos e familiares. Ao se refugiarem nos Estados de cabeça, tontura, fadiga e palpitações. Pa-
Unidos, pediram ajuda ao Serviço Social, por não cientes persistentes, que continuam a procurar
conseguirem trabalhar. A queixa é que estavam uma causa para seus sintomas, correm riscos de
cegas. Enviadas a um grande centro oftalmoló- sofrer procedimentos cirúrgicos invasivos e des-
gico de referência, constatou-se que estavam necessáriosou de intoxicação medicamentosa,
absolutamente saudáveis do ponto de vista or- ao consultar vários médicos simultaneamente.
gânico. Entretanto, vários especialistas observaram Não é incomum observarmos pacientes hospi-
que todas estavam legalmente cegas. Em sua talizados por overdose de medicamentos
pesquisa, Rozée et al. (1989) constataram em prescritos por diferentes médicos que desconhe-
uma amostragem que 57% tinham acuidade ciam o comportamento do paciente.
visual subjetiva de 20/200 (cegueira legal) e 43% Dessa forma, os processos de somatização
nham acuidade visual entre l/400 e "sem per- são considerados um desa o na fronteira entre o
cepção de luz": portanto, os sujeitos estavam clínico eo psiquiatra. Esgotados todos osrecUrsos
dentro da categoria de cegueira legal. As en- diagnósticos, o paciente é encaminhado para o

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256 PsicologiaAnalitica

psiquiatra, o qual por sua vez tem di culdade de constantes e prolongados para "acertar" a apa-
classi cá-lo em umpadrão básico.Sabemos que rência podem caUSar sérios danos ao corpo, à
cerca de metade dos pacientes que, no nal, adaptação social e ao relacionamento familiar.
recebem um diagnóstico psiquiátrico, de início Não obstante índices de prevalência não
apresentam exclusivamente sintomassomáticos, sejam estabelecidos mundialmente, nosEstados
e que 75% dos pacientes com quadros depressi- Unidos, Koran et al. (2008) observaram na popula-
vos graves ou transtorno do pânico se queixam, ção adulta prevalência de 2,4% para transtorno
na ananmnese, basicamente de sintomas somáti- dismór co corporal, a qual excede a prevalência
cos. Mesmo na população geral, pesquisas para esquizofrenia e transtorno bipolar. Observaram
indicam que 60 a 80% da população saudável também que 90% dos sintomáticos preenchem
experimenta um ou mais sintomas somáticos du- jo critério de estresse e que, embora esse trans-
rante a semana (Kellner, 1994). "torno tenda a diminuir após os 44 anos, ele
Por conseguinte, a somatização parece co- provoca sofrimento substanciale está associado
mum na prática clíinica eémais prevalente que a à baixa qualidade de vida. Uma pesquisa mais
depressão e a ansiedade. Segundo Clarke et al. ampla permitiu veri car que 5 a 40% dos pacien-
(2008), a maioria dos pacientes com depressāo e tes com esse transtorno sofrem de ansiedade e
ansiedade tem grau signi cativo de somatização, depressāo (Lafrance, 2009).
o qual, entretanto, pode passar despercebido, Um estudo feito com adolescentes na Ale-
camu ado pela queixa somática.Mesmo quando manha (Essau, 2007) revelou que os primeiros
essa queixa é relativa a um estado deestresse,em sintomas aparecem antes dos 15 anos, podendo
30% dos casos ela não é diagnosticada. durar cerca de 20 anos. Eventos de vida nega-
tivos, doença psiquiátrica dos pais e depressão
HIPOCONDRIA estão entre os principais fatores no desencadea-
mento desses sintomas, os quais podem se tornar
Segundo os manuais referidos, a característica crônicos. Os autores concluem que, em geral,
essencial desse transtornoé umapreocupação os transtornos somatoformes na adolescência
persistente coma presença eventual de um ou não são autorresolvidos e se associam a outrOS
mais transtornos somáticos graves e progressivos. transtornos psicológicos. Provavelmente, as
Os pacientes manifestam queixas somáticas grandes transformações corporais da adoles-
persistentes ou preocupação douradora com cência a tornam um momento propício para a
sUa aparência física (CID-10. p. 341). Em geral, emergência de insatisfações generalizadas com
essa preocupação excessiva baseia-se em uma o corpo, podendo algumas delas se tornar
distorção de um ou maissinais corporais normais, patológicas, com gravesprejuízosnodesenvolvi-
tem que haja qualquerjusti cativa médica para mento do jovem.
bles. Considera-se que a prevalência para esse Podeńamos aqui perguntar se fatores sociocu-
fřanstorno esteja entre 4 e 9% entre pacientes da turais, além dos desenvolvimentistas, nãoestarńam
clíinica geral (APA, 1994, p. 464). presentes nesse alto índice de prevalência.
Apesar de não muito clara, a diferença bá- Na fase adulta, provavelmente são as equi-
sica entre o diagnóstico de hipocondia e o de pes multidisciplinares em cirurgia plástica que
transtorno dismór co corporal está no lócUs de pro- têm detectado maior número de casos entre
jeção da doença. Na hipocondia, o lócusestános seus pacientes que desejam se submeter àssU-
órgãos internos; na dismor a corporal, está mais no cessivas cirurgias "corretivas". Mesmo quando
órgão externo -na pele e na aparênciageral. realizadas, a satisfação costuma durar pouco e
logo a seguir o paciente exige nova intervenção.
TRANSTORNO DISMÓRFICO CORPORAL Temos relatos de indivíduos que se submeteram
a mais de 20 intevenções corretivas em busca
Segundo o DSM-V,. o transtorno dismór co corpo- de um perfeccionismo "divino". Cirurgiaplástica,
ral refere-se a uma preocupação excessivacom para alguns, é usada como antidepressivo quan-
um defeito na aparência, o qual pode ser imagi- do as motivações para tal intervenção não são
nário oureferir-se a uma pequena anomalia.Esses examinadas mais a fundo.
pacientes podem se tornar excessivamente au- Mesmo que não seja possivel diagnosticar so-
toconscientes e evitar lugares públicos, trabalho mente com base em noticias de mídia, um caso
e escola. As preocupações mais comuns referem- trágico, de repercussāo mundial, poderia teresse
se a perda de cabelo, marcas na pele, acne, tipo de sofrimento. nconformado com a forma e
hirsutismo, assimetria e inchaço faciais. Rituais cor de seu corpo, o cantor afro-ameicano Michael

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TranstornosPsicossomóticos na Visão Analitica 257

Jackson submeteu-se a diversas transformações turas e sem retorno, muitas vezes com sequelas
aparentemente em busca de uma forma que o psicológicas pouco divulgadas pela mídia -
desidenti casse de sua origem. Talvez, a busca do como uma paciente que, ao retornar da
corpo perfeito, umapreocupação excessiva com anestesia, entrou em surto psicótico: negando a
um "defeito" (cor da pele), um transtorno dismór- cirurgia, foi tomada por pensamentos obsessivos
co corporal tenha sido uma causanmortisprimária e mórbidos.
desse jovem ídolo. Um exame mais profundo dos pacientes
A mídia tem sido pródiga em exemplos entre com esse transtorno evidencia con itos incons-
as "celebridades'" que atribuem grande valor a cientes profundos, complexos pessoais que se
qualquer pequeno"defeito" na buscaincessan- expressam na polaridade corporal; con itos
te de um corpo idealizado, onde as menores projetados sobre o corpo. A parte "perturbada",
"imperfeições" são vistas com lente de aumento em vista de sua forma e função, é a tela onde
e devem ser rapidamente eliminadas. Essa superex- sofrimentos indizíveis falam a fala simbólica do
posição e supervalorização do corpo idealizado inconsciente reprimido. Desse modo, não p0-
é transmitida para os jovens como um valor so- demos pensar em um transtorno dismór co sem
cial, induzindo-os a uma insatisfação com seu nos referirmos a um con ito psicológico ou até
próprio corpo, o qual está "fora do padrão". mesmo neurótico. Esses transtornos são muito
Jovens sofrem por terem "seios ou pênis peque- mais a expressão psicodinâmica de uma disfunção
nos" e, precipitadamente, tentam aumentá-los, psicossomática do que um quadro patológico
pensando estar "consertando" um defeito ou em si e, portanto, devem ser considerados sin-
preenchendo uma falha. Contam, é claro, com tomas e não caUSas de sofrimento emocional
a conivência de alguns médicos, que, sem pes- em si mesmos.
quisar a fundo, tratam uma dismor a corporal Ao olharmos o paciente como uma unidade
com cirurgia. Assim, os limites entre os transtornos psicossomática, ca difícil cindir sUa sintomato-
dismór cos e as imposições culturais sobre o logia em diversostranstornos, sobretudo quando
corpo nem sempre são claros. se trata de pacientes cuja expressão de sofri-
Poderíamos até mesmo perguntar se as mento é somática, mas não orgânica.
transformações corporais com piercings e tatua- As mesmas observações São válidas para os
gens em exagero, em que uma pessoa descon- transtornos da dore os transtornos de conversão.
tente com seu corpo tenta aproximáHo da forma Nestesúltimos, os sintomas afetam, principalmente,
de uma Vaca ou de um tigre, não poderiam ser o funcionamento motor oU sensorial, sugerindo
classi cadas como sintomas de uma patologia. uma condição médica oU neurológica. Podem
As fronteiras são tênues e exigem constante incluir dé cits motores, paralisias, afonia, di cul-
re exão. dade de engolir, retenção urinária, entre outros
O importante aquié analisarmos o simbolisno (APA, 1994, p. 452).
envolvido na parte do corpo que precisa ser A ignorância de fatores psicodinnmicos por
|"aperfeiçoada". Podemos, por exemplo, obser- parte da equipe médica pode levar a situações
var que a busca de uma pele branca por um críticas, como no caso de um idoso hospitalizado
afro-descendente provavelmente é a expressāo em decorrência de um diabetes descontrolado
de um trauma intergeracional decorrente da e que, desde a sUa internação, passou a sofrer
escravidão. Pele negra, em uma cultura escra- de retenção urinária. Vários procedimentos
vagista, é sinônimo de inferioridadee submissão. foramtentados,inclusive o cirúrgico. s mé-
Será patológico o desejo de se branquear?O dicos acreditavam que, em virtude de um
paciente não estaria expressando um complexo alargamento da próstata, o paciente perderao
que é muito mais da cultura do que pessoal? No controle voluntário do ureter. Não foi considera-
caso em que o cuidado psicoterápico se faz da a observação da família de que, em casa, o
necessário, não podemos deixar de lado o fator paciente estava normal, nem se considerouo
cultural como coadjuvante desse transtorno. A teror do paciente quanto à sua hospitalização.
cultura também é predominante no apreço a Quando ele voltou para casa, a retenção uriná-
"seios grandes e fartos". Assim, jovens ainda ria desapareceu de imediato. Um pensamento
adolescentes se torturam até conseguir um im- psicossomático teria poupado muito sofrimento
plante que as promova à categoria de mulheres e trabalho.
"fatais e sedutoras". Seios pequenos viram sino- Também são comuns nesses transtornos altos
nimos de infantilidade e baixa feminilidade. A índices de ansiedade e depressāo, como vere-
imaturidade as leva a entrar em cirurgias prema- mos a seguir.

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258 PsicologiaAnalitica

EPIDEMIOLOGIA DOs TRANSTORNOS Na China, Li et al. (2009), do Departamento


de Psiquiatria em Taiwan, ao estudarem uma
SOMATOFORMES E COMORBIDADE COM
população de 1.068pacientes, observaram que,
ANSIEDADE E DEPRESSÃO entre aqueles que tinham sintomas sem explica-
ção médica, a prevalência de transtornos
Maier e Fakai (1999), em seu estudo de revisão,
somatoformes era de 9,9%. Entre estes, o índice
concluem que depressão, transtorno de ansieda-
para depressão chegava a 35,6% e. para ansie-
de generalizada e transtorno somatoforme são
dade, 29,7%.Os autores chamam a atenção para
os transtornos psiquiátricos mais frequentes nos
a importância do exame desses fatores na entre-
cuidados primários de saúde dapopulação geral.
Esses transtornos também mostram excessiva vista psiquiátrica principalmente por serem
comorbidade entre si, a qual é substancialmente sintomas duradourose indutores de comportamen-
mais comum queo esperado na base de índices tos autodestrutivos. Dados que são bastante
de prevalência, tanto nos cuidados primários semelhantes aos encontrados por outros pesqui-
quanto na população geral. Os autores chamam sadores e pela Organização Mundial da Saúde
a atenção para as múltiplas consequênciasdessas detectaram 20% de somatizadores entre os aten-
comorbidades, dentre as quais o risco elevado didos no serviço básico de saúde (Toft et al. 2005:
de tentativas de suicídio e resistência a qualquer Gureje et al., 1997).
tipo de tratamento. Essas pesquisas mostram a signi cativa pre-
A epidemiologia desses transtornos aponta valênciae importância desses transtornos na
a necessidade de maior atenção a casos nos prática médica e na saúde dapopulação geral.
quais os sintomas se sobrepõema ansiedade e Entretanto, estudoS revisórios revelam que, por
depressão. Estudos realizados em diferentes paí- conta da fraqueza dos critérios diagnósticos, a
ses, com população de clíinica geral médica, acuidade do diagnóstico é pobre e não há
revelam resultados bastante semelhantes. modelosConceituais com comprovada capaci-
Na Noruega, em estudo com 1.046pacientes dade preditora. Asim, os critérios de diagnóstico
de idades variando entre 25 e 80 anos, Waal et e seu valor preditor de transtornos são conside-
al. (2004) descobriram prevalência de 21,9% de rados insatisfatórios (Löwe et al.. 2008).
transtorno somatoforme com a presença de Juntando-se esses estudos à visão analitica
sintomas físicos, depressivos e limitações funcio- junguiana, podemos levantar alguns questiona-
nais. índices aproximados foram detectados na mentos relativos a esses transtornos.
Inglaterra, com prevalência para transtorno so-
matoforme grave de 10,2%. podendo chegar a
QUESTÖES GERAIS SOBRE OS
24,6% quando o critério de prejuízo psicossocial
foi excluído. Como em outros estudos, a comor- TRANSTORNOS SOMATOFORMES
bidade com ansiedade e depressão chegoU a
Não obstante as porcentagens e conclusões
45%. Análises do USo do sistema de saúde e de
variarem em função do mnétodo de diagnóstico
medicação mostraram que a presença de uma
comorbidade psiquiátrica era mais importante utilizadoe da população estudada, podemos
que a presença de transtorno somatoforme. Os concluir que:
autores concluem que sintomassomatofórmicos
• Os chamados transtornos somatoformes
somente (sem comorbidade psiquiátrica) não
devem ser considerados um transtorno psiquiá- têm alto nível de comorbidade com ansie-
trico (Leiknes et al. 1999). dade e depressão e podem causar sérios
Mergl et al. (2007), em suas pesquisas na Ale- prejuízoSno equilíbrio emocional e na adap-
manha, também observaram que, nos cuidados tabilidade psicossocial do paciente.
primários, a comorbidade entre depressão, an- • Os sintomas das subclassi cações dos
siedadee transtorno somatoforme é muito mais transtornos somatoformes, como somati-
frequente que o esperado. Clarke et al. (2008), zação, hipocondriae transtornodismór co
na Austrália, observaram que 18,5%dos pacientes corporal, se sobrepõem. Não há uma cla-
do serviço de clínica geral foram classi cados ra distinção ou independência entre eles.
como somatizadores e 9,5% como casos prováveis • A classi cação atual da patologia do pa-
de depressão e ansiedade. Ernquanto 29,6% dos ciente refere-se mais à durabilidade.
somatizadores tinham notas altas para ansiedade localização e dinâmica de seus sintomas,
oU depressão, 57,9% dos sujeitos com ansiedade ou internos oU externos, estéticos ou funcio-
depressão também eram somatizadores. nais, do que à psicodinâmica envolvida.

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Transtornos Psicossomáticos na Visôo Analítica 259

• A de nição desses transtornos é problemá- são incluídas intervenções farmacológicas e


tica à medida quea detecção da presença psicoterapêuticas.
ounão de uma doença orgânica depende, Ainda que esses estudos já apontem uma
em parte, da tecnologia e do desenvolvi- visão integrada e psicossomática do ser, a falta
mento damedicina da época. Aquinãosão de um corpo teórico que subsidie essas a r-
Considerados os fatores psicológicos envol- mações as torna incompletas e hesitantes. A
vidos na presença de uma doença orgânica. confusāo conceitual dessa área só será sanada
• A queixa somática do paciente é. geral- comumnateoria consistente que permita a com-
mente, consequência de um transtorno preensão do fenômeno psique/corpo com base
maior no seu dinamismo psicodinâmico, em uma moderna conceitUação psicodinûmica
que pode envolver ou não estruturas neu- e psicossomática. A ausência de uma teoria
róticas. Além disso, esses transtornos são abrangernte, integrada e multifatorial impede
relativamente Comuns na vida diária e que certas questões básicas trazidas pelos pa-
podem acompanhar outros tipos de diag- cientes sejam respondidas e atendidas.
nósticos, psiquiátricos oU não. Quanto. porexemplo, uma pequena alteração
• Poderíamos observar que todos os pacien- somática justi ca uma enxaqueca excruciante e
tes analisados sob essa categoria têm um frequente? Até onde uma dor lombar pode ser
transtorno no fenônmeno psique/corpo, isto explicada por uma estenose de canal? E quando
é, uma alteração na percepção de seu o próprio paciente relata que a dor aumenta mui-
corpo, sentindo-o doente (na ausência de to quando está "nervoso" oU que seus sintonmas
uma causa orgânica), sentindo-o mais somáticospioraram desde que perdeu o emprego?
doente do que está (na presença de uma Aumenta-se a medicação para dor? Prescreve-se
causa orgânica) ou interpretando sinais um antidepressivo Ou recomenda-se psicoterapia?
somáticos normais como patológicos. Como sabemos, atualmente se prescrevem me-
• A falta de uma teoia sobre o fenômeno psi- dicamentos antidepressivos para certos quadros
que/corpo impede um raciocínio integrador de dor, como bromialgias.
e único que permita analisar os diferentes Se tentarmos delimitar claramente os níveis
sintomas sob uma mesma perspectiva. somáticos dos psicológicos, iremos na contramão
danova conceituação psicossomática, a qual usa
Perante essas di culdades, alguns pesquisa- o termo transduçăo para explicar os diferentes
dores chegaram mesmo a sugerir total abolição níveisde atuação de um transtorno - do celular
dessa categoria de diagnóstico (Mayou et al. ao mais so sticado processo mental- exigindo
2005: Sykes, 2006), enquanto outros propõem uma formação pro ssional muito mais compreen-
uma revisão signi cativa para a próxima edição Siva que a somente causalista e racionalista.
do manUal DSM-V. A proposta mais recente, do Embora não caiba aqui a descrição comple-
grupo que está fazerndo essa revisão, é chamá-la ta da psicossomática junguiana, descreveremos
de transtornos com sintomas somáticos (somatic na sequência sua conceituUação principal. AOS
symptom disorders). independentemente da interessados, sugere-se a leitura do livro "A Psique
presença ou não de uma doença de fundo or- do Corp0-a dimensão simbólica da doença".
gânico. Para evitar a dicotomia psique/corpo no quala teoria está completa e amplamente
implícita na classi cação desse transtorno, esse referendada (Ramos, 2005).
978-85-7241-915-4
grupo sugere uma abordagem que permita o
diagnóstico de um transtorno somático além de APSICOSSOMÁTICAJUNGUIANA
uma condição médica geral, podendo ser a
últina uma doença orgânica bem reconhecida De acordo com a teoria psicossomática junguia-
oU Uma síndrome somática funcional, tal como na, os sintomas dos transtornos somatoformes,
a síndrome da fadiga crônica ou a síndrome do em todas as suas subclassi cações, podem ser
intestino iritável (Dimsdale e Creed, 2009). observados como a melhor expressão de um
Lafrance (2009), ao fazer uma revisāo da complexo pessoal e/ou cultural; um sofrimento
literatura sobre os transtornos somatoformes, indizível ou inconsciente, independentemente
assinalaa necessidade de uma perspectiva de sua causalidade, isto é, podendo ou não
combinada da psiquiatria com a neurologia estar presente uma doença de fundo orgânico.
Como essencial para o diagnóstico e trata- A cegueira das mulheres do Camboja não
mento desses transtornos, optando por um é somente causal, mas também nalista, isto é,
tratamento intensivo e multimodal, no qual tem uma função. Corresponde à melhor expres-

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260 PsicologiaAnalítica

|são simbólica encontrada pelo organismo, o à tona material desconhecido, provocador de


qual, enquanto expressapor onde"entrou" seu emoções não controladas pela consciência.
|trauma (a visão das torturas), constrói a melhor Emoções positivas e/ou negativas senmpreimpli-
defesa contra um sofrimentoinsuportável ("não cam uma alteração psico siológica, a qual pode
mais verei cenas semelhantes"). O organismo locorer em vários níveis do organismo. Porexem-
reagiu psicossomaticamente ao evento traumá- plo, uma cena violenta e ameaçadora provoca
|tico, como sernpre reage a qualquer evento que uma emoção e, ao mesmo tempo, uma altera-
lo atinja. ção no organismo como um todo. Essa visão
Da forma como compreendemos hoje o ameaçadora é transduzida em diferentes siste-
funcionamento dos organismos humano e animal, mas, istoé, há uma alteração do sistemavisuale
apalavra "psicossomática" passoua referendar auditivo (visão e som da cena), junto com a do
um campo de estudos que abrange todo e sistema cardiorrespiratório (alteração respiratóia
qualquer fenômeno psique-soma. Hoje ela apon- e taquicardia) e assim por diante, de modo sin-
ta não um tipo de transtorno ou doença, mas crônico, até a percepção da sensação do medo,
sim uma área do saber cujo enfoque é uma visão de sentimentos e de pensamentos associados.
integrada do ser humano. A ideia de que have- Entendemos por transduçāo a conversão ou
ria "doenças psicossomáticas"foiultrapassada, transformação de informação de uma forma
no século XXI, por uma visāo integradora onde para outra. Se observamos o corpo humano
a psique está presente em todo e qualquer fe- como uma rede de sistemas informativos, gené-
nômeno orgânico e vice-versa. Nessa visão, tico, imunológico, hormonal, entre outros,veremos
todas as doenças são psicossomáticas àmedida que cada um desses sistemas tem seu código.
que a psique está sempre presente, reagindo A transmissão de informação entre os sistemas
aos acontecimentos que acometem o corp0, e requer que algum tipo de transdutor permita que
à medida que o somático interfere em todos os o código de um sistema seja transladado para
processos psicológicos. Raciocina-se em termos o código de outro sistema. A mente. por ter ca-
de fenômenos sincrônicos e não causais, isto é, pacidade para simbolizar na forma linguísticaou
uma depressão não é causa de uma neoplasia extralinguística, pode também ser considerada
maligna, mas pode ser concomitante a ela. um meio de codi cação, processamento e
Portanto, hoje não mais se discute se há re- transmissão de informação do organisrno. psique
lação entre psique e soma, mas sim como ela e soma.
acontece. A di culdade de transduzir uma cena con -
Di culdades observacionais e a falta de uma tiva empalavras emantêlana consciênciapode
teoria holística que permita um raciocínio único fazer com que ela que estagnada em um dos
entre os vários planos do nosso ser têm sido os sistemas somáticos, repetindo-se compulsivamen-
grandes obstáculos nessa área. A esperança de He. O paciente que tem sintomas na polaridade
que a genética oU que as neurociências dessem somática, com ou sem doença orgânica. codif-
conta da situação foi, sem dúvida, uma nova caria seu con ito preferencialmente em um
forma redutivista de enfrentar o problema. Sem sistema somático, o qual coesponderia àexpres-
desconsiderar a importância dos novos desco- São simbólica de seu con to. Por exemplo. uma
brimentos da área, percebemos que reduzir a paralisia sem base orgânica seria o código pelo
psique a uma cadeia de reações siológicas é qual um organismo expressaria sua "paralisia"
bastante insatisfatório. Corresponderia dizer que geral, isto é, um con ito inconsciente estabeleci-
a músicCa e o piano são da mesma ordem de do como complexo, o qual estaria expressando
grandeza. Usando essa metáfora, a música de- uma impossibilidade de se locomover. Na reali-
pende de um instrumento, mas nãoé reduzível dade, locomover-se pode ser extremamente
à matéria da qual ele é feito. Do mesmo modo ameaçador. Por isso, argumentos lógicos e racio-
que o piano não faz a mÚsica, a matéia do nais não curam sintomas dessa espécie. Podemos
cérebro não fazapsique, embora um não exista falar aqui que houve um transtorno no seufuncio-
sem o outro. Assim como a música, poderíamos namento psicossomático.
falar que toda produção humana é produto de Se uma mancha de pele é vista como um
um fator que transcende a matéria e a própria melanoma é porque há um "melanoma", algo
consciência, isto é, o símbolo, fator básico na obscuro e ameaçador, em algum nível do pa-
construção do ser humanoe da cultura. ciente, o qual merece ser cuidadosamente
As produÇões criativas humanas doentias ou tratado. "Melanoma", no caso, pode ser umsim-
|saudáveissãoproduçõessimbólicas,poistrazem | bolo que expressa un con ito ainda sem palavras.

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TranstornosPsicossomáticos na Visão Analitica 261

Uma paciente procurou-me após trêsinņterna- a uma doença de fundo orgânico. Como a ex-
Çõeshospitalares, em uma das quais foi submetida citação de um complexo geralmente vem
a laparoscopia exploratória. Após vomitar váńas acompanhada de ansiedade e/ou depressão.
vezes ao dia durante alguns meses, com todos os os dados epidemiológicos descritos con rmam
exames normais, por falta de um diagnóstico, os a presença de fatores inconscientes na etiologia
médicos optaram por um procedimento cirúrgico dos transtornos somatoformes.
como última esperança para salvá-la. Nada en- Poderemos pensar então que, nos pacientes
contrando, encaminharam-na para psicoterapia, Homáticos,um complexo não éreconhecido no
à qual a paciente resistia bravamente. Sentia que hível abstrato e. portanto, não pode ser expres-
seu problema era orgânicoe que, um dia, nal- so na fantasia, imaginação oU sonho. Contudo,
mente descobririam o que ela tinha de errado. esse con ito pode, sim, assumir uma expressão
Alta e pesando 48kg, a paciente parecia bastan- prgânica. Desse modo, o sintoma orgânico con-
te enfraquecida, Com dores generalizadas e teria mensagens psíquicas que não teriam
deprimida. Tomar antidepressivo era impossível, representação abstrata.
pois Ihe provocava mais vômitos. Segundo os b Se uma neurose cria uma estrutura protetora
manuais referendados, a paciente enguadrava-se na forma de sintoma neurótico para lidar com o
histérica, somatizadora e com distúrbio somato- con to oU dor emocional, nos distúrbios somáticos
forme generalizado. haveria uma regressão a formas mais primitivas
A questão central nesse caso era como trans- de relacionamento entre corpo e mente. A Co-
duzir esse vômito concreto para a polaridade municação verbal dos estados afetivos estaria,
abstrata, psíquicae verbal. O que a paciente em geral, desconectada de seus sintomas, de seu
vomitava, o que era indigesto e impossível de ser corpo. Aqui estaia presente uma forma arcaica
engolido que nem ela mesma tinha acesso? E de simbolismo em que o corpo fala.
por que ela resistia ao tratamento psicoterápico? Qualquer tratamento que promova a cura
A manutenção de sua doença tinha uma nali- tem de atuar nos váios sistemas envolvidos. A
dade? Umarápida investigaçãopermitiu observar abordagem em somente um nível pode levar à
a necessidade da paciente de ter seu marido recorência dos sintomas, como vemos tão fre-
por perto demonstrando afeto e preocupação quentemente na prática clíinica.
com seU estado. O medo de melhorar estava Assim,a compreensão do fenômeno psique-corpo
inconscientemente associado ao medo de per- é a base fundamental para uma atuação clínica
dê-lo. A psicoterapia teria de fortalecê-la antes e caz. Ela permite o trabalho de equipes interdis-
de lidar com seus medos e complexos mais pro- ciplinares, as quais desenvolvem práticas de
fundos: caso contrário, a paciente certamente saúde holisticas vindas de diferentes campos do
interromperia o tratamento. O vômito teria de saber cienti co. Um exemplo é a medicina inte-
ser paulatimamente transduzido de sUa polari- grativa, a qual enfatiza a capacidade inata de
dade somática à suapolaridade verbal. Nenhum recuperação do organismo. propondo uma abor-
outro remédio poderia curáHa. A paciente esta- dagem transdisciplinar e transcultural. (Lima, 2009)
va aprisionada em um conmplexo que a tomava A psicossomática junguiana, ao promover
por completo. um raciocínio holístico condizente com teorias
Os complexos são os grandes responsáveis pela de outros campos do sabe, dá sustentação a
formaçāo de sintomas. Jung os de niu como "uma uma re exão psicodināmica profunda sobre os
coleção de várias idéias, as quais, em consequên- fenômenos que se referem ao funcionamento
cia de sUa autonomia, são relativamente saudável do ser humano. Desse modo, os cha-
independentes do controle central da consciên- mados transtornos somatoformes são aqui
cia e a qualquer momento capazes de cruzar ou considerados sintomas de um processo psicopa-
contrariar as intenções do indivíduo". (Jung. 1973, tológico, não uma doença em si mesma.
par. 1352)
Sem menosprezar a necessidade ainda vigen-
Todo complexo tem uma polaidade psíquica. te de rotulação das doenças. Ziegler, já em 1983,
abstrata e outra concreta, coporal. Assim, quando dizia que a compreensão de uma doença seia
determinado complexo se constela, há alteração completa quando deixássemos de categorizar
emocional e siológica, uma transformação na patologias de acordo com entidades de doença,
estrutura corporal total, quer o indivíduo a perceba as quais não permitiriam uma apreciação da di-
ou não.Essa transformação pode ser sentida como nâmica mútua entre saúde e doença: "Podemos
um mal-estar inde nido ou expressar-se em uma falar de imagens de doenças e não de constructos
sintomatologia mais clara, associada, por vezes, empíricos onde os sintomas são mais oU menos

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262 PsicologiaAnalítica

juntados arbitrariamente, na base da frequência KROENKE,K. Physical symptom disorder: a simpler diagnostic
estatística e, se possível, relacionados a um agen- category for somatization-spectrum conditions. J. Psy.
te causal particular" (Ziegler, 1983, p. 23-24). chosom. Res. v. 60, p. 335-339, 2006.
KROENKE, K.; SHARPE, M., SYKES, R. Revising the clasi cation of
Concluindo. podemos dizer que todas as
somatoform disorders: key questions and prelimingry
cdoenças são psicossomáticas, independente-
recommendations. Psychosomatics, v. 48, p. 277-285,2007.
mente de sua caUsalidade sica, orgânica ou
KORAN, L. M; ABUJAOUDE, E; LARGE, M. D.: SERPE, R. T. The
emocional. Quando mecanismos de desadap-
prevalence of body dimorphic disorder in the UnitedStołes
tação provocam sofrimento no indivíduo, ele adult population. ČNS Spect. v. 13, n. 4,p. 316-322,2008.
pode adoecer, expressando seu sofrimento de LAFRANCE, C. Somatoform disorders. Seminars in Neurology.
forma mais acentuada na polaridade orgânica v. 29, n. 3, p. 234-249, 2009.
oU na polaridade psíquica. LEIKNES,K. A; FINSET, A.; MOUM, I; SANDANGER, Current
QUandoé necessária uma classi cação das Somatoform disorders in Norway: prevalence, riskfactors
doenças por categorias, optamos pelo termo and comorbidity with anxiety, depression and muscu-
transtornos psicossomáticos, os quais se referem loskeletal disorders. Int. Clin. Psychopharmacol., v. 14,
aos transtornos cujos sintomas são predominan- Suppl. 2, p. S1-S6, 1999.
temente somáticos e não justi cados pelo L, C. T: CHOU, Y. H.; YANG, K. C.; YANG, C. H.; LEE, Y. C.: SU,
estado orgânico do paciente. T.P. Medically unexplained symptoms and somatofom
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CAPÍTULO 30
TranstornosdasRelações Conjugais -
uma Visão da Psicologia Analítica

NAIRO DE SOUZA VARGAS

BREVE HISTÓRICO E DESENVOLVIMENTO problemas e sacerdotes ouU pessoas destacadas


na sociedade, como o médico oU o homem tido
DA PSICOTERAPIA DE CASAIS
como culto e sábio.Consultas com médicos (exa-
De maneira bastante ampla, é possível dizer que mes prénupciais) ou com instituições religiosas,
a terapia de casais tem seus primórdios em tem- privadas oU pelo Estado, acontecianm de forma
pos muito remotos. Praticamente em todos os não sistemática.
antigos livros sagrados e de sabedoria, das mais O trabaho de Oberndorf (apud Sager, 1966)
diferentesculturas, podemos encontrarreferências pode ser considerado o pimeiro sobre psicoterapia
ao tema do aconselhamento e recomendações de casais. Foi apresentado no Encontro da Ameri-
para se ter um bom casamento. Eles trazem, canPsychiatricAssociation de 1931 eposteriormente
juntamente com canções e textos clássicos da li- ampliado e publicado em l938. Atendia, porém,
teratura, recomendações com as marcas da os Cônjuges em separado. Moreno (1966) publicoU
época.CO casamento, como órgão vivo, muda em 1937o tratamento psicodramático de um Casal.
conforme a cultura e a época e pode evoluir, Em busca de um entendimento mais completo do
transformando-se, ou car paralisado, desgas- comportamento humano, vários autores na Europa
tando-se, podendo até morrer. e América ampliaram a clássica visão freudiana e
Em nossa cultura, o casamento tenm passado novas propostas psicodinâmicas surgiram a partir
por muitas transformações, principalmente para do começo do século XX. A visão de Jung (1981)
amulher.Esta era tida como a grande sustentado- da psique como um sistema automegulador arque-
ra do vínculo conjugal e quase única responsável típico, comseusconceitos de individuação, ego e
pela vida afetiva e social do casal. Era a "senho- Self, assim como a descrição dos dinamismos da
ra do lar". Com autonomia cada vez maior, a Anima e do Animus,estruturadores arquetípicos da
mulher compartilha, de modo simétrico, as obri- conjugalidade, constituem bases sólidas e trazem
gações e os deveres do casamento com o orientaçõesclari cadoras parao trabalho psicote-
homem (Vargas, 1986). É cada vez mais frequente rápico com casais. Seu trabalho "O Casamento
a pro ssionalização da mulher e seu ganho ser como um Relacionamento Psicológico". de 1925,
Crescentementerepresentativo para amanutenção é umestímulo para a terapia de casais, com a qual
da fanilia. O papel do homem no casamento ele mesmo não trabalhou, mas dexou as bases
fambém vem se transformando. talvez menos que para o seu desenvolvimento prático, o que veio a
o da mulher, mas hoje o homem é muito mais ocorer na década de 1950. por intermédio de
presente na vida afetiva da família bem como vários autores.
nosseus cuidados e convívio. Após a Segunda Guera Mundial, a demanda
Aquelas recomendações tradicionais, muito por terapia de casais e de família aumentou de
airetivas e expressivas das concepções de cada modosigni cativo,provavelmente em decoên-
época, não guardam, entretanto, muita relação cia das grandes transformações desagregadoras
Com a moderna noção de psicoterapia.É verda- e estressantes da guerra, com intensos confron-
de que aconteciam intercâmbios entre casais com tos de valores até então bem-estabelecidos.

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264 Psicologia Analitica

Houve então, a partir dessa época, grande "casamentos de acomodação". O ponto central
desenvolvimento da terapia de casais e de famí- de um casamento não é o bem-estar ou a feli-
lia, em particular na Tavistock Clinic (Dicks, 1963) cidade constante, mas a realizaçāo profunda
na Inglatera e nos EstadosUnidos com Ackerman dos potenciais dos cônjuges. Casamento e es-
(1969) e, posteriormente, com toda a escola sis- trutura familiar sāo maneiras de se humanizarem
têmica norte-americana (Bateson, 1980). Eles os arquétipos. Assim, encontramos formas bem
contribuiram muito para esse desenvolvimento, diversas de casamernto e de estrutura famliar em
com proposições técnicas derivadas da ciberné- diferentes culturase no decorrer da História.
tica e das interações familiares, muitas delas Usoo termo casamento como o relacionamen-
também já propostas pela psicologia analitica. to entre dois seres humanos que tenham amor e
O campo das psicoterapias de grupo desen- vida sexual entre si, que estejam motivados a com-
volveu técnicas para o tratamento de pequenos partilhar a vida em conjunto, sendo, portanto,
grupos, que enriqueceramo trabalho com casais "aliados". Essa relação pode começar dediferen-
e familias. Muitos sociólogos, psicólogos e antropó- tes maneiras e motivos; mas, para ser válida,
logos, por meio de estudos sobre o casamento e criativa e ter sentido de vida, deve subentender
a família, trouxeram, a patir da década de 1950, uma relação conjugal que inclua, além da vida
valiosas informações para o trabalho com casais. sexual, companheirismo, solidariedade. alguns
Nunca é demais rea rmar asábia atitude de se ideais de vida e valores em comum, além deres-
ver nos transtornos mentais o resultado da junção peito e admiração mútuos. Assim, cada cônjuge
de diferentes fatores, sem cair na unilateralização pode ser inspiradore enriquecedor para a vida do
de se atribuir somente a razões biológicas, psicoló- outro. Estar casado não signi ca concretamente
gicas, aoSOciocUlturalou ao meio ambiente arazão viver na mesma casa, nem ter uma relação legal,
única da existência dessestranstornos. mas sim viver simbolicamente "na mesma casa",
compartihando a vida de maneira íntima eplena,
FUNDAMENTOS TEÓRICOS E "na alegia e na tristeza, na saúde e na doença",
PRINCÍPIOS BÁSICOS como a rmado no ritual religioso do casamento.
O terapeuta de casais, na psicologia analíti-
A primeira e fundamental a rmação da psicolo- Ca, pode trabalhar com casais os maisdiversos,
gia analitica sobre o casamento é a de què seu seja preventivamente com cônjuges que preten-
sentido e razão de ser são poder ser um estimu- dem se casar, com aqueles que pretendem se
lante e rico caminho para aindividuação deseus separar, com casais não publicamente assumi-
membros. Esse é um conceito central para Jung dos e com aqueles já separados, sobretudo se
(1981), que concebe o ser humano como um ser possuem lhos em comum e. portanto, são eter-
que nasce para individuar, ou seja, para "tornar- namente vinculados como genitores. A terapia
se si-mesmo". Os. caminhos para esse processo de casais se norteia, de um lado, pelas capacita-
são tão variáveis quanto são os indivíduos. O fato Ções do terapeutae, por outro, pelo processode
de o casamento ser uma opção tão frequente individuação do casal. É, assim, um trabaho
em nossa espécie talvez decora desSUapotencial muito próprio e especí co para cada casal, no
riqueza como caminho para a individuação. seu encontro com determinado terapeuta.
É importante distinguir individuação de indivi- Domesmo modo que, emuma terapiaindividual,
dualismo. Dizia Jung (1978) que o individualisno estamos a serviço do "processo de individuação"
acentua e dá ênfase deliberada a supostas do indivíduo, na de casal estamos a serviço da
peculiaridades em oposição a considerações e "individuação conjugal", no sentido darealização
obrigações coletivas, ao passo que aindividuação dos potenciais que aquele casamento possui
signi ca a realização melhor e mais completa de para a realização de um "nós mesmos" - ocasa-
potenciais coletivos e individuais do ser humano. mento, assim, promovendo a individuação dos
Levar o outro em conta e a adequada considera- cônjuges. A psicoterapia do casal não visaman-
ção da individualidade desse outro é mais ter casamentos, mas sim ajudar os cônjuges a
mobilizador para um melhor desempenho social encontrarem o melhor caminho para eles, o que
do que se negar as peculiaridades desse outro. poderá implicar a resolução de muitosentraves
Existem, porém, muitos casamentos cujo doentios do relacionamento, que impeçam a
sentido de vida está traído e abandonado. Esses realização válida desse casamento, oU a sepa-
casamentos estão paralisados e são paralisantes, ração do casal, quando o casamento estana
portanto sem vida, sendo nesse sentido doentios acabado, sem sentido para a vida doscônjuges.
e mórbidos. Guggenbühl (1980) os chama de onde não há mais amor conjugal.

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Transtornosdas RelaçõesConjugais - uma Visão da Psicologia Analítica n 265

PRINCÍPIOS BÁSICOS adulta. graças ao predomínio da constelação do


que Jung(1981) chamou de arquétipos do Animus
O trabalho com casais, na psicologia analítica, (para a mulher) e da Anima (para o homem), é
fundamenta-se teoricamente nas proposições ativada a busca da identidade profunda - de
de Jung, que, de maneira sucinta, concebe o especial interesse para o terapeuta de casal, pois
ser humano como nascendo com arquétipos é ela que nos levará a buscar "o outro", aquele
que, no seu conjunto, "residem" no Self. Esses que nos completará, em quem projetamos nossos
diferentes arquétipos estruturarão o desenvolvi- ideais de conjugalidade e/ou também nossos
mento de nossa personalidade desde nossa conteúdos reprimidos, que poderão ser vivencia-
gestação até nossa morte. Nosso desenvolvi- dos de modo criativo oU defensivo.
mento não é. pois, aleatóio, mas visa atingir a Sempre que um novo dinanmismo for implan-
individuação, possível para cada indivíduo. tado, constela-se junto o arquétipo do herói,
O conceito de arquétipo, difícil de ser descri- aquele que mobiliza toda a dinânmica da reno-
to porque engloba consciente e inconsciente, é vação, substituindo o antigo pelo novo.
mais abrangente que o de instinto, mais restrito Assim, no caso da adolescência, somos cha-
à biologia. Freud (1980) já observara o fato de mados a deixar o universo parental, descrito nas
que, nos Sonhos, às vezes encontramos elemen- sUas vicissitudes por Galiás (2000) de maneira
tos, denominados "resíduos arcaicos", que não clinicamnente muito útil, e a vivenciar a morte
sãoindividuais nem podem fazer parte da expe- simbólica do paie da mãe, deixar de ser " lho de
riência pessoal do sonhador. alguém" e passar a ser os próprios "pai e mãe".
Jung (181) veri cou que ocorria o mesmo Como dizem os adolescentes, "soU mais eu".
nas fantasias e sintomas de muitos neuróticos e Esse processo é próprio do ser humano e,
psicóticos.Tais imagens apareciam também em portanto, arquetipicamente determinado. Tem
contos de fada, nos mitos e símbolos religiosos. peculiaridades para cada indivíduo que o viven-
Essas representações próprias da espécie huma- cia, mas sempre há um padrão comum a todos,
na, já que aparecem de modo universal, seriam que é o de "sair do mundo dos pais e se estrutu-
imagens que reproduziriam padrões organizado- rar como indivíduo", mais autônomo. Essa
res arcaicos de nossa psique, aos quais Jung demanda é arquetípica, comum a todos. Caso
denominou arquétipos e, as imagens deles oriun- não se realize, trará problemas, limitações e so-
das, arquetípicas. frimento para essa pessoa. Representa, pois, um
Para a psicologia analítica, o homem não padrão próprio da espécie.
nasce uma tabula rasa; nasce com potenciais A implantação de todo dinamismo arquetí-
própriosda espécie, coletivos e que participarão pico novo como dominante pode ocasionar
da estruturação de sua personalidade, agindo confusões. Antes do início da adolescência,
em todas as suas dimensões: corpo (biológica). constatamos indícios desse dinamismo conjugal
sociocultural (em especial família), ideações e (Anima-Animus), mas é nela que ele assume o
emoções (psicológica) e meio ambiente (eco- papel principal, preponderando sobre os outros
lógica), como descreve Byington (1983). dinamisnmos.A personalidade ca fascinada pelo
Arealização completa de nosso serésempre arquétipo da conjugalidade, mobilizando-se
um ideal inalcançável, pois a vida busca sempre então novas ideias e emoções, novos compor-
uma contínua realização de potenciais que se tamentos socioculturais e em relação ao meio
renovam. Sempre há o que realizar até chegar ambiente, além de grandes mudanças corpo-
amorte, quando então completamoso ciclo da rais. Esse dinamismo trará todas as mudanças
vida, atingindo nosso objetivo nal. que expressam o dinamismo da busca do outro.
Ao chegar a ocasião, assinalada por solicita- do lado oposto ao que está na consciência de
ções biológicas, socioculturais, psicológicas ou cada um, que o completará como um ser mais
ecológicas, o arquétipo referente a determinada pleno, um indivíduo (Byington, 1986).
dinâmica se constelará e atuará em todas as Os dinamismos arquetípicos, uma vez surgidos,
dimensões da personalidade. promovendo mu- permanecem atuando de maneira adequada e
danças no sentido de uma bUSCade individuaçāo. equilibrada entre si, constelando-se um ou outro
Por exemplo, com a chegada da adolescência, conforme as circunstâncias de vida, se estiverem
pela ativação do que Jung chamou de "arqué- bem estruturados naquela personalidade. Por
tipo do herói", o indivíduo será impulsionado exemplo, se um cônjuge car enfermo e com i-
exogamicamente a depender menos de seus mitações, é esperável que se constele mais no
pais, em bUSca de seu próprio caminho. Na vida seu companheiro o dinamismo matriarcal, em

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detrimento do conjugal, que cuida, protege. trazido pelo cliente poderá ser trabalhado simbo-
alinentae acolhe o necessitadodessescuidados. licamente e de diferentes modos, conforme os
Há. porém, períodos normais ou patológicos capacidades do terapeuta e aspossibilidadesdo
motivados por exagero, inadequações e fxações, cliente. Sintomas, sonhos, fantasias, acontecimentos,
em que apersonalidade se vê tomada por um dos problemas, di culdades, etc. serão trabalhados
dinamisnmos arquetípicos em detrimento dos outros. simbolicamente pelo terapeuta. Técnicas varia-
A fase de paixão, de possessão pelo arquétipo, das, como interpretações, dramatizações,
pode ser vivida de modo doentio, paralisante, ou associações livres, ampliações míticas ou históri-
pode trazer uma rica vivência transformadora e cas, fantasias dirigidas, desenhos, imaginação
cria va, com enriquecimento para o processo de ativa, etc., poderão ser usadas pelo terapeuta
individuação (Vargas, 2004). A paixão por outro ser de modo redutivo (a vivências da vidapregressa
vivo OU mesmo por uma atividade oU objeto-por do cliente) ou prospectivo. A transferência é es-
exemplo, a paixāo exagerada e xada por uma pecialmente importante como mobilizadora de
atividade pro ssional-pode trazerséiostranstor- símbolos dentro do setting terapêutico. Ela pode
nos paraa vida conjugal. ser trabalhada em perspectivas defensivas ou de
Um período de especial interesse para o tera- forma criativa, sendo vista ora como regressiva,
peutade casaléachamada segundaadolescência. ora comno prospectiva.
Situações mal vividas na adolescência pelos mem- En m, como já havíamos assinalado, o analista
bros do casal podem vir à tona na época em que junguiano poderá utilzar as mais variadas técnicas
seus hos vivemsuUa adolescência, frequentemen- psicoterápicas desde que as conheçabem ejulgue
te no início da segunda metade da vida do casal. serem as mais apropriadas para aquele determina-
Assim, o psicoterapeuta de casais trabalhará do cliente, naquele momento da terapia.
como analista individual, levando em conta os É da relação do ego com o inconsciente, por
conceitos básicos da psicologia analitica, ou intermédio das vivências simbólicas, que pode-
seja, o princípio dos opostos, o processo de indi- remos ter criatividade oU xações, estas sim
viduaçāo, os conceitos de ego, Self.mecanisnmos contrárias à vida, que é transformação.
de defesa, transferênciae contratransferência Falamos, portanto, de uma condição patoló-
e, sobretudo, o conceito de símbolo, unidade gica somente quando ocore xação da libido,
básica da psicologia de Jung. em formas de funcionamento que se tornam rígi-
Mais fácil de reconhecer do que de ser expli- das e repetitivas. Para a psicologia analítica,
cado, Jung (1967) entendia o símbolo como "a libido é igual a energia, no mesmo sentido con-
melhor expressão de si mesmo", ou seja, a melhor ceitual da sica, podendo aparecer sobinúmeras
expressão de algo que não pode ser completa- formas: sexual, espiritual, biológica, artistica, etc.
mente entendido, apenas pressentido e ainda Essa posição de Jung (1986) já estava claramen-
não totalmente consciente. O símboloé um inter- te expressa em 1906, antes de seu relacionamento
mediário entre conscientee inconsciente. Por com Freud, para quem a libido era energia doins-
meio dele. potencialidades inconscientes podem tinto de vida.
atingir o ego e promover seu crescimento. O sím- Embora Jung não tenha descrito, ele mesmo.
bolo é o grande guia e iluminador do processo o processo de desenvolvimento egoico da cian-
de individuação e, consequentemente, do pro- ça, deixoU referências básicas para isso, o que
cesso terapêutico. É primordial que o terapeuta foi feito por dois de seus seguidores: Erich Neu-
propicie vivências simbólicas para seu cliente, das mann (1981) e Michael Fordham (1994).
mais diferentes maneiras.
QUalquer ação, objeto, imagem ou palavra ESTRUTURAS E DINÂMICAS
será sinbólica desde que encerre, além de seu
DA PERSONALIDADE
signi cado imediato e perceptivel, outros aspec-
tos inconscientes, ainda não perceptíveis,
mesmo que possam ser pressentidos. O símbolo, Ego - Sombra - Persona
enquanto vivo, comporta todo um signi cado Jung (1983) propôs, no início do século XX, a
impossível de ser melhor expresso. Por intermédio psique como um sistema dinâmico, em movimen-
dele. poderão surgir defesas e difculdades, mas to constante e de autoregulação, englobando
também potenciais criativos do inconsciente, consciência e inconsciente, a consciência bro-
trazendo novas luzes para a consciência. tando (nascendo) do inconsciente.
Diferentes pessoas têm diferentes caminhos Os relacionamentos conjugais possuem mui-
para vivenciar seus sínbolos. Qualquer material tas oposições e, por isso mesmo, podem ser

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carregados de energia de vida (ibido). A libido (pensamento e sentimento) e duas iracionais


é canalizada pelos símbolos que funcionam (sensaçāo e intuição). Os tipos resultariam da
como intermediários entre consciente e incons- combinação de atitudes e funções preponde-
ciente. O inconsciente, na sua dimensāo rantes. Na terapia de casais, ela ajuda na
coletiva oU arquetípica, é a matriz da consciên- compreensão de con itos repetitivos e tipicos,
cia, e é nele que surgem os germes de novas muitas vezes relacionados à tipologia (Vargas,
possibilidades de vida. O ego, como já foi dito, 1986).E apenas uma orientação útil para explicar
é para Jung o centro da consciência. o modo preferencial de funcionar de um marido
O processo de desenvolvimento e estrutura- à sua mulher e vice-versa.
çõo egoica não se faz aleatoriamente nem Jung (2000) descreveu o funcionamento ar-
depende somente de vivências pessoais, mas é quetípicono adultoeseusseguidores descreveram
coordenado pelos arquétipos e auxiliado por a atuação desses arquétipos desde o início da
duas estruturas, também arquetípicas, as quais vida, por meio de dinamismos que vão surgindo
funcionam de maneira complementar, formando e permanecem atuando estruturalmente durante
uma polaridade: a Sombra ea Persona,descritas toda a vida. Galiás (2000) descreveu os dinamis-
por Jung (1981) em 1916. mos parentais (arquétipos da mãe e do pai) de
Personaé o nome latino da máscara usada maneira clinicamente muito útil, com base nas
no teatro grego para melhor expressar e carac- posições ativa e passiva do ego. Vargas (2004).
terizar um personagem. Essa éafunção essencial de forma sucinta, descreveu os dinamismos de
daPersona que, por meio de papéis socialmente alteridade e de sabedoria (Velhos Sábios) atuan-
aceitos, acentuae caracteriza o desempenho tes nas relações conjugais. A psicologia analitica
de umapessoa, estruturandoa consciência atra- subentende o ego sempre como um "eu-outro",
vés do melhor desempenho de determinado podendo esse "outro" estar presente em qualquer
papel. Por intermédio dela, condicionamentos das dimensões da personalidade e ser vivenciado
sociais podem in uir de maneira muito signi cati- ativa ou passivamente em qualquer dos ciclos
va na formação de uma personalidade. Como arquetipicos (Byington, 1983). Ele existe "para al-
exemplo de inadequação de persona podemos guém ou para alguma coisa", sendo, portanto,
citar aquelas personas rígidas e xadas (máscara uma díade.
colada na face). Falamos em persona adequada Assim, entendemos que o trabalho tanto da
quando ela está a serviço da estruturação egoi- Sombra quanto da Persona é fundamental no
ca, quando faz parte da consciência, sendo trabalho com o casal.
exível a serviço, criativamente, do ego. A teoria dos vínculos é outro referencial teó-
Outra estrutura arquetípica fundamental para rico muito importante no trabalho com casais. O
a psicologia analíticaé a Sombra. Ela é constituí- ser humano é fundamentalmente gregário e
da pelas partes de nossa personalidade não sempre necessita do outro parao seu desen-
admitidas pela consciência, porque não aceitas volvimento. Um cônjuge infeliz, insatisfeito e
oU mal vistas por nosso ego e/ou nossa cultura. paralisado no seu processo de individuação não
Seus conteúdos são expressos de maneira incons- poderáser, com o tempo, uma companhia cria-
ciente, mais ou menos indiscriminada (projeções, tiva e adequada para o outro. O vínculo de
atos falhos, fantasias, sonhos, etc.). Eles já pode- casal ou é bom para os dois ou ruim para os dois,
riam ser conscientes mas, por di culdades de mesmo que não haja consciência disso por par-
integração, estão negados oU reprimidos. Um te dos cônjuges.
exemplo clássico de Sombra e Persona intensa- A teoria dos papéis se inter-relaciona coma
mente dissociados está expresso na obra "O teoria dos vínculos e é outro referencial muito
Médico eo Monstro", de RobertLouisStevenson. USado em nosso trabalho com casais. Os poten-
A exagerada persona bondosa do Dr. Jekyll es- ciais argquetípicos são determinantes apenas
conde a terível sombra do Mr. Hyde. quanto às formas, ao padrão, mas particulariza-
Outro referencial teórico útil no trabalho com dos individualmente nos conteÚdos pelos
Casaisé a tipologia psicológicae dinâmica pro- "humanizadores" desses potencias, que só assim,
postapor Jung (1967) em 1920, na qual descreve e especi camente para cada ser humano. pode-
duasatitUdes da consciência: a extrovertida ea rão ou não se desenvolver. Nossas personalidades
introvertida, conforme predomine de maneira se estruturam de maneiras muito próprias e indi-
preferencial a direçāo da libido para o mundo viduais sempre diante de um "outro". São,
externo ou interno. Jung descreveu também portanto, "humanizadores" de determinado
quatro funções da consciência: duas racionais arquétipo, tudo que estabeleça com aquele ser

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humano uma relação de funcionamento no Todo comportamento subentende duas po-


dinamismo próprio daquele arquétipo, ou seja, laridades: um polo passivo (saber pedir e
que o simbolize, seja um ser ou "alguma coisa". receber)e outro ativo (saber dar). É por intermé-
Assim, quando falamos em determinado papel, dio da dialética entre as polaridades arquetipics
ele subentenderáocampo especí code funcio- que ui e caminha o desenvolvimento pessoal,
namento daquela dinâmica no nível do ego, com fundamentalmente da dialética entre o ego
as partes da Sombra e da Persona próprias da- (centro da consciência) e o inconsciente, onde
quele dinamismo, sejam normais ou patológicas. estão as polaridades que se contrapõem àquelas
Um potencial arquetípico (por exemplo, do que estão na consciência, que poderão gerar,
arquétipo do pai) sempre conterá as polaridades quando bem articuladas, uma posição de equi-
padrão (por exemplo, lho do pai-pai), que intera- librio, adequação e plenitude dinâmica.
girão com as vivências individuais por intermédio Cada papel tem seu complementar; contudo,
dos sínbolos próprios dessa dinâmica (humani- para que eles funcionem, é necessáia a consciên-
zadores do arquétipo), estruturando os papéis cia de algo que os une e, ao mesmo tempo, os
complementares dessa polaridade. primeiro de diferencia, ou seja, o vínculo. Assim, os conceitos
forma passiva ( no do pai), depois de forma de vínculo e de papel, tão úteis em nossotrabalho
ativa (pai). Assim, a partir do potencial arquetí- com casais, interpenetram-se e se misturam.
pico, os diferentes papéis vão se estruturando Na psicologia analítica, analisamos e tenta-
dentro das dimensões da personalidade (corpo, mos compreender não só as situações vinculares
passadas (retrospectivas), mas também as "pro-
natureza sociocultural, ideias e emoções), sem-
curadas e buscadas" (prospectivas), visando à
pre de modo especí co e próprio para cada ser.
resolução de di culdades, entraves e xações e
Faz parte do papel de pai tudo que, a partir do
em busca de nosso desenvolvimento eevoluçã.
arquétipo do pai, é humanizado pelo pai pessoal
Assim, uma personalidade é mais rica e desen-
e outras pessoas que exerçam essa função oU volvida quanto maior o número de papéis bem
equivalentes em qualquer das dimensões da
estruturados e exíveis disponíveis para o com-
personalidade (Galiás, 2000).
portamento escolhido livremente pelo ego.
O primeiro papel que estruturamos é o de lho
Moreno (1966) já a rmara ser o papel (vínculo)
do matriarcal (FM) através do complementar Mãe a primeira unidade ordenadora e estruturante
(M), desempenhado mais frequentemente pela do ego, embora não formulasse, entre os com-
mãe pessoal, mas também por todas as pessoas ponentes coletivos do papel, a sua dimensão
e equivalentes que exerçam essa função (alimen- arquetípica. Quanto mais papéis bem estrutura-
tar, acolher, fertilizar) em qualquer das dimensões dos, variados e exíveis, maior será o arsenal de
da personalidade. Como o arquétipo contém as opções de comportamentos adequadoS e es-
polaidades, por exemplo, a que alimenta e aque- pontâneos da personalidade.
la que não alimenta, cada uma delas temsuUavez O dinamismo arquetípico de alteridade
e momento de funcionar, conforme as circunstân- (Animus-Anima) que deve predominar nas sau-
cias. Se consteladas e exercidas nos momentos e dáveis relações conjugais subentende. para sua
circunstâncias de vida em que são necessáias e boa estruturação, uma equilibrada e adequada
pertinentes, elas serão boas estruturadoras do estruturação dos dinamismos parentais prece-
papel; do contráio, poderão causar distúrbios e dentes (Galiás, 2000). Só assim podemos ter bem
male cios nesse papel. Assim, por exemplo, a mãe desenvolvidos os papéis criativamente simétricos
que alimenta o ho enquanto ele nãoé capaz de e complementares entre os cônjuges. Embora
fazê-lo por sua conta exerce esse papel como não tão importantes, os papéis ligados à dinâ-
"boa mãe". Caso ela continue alimentando esse mica arquetípica de sabedoria podemassumir,
lho quando ele já é capaz de aprender a se ali- principalmente para casais mais idosos, uma
mentar sozinho, con gura-se uma superproteção importância muito signifcativa, já que visões f-
que prejudicará o funcionamento matiarcal do losó cas, religiosas e transcendentes podem
ho. Nos animais, esse comportamento estruturan- gerar companheirisno ou con itos que poderāo
te é fortemente determinado pelo instinto, que é ser vividos de maneira criativa ou defensiva.
rígido e limitado. Em nossa espécie não é assim,
pois ao termos uma consciência tão desenvolvida PROCESSO TERAPĒUTICO
gozamos de grande livre artbitrio, o que é uma r-
queza mas pode, quando mal usado, causar A enorme complexidade dos vínculos de casal.
male cios ao nosso desenvolvimento. em que muitas variáveis estāo presentes,levou-nos

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Transtornosdas Relações Conjugais - uma Visão da Psicologia Analitica 269

a procurar diferenciar, por meio de parâmetros Xonamento. Como convívio, porém, as paixões
próprios da psicologia analí ca, as principais acabam, e, se o casal não for capaz de construi
características psicodinâmicas desses vínculos. umarelação amorosa, o casamento pode terminar
Assim poderemos ter mais discriminação e cla- Éfundamental nāo esquecer que o amor não
reza sobre as perturbações existentes nesse se deixa aprisionar por nenhuma análise ou in-
complexo vínculo, sem pretender uma classi cação terpretação. Sempre haverá algo de misterioso
abrangente, mas apenas identi car mais facil- e inescrutável em toda relação amorosa, além
mente aspectos mais inportantes e signi cativos de certo grau de imprevisibilidade. É. portanto,
na maneira de se relacionar do casal. O vínculo de indispensável que o terapeuta de casal tenha
casal é sempre único, mas podemos encontrar sensibilidade e humildade para respeitar essas
distorções comuns a vários vínculos de casal. características dos casais.
Nesse sentido, aplicamos a visão teórica de Com o crescente aumento da sobrevidae
que os quatro dinamismos arquetípicos, estrutu- do que se espera do casamento, é cada vez
rantes de nossa personalidade, estão sempre mais di cil que um casamento seja a única rela-
presentes: portanto, esse vínculo terá sempre uma Ção de casal, de modo válido, por toda a vida.
dimensão parental (arquétipos de mãe e pai), Vidas em comum precisam se harmonizar em
uma dimensāo conjugal e outra cósmica (Vargas, um complexo processo de individuação a dois.
2004). Asim, as perturbações vinculares poderão É um processo riquíssimo, mas difícil, no qual re-
ser discriminadas como preponderantemente núnciase sacri ciossão necessários, porém sem
provenientes de qualquer um desses dinamismos. lesões às individualidades dos cônjuges.
A psicopatologia mais clássica dos vínculos É fundamental que o casamento dure en-
de casal centra-se nos dinamismos parentais, na quanto houver amor e vida, sendo assim eterno
visão de que situações mal resolvidas nas vivên- enquanto existir amor entre os cônjuges. Um
cias parentais pregressas na vida dos cônjuges casamento não deixa de ter "dado certo" por
se repetem através dos mecanismos de defesa, não ter durado toda a vida.
causando transtornos. Acreditamos, porém, que O que caracteriza fundamnentalmente um ca-
muitosdistúrbios do casal serão mais compreen- samento éovínculoconjugal. Aquele que se reduz
didos se considerarmos as problemáticas da aum vínculoparental ou a uma parceria religiosa,
criatividade da vida adulta e da bUSCa da indi- política ou losó ca não con gura umn casamento
viduação. Nossa visão do vínculo de casal pleno. Poderá ser uma boa sociedade, com gran-
também se enriquecerá se considerarmos, além de companheirismo, mas não será um casamento
da perspectiva regressiva, a prospectiva, pes- pleno e válido como tal.Gostaria de ressaltar que,
quisando não só os "porquês" mas também os no caso de casais, o terapeuta deve estar sempre
"quês" e os "para quê". atento às variadas situações transferenciais que
Anima e Animus são os arquétipos que presidem OcoTerāo no setting terapêutico, não Só entre casal
os casamentos na sua dimensão de alteridade, e terapeuta, mas também entre os cônjuges.
que busca criatividade e desenvolvimento. Encon- Em geral, trabalha-se com uma sessão por se-
tramoscascisque semantêmporcomplementações mana. Assessões costumam ser muito mobilizadoras,
mórbidas, ńgidas e defensivas e não pelas realiza- de fortes emoções, pois os envolvimentos são gran-
ções e transformações criativas. Esses casais des. Em situações de crises conjugais, a frequência
"acomodados" e que frequentemente não pro- pode ser maior, bem como a duração da sessão,
curam ajuda podem, às vezes, fazê-lo por normalmente de 50min. A duração da terapia é
problemas dos lhos ou fatores estressantes para variável, em geral com poucas sessões. Pode-se,
O casal. eventualmente,fazerum contrato com pre xação
Um casamento pode validamente acabar do número de sessões.Às vezes, a terapia pode se
quando não existirem razões signi cativas para estender por mais tempo, quando se tornar muito
que continue oU possa se transformar em um produtiva para os processos de individuação dos
novo vínculo. Quando existem lhos, é muito im- cônjuges, quando então estes funcionam como
portantea preservação do casal parental. O que fatoresterapêuticos mutuamente, reforçando mu-
pode ser muito lesivo para os lhos não é a separa- to seu companheirisno e aliança. 978-85-7241-915-4
ção docasalparentalem si,maso comportamento
dos genitores. INDICAÇÕES
Oencontro amoroso pode acontecer nasmais
variadas situações, às vezes até muito adversas. Em É fundamental que haja uma demanda, reco-
nossa cultura, frequentemente inicia-se pelo apai- nhecida oU não pelo casal. A procura pode vir

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do próprio casal ou por recomendação de ana- mos na vida e na qual mais investimos. É importante
listas individuais dos membros de um casal, de cuidarmos dela e protegê-a. Muitas vezes, no
psicoterapeutas conhecidos do casal, de médi- entanto, é a relação na qual menos investimos e
cos, de antigos clientes do terapeuta, da escola cuidamos, pois nos sentimos "em casa", incons-
oU dos terapeutas dos hos, etc. cientemente comportando-nos de maneira
Uma prinmeira consulta deve servir para um inadequada, assegurados por um amor pretensc-
diagnóstico da situação e indicação ou não de mente incondicional e garantido.
terapia de casal. Caso um cônjuge compareça Como também é frequente em psicoterapia
sozinho à primeira consulta, se a indicação for para individual, com casais idosos, é frequente traba-
casal, deve-se oferecer ao outro cônjuge amesma Iharmos mais com os aspectos prospectivos, de
possibilidade, cando claro para ambos, porém, buscas, do que retrospectivamente, com ques-
que tudo que for revelado nessascircunstäncias tões do passado e de infância.
não será sigilo entre terapeuta e cliente. Na terapia
de casais, é sagrado não haver segredos entre um
CONTRAINDICAÇÕES
Cônjugeeo terapeuta,preservando-se a postura
de igualdade do terapeuta perante os cônjuges, As contraindicações absolutas são as psiquiáti-
não comprometendo seu papel de intermediador cas. Um cônjuge muito deprimido, delirante, com
entre eles. muitas defesas psicopáticas oU muito fragilizado
Na hipótese de um ou ambos os cônjuges não não suportaria um confronto igualitário ou pode-
desejarem continuar casados, poderá haver in- ria fazer mau uso dele. Pode-se, eventualmente,
dicação de terapia de casal para que possam USar o atendimento do casal como estratégia
separar-se da melhor maneira possível. Muitas para tratar o cônjuge mais comprometido que,
vezes, a separação de um casal é dolorOsa e muitas vezes, se recusa a um tratamento indivi-
difícil, principalmente quando existem áreas de dual, mas concorda em ir ao terapeuta desde
interesse comum com grandes divergências e que estejajunto com seu cônjuge. Não se trataia,
con itos, por questões familiares,pro ssionaise/ou nesses casos, de uma terapia de casal, mas de
econômicas. E o caso, por exemplo, de quando uma terapia individual com sessõesvinculares em
existem lhos, quando é muito importante a pre- que um cônjugeé auxiliar terapêutico.
servação do vínculo parental em bons termos, às Entre as contraindicações relativas, podemos
vezes com grande melhora desses papéis. O destacar aquelas em que há isco de revelação
vínculo conjugal pode e muitas vezes deve ser de segredo, falta de motivação ou transferência
rompido, mas o vínculo parental com os lhos é muito forte, que não se consegue transpor, de
eterno. Não há ex-pai e ex-mãe; somente ex- um dos cônjuges com o terapeuta.
cônjuge. Crianças precisam de pai e mãe que O atendimento costuma ser feito no consu-
funcionem bem nesses papéis, sendo de menor tório ou em instituições de assistência. O trabalho
relevância se eles são ou não casados. Genitores com casais em grupo pode ser útil quando se
que vivem juntos, mas vivem mal e, consequen- tratam casais que buscam prevenção ou preparo
tenente, perdem a condição de serem bons e (por exemplo, para o casamento, como lidar com
adequados genitores, podem lesar maisseus hos hos, etc.) ou que tenham um problema em co-
que aqueles que se separam mas conseguem mum (por exemplo, alcoolisno). Para casais com
desempenhar bem seus papéis de mãe e pai. di culdades e problemas mais intimos, porém, o
A busca pela terapia de casal pode existir setting mais adequado e continente é o propor-
por uma situação de crise ou porque os cônjuges cionado especi camente para eles. É muito
desejam ajuda para viver melhorou resolverseus importante a preservação da intimidade e alian-
problemas e desentendimentos repetitivos e ça do casal, pois revelações da individualidade
desgastantes. Às vezes, uma terapia individual de cada um podem ser muito destrutivas por fe-
paralisada ou poUCo frutifera pode ser indicação rirem muito o outroe, se ampliadas para osocial.
para terapia de casal, na qual a participação podem se tornar mais difíceis de serem reparadas.
do cônjuge pode mobilizar e trazer à tona di - E importante esclarecer para o casal que não se
culdades e feridas que não estão sendo levadas espera, nessa forma de terapia, total entrega de
para a individual, já que a terapia de casal é todas as vivências dos cônjuges, como na anál-
muito mobilizadora e pode fertilizar a terapia se individual. É, porém, esperável que tudo que
individual paralisada. diga respeito ao relacionamento do casal seja
A relaçāo de casal costuma ser a relação trazido para a terapia, uma vez que é esse o
mais importante, íntima e profunda que construí- sentido maior da terapia de casal, em que se

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TranstornosdasRelaçõesConjugais - uma Visão da Psicologia Analitica 271

utiliza o vínculo de casal como instrumento tera- de individuação ajudam o terapeuta de casal a
pêutico. Há dimensões da individualidade de discriminar caracteristicas vinculares que se rela-
cada cônjuge que devem ser respeitadas no cionarão com os comportamentos dos cônjuges.
casamento e também na terapia de casal para
que não haja sufocamento e castração delas. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Contudo, é dever conjugal que tudo que diga
respeito ao relacionamento entre eles seja comu- A terapia de casal vem se expandindo e se de-
nicado omais cedo possível, de forma adegquada senvolvendo muitíssimo nas últimas décadas.
eno momento oportuno, para que o outro tenha, Espera-se e exige-se muito mais do casamento
ao ter consciência das vivências de seu Compa- e este, além de poder ser a relação mais íntima
nheiro, apossibilidade de lidar com elas damelhor e importante de nossas vidas, pode durar mais
maneira que for capaz, investindo desse modo tempo, pois a vidamédia não para de aumentar,
na melhoria do relacionamento. demandando mais cuidados e investimentos. O
Como já a rmado, o trabalho do analista casamento está, também, menos padronizado.
junguiano não se caracteriza por uma técnica É cada vez menos comum o casamento com
especí ca, mas pelos pressupostos teóricos da papéis previamente determinadose bem de -
psicologia analítica, por sUa visāo do ser humano. nidos socioculturalmente para os cônjUges,
O analista trabalhará com o casal utilizando-se conforme o gênero.
das mais variadas técnicas psicoterápicas que Cada casal deve construir o casamento que
conheçae domine, desde que as empregue é adequUado para si. Com o passar do tempo, os
com sabedoria e adequação para aquele casal Cônjugessofrem mudanças em todos os níveis de
especí co e naquele momento, assumindo ple- sUaspersonalidades, sendo necessário, para que
na responsabilidade pelo seu uSo. Elas serão possam continuar caminhando juntos, muito in-
praticamente as mesmas que ele poderá usar vestimento e integração contínua de diferenças.
nas sessões de psicoterapia individual e grupal. Daí a importância que se atribui à necessidade
Pressupõe-se, porém, no caso de casais, uma de diálogo frequente e verdadeiro entre os côn-
escuta cuidadosa de ambos os cônjuges, eo juges, para que suas transformações não sejam
trabalho com um deles deverá ser referenciado vividas de modo divergente oU antagônico e que
ao outro. Ao relato feito por um cônjuge deve-se, eles consigam permanecer lado a lado.
quase sempre, seguir a escuta do outro sobre o Tudo isso gera grande riqueza e desa os para
mesmo fato. A "verdade de cada um" precisa o Casamento, que se torna, cada vez mais, possí-
sempre ser levada em conta como intuito de vel fonte de desenvolvimento, realizaçāo e
que haja respeito e compreensão para"diferen- individuação. É claro que tudo isso leva o casa-
tes verdades" e, se possível, encontrar-se de mento aser campo de muitoscon itos, atualizações
onde provêm as diferenças. de problemas mal resolvidos e questionamentos
É também muito importante analisar e iden- sobre sentidos da vida para os cônjuges. Não é,
car as distorções nas comunicações entre os pois, de se estranhar que tenha aumentado tanto
cônjuges, procurando-se reconhecer problemas a demanda pela terapia de casal-eomesmo se
na emissão OU recepção de mensagens, como pode dizer da terapia de familia.
mensagens contraditórias, seleção de mensa-
gens, chantagens, etc.
O terapeuta procurará propiciar vivências REFERÊNCIAS
simbólicas ao casal por meio de interpretações ACKERMAN, N. W. Psicoterapia de la Familia Neurotica. Bue-
(redutivas e/ou prospectivas), ampliações, escla- nos Aires: Hormé, 1969.
recimentos, uso de recursos de mobilização
BATESON,G. et al. Interaccion Familiar. Buenos Aires: Edicio-
(dramatizações, imaginações estimuladas, fan-
nes Buenos Aires, 1980.
tasias dirigidas, trabalho com sonhos, etc.) e o
BYINGTON, C. A. B. A identidade pós-patriarcal do homem e
trabalho com transferência e contratransferência.
Ele será guiado pelo processo de individuação da mulher e a estruturação quaternáia do padrão de
alteridade da consciência pelos arquétipos da Anima
do casale estará a serviço dele, usando os recur-
e do Animus. Junguiana, São Paulo, v. 4, p. 5-69, 1986.
SOsque conhecer ejulgar convenierntes para seu
trabalho com aquele casal e naquela ocasião. BYINGTON, C. A. B. O desenvolvimento simbólico da person-
A discriminação do vínculo de casal como alidade. Junguiana, São Paulo, v. I, p.&-63, 1983.
parental, conjugal e de sabedoria, a tipologia e a DICKS, H. V. Object relation theory and marital studies. Brit. J.
perspectiva do casamento como possívelcaminho Med. Psychol., v. 36, p. 125-129, 1963.

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272 PsicologiaAnalitica

FORDHAM, M.A Ciança como indivíduo. São Paulo: Cutrix,1994. JUNG, C. G. Psicogênese das Doenças Mentais. Petrópolis:
FREUD,S. Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Vozes, 1986.

Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas JUNG, C. G.Tīipos Psicológicos. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
de Sigmund Freud, v. XI). MORENO, J.L Psicoterapia de Grupo y Psicodrama. México:
GALIÁS, I. Psicopatologia das relações assimétricas. Jun- Fondo de Cultura Economica, 1966.
guiana, São Paulo, v.18. p. 113-132, 2000. NEUMANN, E. A Criança. São Paulo: Cultrix, 1981.
GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O Casamento Está Morto. Viva o SAGER, C. G. The development of marriage therapy: An
Casamento. São Paulo: Simbolo, 1980. historical review. Am. J. Orthopsychiatric., v. 36, p. 458-
JUNG, C. G. A Energia Psiquica. Petrópolis: Vozes, 1983. 467, 1966.
JUNG, C. G. Estudos sobre Psicologia Analitica. Petróplis: VARGAS, N. S. A Importância dos tipos psicológicos na
Vozes, 1981. terapia de casais. Dissertação (Mestrado]. Facl-
JUNG, C. G.O Desenvolvimento daPersonalidade.Petrópo- dade de Medicina Universidade de São Paulo, São
lis: Vozes, 1981. 2.ed. Paulo, 1981.
JUNG, C. G.O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1978. VARGAS,N. S.Omasculino e o feminino na interação homem-
JUNG, C. G.Os Arquétipos do Inconsciente Coletivo. Petrópo- mulher. Junguiana, São Paulo, v. 4, p. 117-126, 1986.
lis: Vozes, 2000. VARGAS, N. S. Terapia de Casais. São Paulo: Madras, 2004.

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CAPÍTULO 31
Autismo na Visão da
Psicologia Analítica

CERES ALVES DE ARAUJO

Eu sei que você e eu ser distinguido do autismo secundário devido a


Nunca fomos iguais. dano cerebral ou retardo mental, bem como do
Eeu costumava olhar para as estrelas à noite distúrbio simbiótico interacional, englobando as
E queria saber de qual delas eu vim assim chamadas psicoses simbióticas, com de-
Porque eu pareço ser parte de pendência incomum à mãe na forma de um
um outro mundo prolongamento da ligação, e outras psicoses,
Eeu nunca saberei do que ele é feito. corespondendo às crianças com desenvolvinmen-
A não ser que você me construa uma ponte,
ConstruUa-se uma ponte, to atípico, com alguns comportamentos autísticos
Construa-me uma ponte de amor. e indiferença emocional (Group for Advance-
MCKEAN, 1994, AUTISTA, 28 ANOS,ESCRITOR ment of Psychiatry, 1990).
Alteraçõesimportantes nessagrande variedade
de nomenclatura surgem a partir de Ritvo (1976).
HISTÓRICO autor querelacionaoautismoaum dé cit cognitivo,
considerando-o não mais uma psicose, e sim um
Ao estudar o histórico do autisno, Assumpção Jr.
distúrbio do desenvolvimento caracterizado por dis-
(2007) relata que, em 1942, Kanner descreve, sob túrbios de percepção, de desenvolvinmento, de
onome"DisturbiosAutisticos do Contacto Afetivo", relacionamento, de linguagem e de motilidade,
um quadro que ele caracteríza por isolamento com a relação autismo-de ciência mental passan-
extremo, obsessividade, estereotipias e ecolalia. do a ser cada vez mais considerada com a
Em trabalho de 1956, Kanner continuoU descre-
classi cação americana e da Organização Mundial
vendoesse quadro como uma "psicose infantil", de Saúde (APA, 1994; OMS, 1993) enqUadrando-a
referindoque nenhum exame clínicoe laborato- na categoria"DistúrtbiosAbrangentes do Desenvol-
rial fornecia dados consistentes naquilo que se
vimento"e enfatizando arelação autismo-cognição.
relacionava à sua etiologia, porém os diferencia- Na traduÇão para o portuguên, esses distúrbios
va dos quadros de citários sensoriais, como afasia muitas vezes são traduzidos como distúrbios globais
congênita, e dos quadros ligados às oligofrenias: do desenvolvimento ou também distúrbiosinvasivos
assim, novamente, considerava-o uma "verda- do desenvolvimento.
deirapsicose". Com o passar do tempo, o quadro
toi descrito melhor, com maior dedignidade
diagnóstica e conceitual, sendo, em meados da CONCEITO
década de 1960, denominado, de maneira vaga.
"psicose infantil". Pontos de vista psiquiátrico
Ao nal da década de 1960, tem-se sua inclu-
Sao entre as psicoses da primeira e segunda
neurobiológico
intäncias,fato esse que permeará algumas con- Atualmente. pela quarta edição do Manual Diag-
fUSõesconceituais até o mnomento presente, uma nóstico e Estatístico de Transtornos Mentais-texto
Vezque, segundo esse pensamento, descreve-se revisado (DSM-IV-TR, Diagnostic and Statistical
Oautismo infantil enguanto problema primário, a Manual of Mental Disorders IV - text revision)

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274 PsicologiaAnalitica

(APA, 2002), o autismo é diagnosticado pelos fatos sobre meteorologia ou em ngir serum
itens seguintes, incluindo-se pelo menos dois itens personagem de fantasia.
do primeiro grupo, um do segundo e um do ter- 4. Iníciongprimeirainfância ouinfância,espe-
ceiro, em um total de seis: ci cando seo início do problemasedeu ng
primeira infância (após os36nmesesdevidg).
1. Incapacidade qualitativanaintegracão
Socialrecíproca, manifestadapor acentuada Considerando-se a Classi cação Internacio-
falta de alerta da existênciaousentimentos nal de Doenças - décima revisão(CID-10)(OMS,
dos outros; ausência oubUSCade conforto 1993), essa categoria diagnóstica encontra-se no
anormal por ocasião desofrimento; iritação grupo dostranstornosglobais dodesenvolvimen-
ausente oU comprometida: jogo social anor- to de nida como um grupOCaracterizadopor
mal ou ausente: nítida incapacidade de alteraçõesqualitoativasdas interaçõesqualita vas
fazer amizade comseuspares. dasinterações sociais recíprocos emodalidades
2. Incapacidade qualitativa na comunicação de comunicaçāoe porum repertóio deinteres-
verbal e não verbal e naatividadeimagi- sese atividades restrito, estereotipado erepetitivo.
nativa, manifestada porausênciade modo Essas anomalias qualitativas constituem uma
de comunicaçāo, Como balbucio comuni- caracteristica global do funcionamento do su-
cativo, expressão facial, gestos, mímica ou jeito, em todas as ocasiões.
linguagem falada: comunicação nãover- Sob o ponto de vista funcional e etiológico,
bal acentuadamenteanormal,comoolhar mesmo a escola francesa, comn sua tradição
fxo olho noolho.,expressãofacial,postura psicodinâmica, prefere ver o autismo hoje vin-
corporal ou gestos para iniciar ou modular culado à questão cognitiva (Lellord e Sauvage.
a interação social: ausência de atividade 1991) com Lebovici (1991). sendo textual quando
imaginativa, comorepresentação de pa- diz que, "para os clínicos, o autismo é uma sín-
péis de adultos.personagens de fantasiaou drome relativamente precisa". sendo "altamente
animais, falta de interesse em históias sobre improvável que existam casos de autismo não
acontecimentos imaginários: anormalida- orgânico" e que "o autismo é uma disfunção or-
des marcantes ng produção dodiscurso, gânica-e não um problema dos pais" -issonão
incluindo volume, entonação, estresse,ritmo. é matéria para discussão. Gillberg (1990) mostra
velocidade e modulação; anormalidades que o novo modo de ver o autismo é biológico
marcantes na forma ou no conteúdo do (Assumpção Jr. 2007).
discurso, abrangendo oUSOestereotipado Sua ligação com a de ciência mental parece
erepetitivo da falg, uso de você quando eu ser clara, estabelecendo-se a noção de um "con-
épretendido,frequentesapartes ielevan- tinuum autistico" (Wing. 1988) em funçāo da
tes; incapacidade marcante na habilidade variação de inteligência, com características
de iniciar ou sustentar uma conversação sintomatológicas decorrentes desse per l de de-
com os outros, apesar da fala adequada. sempenho, o que, de acordo com os trabalhos
3. Repertório de atividades einteressesacen- de Frith (1988, 1989) e Baron-Cohen (1988, 1990.
tuadamente restritos,manifestado por 1991), faz com que se questione o conceito pr-
movimentoscorporaisestereotipados, como mitivo de Kanner ea própria noção depsicose.
pancadinhas com as mãos, rotação, movi- O conceito dessa condição modi cou-se
mentos de torção, batimentos da cabeça, muito desde a sua descrição inicial em 1943.
movimentos complexos de todo o corpo; quando foi considerada uma doença comcau-
insistente preocupação com parte de ob- sas parentais, dentre as quais se enfatizava a
jetos ou vinculação com objetosinusitados: maternagem inadequada. Hoje a condição é
ysofrimento acentuado com mudanças tri- entendida fazendo parte de um continvum de
Miais no aspecto do ambiente, por exemplo, características próprias do espectro do autismo
quando um vaso é retirado de sua posição com causas biológicas, congênitas.
USUal; insistência sem motivo em seguir roti- Assim, segundo Gillberg (1990), o autismo tem
nas comdetalhesprecisOS- porexemplo, de serconsideradoumasíndromecomportamen-
obstinação em seguirsempre exatamente tal com etiologias ui ptas em consequencia de
o mesmo caminho para as compras; âmbi- um distúrbiodedesenvolvimento.Caracteriza-se
to de interesse marcadamente restrito e por um dé cit na interação socialvisualizadopela
preocupação com interesse limitado-por inabilidade derelacionar-se como outrocombi-
exemplo, em en leirar objetos, em acumular nado com dé cits de linguagem e alteraçõesde

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Autismo na Visão da Psicologia Analítica 275

comportamento,sendo associadoa uma vasta Deve-se considerar que o mesmo marcador não
gama de condiçõespré, periepós-natais.Assim, está presente em todos os casos e. por outro
o autismo é um distúrbio do desenvolvimernto com lado, nenm todo indivíduo que tem um desses
basesneurobiológicás que se caracteriza por marcadores é. necessariamente, autista: toda-
prejuizosnasáreasde interação social, comuni- via, a associação entre o quadro dos transtornos
Cação e comportamento. Schwartzman (2003) globais do desenvolvimento e alguns desses
mostraque ca cada vez mais claro que se trata marcadores é tão frequente que não se pode
de um quadro inespecí co, ou seja, que não tem considerá-la simples coincidência.
umaúnica causa e que não decore da disfunção O chamado autismo de Kanner é o mais gra-[
de uma mesma estrutura neural. ve na classi cação dos transtornos globais do
A prevalência do autismo era estimada em desenvolvimento. Pertencem às condições me-
cerca de 10 afetados para cada 10.000 indiví- nos graves a síndrome de Asperger eo autismo
duos da população geral. QUando os autores de alto funcionamento, sendo essas duas últimas
passaramase referir aos transtornos invasivosOU condições difíceis de serem diferenciadas. São os
globais de modo geral, chegou a ser estimada quadros nos quais a inteligência está preservada.
em 1:1.000, 1:350 e mesmo l:160. É alta a proba-
bilidade de quadros de autismo associado a
inúmeras condições médicas, sendo as mais
Ponto de vista simbólico-arquetipico
frequentes a de ciência mental, a epilepsia, a Do ponto de vista da psicologia junguiana, acre-
síndrome do X frágil, a síndrome da rubéola con- dita-se que a organização do desenvolvimento é
gênita, as infecções pré-natais, a síndrome de arquetípica, istoé, o desenvolvimento se processa
Down, a síndrome de Angelman, a síndrome sob aordenaçãodoSelf,arquétipocentralcomo
fetal alcoólica, entre muitas outras. O eletroen- princípio de totalidade. O conceito contemporâ-
cefalograma (EEG) foi um dos primeiros exames neo de arquétipo, descrito por Knox (2003).
neuro siológicos estUdados no qutismo. Sabe-se equaciona os arquétipos com esquemas de ima-
que há elevado mdice de anormalidades bio- gens, modelos espaciais que são formados
elétricas e de epilepsia em casos de autismo precocemente no desenvolvimento mental e ar-
(Schwartzman, 2003). mazenam informações essenciais sobre as relações
Fatores genéticos estão presentes em boa espaciais dos objetos do mundo ao nosso redor.
parte dos casos de transtornos globais do desen- Os arquétipos não são estruturas genéticas inatas,
volvimento, podendo-se apontar três diferentes como se acreditou por tanto tempo, embora o
argumentos nesse sentido: próprio Jung acreditasse que eles eram matrizes
herdadas enquanto espécie, isto é, comuns à
)A concentraçãofamiliardecasosde au- espécie humana. Atualmente. postula-se que
tismo: o autismo é mais comumentre irmãos existem mecanismos genéticos de orientação
de crianças afetadas. especi ca, sendo o gene entendido como um
A concentração familiar de outras condi- çatalizador. Assim, o arquétipo deve ser entendido
Ções e/oU Características em familiares de não como uma estrutura inata, mas como uma
autistas: há uma séie de alterações discre- estruturaemergente,derivada dodesenvolvimen-
tas, mas possivelmente relacionadas Com to auto-organizado do cérebro. As primeiras
o autismo, em parentes próximos dos indi- estruturaspsiquicas, esquemas de imagens, ofere-
víduos afetados. cem um modelo atual para os arquétipos, no
3) A conhecida associação entre autismo e sentido que eles organizam a experiência,
várias condições de origem genética. enquanto elespróprios permanecem sem con-
teúdo e aquémdo domínioda consciência. O
A prevalência de autismo entre irmãos, excluí- esquema de imagem parece corresponder ao
dososcasos em queo autismo acompanha outra próprio arquétipo e a imagem arquetipica pode
condição de base genética, é estimada em cerca ser equacionada com as extensões metafóricas
de 2 a3%%.Esse núnmero, apesar de pequeno em inumeráveis, que derivam dos esquemas de
valores absolutos, é, ainda assim, 50 a 100 vezes imagem. Osarquétipos são gestalts que funcio-
maior quea prevalência estimada para o autismo nam comobasepara aelaboraçãodepadrões
na população geral (Shwartzman, 2003). no mundo simbólico.
Não é possível falar em um marcador bioló- Diferentestrajetos de desenvolvimento podem
gIco especí co nos quadros do autismo, uma vez ser traçados em função da interação dos meca-
que vários marcadores têm sido identi cados. nismosgenéticos de orientação especi ca com a

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276 PsicologiaAnalitica

circunstancialidade envolvente de cada ser hu- ng estuturacãodaconsciência, oqueimpede


mano. As primeiras estruturas psíquicas, os a liaçūo plena à maternagem humana. Os di-
arquétipos, irão organizar a experiência do ser namismos matriarcais - carinho, cuidado,
humano no mundo. aconchego, continência –não semostrame ca-
Jung (1981) de ne individuação como "o zes. O amor de mãe, primeira forma de amorque
processo de constituição e particularização da deveria ser vivenciada, não consegue ser com-
essência individual, especialmente o desenvol- preendido nem correspondido. Asexperiências
vimento do indivíduo, segundo o ponto de vista emocionais de estarem ligação como outronão
psicológico, como essência diferenciada do São representadas. O impedimento para o fun-
|todo da psicologia coletiva" (p. 525). cionamento dos dinamismosmatriarcaisfazcom
Aolongo do processo de individuação,observa-se que a trajetória do desenvolvimento da ciança
aregência de diferentesarquétipos: o arquétipo de Çom autismosejg muito peculiar,
Grande Mãe, o arquétipo do Pai, o arquétipo da Nodesernvolvimento tipico/o.esquema de
Anima-Animus e o arquétipo da Sabedońa. A inte- imagem de continente caracteriza a constela-
gração de todos os arquétipos entre si., ordenados Ção do arquétipo Materng. O componente
pelo arquétipo do Self, o arquétipo da totalidade. inato pode ser tão simples como um mecanismo
propicia o processo de individuação. para focar a atenção em especí cos padrões
Galiás (2005) relaciona o arquétipo da Gran- perceptivos. Tais padrões podem ser armazena-
de Mãe à primeira forma de amor vivenciada, o dos em uma forma esquemnática simples, a qual
amor de mãe: o arquétipo do Pai, ao amor de pai: entāo permite que todos os padrões semelhan-
o arquétipo daAnima-Animus,ao amor de alte- tes sejam reconhecidos. Assim, podem ser
ridade: eo arquétipo da Sabedoria, ao amor justi cados a atenção e oreconhecimentodo
espiritual.Postula-se quea integração de todos bebê para o padrão básico da face humana,
Os arquétipos entre sie as possibilidades de viven- desde oS primeiros dias de vida. Os bebês não
ciar as diferentes formas amorosas na relacão possuemum modelo daface humanaarmazena-
Çonsigo mesmo, Com oSOutrose com o mundo do em seus genes, mas têm instrução genética
parecem estar muito alteradasnaspessoascom paraprestaratenção paticulara qualquerpa-
autisno, o queconstituiumimpedimentoimpor- drão do tipo face que apareÇa em seu campo
tante aoprocessodeindividuação. VisUal.Nao se postula que exista inatarepresen-
Postula-se também que o autismo pode ser tação de faces. As estruturas inatas não contêm
considerado uma agenesia da estruturação Conteúdos simbölicos; sāo apenas simplesse-
matriarcaldaconsciência:portanto,uma atipia quências derespostas aestimulos,processadas
do desenvolvimentohumano(Araujo.2000). em um nivel subcortical, que assegura que a
Aspessoas com autismo nãoseguemostrajetos qtenção do bebê vá paraosaspectos-chave
tipicos da estruturação da consciêncig.Elastênm no seu ambiente que são essenciais paraseu
uma formadifererntede estruturação da mente. desenvolvimento psico siCo.
Parecem estarprivVadasdo processodeindividuUa- A experiência da criança de sua mãe como
Ção. Em função desUascondiçõestãopeculiares continente sico e psicológico é umaextensão
epor viverem sob os determinantes de uma cultura metafóricadesseesquema de imagem ouarqué-
na qual não são adequadamente compreendidas, tipo A gestalt de continente ésimples,maspode
as pessoasportadoras dos quadros deautismotêm dar surgimento a uma riqueza de signi cados na
um processo de desenvolvimento psicológico bas- medida em que é expressa na abrangência da
tante difícil e penoso. Éprovável que apenas uma intimidade sica e na compreensão e contensão.
minoria das pessOascomnesse transtorno do desen- pela mãe, das necessidades e emoções de seu
volvimento, a que possui a inteligência preservada, bebê. É assim que, sob a regência do arquétipo
possa chegar a um processo de individuação, com da Grande Mãe, surge a primeira forma de amor
apossibilidade de descobrir a própia forma de ser vivenciada: o amor de mãe, que é um amorque
e, talvez, o sentido de sua existência. precisa ser correspondido.
No trajeto do desenvolvimento do bebêcom
UM PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO PECULIAR autismo,nãose observa a vivênciae arepresen-
tação dq relação como cUidador.Os dinamisnmos
Os dinamismos matriarcais matriarcais- cuidado, carinho, aconchego,con-
tinêncig -estão alterados,damesmaformacomo
Há uma hipotro a, senão mesmo uma atro a, do não existe a vivência e a representaçãodase-
papel "ilho da Mãe" descrito por Galiás(1988) paração. Parece nãose criar oespaço dafalta.

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Autismo no Visão do Psicologia Analica 277

oespaçodaseparaçãoe,consequentemente.O classe dos objetos é mais importante que a es-


espaço da fantasia.O bebê e g ciança com colha especi ca. Osclássicosobjetos transicionais
qutismo podem aprender a necessitar do outro, parecem sertrocados pelos objetosautisticos.
mas não desenvolvem a noção de pertencer a Do mesmo modo que a face humana pode
umoutro.Nãose cia, segundoasmaneirasusuais, ser de poUCointeresse para esse bebê, eletam-
a relação eu-outro, para que, em decorrência bémpode demonstrar pouco interessepelossons
dela,possase criar a relação eu-mundo.São da vozhumana,oquefaz com quese acredite,
crianças, em geral, amadas, mas o amorde mãe com frequência, na possibilidadedesurdez. A
naoconsegueser corespondid. falta demotivaçãopara ainteraçãoe afalta
Essas crianças apresentam dé cit nosprocessos de atratividade ao estímulo social. presentes
afetivos-sociaisbásicos desde idade muito precoce. desde o nascimento, podem resultar em uma
Carecem das habilidades cogniivas sociaisneces- falha para iniciar e integrar os padrões básicos
sáiasaumateoia damente. Aredita-se,atualmente, interpessoais, que se acredita serem as funda-
que a impossibilidade de adquirir uma teoria da lções para odesenvolvimentoda comunicação.
mente poSsaser resultante de um dé cit na capa- A grande maioriadessas crianças não desem-
citação básica para interação. penha troca pelo olhar, não xa, não mantém o
Baron-Cohen et al. (1985), estudiosos da "teorna olhar no outro. Stone (1997) mostra que análises
da mente", nos transtornos globais do desenvolvi- de vídeos dessas crianças, em sUas familias, reve-
mento, interpretam os dé cits da capacidade lam contatodeolhosmuitolimitado por parte da
-para aternção conjunta como evidências da ina- criança e, compensatoiamente, elevado nível
bilidade para ler outras mentes. Ao se aceitar, de energiada mãe parasustentara interação.
porém, o problema afetivo-social conmo primário, Diferente das crianças ditas normais oU mesmo
poder-se-iainterpretar a falha da ciança emdivi- das crianças que nascem com outras de ciências,
dirsuasexperiênciascom o outrosigni cativo. a criança no espectro do autismo parece viver
Çomo um dé cit motivacional, como propõem em ummundodiferente.Mãee criança estão em
Volkmaret al. (1997). mundos separados, sem a possibilidade da comu-
Se o dé cit motivacional para a interação nicação desejável. pois, por mais que tente, por
está presente desde o início da vida, haverá mais capaz de continência que seja, a mãe não
prejuízo importante para a aquisição da inter- consegue entendere atender adequadamente
subjetividade, determinando uma série de às necessidades do ho. Não há condição de
alterações ao longo do processo do desenvol- estabelecer o código padrão para a comunica-
vimento, incluindo prejuízos na interação afetiva, ção, Arelaçãodematernagem nãose constela
na sociabilidade e na cognição. nos padrões próprios da espécie humnana.
O bebê, nessa condição atípica, tem uma Oscomportamentosdeausência oudesvio do
percepção anormal e, por conseguinte, umarea- olhar, associados a outras alterações das trocas
Cão anormal aos "signi cados" dasexpressões nãoverbaisprecoces,prejudicam a emergência
emocionais daspessoas.Há alteraçãona comunica- daintersutbjetividade,
istoé,daconstrução de uma
ção não verbal, na coordenação interpessoal experiênciaemocional compartilhada entrea
corporal e mental. Existem, em decorência disso, criançae quem cumpre maternagem. Sabe-se
prejuízos na noção de crença, no estabeleci- que tal construçãoé condição para o desenvol-
mento de distinção entre aparência e realidade vimento das funções mentais.
e na compreensão da orientação subjetiva em Afalhanoemergirdasubietividadeé deriva-
relação a pessoas, objetos e situações, como da tambémda faltadeaquisiçãoda atenção
mostra Hobson (1990). conjunta, que é uma habilidade pré-verbal da
O bebê, no espectro do autismo, pode não Comunicação,a qualpermiteque a criançadi-
buscar o conforto sico de seUspais e/ou pode vida com outra pessoa a experiência de um
apresentarreaçõestônicas dedesprazeraoser terceiroobjetoou deumevento.Afalhano ad-
colocado no colo OUđo ser acariciado.Postura quirirda atenção conjunta pode serconsiderada
rígida,alterações no tônus eneutralidade das um dos maiores e mais persistentes problemas no
expressões faciais são queixas frequentes dos desenvolvimento da criança com autismo. As
pais. O bebê pode parecer mais calmo quando representações triádicas não se formam, os ges-
deixadosozinho. Quando algumas crianças com tos da criança permanecem protoimperativos e
autismo apresentam apego a alguns objetos, não surgemosgestosprotodeclarativos,aqueles
esses apegos são, em sua maioria, estranhos. Os que pedem atenção da outrapessoa para com-
objetos de apego são duros, pontudos, ou a partihar ascoisasdo mundo.

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278 Psicologia Analitica

Os distúrbios da comunicação, as reações velmente possa serassim justi cado o não apego
sensoriais atípicas, as estereotipias comporta- aobietostransicionais, macios, fofose suasubsti:-
mentais mantêm a criança isolada do mundo tuição pelos objetos autísticos, duros. pontudos.
dos outros. No ser humano tipico, emoções e es- Aimpossibilidadeda constelaçãodoarqué-
tados siológicos levam a desejos. Crenças e tipo matriarcal colocaem risco a própria
desejos estão intrinsecamente relacionados no sObrevivềncia da criança. Ela não consegueser
padrão da ação humana. A percepção e a atendida porndão poder ser compreendida nas
integração dos estimulos levam a crenças sobre SUas necessidades. A vivência de uma angstia
o outro, sobre as situações. Crenças e desejos se que não pode ser nomeadageradesespero
combinam e determinam a ação que leva à difícil de ser aplacado por uma mãe que se vê
reação de certeza ou surpresa, caso a crença sem meios e que também se desespera.A busca
se con rme ou não, e ao prazer e à alegria ou do isolamento,muitasvezes acompanhada da
ao desprazer e à tristeza pela satisfação ou não movimentação estereotipada, não funcional,
do desejo. Todo esse processo está alterado no parece ser o melo que essa criança encontra,
ser humano com autismo. Sozinha, para lidar com sua crise de angústia.
No bebê comautismo,jáse observaafalta Mas, diferente das demais crianças, essa não
do desejopelooutro,afalta dodesejododese- vive a ansiedade pela separação, pelasensa-
jo dooutro,oqueacareta oimpedimentopara. Ção do abandono. Ela vive o medo, a angústia
aaquisição dapercepção de sie do outro,Q pela incompreensão e ainsatisfação pelonão
desejo pelo outro não ocorre pelaauSênciado atendimento àssUasnecessidades básicas,o
espaço da falta. Não se cria o espaço da falta que gera ascrisesde desorganizacão.
entre um eu e um outro,para quese sintaa fal- É amãepessoalque,muitasvezes,sesente
ta dooutro,para queseentristeçapelafaltado abandonada e, comfrequência, tende aprojetar
outro e em função da faltasedeseijeooutro. SUa ferida matriarcal sobre o lho. A maioia das
A ausência do desejo pelo outroimpossibilita pessoas,aliás, repete essa atuaçãoe, em função
aemergência dafantasia,dafantasiaemrelaçãoa da projeção do dinamismo matriarcal ferido,
esse outro, que conduziria à capacidade cogniti- forma-se uma sombra que, colocada sobre a
Va deatribuirsentimentos,intençõesaoQutro.parg pessoa com esse transtorno, a faz ser vista Com
atribuir signi cado às interações humanas. pena, como "anormal" ou Como"coitadinha",
As pesSOas com autismo parecem seres fora nomeações que sempre a desprestigiam como
da possibilidade de seguir o padrão humano na pessoa. Isso pode di cultar acompreensão dessa
sUa totalidade. Poder-se-ia falar de uma sobrevi- forma tão diferente de ser e inviabilizar a possibi-
vência psicológicaem condiçõesatípicas.O eu lidade da sua individuação, ainda que peculiar.
se estrutura em termos de outras codi cações, O ho precisa servisto do jeito que ele é e não
isolado, privado das vivênciasrelacionaisprimor- de formaidealizada.
diais. Anão introjeção dasexperiênciaseu-outro.
das experiênciasmatriarcais,impede a vivência
Os dinamismos patriarcais
de separação e de falta.Há,nessafase,pratica-
mente a agenesia da possitbilidade de desejar. As pessoas com autismo, privadas da função de
Não há, portanto, nesse momento, espaço para relação da função afetiva, característica da
a intersubjetividade. Além disso, a subjetividade dinâmica matriarcal, na impossibilidade da es-
que vai se desenvolver no bebê na condição truturação matriarcal da consciência, podem
desse espectro parece ser alterada, diferenfe adquiriruma.estruturação da consciênciavia
demais do padrão comum, o que di culta o en- dinamismo patriarcal. Os dinamismospatriarcais
tendimento e o atendimento de suasnecessidades. são osdinamismosda lei, da ordem,dasnormas
Esse bebê vive o processo de maturação e do código. Ao arquétipo do Pairelaciona-se
biologicarelativo asuasnecessidadesdesobre- o amor de pai, que é uma forma de amorque
vivência. Mostra comportamentos de apego, também dirige o desenvolvimento e éumaforma
mas o apego parece ser apenas porsegurança de amorque pode serCompreendidae cores-
e não por liação.Difererntedosdemaisbebểs, pondida pela pesSOa com autismo. O
para ele.o apego não conduz àsvivênciasafe- funcionamento das pessoas com autismo que
tivas, não leva ao fortalecimento da capacidade (têm a inteligência preservada é o funcionamen-
de amar. |to de uma outra forma de mente, que se
Não é possívelparaesse bebêa continêncig, desenvolve sob um padrão diferente, o que faz
a proteção, o apaziguamento matriarcal. Prova- lcom que esse indivíduo, durante sua vida inteira,

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Autismo naVisão da Psicologia Analitica 279

também necessite de estimulação diferente. Ele mente ponto por ponto - daí, muitas vezes, a
precisa ser entendido na sua peculiaridade para memória prodigiosa.
que possa ser atendido no que necessita. As Nos casos nos quais a inteligência está pre-
pessoascom autismo parecem car subordina- servada, a criança costuma se alfabetizar com
dasàsfurnçõesda informaçāo, da coerêncig e relativa facilidade. Ela pode se sentir atraída.
da lógica. Ser conmpreendido, ser aceito, ser precocemente,paraletras enúmeros.Algumas
recebido é ser gostado. A con abilidade no crianças aprendem a ler sozinhas, aos 2 ou 3
outro surge pela experiência relacional que anos, sem qualquer aprendizado formal, apesar
acontece ao longo do tempo e leva à percep- do atrasco e/ou alteração do desenvolvimento
Çãodareciprocidade.Cultiva-seatradição, a da linguagem e do desenvolvimento perceptomo-
previsibilidade, a ética e a honestidade. tor. A alfatbetização costuma trazer consideável
Dessa forma, pode nascer uma intersubjeti- alívio para os pais, pois, além de signi car melhor
vidade baseada na correspondência, na comunicação como mundo, tende a abrir uma
comunicabilidadeinteligente, na honra, nahis- nova possibilidade para a criança, que. progres-
tórià do relacionamento e na con ança. No sivamente, via leitura, adquire novos interesses,
desenvolvimento padrão, as trocas afetivas é ainda que, em geral, com caracteristicas obses-
que favorecem as trocas cognitivas; de forma sivas ou estereotipadas.
oposta, as pessoas com autismo desenvolvem Surge um período de um poUCo mais de es-
astrocas afetivas a partir da possibilidadedas tabilidade. Os pais pessoais, humanizadores do
trocas cOgnitivas Com oS Outros. arquétipođoPai,têm apossibilidadede ajudar
Se. para os indivíduos ditos normais, durante aordenar, a organizar o conhecimento das rela-
toda a vida, mas especialmente na infância, a Çõesentre o mundo externo e o mundointerno
a ção e a ansiedade provênm da vivência de ga criança. O desenvolvimentocrescente das
sensações de abandono, para as pessoas nessa representaçõesmentaisquxiliaa adaptação. No
condição a a ição ea ansiedade não surgem entanto, é uma adaptação parcial. O outro, no
diantedassensações de abandono, massimem relacionamento,só éconsideradonamedidaem
face da constatação da desordem,do imprevi- que atendeaosinteressesespecí cosda criança.
Sível, do não computável, determinando crises QUanto à conduta social, observa-se tam-
que podem ser nomeadas como crises de desor- bém a atipia. Inserida no grupo da escola,
ganização, difíiceis de serem controladas. podendo participar das atividades grupis, a
Com o aprimoramento das funções lógicas, criança com autismo inclina-se a permanecer
racionais, da primazia do uso do pensamento, em uma posição marginal ao grupo de referện-
sob a dominância patriarcal, a criança com cia e. por sUas peculiaridades, na maioria das
autismo ganha uma possibilidade melhor de vezes malcompreendidas pelos demais. pode se
adquirir conhecimento sobre o mundo das pes- tornar vítima de bullying.
SO0s,ainda que o mundodascOisas,o mundo O desempenho acadêmico pode ser bem-
objetivo,do conhecimento, doprocessamento -SUcedido. Os testes de desempenho intelectual
doestímulocognitivo lheseja,semdúvida, mui- mostram aumento consistente nos quocientes
to mais motivador. Evoluindo na competência ao longo da vida. Os testes, no início da vida
de estabelecer relações de causa e efeito, o adulta, mostram-semelhores quando compara-
mundopode passara sermais previsivele,por- dos aosrealizadosna infânciaena adolescência.
tanto. menosassUstador. O armazenamento de informações, favorecido
Aconstelacãodo arquétipo do Paitende a nas faculdades, quando dirigido aos interesses
ordenarO mundo da criança. Ela busca clara- especí cos, pode ser muito motivador e até
menterotinas,situações que ela possa decodi car atraente, ainda que sofrido sempre, dadas as
pois a possibilidade de antecipar o que irá ocor- di culdades de trabalho erm equipe, as di cul-
rer lhe dará maior controlesobre a angústia. A dades de precisar ceder diante das atividades
literalidadetende a dominarseupensamentoe fora dos interesses especí cos e as di culdades
adetérminarsua ação. Muitascriançasmostram de regular as emoções nas relações com os
evidência de prodigiosa memórig. Com a fun- demais.Algunsconseguemseguiro aprendizado
çãointegradora da mente comprometida, sem padrão, mas a maioria ainda necessita do auxí-
a função da coerência central, os eventos são lio dasleis deincluUSãoeproOsseguecomo alunos
engramados segundo padrões atipicos, despro- especiais.Não raro,osjovens cursam uma facul-
vidos também da qualidade emocional do dade após a outra ou se dedicama cursos de
momento, o que facilita a evocação pratica- pós-graduação, uma vez que a inserção no

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280 Psicologia Analitica

mercado de trabalho é di cílima. Mesmo nas já se mostra adquirida e muito desenvolvida em


empresas para trabalhadores com de ciências, seu componente cognitivo. pois existe o esforço
as pessoas com autismo raramente se bene - do preenchimento do que não se sabe pelo ela-
ciam das cotas de inclusão previstas pela lei.Elas borado raciocínio lógico dedutivo dessaspessoas.
são entrevistadas, têm suas habilidades e seus Falta,contudo, a capacidade natural daempa-
currículos reconhecidos, mas são percebidas tia, que é a sintonização espontânea e natural
como pouco autônomas, necessitando de com as ideias e os sentimentos do outro, via lin-
acompanhamento de perto, de serem guiadas, guagem dos olhos, entonação da voz, sutlezas
eomundo do trabalhodostemposhipermoder- de mímica corporal. Não ocorre o sentir a atmos-
nos, mais antropofágico que nunca, não tem fera emocional que se instala no contato como
espaço e tempo para o adulto pouco autônomo. outro nem o administrar, com sensibilidade, uma
Sob a égide do arquétipo do Pai,asrelações interação que não machuque nem ofenda os
cuidadores-criança sãoassimétricas.Constituem- sentimentosalheios. O componente afetivo da
-se os papéis parentais, o papel lho - " lho do empatia, que é a resposta apropriada ao senti-
Pai" e tem-se o amor de pai. O amor de paié um mento do outro, compreendendo as reações de
amor que pode ser correspondido,sendoele um compaixão e misericórdia, possivelmente não
forte propulsor para o desenvolvimento, na vida possa ser adquirido. Ao contráio, o que seobser-
adulta. Entretanto, observa-se Uso abusivo do va é a permanência de um abusivO papel de
papel de lho, muitas vezes ao longo da vida in- lho, impedindo o altruísmo, a amizade, afrater-
teira, o que retira toda a possibilidade de nidade e a conjugalidade.
autonomia da pessoa. O ho do Pai tende a Pessoas com autisno se casam e constituem
perpetuar-se, comprometendo as relações de família. A literatura tem mostrado pesquisas a
trabalhoe também as relações sociais e amorosas. respeito de casais em que um ou ambos os côn-
juges têm essa condição. Aston (2003) trabalha
como conselheira epesquisadora no campo dos
A alteridade relacionamentos de casais com síndrome de
Sobaconstelação doarquétijpodaAnima-Animus, Asperger. Suas pesquisas mostram que a comu-
que é o arquétipo da "ágape", da comunhão, o nicação éoproblema maio, mesmoquandoos
ser humano típico, no projeto do seu processo de dois parceiros têm autismo. Todas as mulheres
individuação, ganha a possibilidade da relação em relacionamento com homens com autismo,
simétrica. Adquire os papéis relacionados à ami- tenham elas ou não o distúrbio, dizem que elas
Zade, à fraternidade e à conjugalidade. Vivencia não são OUvidas Ou levadas em conta. Uma das
uma forma de amor que implica amaro outro razões das di culdades do relacionamento pa-
como a si mesmo, sendo os dinamisnos da alteri- rece estar na di culdade de ler os sinais não
dade a troca, a dialética, o fascínioea paixāo. verbais da comunicação. A expressão de senti-
Os indivíduos no espectro do autismo nasce- mentos é muito difícil, a falta de empatia do
ram diferentes e vāo desenvolver uma identidade parceiro com autismo pode fazê-lo parecer in-
diferente, talvez a identidade daquele a quem sensível e descuidado com o outro. A negação
falta algo, possivelmente uma estruturaçãosob oUo desconhecimento do diagnóstico podeser
a constelação do arquétipo do Inválido,nosen- catastró co ao casal, mas a consciência das
do que Guggenbuh-Craig(1983)consideraao peculiaridades do parceiro que tem otranstorno
discorrer sobre oslimites da cura. global do desenvolvimento pode ser umfacilita-
Na própria história dos estudossobre o autis- dor à vida do par, pois o parceiro poderá colocar
mo se vê a projeção da psicose, por, anos. O sUas expectativas em relação ao outro de modo
autismo perfencia ao capítulo daspsicoses in- mais realista. Quando um dos parceiros tem
fantis. Tal projeção talvez tenha contaminado autismo, a relação será sempre assimétrica.
a históia do autismo e continua contaminando a
relação dos não autistas com os autistas, provo-
cando maisisolamento, agora como defesa. A espiritualidade
Não se sabe se a alteridade seria possibilitada Sob a égide do arquétipo da sabedoria, o ser
às pessoas com autismo. Observa-se a grande humano típico, encaminhado em seu processo
di culdade de se colocar no lugar dooutro, para de individuação, pode viver "Caritas", o amor
que possa sentiro Outro como seestivessedentro espiritual.É uma forma de amor queimplica o
de sua própria pele ou como se o outroestivesse amor ao todo, o amor aos outros maior que a si
denfro de si. Na vida adulta, a teoria da mente mesmo. E tal forma de amor que pode conduzir

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AutismongVisãodaPsicologiaAnalitica 281

a busca do sentido da própria existência. É um acontece, mas, de modo parcial, pode-se veri car
ideal sempre buscado. jamais atingido. Funciona a elaboração simbólica acontecendo via Logos.
como um indicador de caminho. Mais cedo que para as demais crianças, o
A totalidade psíquica, representada pelo ar- pensamentoe o conhecimento lógico podem ser
quétipo do Self, que pode ser gurado como a adquiridos e, quando o são, auxiliam signi cativg
imagem de Deus, contém opostos e aponta para mente a gdaptação. O pensamento mágico, de
Uma meta ainda não atingida de superação de ordem mafñarca, não pôde ser desenvolvido e
con tos, de integração. As questões transcen- nem mesmo adquirido, mas o pensamento de
dentais do ser humano são primariamente ordem patriarcal surge e tem primordialmente a
experimentais e totalmente subjetivas. função de compensar a alteração da função
Naspessoas com gutişmo,encontramos a sensação, a qual determinoU defasagem impor-
percepçãodeDeuspela lógica e pelointelecto. tante no aprendizado perceptivo-motor impedindo
Pode-seobservar o apego àsinstituiçõesreligiosas, a aquisição da noção do esquema corporal e
masas relações que se estabelecem ligam-se mais distorcendo a imagem de si mesmo.
āsregras,muitasvezesseguidasde forma rigida e Como se monta um quebra-cabeças, pela
estereotipada, que às relações constituídas. A lógica da relação de suaspartes,a criança ng
noção do sentido da própria existência parece segunda infânciaeo adolescente podem ad-
não ser formulada pela mente pragmática e pou- quiriruma noção de seu corpo, parte por parte
co exível das pessoas com essa condição. Assim, ệ,dessaforma,representarinternamente a img-
existe a possibilidade do processo religioso, mas gem de si mesmos, base para a sua identidade.
ele parece ser sempre peculiar. Grandin (1997), ao Existea
pOSsİbilidade
de oSelf,determinando a
relatar sua experiência pessoal de uma pessOa organização arquetipica do desenvolvimento, suprir
com autismo, fala em Deus como a força última, a função transcendente (a que estabelece a liga-
fundaçãoemistério, como é evidente nas teorias ção do inconsciente com a consciência) e suprir
cosmológicas de física quântica. mesmo a alteridade para essesseres que precisam
buscarseu processo de individuação sem o funcio-
namento matriarcal ou na extrema limitação dele,
APSICOTERAPIA que faz pensar mesmo em agenesia.
Na criança com autismo com inteligência preser-
Naimpossitbilidade da estruturação matriarcal
vada, o eu pode se estruturar e se diferenciar, mas
daconsciência, de modosubstitutivo, pode ocorer
embases muito diferentes do padrão arquetípico uma estruturação da consciência via dinamismo
humano. Pela agenesia da estruturação matiar- patriarcal. O papel Filhodo Pai pode vir a car
cal da consciência ou hipotro a dos dinamismos hipertró cOparavicariar a hipotro a do papel
matriarcais, compensatoriamente pode ocorrer Filho da Mãe. O funcionamento do portador do
uma precoce e hipertró ca estruturação patriarcal
transtorno global dodesenvolvinmentoque tem a
da consciência. O eu parcialmente se diferencia
inteligência preservada é o funcionamento de
uma outra forma de mente. que se desenvolve
doSelfeseestrüturaem função do arquétipodo
sob um padrão diferente, o que faz com que esse
Pai. O arquétipo do Pai é codi cável.Pelasua
indivíduo necessite, desde o início da vida, de
humanização, há a possibilidade do apaziguUa-
mento, da continência, da proteção e do uma estimulação também diferente.
978-85-7241-915-4
Suporte (Araujo et al., 2009).
Oeu que se estrutura em função da ativação A prática psicoterapêutica e a
desse arquétipo é um eu parcial e atípico. O orientação à família
dinamisnopatriarcal,que éo daordem,dalögica,
do planejamento, da previsibilidade, da inteligi- Em função de suas condições tão peculiares
blidade,confere "suporte ao eu": casocontrário, e por viverem sob os determinantes de uma
esse eu provavelmente voltaria ao abandono cultura na qual não são adequadamente com-
primordialdainviabilidadedoser,semapossibi- preendidas, as pessoas com autismo têm um
liđade doprocessoda individuação. processo de desenvolvimento psicológico bas-
As funçõesestruturoantesparaa expansão da tante difícil e penoso. E provável que apenas
Consciênciae diferenciação do eu vão entrar em uma minoria dessas pessOas, a que possui a
fUncionamento via dominância patriarcal. Assim, inteligência preservada, possa chegar a um
e provável que a elaboração simbólica possa processo de individuação, com a possibilid ade
OCoTervia arquétipo do Pai. A elaboração simbó- de descobrir a própria forma de ser e talvezo
lca viaEros com caracteristicas matriarcais não sentido de sua existência.
kosos

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282 PsicologiaAnalitica

Assim, após uma primeira infância caótica, heroica, aluta dirigida pelo direito de serímpar.
em que a desorientação permeia os contatos da A ajuda a essa luta deve ser o objetivo da psico-
criança com seu ambiente e vice-versa, e uma terapia àspessoas com quadros de autisno. Esse
segunda infância em que a aquisição das ope- Obje vo. porém, precisa já ser colocado desde
rações lógicas do pensamento auxiliam a o início do atendimento às crianças mais jovens
adaptação, o indivíduo com funcionamento e na orientação a seus pais. A ojuda à adapta
autista e inteligente chega à adolescência, quan- Ção ao mundo dos chamados neurotipicos é
do, de fato, ele se percebe muito diferente dos necessáia à sobrevivência neste mundo, mas
demais e, muitas vezes, se deprime, pois essa ganhar a consciência do direito de funcionar
consciência acareta um novo tipo desofrimento. como diferente é igualmente necessário.
A adolescência eo início da vida adulta ca- Hoje, o indivíduo com autismo tem uma so-
racterizam-sepor uma lutatitânica - uma luta brecarga. Ele carega as di culdades e limitações
pelo direito àexistência.Servemuito bem a ima- trazidas por suas próprias condições e ainda
gem dos titās, a segunda geração divina - seres carega o estigma de uma outra anormalidade
primordiais, tão intensos na sua expressividade, que não possui. Os autistas, com o passar do
mas desprovidos ainda de caracteres humanos. tempo, aprendem a descobrir pelo olhar dos
Alvarenga (1999) mostra que as guras titânicas outros que são diferentes, estranhos e que são
podem ser consideradas, simbolicamente, repre- não viáveis como humanos.
sentantes de todas as estruturas da consciência, A cultura tende a projetar nos portadores de
pois é desse mundo primordial que nasce um autismo sUa infelicidade ao vêlos e eles passam a
sistema organizado no qUal as coisas têm corpo ser lamentados e discriminados. Não compree-
'e forma. A especi cidade, porém, só é possível, dendo a função deestruturaçãodaorganização
do ponto de vista da mitologia, na terceira gera- patiarcal, a cultura projetaomatriarcal feridones-
Ção divina, em que Pai e Mãe estruturam o corpo saspessOas,projeta a ferida matiarcal em quem
)eo Herói estrutura o psiquismo. A luta dos titās, não tem imagens matriarcais e, por isso,elasnão
porém, é uma luta pela sobrevivência, muito di- tệm apossibilidade depossuir xaçõesmatriarcais.
ferente e anterior à luta do herói, que é a luta Desde o início de sua vida, a pessoa com
dirigida pelo direito de serímpar. autismo deve ser entendida e atendida na ne-
A partir da adolescência, as pessoas com cessidadede ativação precoce do arquétipodo
autismo e que têm a inteligência preservada Paie deveter orespaldode que ela édiferente.
tendema empreender uma luta para se tornarem Não se trata de negar a "anormalidade" dessa
S iguais aos seres considerados neurotípicos. Essa é pessoa, pois isso seria uma defesa que impossibi-
a luta titânica - luta reforçada e potencializada litaria ajudá-la. Trata-se, sim, de reconhecer essa
S pela sociedade e cultura. QUanto mais semelhan- "anormalidade" como agenesia daestruturação
tes eles se tornarem, quanto mais seguirem os matriarcal e não como o matriarcal ferido.
moldes padronizados de conduta, mais poderão Tal agenesia precisa ser elaborada onde ela
ser aceitos ou, pelo menos, tolerados. realmente ocorre. Caso seja trabalhada, que-
Na vida adulta das pessoas com autismo, rendo melhorar o dinamismomatriarcal, apessoa
pode surgir a percepção de uma diferença irre- com autismo adquire, sim, uma anormalidade.
versível em relação aos outros seres humanos. O além da alteração com a qual nasceu.
espaço construído para a subjetividade continua As pessoas ditas normais, ao sentirem que o in-
sendo pequeno e a intersubjetividade possivel é divíduo com funcionamento autista é desprovido
USUalnente baseada na lógica, na corespondên- do dinamismo matriarcal, esforçam-se porcuidá-
cia, na comunicação inteligente, na con ança, NHo e melhorá-lo. Este pode ser o emo fundamental
na fé. na reciprocidade, na estabilidade das rela- ho tratamento desse indivíduo. pois cria e reforça o
Ções.Afunção dorelacionamento casubordinada kentimento da inviablidade.Oindivíduocomautismo
ao dinamismo patriarcal. não quer e não precisa do dinamismo matriarcal,
Épossível que se possa observar uma fase de pois simplesmente não tem o que fazer com ele.
automatização das conquistas na segunda me- Pena, colo, aconchego, carinho, lágimas, mimos.
tade da vida. Mas o que poderá continuar a Superproteção emocional e dedicação afetiva
humanizar o Arquétipo do Pai? Poderáa função esmerada, tão necessárias à enfermagem do ar
transcendente operar para conseguir garantir quétipo matriarcal ferido, aqui são dispensáveis.
um processo de individuação em moldes tão Além de inúteis, fazem esse indivíduo experimentar
peculiares? E provável que haja a necessidade fracasso e culpa, pois ele é incapaz de, nessester-
não só de uma luta titânica, mas de uma lutal mos, coresponder à ajuda recebida.

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Autismo na Visão da Psicologia Analitica 283

O bebê, a criança, o adolescente e o adulto AMERICANPSYCHIATRICASSOCIATION. Diagnostic and Sto-


com autismo podem e devem receber carinho, stical Manual of MentalDisorders(DSM-V). Washington.,
aconchego, desde que se tenha consciência de DC: American Psychiatric Association, 1994.
que não é isto que eles de fato mais necessitam. AMERICANPSYCHIATRICASSOCIATION. Manual Diagnóstico
o que eles necessitam, e muito, é de compreen- e Estatistico de Doenças Mentais (DSM-IV) 4. ed., texto
são e ajuda para organizarem seu mundo e revisado. Porto Alegre: Artmed, 2002.
aprenderem a viver nele. Não possuindo a capa- ARAUJO,C.A.OProcessode IndividuaçãonoAutismo.São k
cidade de estruturar consciência pelo arquétipo Paulo: Memnon edições cientí cas, 2000.
matiarcal, se apoiam totalmente na capacidade ARAUJO,C.A. Teoias cognitivas e autismo. Novas tendências
estruturantee organizadora do arquétipo do Pai. e perspectivas. In: ASSUMPÇÃO, F. B.. KUCZYNSKI, E.
Autismo Infantil: novas tendências e perspectivas. São
CONSIDERAÇÕES FINAIS Paulo: Atheneu, 2007.
ARAUJO, C.A.;ASSUMPÇÃO JR., F. B.; PERISSINOTO, J.: SCHVWART-
A partir do processo evolutivo, sob o ponto de ZAMN, J.S. Autismo infantil. In: SAIZ, M. Psicopatologia
vista conceitual, deve-se considerar a desordem Psicodinânmica Simbolico-arquetipica. Montevideo:
do espectro do autismo como uma entidade Prensa Medica Latinoameicana, 2009. v. I.
clínica, com características, hoje, razoavelmen- ASTON, M. Aspergers in Love. London: Jessica Kingsley Publi-
te de nidas principalmente no nível cognitivo, Ë shers, 2003.
um quadro de extrema complexidade, que exi- BARON-COHEN,S. Autisn, a speciñic cognitive disorder "mind-
ge abordagens multidisciplinares visando, não -blindness". Int. Rev. Psychiat., v. 2, p. 81-90, 1990.
somente à questão diagnóstica, mas também à
BARON-COHEN,S. Social and pragmatic deicits in autisn:
educacional e à da socialização, na tentativa
cognitive or affective?J. Autism Develop. Disord., v. 18,
de se poder estabelecer etiologias e quadros
n. 3. p. 379-401, 1988.
clínicos de nidos, passíveis de prognósticos pre-
BARON-COHEN,S. The development of a theory of mind in
cisos e abordagens terapêuticas e cazes.
autism: deviance an delay? Psychiat. Clin. North Am.
Normalidade é apossibilidade de seter como
v. 14, n. 1,. p. 33-52, 1991.
característica, no nível individual, o que a huma-
nidade conquistoU e a sociedade valorizoU, BARON-COHEN, S.: LESLIE, A. M., FRITH, U. Does the autistic

reforçou, estimuloue possibilitou à maioria. Dife- child have a "theory of mind"? Cognition, v. 21, p. 37-
46, 1985.
rente não é necessariamente anormal, mas é o
menos provável e o menos comum. São nesse FRITH, U. Autism, explaining the enigma. Oxford: Blackwell
sentido, diferentes, as pessoas com autismo. Pub., 1989.
Emtermos da psicologia junguiana parece, nas FRITH,U. Autism: possible clues to the underlyng pathology.
desordensdo espectro autistico,OCoTer uma altera- Psychological facts In: WING, L. Aspects of Autism:
çãonoprocessode de-integração doSelf.Tem-se biological research. London: Gaskel Eds. & Royal Col-
possivelmenteumcistúrbiodesce afaseintrauterina, lege ofPsychiatrists& The National Autistic Society, 1988.
ondeas vivências matriarcais não se constelam. No GALIÁS, I. Do amor na saúde à saúde do amor. Junguiana,
entanto,como a organização do desenvolvimento v. 23. p. 107-118, 2005.
éarquetipica,a função estruturante da organização GALIÁS, I. Re exões sobre o triângulo edipico. Junguiana,
patiarcal se torna dominante. Com um funciona- v. 6, p. 149-165, 1988.
mentoautista, o indivíduo tem os papéis, referentes GILLBERG,C. Infantile Autism: diagnosis and treatment. Acta
à iação dupla, consequentemente alterados, sāo Psychiatr. Scand. v. 81, p. 209-215, 1990.
hos ou has do Pai, são lhos ou lhos de uma
GRANDIN, T.A personal perspective on autism. In: COHEN, D. J.;
"mulher-Pai" e de um "homem-Pai". Mas, sob a
VOLKMAR, F. R. Handbook of Autism and Pervasive.
ordenação do Self, como princípio de totalidade,
New York: John Wiley & Sons, 1997.
poder-se-ia ter a integração de todos os demais
GROUP FOR ADVANCEMENT OF PSYCHIATRY. Distúrbios Psico-
arquétipos entre si, propiciando uma trajetóia pe-
patológicos na Infância. Teoria e Classiicação. Porto
CUliarno processo de individuação para aquela
Alegre: Ates Médicas, 1990.
pessoa,provavelmente mesmo na falha da huma-
nizaçãodo arquétipo da Grande Mãe. GUGGENBUHL-CRAIG,A. O arquétipo do inválidoe os limites
da cura. Junguiana, São Paulo, n. I,. p. 97-106, 1983.
HOBSON, P. On psychoanalytic approaches to autism. Am.
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Junguiana, São Paulo, 1999. 1981.

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284 PsicologiaAnalitica

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KANNER, L. Eary infantile autism, 1943-1955.J. Orthopsychiat, Handbook of Autism and Pervasive. New York: John
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