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Noções básicas sobre dignidade da pessoa humana e julgamento com

perspectiva de gênero, análise baseada nas obras: Dignidade da Pessoa


Humana – Daniel Sarmento; Resolução do CNJ: Protocolo para Julgamento
com Perspectiva de Gênero.

Matheus Ideta, GRR: 20212269, turma 2B

1) Dignidade da Pessoa Humana.


a. O que é?

São três processos que culminam na noção da dignidade da pessoa


humana: da hierarquia à dignidade universal; do indivíduo abstrato à pessoa
concreta; do valor religioso e filosófico ao princípio jurídico. O primeiro diz
respeito à compreensão de que a dignidade da pessoa humana pressupõe a da
espécie humana, mas o inverso não ocorre – esta se refere ao entendimento de
que o ser humano ocupa posição superior e privilegiada em face dos demais
seres, aquela consiste na visão de que todas as pessoas, pelo simples fato de
sua humanidade, possuem uma dignidade intrínseca, o que implica que devem
ser tratadas da mesma forma.

O segundo processo é sobre a transformação da pessoa não vista como


fim em si – considerada um componente da sociedade, cujos direitos derivavam
justamente da sua inserção em certo estamento social. Da perspectiva jurídica,
não havia a noção de indivíduo, a coletividade prevalecia. Com o posterior
entendimento da pessoa como fim em si (concreta), tem-se a percepção de
necessidades materiais e espirituais ligadas a ela, bem como o entendimento de
que é o envolvimento em relações sociais que constitui sua identidade.

Sobre o terceiro processo, ocorre a evolução da dignidade humana sendo


vista apenas como valor religioso e moral, para ser convertida e efetivo princípio
jurídico vinculante – mediante processos que envolveram a elaboração de
documentos referentes à temática da dignidade humana.

Assim, a noção do princípio da dignidade humana implica conceber o


conceito de pessoa como um ser humano com fim em si mesmo, dotado de razão
e capaz de exercer sua autonomia. Essa concepção não deve ser mantida em
abstrato, é necessário compreender que se trata de pessoa encarnada, ou seja,
dotada de corpo, sentimentos, necessidades materiais e psíquicas; e introduzida
em uma cultura, de modo a se envolver em relações intersubjetivas que são
determinantes na formação de sua personalidade.

No ordenamento constitucional brasileiro, são quatro componentes


essenciais envolvidos na definição desse princípio: valor intrínseco da pessoa,
autonomia, mínimo existencial e reconhecimento intersubjetivo.

Sua incidência é ampla e envolve o Estado e determinados particulares.


As funções desempenhadas são numerosas e, em geral, possuem caráter
direcional para o exercício do Direito – fundamento moral do Estado de Direito,
diretriz hermenêutica do sistema jurídico, norte e parâmetro para a ponderação
de interesses e decisões –; além de consistir em limite para o exercício de
direitos, servir como critério para a identificação dos direitos fundamentais e ser
fonte de direitos não dispostos na Constituição.

É assegurado tanto pelos direitos positivados na Constituição quando pela


incidência indireta do princípio da dignidade sobre a ordem jurídica e as relações
sociais. Apesar de sua relevância notória, sua natureza não é absoluta, estando,
portanto, sujeito a restrições e ponderações. Entretanto, algumas disposições
dele derivadas são consideradas, de fato, absolutas – como a proibição da
tortura. Além disso, em eventuais casos de ponderação, seu peso é muito
elevado, de forma que, em um caso de conflito entre princípios, guiados por
processos de ponderação, é frequente sua prevalência.

Enfim, no Direito brasileiro, a dignidade da pessoa humana é considerada


“fundamento da República”, no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. É
frequentemente definido pela doutrina como um princípio vinculante e de caráter
supremo em relação à perspectiva democrática. O reconhecimento de sua
centralidade é recorrente na jurisprudência, tendo havido posicionamentos
contundentes por parte do STF e STJ – o princípio é cada vez mais utilizado em
decisões judiciais. Busca proteger e garantir os interesses mais relevantes à
pessoa e tornar mais humanas e inclusivas as práticas sociais. A justificativa de
tudo isso decorre de ser um princípio essencialmente humanista, baseado na
valorização da pessoa e estando comprometido com a garantia de seus direitos
básicos contra toda forma de injustiça e opressão.

b. Fundamentos

Além da perspectiva histórica, que evidencia a evolução do princípio e


permite perceber a importância desse processo, é preciso atentar para seus
componentes essenciais: valor intrínseco da pessoa, autonomia, mínimo
existencial e reconhecimento intersubjetivo.

O primeiro consiste na vedação da instrumentalização da pessoa para


obtenção de fins coletivos ou satisfação de interesses das maiorias.
Intrinsecamente, todo indivíduo tem valor de pessoa humana e, portanto, é
tratado como um fim em si mesmo; de forma que não é possível considerá-lo um
simples fim – ainda que existam limites a essa concepção, para evitar
individualismos extremos. Portanto, há uma recusa às perspectivas organistas –
indivíduo compondo um corpo social, para o qual as decisões devem ser
direcionadas, ou seja, é possível sacrificar certos direitos individuais em favor
dos “interesses superiores – e às utilitaristas – para as quais a solução mais
correta é sempre aquela que maximiza a felicidade ou os interesses do maior
número de pessoas, o que possibilita que direitos individuais não sejam
respeitados. Assim, o que ocorre é o reconhecimento do valor intrínseco da
pessoa, sendo vedada sua instrumentalização, ainda que se recuse um
individualismo exacerbado.

A autonomia consiste no entendimento de que o indivíduo deve


compreendido como agente moral e livre para fazer suas escolhas de vida e
contribuir para a formação da vontade do Estado – a pessoa deve ser
considerada agente moral, livre de limitações legais, econômicas e culturais
nesse sentido. São levados em consideração o consenso de que tratar as
pessoas como dignas implica reconhecer seu direito de realizar escolhas
pessoais e de segui-las, quando não ferirem direitos alheios; e a posição de que
a dignidade humana significa um limite à autonomia para impedir que pessoas
se submetam a situações vistas como indignas, mesmo quando decorrer de sua
vontade. Há a distinção entre autonomia privada – faculdade do indivíduo de
fazer e implementar escolhas relativas à sua vida – e pública – que tem
importância instrumental, pois a inclusão política tende a promover a melhoria
das condições de vida dos que antes eram excluídos, e valor constitutivo da
dignidade, que se liga ao reconhecimento da pessoa como agente (como
também ocorre na dimensão da autonomia privada).

Ainda sobre a autonomia, apesar de haver debates sobre sua limitação,


considerando um possível limite a produção de dano a um outro – contudo, disso
decorre o problema de definir o que seria um “dano” –, e de alegações de que
se trataria de um subterfúgio para a imposição de moralismos, paternalismos e
perfeccionismos; o fato é que não é necessário desistir do princípio para não
sucumbir à heteronomia, sendo a melhor interpretação da autonomia aquela
previamente descrita.

A noção de mínimo existencial trata da garantia ao acesso às


necessidades materiais básicas da vida, como uma base para a efetivação da
justiça social. Deve ser garantido pelo Estado e pela sociedade a todos, mas é
fundamental especial atenção para os setores mais marginalizados e
vulnerabilizados da sociedade. Os fundamentos para o reconhecimento do
direito ao mínimo existencial podem ser instrumentais ou independentes. Os
instrumentais indicam que o mínimo existencial deve ser assegurado para que
algum outro princípio ou objetivo seja efetivado – como a liberdade e a
democracia. Os independentes justificam a necessidade de garantia do mínimo
existencial pela argumentação de que a sua negação representa, em si, uma
injustiça, independentemente dos efeitos que possa ter sobre outros valores.

Para Rawls, a garantia do mínimo existencial se qualifica como “conteúdo


constitucional essencial” – os mínimos sociais seriam um pressuposto para a
aplicação do primeiro princípio de justiça (liberdade) –, devendo ser diferenciada
dos princípios sobre justiça social, que continuariam relegados ao plano da
legislação infraconstitucional. Enfim, o mínimo existencial deve ser garantido
pelo Estado e pela sociedade para todos, mas o foco deve ser os segmentos
mais vulnerabilizados da população.

Por fim, reconhecimento esclarece a necessidade de considerar o outro.


Relaciona-se com todos os outros componentes mencionados e se configura
como a necessidade de reconhecer – na esfera de instituições e relações sociais
– os indivíduos de forma igualitária, mesmo com diferenças de classe, cultura ou
qualquer outra origem. Para que as pessoas possam se realizar e desenvolver
livremente suas personalidades, é imprescindível o reconhecimento adequado
pelo outro. No campo da Filosofia e das Ciências Sociais, reconhecimento é mais
do que a mera identificação do outro, trata-se de valorizar a pessoa reconhecida,
em um ato que lhe expresse respeito. O não reconhecimento, ou o
reconhecimento deficitário, significa diminuição do sujeito, adoção de postura
desrespeitosa que degrada e compromete sua possibilidade de participar como
um igual nas interações sociais.

Não há, na Constituição brasileira, a previsão de um direito ao


reconhecimento. Contudo, existem certos preceitos que revelam preocupação
com injustiças praticadas na esfera cultural – criminalização do racismo (art. 5º,
XLII, CF), proteção estatal às culturas indígenas e afro-brasileiras (art. 215, §1º,
CF) –; entretanto, isso não significa um entrave para a admissão do
reconhecimento como categoria constitucional. Isso porque, como o princípio da
dignidade é considerado cláusula geral de tutela da vida humana, e o
reconhecimento é amparado por ele, configura-se como essencial à integridade
moral da pessoa.

A promoção do reconhecimento demanda garantia igualitária de direitos


universais aos grupos estigmatizados e medidas específicas relacionadas às
suas necessidades particulares – não se trata de tratamento igual a todos, mas
de respeito a cada um como um igual, o que implica reconhecer diferenças
identitárias. A noção de reconhecimento se torna ainda mais essencial quando
se pensa em proteção às comunidades tradicionais, considerando as injustiças
que já sofreram em sua trajetória, o risco de destruição a que tais culturas estão
expostas e a força de seus laços comunitários e valores compartilhados. O fato
é que seres humanos são seres que necessitam uns dos outros, a
intersubjetividade é fundamental, e é necessário que instituições e práticas
sociais tratem com igual respeito a identidade de todas as pessoas.

c. Como se aplica?

São quatro propostas metodológicas de aplicação do princípio da


dignidade humana. A primeira consiste em considerá-la como um guia
hermenêutico, com a ressalva de não se sobrepor a direitos fundamentais mais
específicos no caso em questão; aplica-se o critério da especialidade em casos
de concorrência de direitos fundamentais – situação na qual diferentes direitos
amparam uma mesma situação, mas seus regimentos são distintos e é
necessário determinar qual deve ser aplicado. Seria o caso, por exemplo, de
uma manifestação contra o governo, estariam em questão, ao mesmo tempo, a
liberdade de expressão e a liberdade de reunião. A segunda é a exigência de
rigor e solidez na fundamentação, visto que o princípio é, em si, vago, o intérprete
tem o ônus de fundamentar a relação entre o princípio e o caso concreto de
forma consistente. Ou seja, não basta a simples invocação do princípio da
dignidade humana, como se, por si só, ele se justificasse; é necessário que se
explique os motivos e a fundamentação para a aplicação

A terceira proposta atenta para a necessidade de a aplicação do princípio


se dar em conformidade com as exigências da laicidade estatal e uso das razões
públicas para exercício do poder político – a dignidade não pode se tornar
ferramenta para a imposição de pretensões religiosas ou interpretações
estritamente particulares. Com isso, objetiva-se respeito à autonomia individual
e à igualdade, bem como a manutenção da paz social; considerando o pluralismo
que marca as sociedades modernas. Por fim, a última proposta defende um certo
minimalismo judicial na aplicação do princípio, isto é, o intérprete não deve
buscar fundamentos últimos e definitivos para a dignidade, mas se atentar
somente ao que é necessário para a solução da situação em questão. As
decisões favoráveis à aplicação de tal princípio devem se ater ao caso analisado
e evitar conferir à aplicação um caráter “sagrado”, como se fosse possível
estabelecer, de forma definitiva, em quais casos a aplicação sempre deve
ocorrer.

d. Exemplo

Partindo da consideração do critério da especialidade, é possível observar


um exemplo da incidência – ou, no caso, não incidência – do princípio da
dignidade da pessoa humana na situação de uma escuta telefônica que capta
uma conversa privada. É inegável que isso atinge a dignidade da pessoa
humana, que pressupõe o direito à intimidade para a formação livre da
personalidade. Porém, existe lei constitucional específica que trata justamente
do sigilo das comunicações telefônicas (art. 5º, inciso XII, CF), de modo que não
é cabível a invocação direta do princípio da dignidade humana no caso em
questão. Isso não significa que a dignidade não é importante e deve ser
absolutamente afastada em tal situação, ela continua a permear a situação,
devendo ser justificada de forma consistente e podendo influenciar a
interpretação e aplicação do direito fundamental mais específico; porém, ocorre
que existe uma própria legislação concretizadora deste, que deve ser aplicada
de forma direta.

Um exemplo de incidência, mas com equivocada fundamentação, é o


Recurso Especial nº 503.990, decidido em 2003 pelo STJ. Neste, que trata de
compensação tributária, diz-se apenas que estabelecer limites temporais e
percentuais para a compensação de tributos seria “odioso”, sendo incompatível
com a dignidade humana. Como se afirmou, o princípio não tem, por si só, uma
justificativa inerente para sua aplicação; de forma que, apesar de ser cabível sua
incidência, é necessário explicá-la e fundamentá-la conforme previamente se
indicou.

2) Julgamento com perspectiva de gênero


a. O que é?

Para julgar de acordo com uma perspectiva de gênero, é preciso


compreender o que significa tal conceito e como ele se difere e se relaciona com
outros relevantes – como sexo, gênero, sexualidade e identidade de gênero.

Sexo se relaciona com os aspectos biológicos que servem como base


para a classificação de indivíduos como machos, fêmeas e intersexuais, são
consideradas características anatômicas como número de cromossomos,
órgãos sexuais e reprodutivos. Para debates sobre desigualdades, este conceito
é, hoje, obsoleto, pois não contempla características não biológicas socialmente
atribuídas aos indivíduos. Gênero é o conceito que melhor abarca os aspectos
sociais, diz respeito às características socialmente atribuídas aos diferentes
sexos. Se sexo se refere à biologia, gênero se refere à cultura; são consideradas
as construções sociais relativas aos papeis socialmente atribuídos – gostos,
expectativas comportamentais. O mesmo gênero abarca diferenças entre os
indivíduos que o compõem, pois há influência de fatores como raça e classe.
Esse conceito permite perceber como certos papéis distintos impostos pela
sociedade a homens e mulheres são artificiais e, frequentemente, reprodutores
de hierarquias sociais. Exemplo disso é a atribuição da imagem da mulher à vida
doméstica, o que faz com que sejam excluídas da esfera pública, ou relegadas
a postos de trabalho precarizados e pouco valorizados.

Identidade de gênero suscita a reflexão sobre a mutabilidade das


características socialmente atribuídas, que, afinal, são construções artificiais –
portanto, não são fixas. Assim, é possível que um indivíduo não se identifique
com o conjunto de características atribuídas ao seu sexo, é disso que se trata a
identidade de gênero: pessoas que não se identificam com o gênero a elas
atribuído ao nascer.

Por fim, sexualidade diz respeito às práticas sexuais e afetivas dos seres
humanos. Da mesma forma que ocorre com os gêneros, juízos valorativos são
atribuídos às orientações sexuais. Estabeleceu-se como “padrão”
heterossexualidade, enquanto homossexualidade e bissexualidade são vistas
como ˜desviantes˜, e existem expectativas de comportamento em relação a
afetividade e desejo sexual dos diferentes gêneros.

Dessa forma o julgamento com perspectiva de gênero objetiva elencar


ações que dispensem à vítima um atendimento, pelos órgãos de Justiça, capaz
de assegurar maior equidade entre homens e mulheres; de forma a reconhecer
as desigualdades estruturais existentes e a forma como as mulheres são
particularmente afetadas, e, a partir disso, proporcionar uma nova perspectiva
de exercício da Justiça, com correção desses desequilíbrios. O objetivo é que a
função jurisdicional seja concretizada sem a repetição de estereótipos, de forma
a se construir um espaço de rompimento com preconceitos e discriminações.
Para tanto, são designados procedimentos e abordagens específicas em relação
à aproximação e condução do processo e de seus sujeitos – trata-se,
essencialmente, de uma mudança de perspectiva.

b. Fundamentos

É necessário destinar atenção ao fato de que a homens e mulheres são


atribuídas distintas características, com significados e valorações diferentes –
para a mulher, a esfera privada, a passividade e a emoção; para o homem, a
esfera pública, a atitude e a razão. Isso se manifesta em forma de hierarquia e
relações sociais, existe uma assimetria de poder entre os gêneros. Isso significa
que existe uma estrutura social hierárquica que molda relações interpessoais, os
traços institucionais e do direito – trata-se do patriarcado. Assim, a imposição
masculina se dá de forma a manter as mulheres em posição de subordinação
em relação aos homens, o que não ocorre de maneira única e universal – outros
marcadores sociais (raça e classe) influenciam essa situação.

Um modo de manifestação dessa estrutura de opressão é por meio da


divisão sexual do trabalho, que permite compreender como certos trabalhos são,
de forma ideológica e artificial, atribuídos aos diferentes gêneros. Assim, é fruto
e, ao mesmo tempo, reprodutora de desigualdades; reforçando estereótipos,
assimetrias e hierarquias – como se observa no padrão de divisão entre trabalho
produtivo e trabalho reprodutivo.

As implicações relacionadas ao fato de ser o gênero um conjunto de ideias


socialmente construídas e atribuídas a determinados grupos se cristalizam no
que se convencionou chamar “estereótipos de gênero”. Estes traduzem
preconcepções e posicionamentos generalizados sobre características que
membros de um certo grupo supostamente devem ter; ou papéis que tais
indivíduos desempenham ou devem desempenhar – o que ocorre pelo simples
pertencimento ao grupo, não são as características individuais que definem esse
fenômeno.

Em relação a isso, é clara a importância do julgamento com perspectiva


de gênero. Estereótipos podem influenciar a apreciação da relevância de certo
fato para o julgamento, por exemplo. Isso ocorre quando se dá em menor grau,
ou se minimiza, a relevância de uma prova com base em uma ideia preconcebida
de gênero (a supervalorização da roupa que uma vítima de violência sexual
estava usando é um exemplo); ou quando só são consideradas as evidências
que confirmam uma ideia estereotipada, ignorando os fatos que a contradizem
(nos casos de alienação parental, quando se considera que as mulheres são
“descontroladas”); ou quando são utilizadas ideias preconcebidas de gênero
como um guia de experiência para tratar com caso como certo (a falsa ideia de
que casais homossexuais afetariam o desenvolvimento integral das crianças
adotadas).

Assim, na relação entre gênero e direito, é preciso que o jurista perceba


que fatores como imparcialidade, objetividade e universalidade podem ter sua
aplicação dificultada frente a desigualdades estruturais. Nesse sentido, a noção
do julgamento com perspectiva de gênero denuncia que neutralidade e
imparcialidade no exercício do direito não podem ser tomadas como dogmas
absolutos e alheios à realidade; desconsiderar diferenças econômicas, culturais,
sociais e de gênero, e partir da ideia de que o direito é neutro ou imparcial,
perpetua as desigualdades estruturais; pois racismo e patriarcado influenciam as
decisões judiciais, mesmo que de forma involuntária.

A ideia de aplicação igualitária do direito, portanto, não se justifica por si


só. Muitos conceitos jurídicos foram construídos e são aplicados de maneira
abstrata, sem que se perceba que não são levados em conta os grupos
subordinados que vivenciam a realidade. Isso se relaciona com a interpretação
e aplicação abstrata do direito, que nem sempre se concretiza de forma simples,
visto que a perspectiva de gênero faz pensar sobre particularidades em diversas
situações nas quais é necessário cuidado especial na aplicação do direito. Enfim,
significa dizer que muitas regras e princípios jurídicos, em sua criação e mesmo
no processo de aplicação, não consideram as relações de poder existentes na
sociedade e a forma como a ideia de neutralidade e uma aplicação e
interpretação abstratas podem perpetuar as desigualdades estruturais
existentes.

A análise sobre o princípio da igualdade segue a mesma linha, nem


sempre uma igualdade de tratamento estática será benéfica ao processo. Aqui,
os problemas não são as diferenças em si, mas a forma como são assimiladas
pelo sistema jurídico – no contexto atual, com o homem tendo maior valor
atribuído a suas características e papéis. O que é relevante não é o fato de
alguns grupos serem tratados de forma distinta, mas o fato de alguns deterem
menos poder e, por isso, ocuparem posições inferiores. Portanto, é sempre
necessário analisar os problemas concretos e a forma como as desigualdades
estruturais podem afetá-lo. Deve-se buscar a redução das hierarquias sociais,
para que seja possível um resultado efetivamente igualitário.
De forma geral, é no sentido de denunciar, combater e reduzir tais
problemáticas que a perspectiva de gênero se consolida como necessária para
um processo justo.

c. Como se aplica?

A aplicação deve conceber uma abordagem sobre o direito em contexto,


buscando analisar a forma como desigualdades estruturais podem afetar sua
aplicação. Assim, deve-se, primeiramente, fazer uma aproximação com o
processo, a fim de identificar se há desigualdades estruturais que influenciem a
controvérsia. Neste momento, as questões de gênero podem aparecer de forma
mais ou menos evidentes: casos que envolvem violência contra a mulher são
exemplos da primeira possibilidade; inventários ou indenizações trabalhistas
envolvem a problemática do gênero de forma menos evidente.

Em seguida, e preciso analisar os sujeitos processuais da situação em


questão, para que se possa diagnosticar se existem circunstâncias especiais que
precisam ser observadas para que se garanta um espaço de igualdade às
mulheres – se alguma das partes é lactante, tem filhos pequenos, se a
explicação foi clara etc. isso se refere não apenas às partes propriamente ditas
do processo, a analise deve incluir o tratamento às partes envolvidas,
advogadas, promotoras, testemunhas e outros autores relevantes. E necessário
atenção do julgador para perceber se há desigualdades estruturais que possam
afetar a participação das envolvidas no processo judicial. Por exemplo, a duração
de audiências envolvendo advogadas lactantes não pode ser demasiadamente
longa, bem como a comunicação deve ser clara e passível de entendimento
pelas partes.

Após isso é preciso analisar se a parte envolvida necessita de alguma


medida de proteção – seja no que se refere às relações interpessoais
(marido/mulher, pais/filhos), ou em relação ao contexto vivenciado pelos
envolvidos (situação financeira, histórico de violência etc.) –, em caso afirmativo,
deve-se estabelecer o que é protetivo na situação em questão – alimentos,
restrição ao agressor, proteção da autonomia da mulher etc. O objetivo é verificar
se existem fatores que culminam em um desequilíbrio de poder entre os
envolvidos, se há possibilidade de dano psicológico ou físico e corrigi-los. Para
tanto, deve-se perguntar o que significa “proteger” no caso concreto, e se a
autonomia da mulher está sendo respeitada.

Depois, há o momento de instrução processual, no qual é preciso verificar


se a instrução produz um ambiente propício para a produção de provas com
qualidade – não deve reproduzir violências de gênero institucionais –; as
perguntas não devem reproduzir estereótipos de gênero, causar re-vitimização
ou desqualificar a palavra da depoente, o ambiente não deve proporcionar
impedimentos à manifestação livre de constrangimentos dela. Esse momento é
crucial para a condução do processo, pois, se não conduzido com perspectiva
de gênero, pode gerar violência institucional de gênero. Portanto, é preciso que
se tenha um julgador atento à problemática do gênero, que perceba as dinâmicas
que originam e reproduzem desigualdades estruturais na instrução do processo,
e que aja de forma ativa para barrá-las.

Posteriormente, ocorre a valoração de provas e identificação de fatos,


com todos os cuidados mencionados acerca da necessidade de considerar as
desigualdades e hierarquias existentes relativas ao gênero. O primeiro passo da
análise de provas produzidas na fase de instrução é questionar se uma prova
faltante poderia ter sido produzida – casos que ocorrem em ambiente doméstico,
como estupro e violência, são difíceis de se obter prova. Também é necessário
especial cuidado em relação à consistência e coerência esperado nos
depoimentos, visto que se trata de eventos traumáticos. As denúncias serem
feitas muito tempo depois dos fatos não devem ser vistas como elementos de
deslegitimação, pois fatores como medo e vergonha podem afetar a percepção
clara do que ocorreu. Enfim, deve se evitar os estereótipos de gênero, e é
necessária atenção na análise das provas e circunstâncias, para que se
contemple a questão do gênero.

Após isso, segue-se à identificação do marco normativo e precedentes


aplicáveis, com análise de quais normas, pronunciamentos, jurisprudência,
ferramentas aplicáveis para a solução das assimetrias na relação jurídica. Ou
seja, a análise dos marcos normativos aplicáveis deve considerar não apenas a
legislação nacional, mas também tratados e convenções internacionais de
direitos humanos, incorporados pelo Brasil. Decorrente disso, existe
necessidade de se atentar à realização do controle de convencionalidade do
sistema normativo interno – deve-se analisar as circunstâncias de fato que
eventualmente determinem um enfoque interseccional e, a partir delas, definir
corretamente o marco normativo. Precedentes nacionais e internacionais
relativos à controvérsia devem ser considerados, e o julgador deve se guiar pela
ratio decindenci utilizada em decisões judiciais proferidas pelas cortes nacionais
ou pela Corte interamericana de Direitos Humanos.

Por fim, tem-se a interpretação e aplicação do direito, que leva em conta


todos os passos anteriores, bem como o debate geral que permeia a temática –
verifica-se se grupos estão sendo tratados de forma desigual e se a norma é
desproporcional em seus impactos sobre estes. São quatro formas possíveis: 1)
interpretação não abstrata do direito, de forma a perceber como conceitos,
procedimentos, princípios não são universais e podem resultar em situações de
subordinação; 2) análise de como a própria lei pode conter estereótipos; 3)
análise sobre como uma norma pode discriminar diretamente diferentes
pessoas, pois seu efeito é desigual; 4) análise de como uma norma
aparentemente neutra pode não ser dotada de neutralidade e gerar um impacto
negativo desproporcional a um certo grupo.

Ainda, é preciso observar certos temas transversais básicos – assédio,


audiência de custódia e prisões – para que seja possível relacioná-los a mais de
um ramo da Justiça – cada setor tem sua particularidade e pontos de atenção
específicos.

d. Exemplo

Tomando por exemplo a questão da revitimização e processo judicial, são


particularmente sensíveis os crimes de pornografia de vingança – que, quando
praticados pela rede mundial de computadores, exemplificam a revitimização de
forma explícita. Desse modo, além dos cuidados comuns a serem observados
em crimes que afetam a dignidade sexual, a magnitude do dano causado à vítima
deve ser considerada como fator de preocupação e análise.

É preciso reconhecer que esse crime envolve as violências decorrentes


da publicidade, ou seja, além do sofrimento pelo crime em si, há ainda a
repercussão no meio social; violência que deve ser considerada para a
elaboração tanto da resposta penal quanto no cuidado especial que deve ser
empreendido no processo, a fim de se evitar que o acesso à Justiça cause às
vítimas mais sofrimentos.

Outro exemplo: em relação à audiência de custódia, apesar de ser um


importante mecanismo para se proteger direitos individuais inalienáveis, sua
realização sem a consideração das perspectivas de gênero em seu caráter
interseccional pode anular os efeitos pretendidos. Nesse sentido, algumas
situações específicas merecem atenção, como é o caso da audiência de custódia
e maternidade.

Nessa situação, o STF, no julgamento do HC nº 143.641, concedeu ordem


coletiva e determinou a substituição da prisão preventiva por domiciliar das
mulheres presas, em todo território nacional, que sejam gestantes, puérperas,
ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência, sem prejuízo
às disposições do artigo 319 do CPC. Esse julgado deixou de conceder o
benefício no caso de crimes praticados pela mulher com violência ou grave
ameaça, contra seus descendentes ou em “situações excepcionalíssimas”, que
precisam ser devidamente fundamentadas na hipótese de negação do benefício.

A perspectiva de gênero se insere nessa questão pela observação de que,


considerando a realidade brasileira, a mulher ainda ocupa posição central nos
cuidados com os filhos; portanto, sua prisão enseja um efeito negativo em cadeia
que deve ser evitado ao máximo. Assim, as mencionadas situações
excepcionalíssimas que eventualmente fundamentem a negação da prisão
domiciliar ou de cautelares diversas impõem às magistradas e aos magistrados
especial ônus argumentativo para legitimá-la.

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