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'Hamas e Israel cometem crimes de guerra', afirma Sylvia Steiner, ex-juíza
do TPI
Por Sérgio Rodas
25 - 31 minutes

O ataque do grupo palestino Hamas a Israel constituiu um crime de guerra,


porque foi dirigido contra a população civil, e não alvos militares. Isso
autoriza Israel a retaliar o Hamas, de acordo com o Direito Internacional.
Porém, a reação israelense tem sido desproporcional, e as investidas contra
a população da Palestina, além do corte do fornecimento de água,
eletricidade, alimentos e medicamentos, também configuram delitos.

sssa análise é da advogada Sylvia


Steiner, ex-juíza do Tribunal Penal Internacional — a única brasileira a
integrar a corte, de 2003 a 2016. sla é consultora de Direito Internacional
do escritório Madruga BTW Advogados, desembargadora aposentada do
Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) e ex-procuradora federal.
Os crimes de guerra cometidos no conflito podem gerar punições aos
sstados de Israel e da Palestina e aos seus líderes, como o primeiro-ministro
israelense, Benjamin Netanyahu, explica Sylvia. sm 2019, o TPI abriu uma
investigação sobre os delitos cometidos na Guerra de Gaza, de 2014. s a
procuradoria da corte pode agregar os fatos ocorridos recentemente ao
procedimento. Outra possibilidade é o Conselho de Segurança da
Organização das Nações Unidas (ONU) instituir um tribunal para julgar as
violações ocorridas no conflito, aponta a advogada.
De acordo com a ex-juíza do TPI, a progressiva ocupação de territórios
palestinos por Israel, desde 1948, deveria ter sido punida pelo Direito
Internacional — inclusive há decisões da Corte Internacional de Justiça
declarando a ilegalidade da medida. Mas, como não há sanções, "é uma
questão de relações internacionais, e não do Direito".
Sylvia defende mudanças nesse sistema, de forma a tornar as punições por
órgãos internacionais mais efetivas, especialmente as do Conselho de
Segurança da ONU. O veto dos sstados Unidos à proposta do Brasil de
estabelecimento de uma pausa humanitária em Gaza, para a retirada de
civis, reforça o clamor por mudanças urgentes na entidade, opina ela.
sm entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Sylvia Steiner
defendeu que o Brasil não pode se retirar do TPI, disse que a Ucrânia age
em legítima defesa contra a Rússia, mas igualmente pode ter praticado
delitos de guerra, e declarou que o ex-presidente Jair Bolsonaro cometeu
crimes contra a humanidade por sua omissão durante a epidemia de Covid-
19.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Como a senhora avalia o mais recente capítulo do conflito Israel x
Palestina sob a ótica do Direito Internacional?
Sylvia Steiner — Penso que está bem configurada a existência de um conflito
armado na região e que as hostilidades foram iniciadas por um ataque
partindo da zona de Gaza contra Israel. O que em princípio autoriza Israel a
retaliar, pelo Direito Internacional. ssse ataque do Hamas constitui um
crime de guerra (previsto no artigo 8º, 2, "b" e "i", do sstatuto de
Roma) porque é um ataque dirigido contra a população civil, e não contra
objetivos militares. Falando do ponto de vista legal, um ataque pode ser
dirigido contra combatentes ou contra objetivos militares. ssses foguetes
todos foram indiscriminados, portanto, ferindo o princípio do Direito
Internacional Humanitário. Além disso, o Hamas comete crimes de guerra
com a tomada de reféns e o uso de escudos humanos (previstos no artigo
8º, 2, "a", "viii", e "b", "xxiii", do sstatuto de Roma).
s, por sua vez, a retaliação de Israel, pelas notícias que temos
acompanhado, também tem sido desproporcional, igualmente infringindo
regras do Direito Internacional Humanitário, que regulam o Direito de
Guerra, os meios e métodos de guerra. Porque a retaliação também é
dirigida contra alvos não delimitados. Portanto, eles estão atacando a
população civil — embora eu não enxergue os elementos do crime de
genocídio contra palestinos. s o anúncio de que teriam fechado todas as
rotas de acesso à região de Gaza, cortando o provimento de água, alimentos
e remédios, é também uma figura autônoma de crime de guerra, bem como
o deslocamento forçado de pessoas (previstos no artigo 8º, 2, "b", "xxv" e
"viii", do sstatuto de Roma). Os dois lados estão infringindo o Direito
Internacional e, mais especificamente, o Direito Internacional Humanitário.
sstão praticando crimes de guerra.
ConJur — Se ficar provado que Hamas e Israel cometeram crimes de guerra,
como eles podem ser punidos? As punições seriam aos sstados ou também
podem ser a indivíduos, como Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de
Israel?
Sylvia Steiner — Há duas formas de punição a sstados que infringem o
Direito Internacional Humanitário. A primeira é a punição contra o sstado.
O sstado, por exemplo, pode ser obrigado a pagar reparações. A outra
forma de punição é a punição individual, que é a base da punição penal pela
prática de crimes internacionais. sssa só pode ser individual. s ela é dirigida,
em geral, aos líderes dos países ou organizações que violam o Direito
Internacional Humanitário.
No caso, já existe uma investigação perante o Tribunal Penal Internacional
desde 2019, aberta a pedido da Palestina. A corte investiga atos que teriam
sido cometidos desde 2014 por autoridades israelenses, mas também pelos
dirigentes do Hamas. O TPI não investiga só um lado, a procuradoria é
obrigada a investigar todos os lados envolvidos em uma situação de conflito.
Uma possibilidade é que o procurador do TPI decida agregar esses novos
fatos à investigação que já está em andamento. Outra possibilidade, que
ocorreu principalmente no início da década de 1990, é o Conselho de
Segurança da ONU estabelecer um tribunal ad hoc para julgar
especificamente os fatos que estão ocorrendo neste momento naqueles
territórios. O Conselho de Segurança fez isso com a Guerra dos Balcãs e com
o genocídio de Ruanda.
ConJur — Que penas podem ser impostas por um tribunal ad hoc?
Sylvia Steiner — Isso já está mais ou menos bem estabelecido no Direito
Penal Internacional. Não só as regras de procedimento, mas também as
penas a serem impostas. sm geral, como é no Tribunal Penal Internacional,
são penas de até 30 anos de reclusão ou, se houver uma soma de
circunstâncias agravantes, pode se chegar à pena de prisão perpétua.
Quando o Conselho de Segurança expede uma resolução criando um
tribunal ad hoc, o estatuto desse tribunal geralmente é redigido pelo corpo
de juízes que são escolhidos para atuar na corte, dentro das diretrizes que
forem indicadas na própria resolução. Os juízes — geralmente pessoas
indicadas pelos sstados que são eleitos pela Assembleia-Geral da ONU —
estabelecem as regras de procedimento, os tipos penais e as penas a serem
aplicadas. Isso tudo é tirado da jurisprudência dos tribunais internacionais.
ConJur — Uma condenação de um tribunal internacional pode alcançar o
Hamas, que não é o sstado da Palestina? s a senhora pensa que a ONU
deveria mudar de posição e classificar o Hamas como uma organização
terrorista?
Sylvia Steiner — A organização não precisa ser considerada terrorista para
que seus líderes sejam julgados em tribunais internacionais. Os tribunais
internacionais julgam líderes de organizações que cometem ataques contra
a população civil. O sstatuto de Roma fala de sstados ou organizações.
sntão, tendo o formato de organização, quer dizer, uma certa estrutura,
uma certa hierarquia, uma certa condição material de iniciar e de
desenvolver ataques, já é suficiente para ser caracterizada como uma
organização para fins de punição. sm quase todos os casos do Tribunal Penal
Internacional, foram líderes de organizações envolvidas em conflitos
armados que foram levados a julgamento, além dos agentes do governo e
do exército formal. Foi assim nos conflitos da Iugoslávia e no genocídio de
Ruanda.
ConJur — Voltando à investigação do TPI, por que o tribunal nunca chegou
a julgar os conflitos entre Palestina e Israel, tendo em vista que eles se
alongam há várias décadas?
Sylvia Steiner — sm primeiro lugar, porque a Palestina só foi considerada
um sstado pela ONU em 2012. Na primeira vez em que a Palestina procurou
o Tribunal Penal Internacional, aceitando voluntariamente a jurisdição, o
pedido foi negado porque o tribunal só pode aceitar ratificação de sstados.
Depois de a Palestina ter sido reconhecida como sstado-observador pela
ONU, o TPI aceitou esse segundo pedido de investigação.
Agora, as investigações de crimes internacionais são muito demoradas. Não
é como uma investigação de um crime individual praticado na esquina de
casa. sntão, a investigação ainda está em andamento. Por enquanto, não
haveria possibilidade nem de existir ação penal, muito menos condenação.
O que há, por enquanto, são algumas decisões da própria Assembleia-Geral
das Nações Unidas e da Corte Internacional de Justiça. sm alguns casos, por
exemplo, afirmando que a construção do Muro da Cisjordânia configura
violação do Direito Internacional por parte de Israel.
A procuradoria do TPI pode aproveitar a investigação que já está em
andamento e ir acrescentando fatos novos. Isso foi feito no caso da Ucrânia,
em que a investigação se iniciou com base em duas declarações depositadas
pela Ucrânia após as ocupações russas de 2014 e foi recebendo acréscimos
desde o início da guerra, em 2022. Ou a procuradoria pode iniciar uma
segunda investigação para esse episódio específico.
ConJur — O que seria uma "guerra legal", de acordo com o Direito
Internacional?
Sylvia Steiner — A guerra que não seria ilegal é aquela autorizada pelo
Conselho de Segurança da ONU, que, de acordo com o capítulo 7º da Carta
das Nações Unidas, é o órgão encarregado de manter ou restabelecer a paz.
Às vezes, para restabelecer a paz é preciso atacar um país que está no meio
de uma guerra civil e causando uma catástrofe humanitária. Mas tem de ter
autorização da ONU, da comunidade internacional. Fora essa hipótese, a
guerra é sempre ilegal. A ONU proíbe que os sstados usem a força para
resolver suas controvérsias. Os sstados são obrigados a buscar outras
alternativas para resolver as divergências.
Agora, há a hipótese da legítima defesa. Quando o sstado está em paz, é
invadido por outro sstado e se inicia uma guerra, o sstado que foi invadido
está em legítima defesa do seu território e da sua soberania. sssa é uma
guerra considerada legal, se não forem praticados crimes de guerra nesse
contexto.
ConJur — A progressiva ocupação de territórios palestinos por Israel, desde
1948, não deveria ter sido punida pelo Direito Internacional?
Sylvia Steiner — Deveria. É uma daquelas situações em que a gente fala que
o Direito cede lugar à geopolítica, às relações internacionais. Há decisões da
Corte Internacional de Justiça declarando a ilegalidade dessa expansão
territorial de Israel, mas não há sanções. s, enquanto não há sanções, a
ilegalidade continua. Uma vez que não há sanções, é uma questão de
relações internacionais, e não do Direito. Rui Barbosa dizia que "a força do
Direito deve superar o Direito da força". ssse é o jogo do Direito
Internacional. Nós lutamos de um lado para impor a força do Direito, mas o
Direito da força está aí, é uma realidade difícil de combater.
O veto dos sstados Unidos à proposta do Brasil para se estabelecer uma
pausa humanitária em Gaza, para a retirada de civis, reforça o clamor por
mudanças urgentes no Conselho de Segurança da ONU. sssa conformação
do Conselho de Segurança provavelmente se justificava no pós-guerra. No
terceiro milênio, talvez não se justifique mais e precise ser revista, para que
o órgão seja mais efetivo, principalmente na questão das sanções. É muito
difícil, mesmo no plano interno, ter obediência a normas proibitivas se não
houver sanção pela desobediência. Se uma obrigação internacional não vier
acompanhada de uma sanção pelo descumprimento, fica quase como uma
declaração de intenções, e não realmente uma obrigação legal, que poderia
e deveria ser imposta a todos os sstados igualmente.
ConJur — Como a senhora avalia a guerra entre Rússia e Ucrânia sob a ótica
do Direito Internacional?
Sylvia Steiner — Há dois aspectos. O primeiro é que, pela definição clássica
do crime de agressão, que é a invasão de um território soberano por outro,
a Rússia cometeu esse delito. Mas, lamentavelmente, o caso não poderia
ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional, porque nem a Rússia, nem a
Ucrânia, são sstados-partes, e, especificamente em caso de crime de
agressão, o tribunal só pode exercer jurisdição sobre os sstados-partes.
Mas estão sendo cometidos crimes de guerra (pela Rússia). s os crimes de
guerra podem, sim, ser julgados pelo TPI, por conta das cartas de aceitação
voluntária da jurisdição do tribunal que foram depositadas em 2014/2015
pela Ucrânia. A procuradoria do TPI iniciou a investigação pela ocupação da
Crimeia pela Rússia, em 2014, e está acrescendo fatos relativos à guerra. O
TPI, inclusive, expediu mandado de prisão do presidente russo, Vladimir
Putin, pela deportação forçada de crianças ucranianas. s acredita-se que
outros mandados de prisão devem vir na sequência, à medida em que a
procuradoria conseguir reunir provas suficientes de outros crimes.
Pelo noticiário, há vários crimes de guerra, de ataque contra a população
civil, contra bens civis, bens protegidos, destruição, execuções sumárias. s
há notícias desencontradas, não se sabe se também estariam ocorrendo
crimes de violência sexual. Às vezes algo é mencionado, mas é para tentar
dar mais pavor ainda a uma situação que já é pavorosa. sntão não se tem
confirmação se tais crimes realmente estariam sendo cometidos.
ConJur — De acordo com o noticiário, também há crimes de guerra
praticados pela Ucrânia?
Sylvia Steiner — Parece que houve também ataques por parte da Ucrânia,
os chamados ataques indiscriminados, sem alvo certo, que acabam
atingindo civis ou bens civis. Mas aí vai depender das provas que a
procuradoria do TPI tiver. É preciso ver se esses ataques foram
propositadamente dirigidos contra civis e bens civis ou se eles se dirigiam a
um objetivo militar, mas, por alguma razão, acabaram caindo em lugares
ocupados por civis ou só com bens civis. Depende de prova da intenção do
agente. Se o agente tem a intenção de atacar indiscriminadamente a
população civil, é um crime de guerra. Se a intenção era atacar um objetivo
militar e, por um erro na execução, uma escola foi atingida, não há o dolo
para configurar a figura criminal.
ConJur — sssa é uma guerra de legítima defesa da Ucrânia?
Sylvia Steiner — Sim. A guerra, em si, não é ilegal ou ilegítima, mas isso não
impede que se cometam crimes na condução das hostilidades. O que o
Direito Internacional Humanitário regula não é a existência ou não da
guerra. É a maneira como as partes têm de se portar em uma situação de
conflito armado.
ConJur — Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que
não cumpriria a ordem de prisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin,
emitida pelo TPI, caso o líder russo visitasse o Brasil. Depois disso, o ministro
da Justiça, Flávio Dino, afirmou que o governo brasileiro poderia rever a
adesão ao TPI. O Brasil pode deixar o TPI? Se sim, o que isso significaria para
o país?
Sylvia Steiner — Há pessoas que discordam, mas eu insisto que o Brasil não
pode denunciar o sstatuto de Roma. Como parágrafo 4º, ele foi agregado
ao artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias
fundamentais. Portanto, o sstatuto de Roma é cláusula pétrea, assim como
todos os demais direitos e garantias individuais previstos no artigo 5º. su já
ouvi gente dizendo que o sstatuto de Roma não protege direitos individuais,
é uma mera cláusula de jurisdição. su discordo dessa afirmativa. sm
primeiro lugar, o legislador não teria colocado a submissão do país ao
Tribunal Penal Internacional por acaso ou por um engano no artigo 5º. sm
segundo lugar, o TPI é um tribunal não só de caráter retributivo, mas
restaurativo. Cabe à corte proteger as vítimas e assegurar-lhes o
cumprimento de direitos humanos internacionalmente reconhecidos, como
os de ter voz, acesso à Justiça e reparação. Quem vê no parágrafo 4º do
artigo 5º uma mera cláusula de jurisdição é porque não conhece o caráter
de Justiça restaurativa do Tribunal Penal Internacional. sntão, eu insisto: o
Brasil não pode se retirar do TPI.
Além do mais, o Brasil trabalhou muito na Conferência de Roma. Depois,
durante a comissão preparatória dos anexos do sstatuto, o Brasil teve uma
participação fundamental. su participei dessa fase. Quem comandou todo
esse trabalho foi Maria Luiza Ribeiro Viotti, atualmente embaixadora do
Brasil nos sstados Unidos. sra uma equipe muito séria, que trabalhou muito,
inclusive pela minha eleição para o TPI. O Brasil sempre se colocou como
um grande apoiador do TPI. su penso que a fala de Lula foi mais algo de
momento, algo impensado. Não acredito que o Brasil tentará deixar o TPI.
ConJur — Como a senhora já mencionou, a Rússia não é signatária do
sstatuto de Roma, portanto, não se submete ao TPI. É legítimo o TPI ordenar
a prisão do chefe de um sstado que não aderiu à sua jurisdição?
Sylvia Steiner — Sim, porque Putin determinou, autorizou ou está tolerando
a prática de crimes no território de um sstado que aceitou a jurisdição do
TPI. O TPI pode exercer jurisdição se um crime é praticado por um nacional
de um sstado-parte ou em um território de um sstado-parte. Apesar de a
Ucrânia não ser sstado-parte, a Ucrânia, como vítima, tem o direito de
comparecer perante o TPI e dizer que está sendo vítima de crimes e que
quer a intervenção do tribunal. O sstado vítima também pode exigir a
atuação do TPI.
ConJur — O que significa o fato de grandes potências, como Rússia, sstados
Unidos e China, não serem sstados-partes do TPI?
Sylvia Steiner — A intenção do Tribunal Penal Internacional é ter um caráter
universalista. Agora, são muitos os sstados que não o ratificam, pelos mais
diversos motivos. ssses a que se refere (Rússia, sUA e China) são grandes
potências, mas que têm, interna e externamente, problemas que poderiam
acarretar a chamada da jurisdição do TPI. sntão penso que esse é o motivo
pelo qual não aderem ao TPI. Israel também não é sstado-parte.
Os sstados Unidos não ratificam nenhuma convenção. Não ratificaram nem
a Convenção sobre os Direitos da Criança, que é absolutamente inócua, só
com cláusulas de intenção. A China tem sérios problemas com algumas
minorias e em relação a Taiwan. A Rússia tem também sérios problemas
com sstados que antigamente estavam na federação, e não estão mais. s
Israel tem seus problemas com a Palestina e outros sstados do Oriente
Médio.
Mas isso não tira a legitimidade do TPI. Há 124 sstados-partes. Todos os
sstados europeus, sem exceção; todos os sstados latino-americanos, com
exceção de Cuba; quase todos os sstados africanos, e outros grandes
sstados, como Japão, Canadá e Austrália. Agora há até alguns sstados
islâmicos. A tendência é que o TPI se expanda. Agora, sempre haverá
sstados resistentes à ideia de se sujeitar ao Direito Internacional. Isso é
normal.
ConJur — O TPI não tem uma polícia própria, então depende da cooperação
dos países para aplicar as medidas e penalidades. O que fazer quando um
país não quer colaborar?
Sylvia Steiner — Isso aconteceu no caso dos mandados de prisão contra o
então presidente Omar al-Bashir, do Sudão. sle foi visitar alguns sstados-
partes que não o prenderam e não o entregaram ao TPI. Como o tribunal
não tem competência para aplicar sanções, ele expede uma decisão
declaratória de descumprimento de obrigação internacional e manda para
a assembleia dos sstados-partes. ssta, sim, tem o poder de aplicar sanções.
Não aplicou até agora, ainda não regulamentou o sistema de sanções, mas
tem usado as negociações diplomáticas e os chamados bons ofícios, que é
um termo bem da diplomacia, no sentido de constranger os sstados a
cumprir as suas decisões.
ConJur — A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apresentou
denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro por genocídio e ecocídio
perante o TPI. sm artigo publicado na ConJur, a senhora afirmou que não
existe crime de ecocído no TPI. Seria positivo tipificar tal conduta?
Sylvia Steiner — Na minha opinião, não, porque os crimes previstos no
sstatuto de Roma são aqueles que, de acordo com o Direito Internacional,
são chamados de crimes contra a paz. É o crime de agressão, genocídio,
crimes de guerra, crimes contra a humanidade. Não deveríamos deixar de
lado a justificativa histórica de previsão desses crimes como crimes contra
a paz. Não faria sentido. O sstatuto de Roma prevê esses crimes porque tem
uma razão, é resultado de um processo histórico. Desde a Primeira Guerra
Mundial, o Direito Internacional vai formando essa ideia de crimes contra a
paz. ssse é o primeiro argumento.
O segundo argumento é que eu, pessoalmente, penso que as instâncias
locais analisam melhor crimes como esse, contra o meio ambiente. Afinal,
os tribunais locais estão próximos às provas, às testemunhas, onde podem
ser feitas perícias. O Judiciário interno dos sstados é muito mais bem
equipado para apurar a existência de crimes ou de ilícitos do que qualquer
tribunal internacional. Apesar do fato de que ser condenado por um
tribunal internacional pode dar uma ideia de uma censura maior, não seria
uma medida eficaz tipificar o crime de ecocídio perante o TPI.
ConJur — As condutas de Bolsonaro durante a epidemia de Covid-19,
especialmente com relação a indígenas, configuram o crime de genocídio?
Sylvia Steiner — De genocídio, não. Crimes contra a humanidade, sim.
ConJur — Como afirmou um grupo de juristas, do qual a senhora fez parte,
em parecer apresentado à CPI da Covid-19, certo?
Sylvia Steiner — su mantenho a minha opinião no sentido de que há indícios
da prática de crimes contra a humanidade. É lógico que as provas têm de
ser colhidas e que é preciso conferir ampla defesa. Mas há indícios da
prática de crimes contra a humanidade, e não é só de Bolsonaro, mas
também de outros altos funcionários do governo. Por exemplo, pessoas
ligadas ao ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e à Funai, além de
algumas autoridades do estado do Amazonas e de Manaus. Isso porque
houve uma omissão dolosa em tomar as medidas, inclusive aquelas
determinadas pelo Supremo Tribunal Federal em quatro liminares
expedidas pelo ministro Luís Roberto Barroso, no sentido de criar barreiras
sanitárias e de dar proteção especial a esses povos, que são mais
vulneráveis a problemas de saúde. sssa omissão dolosa pode, sim,
configurar crimes contra a humanidade.
ConJur — Quais crimes contra a humanidade, especificamente?
Sylvia Steiner — São vários os crimes contra a humanidade, estabelecidos
no artigo 7º do sstatuto de Roma. O dispositivo inclui assassinato, tortura,
deportação. Com relação a Bolsonaro, ele pode responder pelos crimes de
perseguição e outros atos desumanos, previstos, respectivamente, no
artigo 7º, alíneas "h" ("Perseguição de um grupo ou coletividade que possa
ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais,
religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3º, ou em função
de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no
direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste
parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal") e "k"
("Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem
intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade
física ou a saúde física ou mental").
ConJur — ssses crimes podem ser punidos com prisão?
Sylvia Steiner — Sim, claro.
ConJur — Uma pena de prisão de Bolsonaro seria cumprida em Haia, onde
fica o TPI, ou no Brasil?
Sylvia Steiner — sm Haia só ficam os presos provisórios. Aqueles que forem
condenados vão cumprir pena em sstados que celebrem um convênio com
o TPI e aceitem recebê-los para cumprimento de pena. sntão é caso a caso.
Quando alguém é condenado, ele manifesta o desejo de onde gostaria de
cumprir pena. O tribunal consulta se tal sstado está disposto a receber esse
condenado. Se sim, firma um convênio para o sujeito cumprir pena naquele
sstado — que pode ser o de naturalidade ou nacionalidade do condenado.
ConJur — sm 2018, o Comitê de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas determinou ao sstado brasileiro que tomasse "todas as
medidas necessárias" para permitir que Lula concorresse a presidente,
mesmo preso, enquanto sua condenação não fosse definitiva. sm 2022, o
comitê concluiu que Lula teve violados os direitos políticos, a garantia a um
julgamento imparcial e a privacidade na "lava jato". Para o órgão da ONU, a
anulação das condenações de Lula pelo Supremo Tribunal Federal não foi
suficiente para reparar os danos causados a ele. Assim sendo, o sstado
brasileiro deveria ter respeitado a determinação da ONU em 2018 e
permitido que Lula se candidatasse? Que medida poderia reparar os danos
causados ao presidente pela "lava jato"?
Sylvia Steiner — O Comitê de Direitos Humanos da ONU não tem o poder
de expedir decisões condenatórias, como a Corte Internacional de Justiça
ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que poderiam determinar
o pagamento de reparações ou impor sanções. Assim, a obrigatoriedade do
cumprimento das decisões do comitê é muito mais moral, digamos assim,
no sentido de que um órgão da ONU diz para fazer ou deixar de fazer algo.
Nesse caso de Lula, como não se pode voltar ao status quo ante, a reparação
poderia ser por meio de qualquer forma de satisfação do dano, até
pecuniária. sxiste toda uma regulação da ONU sobre a obrigação de reparar
todos aqueles que sofrem um dano em razão de uma ilegalidade, de uma
violação do seu direito em razão de um crime ou de abuso de poder.
ConJur — Nesse caso, a obrigação de reparar é do sstado brasileiro ou de
agentes da "lava jato", como, por exemplo, o ex-juiz Sergio Moro?
Sylvia Steiner — A obrigação é do sstado brasileiro. Sergio Moro pode ser
obrigado a reparar se ele for condenado criminalmente em uma instância
interna por abuso de poder, por exemplo, mas não em decorrência de uma
decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU.
ConJur — Como essa decisão do comitê da ONU não tem força executória,
como a senhora disse, o sstado brasileiro não é obrigado a cumpri-la, certo?
Sylvia Steiner — Deveria, porque todo o sistema do Direito Internacional se
baseia no princípio de que as obrigações internacionais devem ser
cumpridas. Mas o Direito Internacional é falho, na medida em que não
prevê sanções para todos os descumprimentos. Volto a citar o caso de Israel.
Há várias decisões sobre a ilegalidade da expansão territorial de Israel, da
ocupação de áreas. Apesar da ilegalidade, Israel não é punido, pois não se
estabeleceu um sistema de sanções eficiente. ssse é o problema do Direito
Internacional.

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