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Imunohematologia

Imunohematologia se dedica a estudar os antígenos presentes nos eritrócitos,


juntamente a seus respectivos anticorpos e outros componentes imunológicos
resultantes. Abordaremos a seguir os dois sistemas principais de antígenos eritrocitários.

Sistema ABO:
Por conta de sua imunogenicidade, o Sistema ABO é sistema de antígenos
eritrocitários de maior importância clínica. Antígenos A e B são glicoproteínas superficiais
que diferem essencialmente no resíduo glicídico terminal: para antígeno A, N-
acetilgalactosamina; para B, galactose. Ambos glicídios devem ser ancorados à
membrana por uma cauda glicoproteica chamada Substância H – expressa por
praticamente todos seres humanos. Os genes A e B expressam glicotransferases
responsáveis pela adição dos respectivos glicídios à substância H. Como a expressão
desses genes suprime a produção de anticorpos naturais, aqueles indivíduos que forem,
por exemplo, sorotipo A terão apenas anticorpos anti-B.
Anticorpos anti-A e anti-B são os únicos anticorpos naturais conhecidos e bem
descritos na literatura, sendo produzidos espontaneamente a partir do segundo mês de
vida. Como visto, esses anticorpos serão produzidos apenas naqueles indivíduos que
não expressarem os respectivos antígenos, evitando a autoimunidade. Por conta disso,
a pesquisa tanto de antígenos quanto de anticorpos é estritamente necessária à tipagem
sanguínea, de forma que um teste deve confirmar o resultado do outro. Indivíduos
homozigotos recessivos para o gene H (Fenótipo Bombay) não expressam a substância
H e, portanto, não conseguem formar antígenos A e B de forma adequada. Esse é um
exemplo de caso no qual pode haver discordâncias nos resultados dos exames
laboratoriais. O Fenótipo Bombay tem prevalência significativa apenas entre indianos e
descendentes de indianos. Outras exceções, no entanto, podem confundir a tipagem
ABO. Por conta disso, abordaremos os dois tipos de tipagem pela técnica de
aglutinação (ativa) e, depois, as devidas interpretações.
Tipagem Direta: realiza a pesquisa de antígenos na superfície das
hemácias do paciente, a partir do uso de antissoros comerciais anti-A, anti-B e anti-AB.
Tipagem Reversa: realiza a pesquisa de anticorpos no soro ou plasma
do paciente, a partir do uso de hemácias comerciais - hemácias A e hemácias B.
Importante fazer ambas, a fim de detectar eventuais anormalidades, caso o
resultado de uma não corresponda ao resultado indicado pela outra. Pacientes com o
antígeno A não devem apresentar anticorpos anti-A, enquanto que pacientes com o
antígeno B não podem apresentar anticorpos anti-B.
80% da população A corresponde ao antígeno A 1, enquanto que 19,9%
corresponde ao A2 e o 0,1% corresponde a outros subgrupos de A. Observa-se, no
entanto, que soro anti-A é apenas eficiente na detecção do antígeno A 1, enquanto que
anti-AB é uma mistura de anticorpos mais sensível e capaz de aglutinar com subgrupos
de A menos comuns, como antígeno A2. Dessa forma, na tipagem direta, frequentemente
pode não haver aglutinação com antissoro anti-A, mas sim com o anti-AB. Se, na tipagem
reversa, esse paciente apresentar anticorpos anti-B - indicando ausência de antígeno B,
o resultado anômalo da tipagem direta pode ser explicado pela presença de um subgrupo
de A diferente de A1, conforme tabela abaixo.
Tabela 1: resultado de tipagem típica para subgrupo A2 e outros subgrupos de A diferentes de A1.

DIRETA INDIRETA

A B AB Anti-A Anti-B

- - + - +

Em alguns casos, especialmente em pacientes com neoplasia do Trato


Gastrointestinal, pode haver a produção de açúcares que mimetizam o antígeno B,
gerando o que chamamos de Falso B. Dessa forma, pode haver positivação errônea da
tipagem direta do sangue do indivíduo. Esse resultado, no entanto, costuma ser apenas
transitório. Deve-se ter especial atenção a esses casos em pacientes idosos. Uma
evidência de Falso B pode ser a aglutinação na tipagem direta com o antissoro anti-B
concomitante à aglutinação na tipagem reversa com hemácias B – indicando
erroneamente presença concomitante de antígeno B e de anticorpo anti-B.

Sistema Rh:
Sistema associado aos genes C, D e E (antígenos de Wierner), sendo o antígeno
D aquele com maior imunogenicidade. Cerca de 80% dos indivíduos Rh negativos que
entram em contato com esse antígeno desenvolvem resposta imunológica e produção
de anticorpos anti-D. A classificação de Rh positivo é dada aqueles indivíduos que
apresentam ao menos uma cópia do gene D dominante (D_), enquanto que indivíduos
Rh negativos apresentam o gene D depletado. Os genes C e E não influenciam nessa
classificação, pela sua baixa imunogenicidade. Como os únicos anticorpos naturais
conhecidos são aqueles provenientes do sistema ABO, a produção de anticorpos anti-D
por parte de indivíduos Rh negativos só se concretiza mediante exposição a hemácias
com o antígeno D, seja por transfusão ou por gestação (normalmente, a sensibilização
ocorre durante o parto, quando há contato direto livre entre o sangue da criança e o
sangue da mãe). Esses anticorpos podem representar patologias em caso de novas
exposições, como no caso da Doença Hemolítica do Recém-nascido.
Diversas alterações genéticas levam aos fenótipos caracterizados por subgrupos
anômalos do antígeno D – antigamente chamados de fenótipos Du. Essas anomalias
fazem necessárias medidas adicionais para evidenciar laboratorialmente a presença de
antígeno D. Caso o teste inicial (tipagem direta por aglutinação) dê positivo, pode-se
liberar o resultado como indivíduo Rh positivo. Quando o resultado é não reagente, no
entanto, deve-se tomar medidas adicionais para confirmar o teste, tais como
prolongamento de incubação, utilização de anticorpos monoclonais e/ou adição de soros
anti-Imunoglobulina (Soro de Coombs). O procedimento mais comum é a adição do soro
de Coombs, o qual deve induzir a aglutinação outrora pouco evidente, mesmo em casos
de D anômalo – considerados Rh positivos. Caso isso seja insuficiente para gerar
aglutinação, pode-se liberar o resultado como indivíduo Rh negativo. Três principais
fenótipos anômalos de D são descritos:
Expressão Fraca de D, no qual o antígeno está presente em menores
quantidades na superfície do eritrócito;
D-fraco, no qual a proteína do antígeno D se encontra alterada, além da
expressão diminuída.
D-parcial, no qual se tem antígenos D deficientes, isto é, desprovidos de certos
grupamentos estruturais, o que dificulta a aglutinação. Faltam partes do antígeno
D.

TESTE DE COOMBS
A principais funções do teste de Coombs são (1) a avaliação da
sensibilização materna pelo antígeno D e (2) a avaliação da presença de anticorpos
anti-D na superfície eritrocitária de recém-nascidos (RN). Há dois tipos: Coombs
indireto, o qual avalia a presença de anticorpos livres no soro da mãe; e Coombs
direto, o qual avalia a presença de hemácias ligadas a anticorpos anti-D no soro
do RN.
Coombs indireto: após uma gestante Rh negativo dar à luz uma criança Rh
positivo, existe sempre a possibilidade dessa mãe ter entrado em contato com o antígeno
D proveniente do bebê e, consequentemente, ter se sensibilizado – produzido anticorpos.
Para verificar a presença desses anticorpos livres no soro da mãe, mistura-se a amostra
sorológica com hemácias D (que apresentam o antígeno D na sua superfície). Após
incubação e lavagem, adiciona-se o soro de Coombs, um anticorpo anti-Imunoglobulina
humana, a fim de evidenciar a aglutinação. Se reagente, o teste indica que a mãe foi
sensibilizada pelos antígenos D do bebê e, agora, produz anticorpos anti-D.
Coombs direto: quando uma mãe produtora de anticorpos anti-D dá à luz uma
segunda criança Rh positivo, existe sempre a possibilidade dessa criança ter suas
hemáticas atacadas por anticorpos IgG maternos, o que pode levar à condução
conhecida como Doença Hemolítica do Recém-nascido. Para verificar a presença de
hemácias do RN ligadas a anticorpos maternos, mistura-se sangue total do neonato com
o soro de Coombs. Se houver aglutinação, o resultado é reagente e essa criança
provavelmente se insere num quadro de DHRN. As principais causas dessa doença são
hiperbilirrubinemia e retardo mental irreversível.

Doença Hemolítica do Recém-nascido - DHRN:

A doença hemolítica do recém-nascido tem sua origem no ataque às hemácias


fetais por anticorpos maternos produzidos numa gestação prévia. Essa depuração de
eritrócitos gera um aumento no aporte de bilirrubina sanguínea, a qual acaba sendo
metabolizada pelo fígado materno durante a gravidez. Após o nascimento, porém, o RN
já não tem a opção do fígado materno para metabolizar toda bilirrubina produzida, e o
acúmulo desse subproduto gera alterações neurológicas significativas.
Basicamente, uma gestante Rh negativo que venha a ter uma criança Rh positiva
pode acabar sensibilizada na hora do parto, levando à produção de anticorpos anti-D.
Numa segunda gestação cuja criança é Rh positivo, os anticorpos anti-D maternos
de classe IgG passam pela barreira placentária e geram a lise dos eritrócitos fetais.
Nessa condição, o feto rapidamente passa a produzir e liberar no sangue novos
eritrócitos para compensar a depuração exacerbada. Eventualmente, a depuração será
tão acentuada que haverá o aparecimento de eritrócitos imaturos na corrente sanguínea
fetal, os quais são chamados de eritroblastos. Essa condição caracteriza a Eritroblastose
Fetal, um quadro clínico derivado da DHRN que ocorre previamente ao parto.
Outra consequência da grande depuração de hemácias é o acúmulo de
subprodutos dessas células, dentre eles a bilirrubina (derivado da hemoglobina).
Enquanto feto, dentro da placenta, a criança se livra dessa bilirrubina através do fígado
materno, onde sofre metabolização e excreção. No entanto, a partir do nascimento, a
criança ainda tem anticorpos anti-D maternos residuais, porém não mais possui o auxílio
do fígado materno para a metabolização da bilirrubina resultante. Como o fígado do
recém-nascido é imaturo e incapaz de excretar tanta bilirrubina, ele desenvolve um
quadro de hiperbilirrubinemia, altamente neurotóxico e característico da Doença
Hemolítica do Recém-nascido. A consequência clínica mais comum é o retardo mental
irreversível.

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