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Simulação. Simulação relativa.

Formalismo legal (*)

I. A simulação e seu enquadramento siste- entre a sua vontade real e a vontade manifesta-
mático no Código Civil da são muito distintas entre si e conduzem, já
por isso, a diferenças assinaláveis entre as seis
1. O enunciado geral a respeito das figuras da figuras da "falta da vontade", diferenças essas
'falta da vontade" que se acentuam ainda mais quando são ana-
Já sabemos que - a respeito das vicissitudes lisadas sob o prisma das diversas interacções
que podem pôr em causa a validade de uma que, neste contexto, ocorrem entre declarante e
declaração negocia I - o Código Civil reserva à declaratário (1).
simulação, de entre as várias figuras abrangidas
pela designação geral "falta da vontade", uma 2. A descrição sucinta dos traços estruturantes e
posição destacada e, até certo ponto, singular. elementares das figuras em causa
Não sem razão: o fenómeno da simulação é Para entendermos esta diferenciação, vamos
economicamente relevante e ocorre com muita relembrar primeiro os traços estruturantes, redu-
frequência. zidos aos seus elementos principais, das figuras
As figuras da "falta da vontade" - ao to- aqui em questão e, ao mesmo tempo, vamos in-
do são seis - encontram-se reguladas nos arts. dividualizar e delimitar delas a simulação.
240.° a 250.° e aparentam, embora sem grande a) No que toca a simulação, reserva mental
rigor, como seu elemento estruturante comum, e declaração não séria, podemos constatar que
ou, melhor dizendo, como elo ténue que as liga a atitude observada pelo declarante é sempre
entre si, uma suposta divergência (ou não coin- a mesma (ele faz a declaração e nunca quer o
cidência) entre a vontade real do declarante e a declarado); mas já variam os intuitos que de-
vontade por este manifestada. Quer dizer, nes- terminam a sua atitude (ele tenciona enganar
tas figuras a declaração negocial, tal como vem ou um terceiro, ou o declaratário, ou ninguém);
definida pelo art. 217.°, apresentar-se-nos-ia de em resultado disso, variam também as formas
uma maneira em que o seu lado interno, a von- da sua interacção com o declaratário (que cola-
tade, e o seu lado externo, a manifestação (ou bora, ou é vítima, ou é esperado estar atento).
declaração), não coincidem, mas divergem.
As circunstâncias ou condições que, do la-
do do declarante, levam a uma "divergência" (1) Assim, é natural que o leque das respostas, com que
o Código Çivil enfrenta as várias situações da "falta da
n O texto publicado corresponde, só com alterações vontade", seja muito diferenciado. Na verdade, a verificar-
de pormenor (eliminação de gralhas e imperfeições pon- -se uma declaração negocia I em que existe uma" di vergên-
tuais), à lição-síntese proferida nas minhas provas de agre- cia" entre a vontade real do declarante e a vontade mani-
gação, em 13/2/2007, na Universidade do Minho. Contu- festada por este, a declaração tanto pode ser perfeitamente
do, para efeitos de publicação, foram inseridos os títulos válida, como pode ser anulável ou nula, como ainda pode
intermédios e acrescentadas as notas de pé de página. não produzir nenhum efeito de natureza negocia!.
Deste modo, as posições do declaratário variam 3. A comparação e delimitação dasfiguras da 'fal-
em função dos intuitos do declarante, o que sig- ta da vontade" entre si
nifica que, em certa medida, as três figuras são Partindo destes traços estruturantes elemen-
delimitadas entre si a partir do papel destinado tares das seis figuras enunciadas, podemos cons-
por este àquele (2). tatar o seguinte:
b) Relativamente à falta de consciência da a) No que respeita a declaração não séria, fal-
declaração e coacção física (3), dir-se-á que o ta de consciência da declaração e coacção física,
declarante faz uma declaração ao manifestar a acontece que o declarante nem quer fazer uma
sua vontade, mas esta ou não é uma vontade declaração negocial nos termos do art. 217.° e
no sentido do art. 217.° ou falta-lhe por com- não pretende que o seu comportamento seja en-
pleto, uma vez que o declarante apenas o é na tendido nesse sentido. Não há, rigorosamente,
aparência, visto não agir por si, mas ser instru- nenhuma divergência entre uma vontade e sua
mentalizado. declaração, mas antes uma ausência da vonta-
c) Em relação ao erro na declaração (4), pode- de, uma verdadeira falta - uma falta absoluta (5)
mos constatar que o declarante faz a declaração - da vontade (6).
ao manifestar a sua vontade, mas esta falta-lhe b) Na simulação, porém, o declarante faz
(apenas) na medida em que há um (qualquer) uma declaração negocial e manifesta uma von-
desvio da declaração em relação à vontade, des- tade, mas precisamente esta falta-lhe. Com o
vio esse que faz com que o declarante não queira declaratário sucede o mesmo. Ambos têm per-
o declarado com o significado que tem. feita consciência de celebrar um negócio para

(5) É este o termo empregue por JOSÉ T AVARES, OS Prin-


(2) No caso da simulação, definida no art. 240.°, n.o 1, [(pios Fundamentais do Direito Civil, vo!. II, Coimbra, 1928,
e regulada nos arts. 240.°, n.O2,242.° e 243.°, o declarante p. 480 (e, implicitamente, também na p. 513), que, neste
faz uma declaração ao manifestar a sua vontade, mas é contexto, ainda equipara, com bons argumentos, a reserva
precisamente esta que lhe falta, porque o declarante não mental à declaração não séria (pp. 480 e segs.).
quer o declarado; porém, o declaratário sabe isso e está de (6) Sendo a vontade o elemento essencial de toda a
acordo com isso, uma vez que ambos pretendem enganar declaração negocial, podemos ser levados a concluir que,
um terceiro. nestas circunstâncias, ,devido à ausência completa de uma
Ocorrendo uma reserva mental, prevista e regulada no vontade, uma declaração negocial nem sequer existe. O
art. 244.°, também sucede que o declarante faz uma decla- Código Civil, porém, não chega a esta conclusão, pelo me-
ração ao manifestar a sua vontade, mas é exactamente esta nos não literalmente, quando determina que estas decla-
que lhe falta, porque o declarante não quer o declarado; só rações carecem de qualquer efeito. (No art. 245.°, n.o 1, a
que agora o declaratário não sabe isso, uma vez que o decla- lei utiliza a fórmula "carece de qualquer efeito", enquanto
rante pretende enganar o próprio declaratário. no art. 246.° ela diz "não produz qualquer efeito"). Quer
No que concerne à declaração não séria, cujo regime dizer, não se produzem efeitos de natureza negocia/. Con-
consta do art. 245.°, acontece novamente que o declaran- tudo, podem surgir efeitos de natureza não negocial, ou
te faz uma declaração ao manifestar a sua vontade e esta seja, as obrigações de indemnizar e os direitos de ser in-
falta-lhe, porque não quer o declarado; todavia, aqui o demnizado pelo dano da confiança, resultantes da própria
declarante espera que o declaratário reconheça esta falta de conduta do declarante geradora de confiança (arts. 245.°,
seriedade da declaração negocial, uma vez que não o pre- n.O2, e 246.°, última parte, onde todavia - ao contrário do
tende enganar. art. 245.°, n.o 2 - se exige culpa do lado do declarante).
e) Ambas as figuras vêm reguladas no art. 246.°; na A questão da inexistência é discutida na doutrina (ver,
primeira delas, o declarante nem tem a consciência sequer por todos, C. A. DA MaTA PINTO - A. PINTO MONTEIRO - P AU-
de fazer uma declaração de natureza negocia!. LO MaTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4: ed., Coim-
(4) O regime deste tipo de erro encontra-se regulado bra, 2005, pp. 617-619), mas o seu aprofundamento não
nos arts. 247.° a 250.°. interessa neste contexto.
não valer (7). Portanto, o negócio simulado não inseridos entre as figuras da "falta da vontade",
passa de um negócio fictício (8) com o qual de: são fenómenos bem distintos entre si. Mas veri-
clarante e declaratário intencionam enganar um ficamos ainda mais isto: no fundo, apenas quando
terceiro (9). Na reserva mental, a situação é, ba- ocorre um erro na declaração temos verdadeiramente,
sicamente, a mesma; só aqui o declarante quer no sentido estrito da palavra, uma divergência entre
enganar o declaratário. uma vontade real e uma vontade declarada; nos res-
c) Já no caso do erro na declaração, as coi- tantes casos, uma vontade real, destinada a ser
sas apresentam-se de forma substancialmente declarada, não existe; ela falta e, por isso mesmo,
diferente. Aqui não há "falta de vontade": ela .não pode sofrer um desvio (11). Por isso, em todos
existe, mas é declarada com um sentido dife- os casos, em que não há um erro na declaração,
rente daquele que o declarante lhe quis dar. Há só de uma maneira mais ampla é que podemos
um desvio: o declarante exprimiu-se mal (10). A utilizar - e vamos utilizar - a expressão "diver-
declaração não é jingida. gência da vontade" (12) (13).
d) Dito isto, verificamos para já que a simu-
lação (bem como a reserva mental), por um la-
do, e o erro na declaração, por outro, apesar de (11) RAÚLGUICHARD
(n. 8), pp. 99,104-105, escreve: "ora,
na simulação, face à contra parte, quer-se tão-só declarar a
falta de vontade [... ], o que justamente aquela (re)conhece.
Porque o declarante e o declaratário se entendem, inexiste
(7) Cfr. D. MEDlCUS,Allgemeiner Teil des BGB, 8." ed., qualquer interstício ou hiato por onde possa internar-se
Heidelberg, 2002, p. 231 (n.o 594), que põe em realce: "die_ uma divergência [... ] entre a vontade e a declaração. Uma
Niclllgeltung wird zum Gescltiiftsinha/t" (o não valer é o con- divergência dá-se, isso sim, entre a comum e real intenção
teúdo do negócio). das partes [... ] e aquilo que também consensualmente ex-
Ou, como diz JosÉ TAVARES(n. 5), p. 517: "finge-se mui- teriorizam face a terceiros. O que, já se vê, configura coisa
tas vezes uma aparência que não oculta realidade alguma bem diferente e se situa num plano distinto".
[ ...]" . (12) Como o faz comummente a doutrina. Ver, por
(8) F. A. PIRESDELIMAe J. M. ANTUNESVARELA,Noções todos, C. A. DAMaTA PINTO- A. PINTOMONTEIRO - PAULO
Fundamentais de Direito Civil, voI. I, 6." ed., Coimbra, 1973, MaTA PINTO(n. 6), pp. 457-466.
pp. 351 e 354, falam de "pseudocontraentes"; JosÉ TAVA- A. FERRER CORREIA(n~ 10), pp. 24-26, diferencia, em ge-
RES(n. 5), pp. 519, 522, invocando BELEZADOSSANTOS;no ral, nos casos em que a declaração não traduz fielmente a
mesmo sentido, RAÚLGUICHARD,"Um "caso exemplar" ou vontade do seu autor, ou seja, onde há uma "desarmonia
um "exemplo casual"?", Revista de Ciências Empresariais e entre a declaração e a vontade", da seguinte forma: (1) o
Jurídicas, n.o 4, 2005, pp. 99, 105. desacordo entre o conteúdo concreto da declaração e a real
No século passado, em plena vigência do Código de vontade do declarante, quando o declarante sofreu um
Seabra, a obra de referência era da autoria de J. BELEZA
DOS erro; (2) a observação de uma conduta como se o agente
SANTOS,A simulação em direito civil, Coimbra, 1921. estivesse a fazer uma declaração sem (a) a própria conduta
(9) Eles precisam mesmo da aparência de um negócio ter sido querida ou (b) a conduta ser querida, mas sem ser
com o propósito de, através dela, poderem enganar o tercei- uma declaração de vontade; e (3) "[ ... ]- como muitos o
ro. Este comportamento é exactamente o contrário daqui- fazem, na verdade - a falta da própria vontade de realizar
lo que se verifica nos casos - regulados pelos arts. 245.° e o acto que constitui a aparência duma declaração". A este
246.° - em que a declaração não produz qualquer efeito. respeito, acrescenta: "é fraco, no entanto, o interesse teóri-
(10) A. FERRERCORREIA,Erro e Interpretação na Teoria do co que oferece o estudo deste caso".
Negócio Jurídico, 2." ed., Coimbra, 1968, p. 42, escreve: "[ ... 1. Com este seu trabalho, cuja I." ed. é de 1939, A. FERRER
é um erro que o declarante [... ] sofre no momento de agir CORREIA antecipou em larga medida as soluções que o Código
(erro r in faciendo), [... ] um erro mecânico, (ou) o erro surge- Civil, de 1966, veio a consagrar. Cfr., a este respeito, as pp.
-nos [... ] sob a forma de uma representação inexacta acer- 305 a 311 do apêndice inserido na 2." ed.
ca do real sentido das expressões conscientemente utiliza- (13) Em sentido diferente, CARLOSFERREIRA DEALMEIDA
das [... ]". O destaque é meu. (n. 10), p. 101, ao afirmar "que existe na simulação um pa-
Ver, também, CARLOSFERREIRA DEALMEIDA,Texto e enun- ralelismo de declarações incompatíveis: declaração ou decla-
ciado na teoria do negócio jurídico, voI. I, Coimbra, 1992, pp. rações externas e declaração ou declarações internas, tam-
102-105, designadamente p. 104. bém chamadas contra-declarações. Estas podem integrar
11. O conceito legal da simulação, seu regi- ração (14), e o seu lado interno, a vontade, não
me e seus efeitos coincidem, mas divergem - entendida esta di-
vergência nos termos amplos que enunciámos.
Tendo presente este enquadramento da simu- 2.° Um acordo entre declarante e declaratá-
lação no contexto das figuras legalmente afins, rio a este respeito. A existência deste acordo (o
podemos analisar o seu regime mais em porme- chamado" acordo simulatório") significa que
nor e, com isso, delimitá-la ainda de outras figu- ambos conhecem a divergência, que é, assim,
ras com que podem surgir semelhanças. intencional.
3.° O intuito de enganar terceiros, que tam-
1. O conceito legal da simulação e suas caracte- bém é intencional, claro.
rísticas específicas Portanto, declarante e declaratário fazem
O conceito de simulação vem definido no art. uma afirmação contrária à verdade ao dizer,
240.°, n.o 1, onde se lê: "se, por acordo entre de- intencionalmente, algo que não querem com o
clarante e declaratário, e no intuito de enganar intuito de enganar. Se abandonamos por um ins-
terceiros, houver divergência entre a ~eclaração tante a terminologia jurídica e vemos como os
negocial e a vontade real do declarante, o negó- dicionários da língua portuguesa definem esta
cio diz-se simulado". atitude, encontramos a palavra "mentira"(15).De
Os pressupostos da simulação são, portanto, facto, no caso da simulação é de uma mentira
os seguintes: que se trata. Assim, o podemos ler também em
1.° Uma divergência entre a declaração nego- manuais jurídicos mais antigos (16).
cial e a vontade real do declarante. Quer dizer,
o lado externo da declaração negocial, a decla- (14) Ou seja, a exteriorização ou manifestação da von-
tade.
('5) Por exemplo: ANTÚNIODE MORAISSILVA,Grande
tão-somente o acordo simulatório que contradiz - e por Dicionário da Língua Portuguesa, lO: ed., Lisboa, pp. 1949
isso anula - as declarações externas ou incluir também um e segs., fala de um "discurso, afirmação contrária à ver-
outro acordo (negócio jurídico dissimulado, que pode ser dade, com a intenção de enganar"; J. ALMEIDA COSTAe A.
válido se, para tanto, se verificarem os requisitos gerais). SAMPAIO E MELo, Dicionário da Língua Portuguesa, 5: ed.,
Aquilo que a lei designa como "vontade real" está conti- Porto, s.d. [1966?], referem-se à mentira como "afirmação
do nas contra-declarações, cujo significado é determinado contrária à verdade, com a intenção de enganar"; a Aca-
segundo as regras gerais de interpretação e onde se revela demia das Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua Portu-
também, directa ou indirectamente, o "intuito de enganar guesa Contemporânea, La ed., Lisboa, 2001, define a mentira
terceiros". Se não houver contra-declaração, não há simu- como "afirmação que não corresponde à verdade ou lhe
lação, há reserva mental em que a "vontade" é irrelevante. é contrária, feita com a intenção de enganar, de induzir
A simulação é um caso de divergência entre declarações em erro"; o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de
em que a vontade não desempenha qualquer· papel". Janeiro, 2002, e Lisboa, 2003, explica-nos a mentira como
Também P. PAISDEVASCONCELOS, Teoria Geral do Direito "afirmação contrária à verdade a fim de induzir a erro (m.
Civil, 2: ed., Coimbra, 2003, p. 519, apresenta uma "cons- grosseira); feito como simulação; como imitação; simula-
trução" diferente, uma concepção monista, ao sustentar do; falso".
que "na simulação existe uma aparência negocial criada (1') JosÉ TAVARES(n. 5), p. 517: "a simulação, diz bem
intencionalmente [... ], sob a qual poderá existir, ou não, o Dr. Beleza dos Santos, é uma das formas que a mentira
um verdadeiro negócio jurídico. É mais correcto dualizar reveste, e, da mesma maneira que a mentira, não se en-
entre aparência e realidade do que entre um negócio si- contra apenas na vida jurídica, mas em todas as formas
mulado e um negócio dissimulado, porque não há dois de actividade da vida social". Na p. 522 ainda escreve:
negócios, nem na simulação relativa. Simular é criar uma "[ ... ] como mentira que é, parece-nos que é sempre um
falsa aparência negocia!. Sob esta aparência não existem acto mais ou menos deshonesto [... ]". Também A. FERRER
dois negócios: na simulação relativa, há um negócio, o ne- CORREIA (n. 10), p. 76, quando se refere ao regime da reser-
gócio dissimulado; na simulação absoluta, não há negócio va mental, fala de uma mentira. Na doutrina moderna, o
algum, apenas uma aparência". facto de estarmos perante uma mentira vem referido, ex-
Sirva como ilustração do que foi dito o ex,em- surpresa dele, é-lhe servido um prato que, no seu
pIo clássico da "venda fantástica" (17). Um de- entender, se chama" costeleta desossada".
vedor, no seu desespero perante a ameaça da Em ambos os casos, a vontade declarada não
falência, vende a um comprador fictício a sua corresponde à vontade real do declarante devido
vivenda para a subtrair aos seus credores. Aqui, a um erro. No primeiro exemplo, há um erro no
o devedor, ao contrário do que declara, não quer significante, ou seja, o declarante incorre num
vender - ele é um alienante simulado - e o com- lapso e diz o que não quer dizer (19); no segundo,
prador, ao contrário do que afirma, também não porém, o declarante diz o que quer dizer, mas
quer comprar - ele é um adquirente simulado-, a sua declaração não tem o significado eO) que
mas ambos estão de acordo no seu propósito em lhe atribui (1) e, por conseguinte, o declarante
enganar (e prejudicar) os credores do vendedor. incorre agora num erro sobre o conteúdo da sua
Temos, neste exemplo, a ostentação (a aparên- declaração (no dizer do povo, há aqui "um falar
cia) de um contrato de compra e venda que, nà e dois entenderes"). Assim, gera-se uma diver-
realIdade, ninguém quer celebrar (18). gência, uma desarmonia, entre a vontade real e
a) A oposição entre simulação e erro na decla- a vontade declarada: o lado interno da declara-
ração ção negocial (a vontade) e o seu lado externo (a
O exemplo da "venda fantástica" ajuda-nos, manifestação) não coincidem, mas divergem (2).
novamente, para mostrar como é diferente, ou, Mas a vontade existe! Como se vê, estas situa-
melhor dizendo, contrastante, a simulação do ções são bem diferentes de uma simulação, onde
erro na declaração. Neste último caso, que ain- toda a vontade falta.
da havemos de estudar em pormenor, trata-se
da situação em que, por virtude de erro, a von-
tade declarada não corresponde à vontade real
do autor. (19) Cfr. A. FERRER
CORREIA(n. 10), p. 42: "[ ... ] é um erro
Suponhamos que alguém quer comprar um que o declarante [... ] sofre no momento de agir, [... ] um
erro mecânico" .
Volvo V50; porém, ao fazer a encomenda, en-
(20) Quanto aos conceitos de "significante" e "significa-
gana-se e diz (ou escreve) que quer comprar do", dr. J. G. HERCULANO DECARVALHO, Teoria da Linguagem,
um Volvo V80. Ou imaginemos que o cliente de vol. I, 6.a ed., Coimbra, 1983, pp. 151-170.
um restaurante pede ao empregado de mesa o (21) Ver, novamente, A. FERRE R CORREIA(n. 10), p. 42:
"(aqui) o erro surge-nos [... ] sob a forma de uma repre-
"entrecosto", que consta da lista; depois, para ~
sentação inexacta acerca do real sentido das expressões
conscientemente utilizadas [... l".
(") Como sabemos, o art. 217.° consagra o princípio da
pressa mente, por 1'. PAIS DE VASCONCELOS (n. 13), pp. 531 liberdade declarativa, de modo que o declarante tem todos
(para a simulação) e 533 (para a reserva mental). os meios à sua disposição para manifestar a sua vontade.
(17) Cfr. GUILHERME ALVESMOREIRA,Instituições do Direito Por conseguinte, é ele quem assume o risco linguístico da
Civil Português, vol. I, Parte Geral, Coimbra, 1907, p. 404; PI- declaração. Se se exprimir mal, o mal é dele.
RESDELIMAe ANTUNESVARELA(n. 8), pp. 348 e 355; MANUEL Por isso, uma declaração negocial que enferma de um
DEANDRADE,Teoria Geral da Relação Juníiica, vol. lI, 4." reim- erro na declaração é, à partida, válida, embora com a pos-
pressão, Coimbra, 1974, p. 174; o exemplo é também refe- sibilidade de vir a ser anulada - caso não haja validação
rido por C. A. DAMOTAPINTO- A. PINTOMONTEmo- PAULO do negócio por o declaratário o aceitar como o declarante
MOTAPINTO(n. 6), p. 467. o queria (art. 248.°) - se estiverem reunidos os respectivos
('8) Voltamos a referir RAÚLGUICHARD(n. 8), p. 105: "o requisitos legais para o efeito (art. 247.°, 2." parte). Este re-
fio do pensamento seguido [... ] conduz mesmo à admissão sultado colide com a chamada teoria clássica sobre o erro-
de que o negócio simulado não chega sequer a concluir-se -obstáculo, defendida nos países latinos (França, Itália),
(mostra-se um "não-negócio" da perspectiva das partes: segundo a qual o erro-obstáculo seria causa de nulidade
uma putativa regulamentação negocial que as partes não absoluta do negócio jurídico. Cfr. A. FERRER CORREIA (n. 10),
querem que vigore)". p.307.
b) A delimitação da simulação de outras figuras mais, que, nestas circunstâncias, nada de comum
afins existe entre a falsa demonstratio e a simulação.
O elemento característico da simulação é, Contudo, a situação altera-se se a falsa de-
portanto, que os declarantes não têm vontade monstra tio é estendida, ainda, aos casos em que
nenhuma, não querem de todo o negócio que de- o declarante se exprime intencionalmente mal.
claram celebrar. Mentem. Podemos pensar que Aeste respeito, vamos lembrar um velho exem-
este elemento é de tal modo distintiv.o que não plo que consta dos livros (28), e que é o seguinte~
surgem problemas de delimitação com outras um médico dispõe no seu testamento que deixa
figuras. Todavia, este não é o caso. o recheio da sua biblioteca ao seu amigo advo-
u) Aqui pode ser lembrada a falsa demons- gado. Sucede, porém, que todas as pessoas das
tratio, o que, à primeira vista, parece deveras relações do testador sabem perfeitamente que
surpreendente. Na verdade, esta figura surge- este, quando falava da sua biblioteca, onde ia
-nos no contexto da interpretação da declaração com frequência, nunca tencionava ler, pois não
negocial (23) nos casos em que o declarante, sem havia livros, mas sim beber um dos seus vinhos.
intenção, se exprime mal no que quer (errar in Por outras palavras, no uso linguístico peculiar
nomine) (24), mas o declaratário, apercebendo- do testador, a "biblioteca" era a sua garrafeira.
-se da vontade real do declarante, acaba por ter Ao fazer a sua disposição testamentária, o tes-
uma vontade concordante (25) com esta, de modo tador diz alguma coisa que não quer? É óbvio
que deixa de haver lugar para um erro na decla- que não. Apenas não se exprime de acordo com
ração (26) (27) ou para um dissenso. Vemos, sem o uso linguístico normal.
Vamos admitir um outro exemplo. Num café,
('3) Regulada nos arts. 236.°, n.o 2; 238.°, n.o 2, (e presenciamos a conversa despreocupada, por
248.°). telemóvel, de um homem mal vestido e barbu-
('4) R. ZIMMERMANN,
Tl1e Law of Obligations, Cape Town do que oferece a outrem a troca de um frasco de
- München, 1993, p. 598.,
cacau por mil folhas, oferta que é aceite (29). O
('5) Assim, com razão, A. MENEZESCORDEIRO,Tratado
de Direito Civil Português - I - Parte Geral, tomo I, 3." ed.,
sentido desta conversa não é inteligível por um
Coimbra, 2005, pp. 763-764. terceiro ou, como diz a lei, por um "declaratário
(26) RAúL GUICHARD (n. 8), p. 104. normal". Sucede que, na realidade, os dois se
('7) Tradicionalmente, a falsa demonstra tio vem referida
entendem muitíssimo bem, pois querem tran-
no contexto da interpretação da declaração negocial e, es-
pecificamente, da sua delimitação do erro na declaração,
saccionar cocaína. Há simulação?
mas nunca quando se trata de uma divergência intencional De algum modo temos uma divergência in-
entre declaração e vontade. Ver, por exemplo, H. TITZE,Die tencional entre a vontade e a declaração e um
Lel1re vom Missverstiindnis, Berlin, 1910, pp. 382 (nota 47),
acordo entre declarante e declaratário; mas o seu
422 e 427; A. VONTUHR,Allgemeiner Teil des Deutscl1en Bür-
gerlicl1en Recl1ts, II 1, München und Leipzig, 1914, pp. 507
e 538; A. FERRE R CORREIA(n. 10), designada mente nas pp.
188 e segs. e 235 e segs.; ENNECCERUS-NIPPERDEY, Allgemeiner Bedeutung der Regel "falsa demonstra tio non nocet" im
Teil des Bürgerlicl1en Recl1ts, 15." ed., Tübingen, 1960, pp. Vertragsrecht", AcP 172, 1972, pp. 297-316; para o autor,
1004, 1032 com a nota 11 (a dizer que, no direito romano, porém, a regra não possui, nem um conteúdo preciso, nem
o conceito só se referia a designações supérfluas), 1037- um valor argumentativo.
-1038, 1249-1250; W. FLUME,Allgemeiner Teil des Bürgerlicl1en ('8) Por exemplo, H. TITZE(n. 27), pp. 105 e segs., nota
Recl1ts, lI, Das Recl1tsgeschiift, 3." ed., Berlin - Heidelberg 1 à p. 106.
- New York, 1979 (há uma 4." ed., de 1992, inalterada), (29) Ao escolher este caso descuidámos da possibilida-
pp. 299 e segs., 331 e segs. e 417 e segs.; LARENZ/WOLF, de (ou da ameaça) anónima de captar o conteúdo de qual-
Allgemeiner Teil des Bürgerlicl1en Recl1ts, 9." ed., München, quer (1)conversa telefónica por meios electrónicos através
2004, pp. 517, 534 e 658; CARLOSFERRElRA
6E ALMEIDA(n. de um IMSI-Catcl1er (lMSI=International Mobile Subscriber
10), pp. 183-201, sobretudo pp. 186-198; J. WIELING,"Die Identitidy).
intuito não é o de enganar terceiros, pelo menos Portanto, o que caracteriza afalsa demonstra-
não no sentido próprio da simulação (30), mas tio é uma "manifestação desviante", um desvio
sim o de lhes esconder o negócio, de os excluir do significado ou do uso linguístico comum (ou
dele. Além disso, e ao contrário do que sucede na· normal ou regular), mas não uma mentira. O de-
simulação, onde a vontade declarada falta, eles clarante não falta à verdade. O que há é, igual-
querem realizar exactamente o preciso negócio mente como acontece no erro na declaração,
de que falam de forma disfarçada: existe uma sobretudo no erro sobre o conteúdo da declara-
vontade real. Por isso, não há simulação. ção, um desvio no que toca ao significado das
Neste exemplo, como noutros casos (pode- palavras empregues. Nessa medida, em termos
mos mencionar ainda o "calão minderico"), objectivos, erro na declaração efalsa demonstratio
estamos perante situações em que declarante e coincidem (33). Mas enquanto no erro o desvio é
declaratário utilizam uma linguagem codificada sempre inconsciente ou não intencional, nafalsa
e, da perspectiva do uso linguístico comum, se demonstratio pode não ser assim.
exprimem, intencionalmente, mal. Todavia, com De qualquer maneira, uma vez que afalsa de-
isso querem concluir o preciso negócio a que se monstra tio diz respeito a uma questão acerca do
referem. Não está em causa a vontade (ou a sua significado das palavras empregues em relação
falta), mas apenas o modo velado da sua formu- a um negócio que o declarante realmente quer,
lação com que o declarante se desvia ou afasta resulta clara a sua pertença à problemática da
do uso linguístico normal (31) (32). interpretação (34) - e a sua afinidade com o erro
na declaração (35) - mas não com a simulação.
Por isso mesmo, já não estamos perante uma
("') Aqui, o intuito nem sequer é direccionado a tercei-'
ros no sentido de lhes criar qualquer aparência em que pu-
falsa demonstra tio quando declarante e declara-
dessem confiar. Pelo contrário: declarante e declaratário tário, intencionalmente, não querem concluir o
não só não querem que os terceiros confiem, como, além preciso negócio X de que falam e que ostentam,
disso, querem que também não saibam.
mas querem celebrar, isso sim, um negócio Y,
Por outras palavras, a comum atitude de simuladores,
direccionada ao terceiro para o enganar (a interacção in-
um negócio dIferente. (36) Aqui, não há nenhum
tencionada entre os simuladores e o terceiro), não é com-
parável com o comportamento de declarantes que procu- (33) É uma questão da "formulação da vontade". Com
ram esconder a sua vontade perante terceiros. estas palavras, MANUEL DEANDRADE (n. 17), p. 234, caracte-
(31) "Para que os sujeitos falantes possam, entre si, co- riza o erro na declaração, contrapondo-o ao erro-vício (o
municar eficazmente é, evidentemente, preciso que mu- erro sobre os motivos), o qual é um erro na "formação da
tuamente se compreendam, sendo para isso indispensá- vontade". Em todos estes casos, nunca estamos perante a
vel que utilizem um mesmo código, um mesmo conjunto vontade de mentir a terceiros.
de significantes e significados por relações, que assim se (34) Dispõe o art. 236.°, lembremos: "a declaração nego-
apresentam como efectivamente necessárias", J. G. HERcu- cial vale [... ] sempre que o declaratário conheça a vontade
LANODECARVALHO (n. 20), p. 178. O que temos aqui é uma real do declarante [... ] de acordo com ela [... ]". E o art.
variação do código (da linguagem comum) de carácter so- 248.° diz: "a anulabilidade fundada em erro na declaração
ciológico (ob. cit., pp. 339 e segs.). não procede, se o declaratário aceitar o negócio como o
(32) Deve dizer-se, todavia, que, quanto a estes casos, declarante o queria".
há quem os não considere abrangidos pelo conceito da (35) Cfr. A. FERRER CORREIA(n. 10), pp. 150 e segs., 155 e
falsa demonstratio. Cfr. J. SEMMELMAYER, JuS-L, 1996, pp. 9, segs. e 235 e segs.: o erro acerca do conteúdo da declaração
10 e 11, que apenas admite a figura em situações de acaso- pode ser afastado durante a fase e por via interpretativa
ou de engano, que são os autênticos casos de uma falsa (pp. 153 e 237), porque afalsa demonstratio 11Onnocet (p. 236).
demonstratio. No mesmo sentido, parece pronunciar-se, (36) Ver W. FLUME (n. 27), p. 301: "[ ... ] wenn die Beteiligtw
também, A. FERRER CORREIA (n. 10), p. 244 com a nota 1, que [... ] bewusst mit der Erkldrung [... ] eine andersartig [o des-
se inclina, no caso de um significado anómalo, comum e taque é meu] gel11einte Regelung verdecken wollen". (Se as
deliberada mente atribuído à declaração pelas duas partes, partes, com a sua declaração, querem encobrir consciente-
pela nulidade da declaração. mente a intenção de haver um acordo de espécie diferwte).
desvio quanto a qualquer significado linguísti- seguir defraudar a lei, os interessados hão-de
ca (37); há" falta da vontade" quanto ao primeiro querer, e querem mesmo, os negócios que decla-
negócio X que ninguém, nem declarante, nem ram celebrar. Por isso, como não existe" falta de
declaratário, quer celebrar. Deste modo, o negó- vontade" nenhuma, os negócios em fraude à lei
cio X é simulado porque, quanto a este, estamos não são simulados (41).
perante uma mentira. y) Como é óbvio, negócios como os que aca-
(3)Sendo assim, a falsa demonstratío é uma bamos de referir pressupõem um alto grau de
figura que não se confunde com a simulação. confiança entre as pessoas envolvidas. Esta si·
Existem, todavia, outras situações em que es- tuação de confiança existe também numa outra
ta confusão parece dar-se. É o que sucede com figura próxima da simulação, que é o chamado
os negócios celebrados contra disposição legal negócio fiduciário ou a alienação em garantia.
de carácter imperativo ou, ainda, em fraude à Neste tipo de negócios, é transmitida a pro-
lei (38). Podemos lembrar, desde já, o exemplo priedade com uma cláusula fiduciária, que limita
da venda disfarçada de cocaína (39), referido há a utilização plena do direito da propriedade (42).
pouco, ou ainda outro exemplo: em certas zo· O caso normal é o de um devedor, o fiduciante,
nas de um determinado país é proibida a com- alienar um bem ao seu credor, o fiduciário, não
pra de imóveis por parte de estrangeiros. Para para lhe proporcionar o gozo pleno do direito
contornar esta proibição, um cidadão estran- da propriedade transmitida, mas tão-só para
geiro empresta uma dada soma de dinheiro a esta lhe servir como garantia (43) (44). A cláusula
um nacional com a idade já bastante avançada, fiduciária estipula uma vinculação do credor
que, por sua vez, lega num testamento o imó- neste sentido. Por conseguinte, o fiduciante
vel que interessa ao estrangeiro. Após a morte confia que o fiduciário não utilize a propriedâ~
- que não se fez esperar muito - do autor do tes- de com todo o seu conteúdo (45), mas apenas no
tamento, o estrangeiro aceita o legado e torna-se sentido limitado da vinculação fiduciária (46).
proprietário do imóvel. Este efeito corresponde
precisamente ao resultado que a lei quer evitar,
(41) No mesmo sentido, MANUELDEANDRADE(n. 17), p.
ficando ela defraudada (40). Todavia, para con- 181: "[oo.] as partes querem na realidade os efeitos jurídi-
cos, embora procedendo com escopo fraudatório"; W. FLU-
ME (n. 27), pp. 406-407.
(37) Não há nenhuma mudança do código linguística, (42) MANUELDEANDRADE (n. 17), p. 175.
como sucede em certos casos da falsa demonstratio, mas há, (43) O fiduciário tem uma posição jurídica cuja ampli-
isso sim, uma mudança quanto ao próprio acta, o negócio tude ultrapassa o necessário para se atingir o fim em vista,
que querem realizar. Quer dizer, trata-se de dois fenóme- MANUELDEANDRADE(n. 17), p. 176. Em relação a terceiros,
nos bem distintos entre si. o fiduciário parece um proprietário normal. Cfr., também,
('8) Previstos no art. 294.° que determina, como regra, a W. FLUME(n. 27), p. 407. Por isso, se o fiduciário alienar a
sua nulidade. Como refere W. FLUME(n. 27), p. 351, na tra- um terceiro, este adquire, mesmo estando de má fé, por
dição jurídico-histórica, estes negócios apresentam uma conhecer a cláusula fiduciária, visto que adquire a um
estreita ligação com o negócio simulado: "tot modis com- verdadeiro proprietário. No mesmo sentido, também, MA-
mittitur simulatio quod modis committitur fraus". NUELDEANDRADE(n. 17), p. 176, nota 2.
(39) Um pouco na esteira de A. FERRER CORREIA(n. 10 e (44) Ver, D. LEITEDECAMPOS,"A alienação em garantia",
n. 32), também podemos dizer que esta venda é nula, de em Estudos em Homenagem ao Banco de Portugal, Lisboa,
acordo com o art. 280.°, n.o 1, por ser contrária à lei e por 1998, pp. 5,11,17 e segs.
ter um objecto indeterminável. Mas o que não há é uma (45) Que, como vem definido no art. 1305.°, consiste no
simulação. gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e dis-
(40) Nestes negócios, consegue-se, por via oblíqua, o posição.
mesmo resultado que a lei quis impedir ou um resulta- (46) A situação é, de certo modo, comparável à do man-
do praticamente idêntico, MANUELDEANDRADE(n. 17), pp. dante que confia que o seu mandatário, depois de ter ad-
180-181. quirido por conta do mandante o direito pleno em nome
Como as partes querem o negócio, ele não é si- a sua conduta não ser propriamente louvável,
mulado (47) (48) (49). também, nestes casos, as partes querem o negócio
ô) Por fim, ainda devemos mencionar os ne- que celebram; este não é simulado (54).
gócios celebrados por um devedor, não em favor
do seu credOl~mas sim em seu prejuízo (50). Na 2. O regime e os efeitos do negócio simulado
verdade, um devedor pode querer alienar bens Com os exemplos referidos, acabamos de ver
por um acto verdadeiro (51), e não ficticiamente que não faltam, na verdade, maneiras dúbias pa-
como acontece na "venda fantástica". Por exem- ra agir sem que isto implique logo uma simula-
plo, o devedor doa ou, estando ele e o seu adqui- ção. E a explicação encontra-se sempre no facto
rente de má fé, vende (por baixo preço) (52) bens de as partes quererem o negócio que declaram
seus e subtrai-os, deste modo, aos credores ao celebrar. É precisamente este querer que não se
criar uma situação de provável insolvência ou verifica na simulação. Já o dissemos: o elemento
mesmo de insolvência, na medida em que esva- característico da simulação é que os declarantes
zia a garantia patrimonial geral (53). Apesar de não têm' vontade, não querem de todo o preciso
negócio que declaram celebrar. Mentem, porque
querem enganar.
próprio, cumpra a sua obrigação a transferi-lo para o man-
a) A simulação inocente e a simulação fraudu-
dante (art. 1181.°, n.O 1). Também aqui temos uma vincula-
ção interna. Até à realização da transferência do direito, o
lenta
mandatário é uma espécie de "proprietário fiduciário" em Mas, assim como há mentiras desculpáveis
relação ao mandante. Quer dizer, a lei conhece e prevê a - e até mentiras piedosas - e que, por vezes, a
aquisição, mas não a transmissão fiduciária.
moral impõe como um dever, assim há tam-
(47) MANUEL ANDRADE (n. 17), p. 176; W. FWME (n. 27),
pp.406-407.
bém casos de simulação em que, de quando em
(4H) O Código Civil não prevê a figura da "proprieda- quando, alguém engana sem ter uma intenção
de fiduciária" como tipo legal. Contudo, como foi dito na nociva (55). Não admira, pois, que o próprio Có-
nota 46, o n.o 1 do art. 1181.° prevê uma propriedade fidu-
digo Civil, de modo semelhante, distingue entre
ciária, dentro da lógica do regime do mandato, baseado na
confiança especial existente entre as partes deste contrato.
simulação inocente e simulação fraudulenta (56).
(49) De acordo com o art. 1306.°, n.o 1, 2: parte, as cláu- A simulação inocente é um fenómeno raro (57)
sulas fiduciárias apenas têm efeitos obrigacionais. Ver D. enquanto a simulação fraudulenta, em que se en-
LEITE DE CAMPOS (n. 44), p. 23. Sobre a propriedade fidu-
gana com o intuito de prejudicar, ocorre com
ciária em pormen01~ ver MARIA JOÃO ROMÃO CARREIRa V AZ •
TOM É e DIOGO LEITE DE CAMPOS, A Propriedade Fiduciária
muita frequência e representa, por via de regra,
(Trust). Estudo para a sua Consagração no Direito Português,
Coimbra, 1999, sendo de realçar a proposta de um arti-
culado para a sua introdução no direito português a pp. (54) Nestas situações, para se defender, os credores dis-
327-334 (que parece perfeitamente viável). põem da chamada "impugnação pauliana" (arts. 610.° a
(5<') Também PIRES DE LIMA e ANTUNES V ARELA(n. 8), pp. 618.°), mesmo que o acto realizado pelo devedor seja nulo
346 e segs., tratam estes negócios conjuntamente com a si- (art. 615.°, n.o 1). Como escrevem PIRES DE LIMA - ANTU-
mulação. NEs V ARELA- HENRIQUE MESQUITA(n. 52), anotação 1 ao art.
(51) Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (n. 8), p. 358 615.°, invocando VAZ SERRA: "o caso mais vulgar de nu-
(e segs.). lidade do acto realizado pelo devedor é o resultante de
(52) O contrato de compra e venda é um negócio one- simulação. Pode [00'] que a prova da simulação
acontecer
roso. Mas isto não significa que as prestações hão-de ter não seja possível ou seja difícil [. 00]' É, por isso, convenien-
valores equivalentes. Em sentido contrário, PIRES DE LIMA te admitir [00'] a acção pauliana contra tais actos [oo.l".
- ANTUNES V ARELA- HENRIQUE MESQUITA, Código Civil Anota- (55) PIRES DE LIMA e ANTUNES V ARELA(n. 8), p. 352, invo-
do, vol. I, 4.' ed., Coimbra, 1987, anotação 1 ao art. 612.°. cando, entre outros, BELEZADOSSANTOS.
(53) Segundo o art. 601. 0, pelo cumprimento das suas (56) Ver art. 242.°, n.o 1, in fine.
obrigações respondem todos os bens do devedor suscep- (57) C. A. DA MaTA PINTO - A. PINTO MONTEIRO - PAULO
tíveis de penhora. MOTA PINTO (n. 6), p. 467.
em conjunto com as múltiplas formas do dolo o regime da nulidade é, para já, o regime
ilícito (da burla), um sinal de corrupção e degrada- geral do art. 286.°, segundo o qual fIa nulidade
ção (ou decomposição) social. Por isso, a simulação é invocável a todo o tempo, por qualquer inte-
é indesejada. ressado e pode ser declarada oficiosamente pelo
b) Os efeitos do negócio simulado tribunal". E, para não deixar dúvidas que se trata
Contudo, não é por causa disso (58), mas já mesmo de qualquer interessado, a lei acrescenta
devido à própria lógica do instituto dã negócio no art. 242.° "a nulidade do negócio simulado
jurídico - cujos efeitos se produzem por causa e pode ser arguida pelos próprios simuladores
em função da vontade (59) - que não se descorti- entre si" (63) (64) e "pode também ser invoca da
na a mais leve razão para atribuir efeitos a um pelos herdeiros legitimários (65) que pretendem
negócio simulado, que é um negócio para não agir [já] em vida r!] do autor da sucessão (66)
valel~puramente fictício, em que faltam vontade contra os negócios por ele simuladamente feitos
e querer de quem o celebrou (60). com o intuito de os prejudicar" (67). Na verdade,
a) Por isso, a sanção da lei, expressa no art. sendo o negócio simulado um acto socialmente
240.°, n.o 2, é clara: "0 negócio simulado é nu- nocivo e condenável, o seu regime legal deixa
lo" (61). A nulidade tanto abrange a simulação bem claro todo o empenho em obter a declara-
inocente como a fraudulenta (62). ção de nulidade (68).

(63) Assim, o n.o 1 do art. 242.°. Antigamente, esta ques-


tão era muito discutida. Ver, por todos, JosÉ TAVARES (n. 5),
(SR) LuIs CABRALDEMONCADA,Lições de Direito Civil, 4." pp. 523 e segs., por um lado, e MANUELDEANDRADE(n. 17),
ed., Coimbra, 1995, pp. 604-605, sustenta - baseado noutra pp. 194 e segs., por outro.
lógica - que a nulidade da simulação resulta de princípios (64) E por quem lhes sucede mortis causa, tomando o
ético-jurídicos: a ordem jurídica não pode reconhecer vali- seu lugar.
dade a actos manifestamente ilícitos. (65) Assim, expressamente o n.o 2 do art. 242.°. Os her-
(59) Trata-se de efeitos volitivo-finais (filial gesetzte deiros legitimários, que - e não só aqui - gozam da protec-
Regeluilg), no dizer de W. FWME (n. 27), p. 24; em sentido ção especial da lei, vêm definidos no art. 2157.°.
contrário, contestando o papel central da vontade, CARLOS (66) Naturalmente, os herdeiros legitimários podem in-
FERREIRA DEALMEIDA(n. 10), pp. 97-119, que propõe uma vocar a simulação, para defender a sua legítima, também
fundamentação alternativa como critério do negócio jurídi- depois da morte do autor da sucessão, ao abrigo do art.
co: a noção de performidade. Deste modo, o negócio jurí- 286. Assim, também C. A. DAMOTAPINTO- A. PINTOMON-
0.

dico é qualificado como um acto performativo (p. 137). TElRO- PAULOMaTA PINTO(n. 6), p. 478 com a nota 624.
(60) JosÉ TAvAREs(n. 5), pp. 522 e 523. Em vida, o autor da sucessão é pleno senhor dos seus
(61) RAúLGUICHARD
(n. 8), p. 105, escreve: "a cominação direitos e, por isso mesmo, nenhum sucessível possui mais
da [... ] nulidade [... ] repousa, portanto, [... ] numa ficção. do que uma mera expectativa de vir a ser herdeiro. O au-
[ ...]" . tor pode gastar tudo por negócios verdadeiros (por exem-
(62) Na reserva mental, a situação é, no fundo, a mesma. plo, faz viagens de luxo (correndo o risco que qualquer
A declaração é nula sempre que o declaratário sabe que o parente sucessível resolva promover a sua inabilitação)).
declarante não quer o declarado; mas estando o declara- Só quando se trata de herdeiros legitimários, a lei, num
tário enganado, a lei considera a declaração válida - uma gesto de defesa antecipada, resolve protegê-los nas suas
solução não fácil de justificar. J. WIELING(n. 27) expectativas, mas unicamente contra os negócios simula-
encontra uma explicação na evolução histórica. O regi- dame11te feitos pelo autor da sucessão com o intuito de os
me da reserva mental tem a sua origem no direito canóni- prejudicar.
coo Este condenou a reserva enquanto mentira tanto moral (67) O regime do art. 242.°, n.o 2, parece-nos estar na
como juridicamente: ninguém pode auto-acusar-se de ter mesma linha de pensamento que inspira o art. 877.°, que,
mentido; trata-se de uma punição de um comportamento baseado na suspeita da simulação, proíbe a venda a filhos
doloso; a invocação da reserva mental contraria a boa fé. e netos, de acordo com uma longa tradição jurídica por-
Segundo A. FERRER CORRREIA (n. 10), pp. 79 e segs., uma tuguesa.
reserva mental pode ser justificada devido à coacção mo- (68) Também, por isso, o art. 605.°, n.o 1, confere aos
ral a que o declarante foi submetido. credores a legitimidade para invocar a nulidade dos actos
~) Só há uma limitação: se, por um lado, a lei rência criada (l2) pela "venda fantástica" de que
sublinha que os próprios simuladores poderr: o comprador fictício é o proprietário da casa, a
arguir a simulação entre si, proíbe-lhes, por ou- situação altera-se. Pois é precisamente para este
tro, o recurso à prova testemunhal e exclui, com caso que a lei determina, no n.o 1 do art. 243.°,
isso, simultaneamente a admissão das presun- "a nulidade proveniente da simulação não po-
ções judiciais (69). Os restantes meios de prova, de ser arguida pelo simulador contra terceiro de
designadamente confissão e prova documental, boa fé" e define, logo no n. ° 2, a boa fé como" a
são permitidos (lO). ignorância da simulação ao tempo em que foram
y) Contudo, a simulação cometida pode afec- constituídos os respectivos direitos". Embora
tar terceiros adquirentes. Suponhamos que, no normalmente tal não deva acontecer, a ignorân-
exemplo da "venda fantástica", o comprador fic- cia da simulação até pode ser culposa (!), isto é,
tício resolve doar, por acto verdadeiro, a casa a pode ser o resultado de desleixo ou de incúria,
um terceiro. Atendendo ao facto de a "venda fan- na medida em que o adquirente não precisa de
tástÍca" ser nula, por ser simulada, o comprador ter procedido de acordo com os cuidados e a
fictício não passa de um adquirente simulado e, diligênçia que são indicados no tráfico jurídico
quando doa a casa, pratica uma doação de coisa negocial (l3).
alheia, igualmente nula (lI). Assim, o adquirente Deste modo, o art. 243.°, n.o 1, afasta o art.
simulado não pode transmitir a propriedade e 286.° e cria um regime especial, atípico, da nuli-
o terceiro não a pode adquirir, de acordo com a dade (l4), ao retirar aos simuladores, e unicamen-
célebre regra "nemo plus iuris [... ]".
Agora, o alienante simulado da "venda fan-
(72) Cfr. RAÚLGUICHARD(n. 8), p. 105, que sustenta: "e
tástica", o devedor, agastado com esta "infi-
o "problema" do negócio simulado põe-se, afinal, apenas
delidade" do seu comprador fictício, invoca a do ponto de vista da necessidade de protecção de tercei-
nulidade da aquisição do terceiro, com base no ros (cfr. art. 243.°) que hajam confiado na aparência criada
regime geral do art. 286.°. Em princípio, não há [... ]". Ver, também, C. A. DAMOTAPINTO-A. PINTOMONTEI-
RO- PAULOMOTAPINTO(n. 6), p. 468, que escrevem: "só os
problema nenhum. O art. 286.° aplica-se, natu-
interesses de terceiros de boa fé que tenham confiado na
ralmente: a aquisição é nula e a nulidade pode validade do negócio simulado exigem ponderação [... ]".
ser invocada por qualquer interessado. Terceiro, neste contexto, é, como decidiu bem o Supremo
Todavia, quando o terceiro, no momento da Tribunal de Justiça, BMJ 498, Julho/2000, p. 206, aquele
que não interveio no acordo simulatário, nem representa
conclusão do seu contrato, haja confiado na apa-
por sucessão quem aí participou.
(73) Que dizel~ ele pode ter actuado o/me die im Verkehr
elforderliche Sorgfalt. Em sentido semelhante, cfr. C. A. DA
MOTAPINTO-A. PINTOMONTEIRO-PAULOMOTAPINTO(n. 6),
p. 484; ORLANDODECARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil.
praticados pelo devedor (... ), muito embora esta legitimi- Sumários desenvolvidos do Curso Jur(dico de 1980/81, COim-
dade já resulte do art. 286.°. bra, 1981, p. 67: "boa fé é o desconhecimento efectivo da
(69) Arts. 394.°, n.o 2, e 351.°. Trata-se, pois, de uma li- simulação, com e sem culpa"; L. CARVALHO FERNANDES, Teo-
mitação de natureza processual. ria Geral do Direito Civil, 3." ed., Lisboa, 2001, p. 302; Idem,
C") Entre os simuladores, a situação criada afigura-~e, Estudos sobre a simulação, pp. 107 e segs. Em sentido contrá-
assim, como bastante precária: não se produzem - e nem rio, A. MENEZESCORDEIRO (n. 25), p. 847. Muito interessan-
se podem produzir - quaisquer efeitos negociais, que, de tes, neste contexto, em termos gerais, são as considerações
resto, eles também nunca quiseram. Como explica RAÚL de RAÚLGUICHARD,Da Relevância Jur(dica do Conhecimento
GUICHARD(n. 8), p. 138, os simuladores, enquanto possui- no Direito Civil, Porto, 1996, pp. 30 a 33, 50-51 a 53 e 79.
dores precários, nem podem adquirir por usucapião. No (74) Como diz o art. 285.°, as disposições gerais sobre
mesmo sentido, C. A. DAMOTAPINTO- A. PINTOMONTEIRO nulidade e anulabilidade apenas são aplicáveis "na falta
- PAULOMOTAPINTO(n. 6), p. 469. de um regime especial". E o art. 243.°, n.o 1, faz precisa-
e l) Art. 956.°, n.o 1, 1.' parte.
mente isto: consagra um regime especial.
te a estes, a legitimidade para invocar a nulida- a natureza do bem ou do direito adquirido (78)
de, proveniente da simulação, contra o terceiro - a arguição da nulidade proveniente da simu-
adquirente de boa fé, sendo esta boa fé - na lar- lação (79) e, com ela, a destruição das aparências
gueza em que é admitida - também atípica. que eles mesmos, simulada e deliberadamente,
Na verdade, sendo obrigada a escplher, a criaram com o intuito de enganar. De resto, isto
lei prefere a protecção da boa fé do adquirente é, à parte esta excepção definida pelo art. 243.°,
(mesmo tendo havido incúria) à declaração de
nulidade (pela conduta condenável dos simula-
dores) (75). Isto significa que, nas estritas relações
visto no art. 291.°, n.o 2, subsequentes à sua celebração; a
entre o terceiro de boa fé e os simuladores, a lei penalização do lesado que não cumpriu o seu "ónus" de
penaliza estes (76) (77), ao não lhes permitir, em ca- ser cuidadoso (ver, a este respeito, JosÉ CARLOS BRANDÃO
so algum - seja qual for o título de aquisição ou PROENÇA, A conduta do lesado como pressuposto e critério de
imputação do dano extracontratual, Coimbra, 1997, pp. 95 e
segs.); a punição do menor que agiu com dolo, prevista
(75) Cfr. C. A. DAMaTAPINTO- A. PINTOMONTE
IRa- PAU- no art. 126.°; a penalização de quem casou não obstante
LOMaTAPINTO(n. 6), p. 481: ''[. .. ) a protecçãQ dos terceiros a existência de um impedimento impediente, de acordo
é altamente facilitada [... ]". No mesmo sentido, PIRESDE com os arts. 1649.° e 1650.°; a sanção aplicada ao cônjuge
LIMAe ANTUNES V ARELA e HENRIQUE MESQUITA (n. 52), ano- culpado do divórcio (ou da separação judicial de pessoas
tações 1 a 3 ao art. 243.°, que referem que a noção ampla e bens) pelo art. 1791.°, na lógica do "divórcio-sanção",
da boa fé se explica pelo confronto da posição do terceiro ete. Numa acepção lata, ainda podem ser referidos, neste
com a conduta sempre condenável e reprovável dos simu- contexto, certos aspectos dos regimes da prescrição e da
ladores. caducidade.
(76) Com esta solução, a lei recorre a um "método indi- (78) Assim, também, ORLANDO DECARVALHO (n. 73), p.
recto" em ordem a prevenir e / ou a penalizar os simulado- 70. Por isso, o direito em causa pode ser um direito de pre-
res. O recurso a este método é frequente, nomeadamente ferência. Neste sentido, se entendemos bem, AGOSTINHO
através da figura "cintilante" da inoponibilidade. Mas, CARDOSO GUEDES, O Exercício do Direito de Preferência, Por-
às vezes, ele é também utilizado em situações delicadas to, 2006, pp. 354-368, designada mente pp. 362-366, onde
para evitar uma solução directa ou frontal, ao procurar a não encontramos nenhuma referência de que a nulidade
obtenção do resultado desejado de modo não claramente do negócio simulado inviabiliza o exercício do direito de
expresso. São exemplos a este respeito a introdução dissi- preferência. (A este respeito, não mantemos a nossa posi-
mulada do casamento civil facultativo, em 1867, pelo Có- ção que um direito de preferência não pode ter como fun-
digo de Seabra ou a quase-abolição silenciosa do divórcio, damento um negócio simulado, e nulo, que sustentámos
a partir da Concordata de 1940, por meio da celebração de na conferência Acerca do fingimento 110S contratos, em "Con-
um casamento católico indissolúvel (o divórcio passou a tratos: Actualidade e Evolução", coordenação de ANTÓNIO
existir só para o casamento civil). Outro exemplo encon- PINTOMONTEIRO, Porto, 1997, pp. 111, 121. A solução bem
tramos no registo predial, por definição não obrigatório, entendida do art. 243.° obriga-nos a reconsiderar). Quanto
que acabou por sê-lo na prática, indirectamente, na me- à própria natureza do direito de preferência, ver AGOSTI-
dida em que não pode prosseguir uma acçãq que não seja NHOCARDOSO GUEDES,
A natureza juridica do direito de prefe-
registada ou não é possível dispor de um bem antes de ter rência, Porto, 1999.
sido registada a sua aquisição. (79) Precisamente devido à finalidade penalizante da lei,
(77) Na verdade, a norma tem um carácter penalizante explica-se e justifica-se que um preferente adquire sempre
para os simuladores. Cfr., neste sentido, Supremo Tribunal pelo preço aparente, simulado (e normalmente mais baixo),
de Justiça, C/, n.O171, ano XII, tomo III, 2004, pp. 78-81. e não pode preferir pelo preço real - ao contrário do que
De resto, efeitos penalizantes não são estranhos à lei sustenta a posição francamente dominante na doutrina
civil. Temos, além do art. 243.°, por exemplo, a punição, e na jurisprudência. É difícil imaginar um desincentivo
com a perda do seu direito contratual, do adquirente ne- maior e mais eficaz contra a simulação do que aquela con-
gligente, que não regista o seu título de aquisição, a favor sequência severa. Se o preferente não pode ou não quer
da protecção de um terceiro adquirente diligente que re- preferir (por exemplo, atendendo a um preço simulado
gista; a penalização, com a perda do direito a favor de um mais elevado), invoca a nulidade segundo o regime geral
terceiro de boa fé, de um interessado que não instaura a do art. 286.°.
acção de anulação ou declaração de nulidade do negócio A lógica subjacente ao art. 243.° (a protecção do ter-
inválido em causa, dentro do prazo dos três anos, pre- ceiro contra os simuladores que não podem arguir a nu-
o regime geral do art. 286.° aplica-se sem restri- ô) Ao mesmo tempo que o art. 243.°, n.o 1,
ções (1) (80), como é natural e como já referimos, afasta a aplicação do art. 286.°,concede ainda - à
ou seja, também o próprio terceiro de boa fé, semelhança do que vem disposto no regime da
em vez de se escudar atrás do art. 243.°, pode venda de coisa alheia (83) - ao terceiro adquirente
perfeitamente invocar a nulidade com base no de boa fé uma posição jurídica protegida contra
art. 286.° (81) (82). os simuladores (84) (85). Ou seja, a lei - que tudo

lidade, mas que já estão expostos à invocação da mesma Disponibilitiit des Rechtsscheins. Struktur und Wirkungen
contra eles próprios pelo e a favor do terceiro, mesmo que des RedlicllkeitsscllUtzes im Privatrecht, K61n, 1993. Mas o
este, em qualquer dos casos, ignore a simulação com cul- prescindir da aparência jurídica pode não ser possível ou,
pa) obedece à finalidade bem clara de dissuadir e pena- sendo-o, pode ser abusivo, como mostra TIZIANA J. CHIUSI,
lizar a simulação. Como é óbvio, esta finalidade - com a "Zur Verzichtbarkeit von Rechtsscheinswirkungen", AcP
protecção correspondente do terceiro - encontra os seus 202, 2002, pp. 494-416.
limit~s nas regras do abuso do direito. (82) Conjugando a situação bastante precária que exis-
Cfr. Supremo Tribunal de Justiça, BMJ 489, Outu: te entre os próprios simuladores (ver nota 70) com as
bro /1999, p. 304: "pretendendo-se exercer o direito de consequências penalizantes que para eles resultam do art.
preferência através do pagamento de um preço que é 1 000 243.°, podemos dizer que não se encontram numa posição
vezes inferior ao valor real do prédio, à data da escritura particularmente confortável ou aliciante.
de compra e venda, verifica-se abuso do direito, por mani- (83) O regime é regulado nos arts. 892.° a 904.° e vê a
festa violação dos limites impostos pelos bons costumes, sua aplicação estendida, por força do art. 939.°, a outros
pela boa fé e pelo fim económico e social do direito". (No contratos onerosos. Para os negócios gratuitos existe uma
meu entender, estamos perante um exemplo, difícil de su- disposição correspondente no art. 956.°, n.O 1. Em relação
peral~ de degradação moral e social pura e simplesmente a todos estes preceitos, porém, o art. 243.°, n.o 1, é lex spe-
inaceitável, uma ofensa claríssima aos bons costumes). cialis.
Penso que há sempre um abuso do direito quando a (84) E unicamente contra estes. Estamos perante uma
relação entre o preço simulado e aparente - pelo qual se pre- oponibilidade relativa (um direito relativo atribuído por
tende preferir - e o preço dissimulado e oculto - que corres- lei, que apenas opera inter partes (efeitos in personam), mas
ponde à realidade - apresenta um desequillvrio semelhante nunca o direito da propriedade). É claro que o terceiro não
ao previsto no art. 282.°, em que "alguém, explorando a pode adquirir a propriedade, de acordo com a regra "nemo
situação [... ] de outrem, obtiver deste [... ] a promessa ou a plus iuris [... ]", uma vez que o adquirente simulado não
concessão de benefícios excessivos ou injustificados". pode transmitir propriedade nenhuma. Outra seria a solu-
Se, ao combater a simulação através da penalização ção se o negócio simulado, e nulo, seria considerado pela
dos simuladores, a lei tem intenções nitidamente morali- lei, em relação a terceiros, como válido. ORLANDO DECARVA-
zadoras, isto significa que a protecção do terceiro há-de LHO"(no73), pp. 66-67, sustenta que a protecção do terceiro
corresponder a esta intenção e não pode resultar num abu- pelo art. 243.° tem efeitos erga omnes. E no seu Direito das
so do direito ou numa ofensa aos bons costumes. Não se Coisas, Coimbra, 1977, p. 275, n. 76, afirma "[ ... ] temos os
pode combater o diabo com o belzebu. arts. 243.° e 291.° do Código Civil, que, verificadas que se-
("') Esta opinião não é unânime. No mesmo sentid~ jam as condições que postulam, atribuem, decerto, o jus
que nós, PIRESDELIMAe ANTUNES VARELA e HENRIQUE MES- in re ao adquirente [... ]". Todavia, no que respeita ao art.
QUITA (n. 52), anotações 1 a 3 ao art. 243.°; em sentido con- 243.°, as posições de ORLANDO CARVALHO não têm funda-
trário, por exemplo, C. A. DAMaTAPINTO- A. PINTOMON- mento, nem no texto, nem no espírito da lei.
TElRO- PAULOMOTAPINTO(n. 6), pp. 482-483, e ORLANDO DE (85) A partir do direito relativo, adquirido com base no
CARVALHO (n. 73), pp. 68-69. art. 243.°, n.o 1, o terceiro ainda pode vir a ser protegido,
(81) Na verdade, a presunção da ignorância de terceiros nos termos do art. 291.°, e, então, com efeitos erga omnes
(aqui da simulação) pode ser afastada por eles próprios, (efeitos in rem) como proprietário, desde que se verifiquem
se for da sua conveniência. Os factos inoponíveis não po- os severos pressupostos deste artigo. A questão não carece
dem ser invocados contra terceiros, mas podê-lo-ão ser ser aprofundada aqui. Apenas se adianta que o critério da
por estes a seu favor. Neste sentido, CARLOSFERREIRA DE boa fé utilizado no art. 291.°, n.o 3, o desconhecimento sem
ALMEIDA, Publicidade e Teoria dos Registos, Coimbra, 1966, culpa pelo terceiro do vício do negócio inválido preceden-
pp. 268-269, 274. Encontramos aqui um exemplo da dis- te (aqui, a simulação), exige que o terceiro adquirente pau-
ponibilidade da aparência jurídica por parte de quem dela te a sua conduta de acordo com os cuidados e a diligência
beneficia. A respeito da problemática, dr. H. ALTMEPPEN, indicados no tráfico jurídico negocial (mil der im Verkehr
pode (86) - atribui desta forma efeitos limitados a 2. A protecção do negócio dissimulado dos efeitos
um negócio nulo (sendo certo que este, por si só, do negócio simulado
nunca produziria quaisquer efeitos). O Código Civil não ignora estas situações
E) Se fizermos, por um instante, uma pe- e regula-as no art. 241.°, que diz no seu n.O 1:
quena pausa e olharmos para o que dissemos, "quando sob o negócio simulado exista um ou-
até agora, em relação ao negócio simulado (87), tro que as partes quiseram realizar, é aplicável
penso que a percepção com que ficamos é a de a este o regime que lhe corresponderia se fosse
um regime legal coerente, bem delineado e até concluído sem dissimulação, não sendo a sua
bastante simples: o negócio simulado é sempre validade prejudicada pela nulidade do negócio
nulo; a lei está empenhada em que a nulidade simulado". Desta forma, distinguimos entre o
venha a ser declarada (atendendo à nocividade negócio fingido, simulado, e o outro realmente
social da simulação); o negócio simulado está pretendido, o dissimulado. É este outro negócio,
- unicamei1te com a excepção do art. 243.° - su- diferente do simulado, que a lei quer salvaguar-
jeito ao regime geral da nulidade; esta excepção dar e manter e, para já, pô-lo ao abrigo da simu-
respeita ao caso específico em quê a necessida- lação e da sua nulidade.
de da protecção do terceiro de boa fé prevalece
sobre o imperativo da declaração de nulidade 3. A autonomia jurídica do negócio dissimulado
do negócio simulado. Antigamente, o anátema lançado sobre o
negócio simulado, considerado moralmente
inaceitável, era de tal maneira forte que houve
lU. A simulação relativa e suas modalida- dúvidas se a sua nulidade não arrastaria tam-
des bém o negócio dissimulado. Era precisamente
para evitar este resultado que já a doutrina an-
1. O enunciado geral tiga (88), como hoje o art. 241.°, n.o 1, estabeleceu
Na vida real, acontece com muitíssima fre- que a validade do negócio dissimulado não fica
quência que as partes não se contentam em si- prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
mular um negócio que não querem, mas apro- Assim, o negócio dissimulado fica preservado,
veitam para, à socapa deste, concluir um outro, aplicando-se-Ihe o seu regime próprio, como se
diferente, que querem celebrar de verdade, mas tivesse sido celebrado abertamente, de modo in-
sem que isto se saiba. disfarçado e sem dissimulação, sendo certo que
a sua validade, ou não, depende precisamente
do regime que a ele próprio respeita.
Portanto, não há confusão alguma: o art.
241.°, n.O 1, separa bem as águas. O negócio
eljorderlichell Sorgfalt). O relacionamento entre o art. 243.° simulado tem o seu destino traçado: sempre a
e o art. 291.° ainda é controverso. Cfr., por todos, C. A. DA nulidade - pese embora o único caso excepcio-
MOTAPINTO- A. PINTOMONTEIRO - PAULOMOTAPINTO(n. 6),
nal da protecção do terceiro de boa fé (89). O ne-
pp. 479 e segs., e, por último, Supremo Tribunal de Justiça,
Cl, n.o 171, ano XII, tomo III, 2004, pp. 78-81, que, neste
aspecto, decidiu muito bem. (88) Quer dizer, desde os tempos do direito romano.
(86) Cfr. MANUELDEANDRADE (n. 17), p. 416. Cfr. LuIs CABRALDEMONCADA(n. 58), p. 605, que refere o
(87) Do seu enquadramento sistemático entre as figuras brocardo "plus valet quod agitur quam quod simulate collci-
com "falta da vontade" (e da descrição sucinta dos traços pitur".
estruturantes destas) bem como da sua delimitação de (89) Também C. A. DAMOTAPINTO- A. PINTOMONTEmo
outras figuras próximas e das características específicas e - PAULOMOTAPINTO(n. 6), p. 479, realçam que se trata de
efeitos destas. uma solução excepcional do nosso direito.
gócio dissimulado, por sua vez, sendo salvo da sabe que, se tivesse uma amante, não o podia
simulação, é tratado de forma autónoma (90) e fazer, porque há uma indisponibilidade relativa
tem o destino jurídico que o regime do seu tipo a favor da pessoa com quem o doador casado
negociallhe reserva (91). cometeu adultério (92). No caso concreto, tem
dúvidas. Para evitar riscos, resolve adoptar um
4. As modalidades da simulação relativa; enun- estratagema defensivo. Primeiro entrega, com
ciado geral as explicações necessárias, a estatueta ao seu
Agora, para concretizar os seus propósitos amigo de caça, Bernardo. Depois, este oferece-
de fingir a celebração de um negócio para, com -a (e entrega-a) ao amante, que sabe, eviden-
esta via, sonegar ou encobrir um outro, diferen- temente, a quem deve a prenda. Na aparência
te, os simuladores têm várias hipóteses: podem exterior, assim criada, António não é o doador;
simular uma parte contratual do negócio - e, na realidade, sim.
então, falamos de uma simulação relativa sub- Não há dúvidas que Bernardo é uma parte
jectiva - ou a natureza do negócio ou, ainda, o interposta ficticiamente, uma parte simulada:
seu valor - e aqui estamos perante simulações António não quer doar a Bernardo, nem este
relativas objectivas sobre o seu conteúdo. quer doar ao amante. Temos duas doações si-
muladas (93) e, por isso, nulas. Mas estas nulida-
5. A simulação relativa subjectiva des, por si só, não afectam a validade da doação
Suponhamos o seguinte exemplo: António, verdadeira, ou seja, a doação de António ao seu
casado, tem um amante ao qual gostaria de amante, um negócio diferente das duas simula-
oferecer uma valiosa estatueta de marfim. Ele ções. A esta doação é agora aplicado o regime
que lhe corresponde. E aqui coloca-se, novamen-
te, o problema se não será, porventura, nula, por
(9") Convém dizer que o negócio dissimulado, ao con- ter sido feita a uma pessoa com que António
trário do que sucede com o negócio simulado (ver a noção
cometeu adultério. Interpretando o conceito de
do n.O 1 do art. 240.°), não constitui nenhum tipo legal ou
uma categoria negocial autónoma; não há um tipo legal
"negócio dissimulado"; a este aplicam-se, naturalmente,
as regras do respectivo negócio jurídico, celebrado dissi- (92) Cfr. os arts. 953.° e 2196.°, n.o 1. É seguro que o legis-
muladamente, conforme estão previstas na lei (ver o n.o 1 lador, ao estabelecer, na altura, o regime em causa, pensou
do art. 241.°). nas infidelidades "tradicionais", cometidas com pessoas
(91) Escreve LuIs CABRA
L DEMONCADA(n. 58), pp. 605- de sexo diferente, mais concretamente, as infidelidades
-606, invocando BELEZADOSSANTOS:"a sua validade ou cometidas pelo marido. Neste sentido, PIRESDELIMAe AN-
nulidade (do negócio dissimulado) vão depender de ou- TUNESVARELA,Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra, 1998,
tras razões illdepelldentes do facto da simulação. [... ] Posto de anotações ao art. 2196.°; J. F. RODRIGUES BASTOS,Direito das
lado o acto aparente que o encobre, aparecerá então qual Sucessões, vol. II, Viseu, 1982, p. 153, citando GALVÃOTELLES:
é [... ]. Agora há a distinguir duas declarações, como há a "o que a lei pretende é evitar a imoralidade de à mesma
distinguir dois actos: a declaração do acto simulado [... ] e herança concorrerem a viúva do testador e a sua concu-
a do acto dissimulado [... ] e à qual corresponde uma real bina"; J. DIASFERREIRA, Código Civil Po,.tuguês, vol. IlI, Lis-
vontade [... ], tendo-se tudo passado em segredo entre as boa, 1872, anotações aos arts. 1480.° e 1771.°, pp. 455 a 457.
partes, não há que pôr sequer o problema duma divergên- (93) Mas, como explicam C. A. DAMaTA PINTO- A. PINTO
cia entre vontade e declaração. [... ] O acto será válido, OlJ MONTEIRO - PAULOMaTA PINTO(n. 6), p. 470: "pode igual-
não, consoante os p"illcfpios gerais por que se regula a vali- mente a simulação consistir, não na intervenção de um
dade dos actos jurídicos, sem que tenhamos de tomar po- negócio aparente, mas na supressão de um sujeito real.
sição perante a questão das relações entre a vontade real e Fez-se uma venda de A a B outra de B a C, mas, para pagar
a vontade declarada". Citando BELEZADOSSANTOS(p. 606, apenas uma sisa [hoje: imposto municipal sobre transac-
nota 2), acrescenta ainda que "as partes manifestaram a sua ções onerosas de imóveisl, os três sujeitos concordam em
vOlltade quando, embora ocultamente, entre si estipularam o documentar na escritura pública apenas uma venda de A
acta dissimulado". (O destaque é dos autores citados). aC".
adultério (94) conforme o princípio da igualdade 6. A simulação relativa objectiva
do art. 13.°, n.O2, da Constituição, de um modo Além da simulação relativa subjectiva, ainda
amplo, quer parecer que sim (95). Então, também é preciso explicar a simulação relativa objectiva,
a doação verdadeira é nula. Mas para quem con- que pode, como foi dito, respeitar à natureza do
siderar o conceito com o seu sentido tradicional, negócio ou ao seu valor.
já não há indisponibilidade relativa nenhuma e a) Vamos ver, primeiro, um exemplo quanto
agora a doação é perfeitamente válida (96). à simulação da natureza do negócio. Admitimos
que uma pessoa deve grandes favores a um ami-
go e quer oferecer-lhe como prenda significativa
(94) F. PEREIRA
COELHOe GUILHERME
DEOLIVEIRA
com a
colaboração de RUIMOURARAMOS,Curso de Direito da Fa- um velho Bugatti. Para não ferir os sentimentos
ml1ia, voI. I, 3." ed., Coimbra, 2003, pp. 390-391, escrevem: do seu irmão, a pessoa combina com o amigo
"o dever de fidelidade obriga cada um dos cônjuges [... ] um contrato de compra e venda, sendo certo,
a não cometer adultério, ou seja, a não ter relações sexuais
contudo, que ela nunca quer receber, nem o
consumadas com pessoa do outro sexo que não seja o seu
cônjuge. [... ] Quanto às relações com pessoa do mesmo amigo jamais quer pagar qualquer preço. Cele-
sexo, não costumam ser abrangidas na noção de adultério. bram o contrato para não valer; este não passa de
Mas é óbvio que constituem igualmente viola~ão do dever uma pura ficção com a qual enganam o irmão.
de fidelidade ou, quando assim não se entenda, do dever
O carro é entregue ao amigo, a quem a pessoa
de respeito".
(95) Um outro resultado também não é fácil de aceitar, ainda passa um recibo sobre o preço.
atendendo ao ambiente social em que vivemos. Aqui temos um contrato de compra e venda,
(96) Por outro lado, há situações - que são frequentes naturalmente nulo por ser simulado, a encobrir
e economicamente relevantes - em que a parte de um ne-
uma doação, que é um negócio diferente e que
gócio não é interposta simuladamente. Imaginemos um
empresário, com visão e sucesso, que quer comprar um os simuladores querem celebrar, mas escondem.
quadro valioso num leilão, mas não quer que se saiba ser A esta doação aplicam-se, agora, as normas cor-
ele o comprador (para não despertar a inveja dos outros). respondentes ao seu regime e, segundo estas, ela
Por isso, acorda com um professor de Belas Artes que este
é perfeitamente válida (97).
compra o quadro em seu nome, e com dinheiro do empre-
sário, e que, a seguir à compra, transfere a propriedade b) Resta-nos apresentar um exemplo no que
que adquiriu para este. Assim sucede. O leiloador, não toca à simulação do valor (ou do preço) do ne-
pouco surpreendido com o facto de um professor uni- gócio. Estas simulações são muito frequentes e
versitário dispor de tanto dinheiro, vende-lhe o quadro.
em alguns negócios constituem quase um hábito
Depois, como combinado, o professor transfere a proprie-
dade para o empresário.
(o que, de resto, não as torna menos reprováveis
No exemplo, o professor é uma parte real, não fictí- ou condenáveis, sendo certo, porém, que alguma le-
cia. A doutrina alemã fala do Strohmanngeschdft. Nestes gislação, tanto de direito fiscal (98) (99) como de direito
termos, o professor, como mandatário, é o Strohmann (ho-
mem de palha) e o empresário, como mandante, o Hinter-
11lalllZ (homem oculto). Estamos perante o 'contrato do que, à semelhança da simulação relativa subjectiva, bem
mandato sem representação (arts. 1157.°, 1180.° e 1181.°). se prestam a actuações sinuosas. Por isso, W. FLUME(n.
Sabemos que, por virtude deste mandato, o professor se 27), p. 407, fala de finalidades normalmente desaprovadas
obriga a comprar o quadro ao leiloador, em seu próprio pela ordem jurídica (in der Rege! [. .. ] von derRechtsordnung
nome, mas com o dinheiro do empresário, e que, tendo missbilligte Zwecke).
adquirido o quadro, está obrigado a transferir a proprie- (97) Ver os arts. 874.°, 940.° e 947.°, n.o 2, La parte.
dade para este. Até à transferência da propriedade para (98) Por exemplo, se bens imóveis são alienados pelo
o empresário, o professor, como mandatário (Strohmann - seu preço real, o imposto municipal sobre transacções one-
homem de palha), tem uma vinculação fiduciária em rela- rosas de imóveis (que corresponde à antiga sisa), já por si
ção àquele (Hintennann- homem oculto), sendo assim um só, pode produzir o chamado lock-in effect. Este efeito
"proprietário fiduciário" (ver n. 46). Negócios deste tipo, é, ainda, estimulado pela tributação simultânea das mais
onde a interposição é real, são verdadeiramente queridos. valias (que, justificadamente, é sentida como um confis-
Todavia, não é preciso ter muita imaginação para perceber co). Desta forma, constituem-se entraves ao comércio e o
privado (100), contribui para que tenham verdadeiros Um devedor, necessitando urgentemente
aspectos da legítima defesa (101)).(102) de dinheiro, decide vender o seu Bentley. Para
não despertar qualquer suspeita, o contrato ce-
imóvel acaba por não ser transaccionado, ficando, por re- lebrado com o comprador versa sobre o preço
gra, mal aproveitado e sem gerar rendimentos, facto esse
de mercado. Na realidade, porém, o devedor e
que, por sua vez, se repercute negativamente nas receitas
do imposto sobre os rendimentos. A alternativa, quase ine- o comprador estão de acordo que o preço ver-
vitável, é a venda por um preço inferior simulado (valen- dadeiro, pago de imediato em "dinheiro vivo",
do o princípio "para ladrão, ladrão e meio"). Deste modo, só corresponderá a 2/3 do valor. Aqui, ao contrá-
as normas fiscais produzem efeitos sociais e económicos
rio do que declara, o devedor não quer vender
duvidosos ou mesmo perversos.
(99) E aqui pode ser incluída também a "tributação pelo preço de mercado e o comprador, de mo-
emolumentar", onde, de resto, o legislador reagiu bem do igual, não o quer pagar. Mas ambos estão de
ao corrigir desajustamentos e distorções e ao minorar os acordo em enganar terceiros. Há só a aparência
custos dos actos notariais e registrais através do DL 11. 0

de um contrato de compra e venda pelo preço


194/2003, de 23/8.
(l"') O lock-in ef(ect devido à legislação fiscal, ainda, de mercado.
pode ser reforçado ou complementado por virtude da Neste exemplo, as partes querem celebrar um
subsistência e existência de direitos legais de preferência, contrato, mas diferente daquele que aparente-
que não se justificam e que constituem também um ele-
mente celebraram, por um preço inferior ao do
mento de entrave para a liberdade da economia (podendo
suceder o mesmo, também, com direitos convencionais). mercado. Como não querem que isto se saiba,
Sobre raízes, tipologia e função dos direitos de pre- dissimulam o contrato diferente. Todavia, se
ferência, bem como suas múltiplas fontes legais e a sua analisarmos este contrato à luz das disposições
grande diversidade, cujo número é verdadeiramente im-
do regime da compra e venda (103t não encon-
pressionante, dI'. AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, O Exercfcio
do Direito de Preferência (n. 78), pp. 57-107, 111e segs. tramos um fundamento para a sua invalidade.
(101) A este respeito, pode ler-se em A. MENEZES COR- Este resultado, seguramente, deixa-nos ficar com
DEIRO(n. 25), p. 841, a seguinte observação: "a tradição alguma perplexidade e incómodo (104).
portuguesa, no tocante à simulação [... ] parte [... ] da pura
e simples rebelião, contra o Estado e o Direito, traduzida
pelo acordo simulatório. Por isso, já as Ordenações prescre-
7. Considerações finais sobre a simulação relativa
viam a sanção da nulidade, tomando uma particular cau- Assim, quando olhamos, na retrospectiva,
tela com a fraude aos credores e com a fraude fiscal". para a simulação relativa e suas variedades (105),
Sendo assim, impõe-se uma reflexão por parte do le-
verificamos que nos encontramos perante cons-
gislador: o desrespeito generalizado das leis é um sinal
da sua desadequação à realidade social. Sob este aspeGto
telações pouco recomendáveis, não transparen-
pode ter razão quem não cumprir a lei. E se assim sucedel~ tes (encobertas por mentiras), oblíquas, sinuo-
a situação é grave porque leva a uma erosão das leis (dI'. sas ou tortuosas, que se situam numa zona de
R. WASSERMANN, "Zur Erosion von Gesetzen", NJW, 1999,
penumbra, que pouca ou nenhuma confiança
p. 3172), afecta a autoridade do legislador em termos ge-
inspira.
rais e pode fomentar comportamentos anárquicos. As leis
devem ser economicamente razoáveis e contribuir para a
aquisição e utilização dos bens em condições de criar ren-
dimentos e riqueza e fomentar desta forma - através da
sua tributação - as necessidades do Estado social.
(102) Escreve P. PAISDEVASCONCELOS (n. 13), p. 518: "a
simulação é praticada com muita frequência e sem grande (103) Regulado nos arts. 874. o e segs.
consciência da sua ilicitude". [... ] É "socialmente pouco (104) Na verdade, todo o negócio "cheira mal". Pode-
reprovada a simulação fiscal, principalmente a simulação mos admitir que, quanto à venda real, estamos perante
do preço para evitar ou reduzir a sisa [hoje: imposto mu- um negócio usurário (muito duvidoso) ou um negócio
nicipal sobre transacções onerosas de imóveis] ou a tribu- contra os bons costumes (igualmente duvidoso).
tação de mais valias. [... ] ou para dificultar o exercício do (105) O mesmo vale, em certa medida, também para a
direito de preferência" (p. 521). figura afim da interposição real.
IV. A simulação relativa em negócios sujei- interpretação que ela sofre por parte da doutri-
tos a forma legal na e da jurisprudência. Estas complicações vão
ocupar-nos daqui em diante.
Como é óbvio, os negócios simulados e dissi- u) Como foi explicado, apesar da falta de
mulados não são uma "especialidade" limitada transparência que o caracteriza, o negócio dissi-
aos casos em que - como aconteceu \los nossos mulado não está condenado à partida, mas goza
exemplos - as partes gozam da liberdade decla- do favor iuris do regime legal que lhe correspon-
rativa e de forma (106). Também são praticados de. Em consequência disso, o n.o 2 do art. 241. 0

quando, para a validade de um negócio, é exi- determina, no fundo sem qualquer necessidade:
gida a observância de uma forma legal. "se [... ] o negócio dissimulado for de natureza
formal, só [!] é válido se tiver sido observada a
1. Os efeitos da inobservância da forma legal forma exigi da por lei". Na verdade, não se pode
a) A fal ta de forma do negócio simulado esperar que a lei ainda queira aligeirar os requi-
Neste contexto, tudo é simples no que toca sitos do negócio dissimulado. Pelo contrário, a
ao negócio simulado. Quando a forma legal não lei terá sentido que nunca é demais - mesmo sob
tiver sido observada, ele é - além de simulado pena de ser redundante - sublinhar que ao negó-
- nulo por falta de forma (10?). Por outro lado, cio dissimulado se aplica todo o seu regime que
se o negócio simulado respeitou a forma, tam- lhe respeita, inclusive as regras formais (109).
bém não há problema: ele é nulo por ter sido ~) Sabemos que o Código Civil, ao exigir,
simulado. Logicamente, não produz quaisquer excepcionalmente, a observância de uma forma
efeitos (nada dele se aproveita), a não ser que para a validade de um negócio jurídico, baseia
a lei, de modo expresso, o determinar. Assim o esta sua exigência em razões de ordem pública.
fez, como vimos, apenas no que respeita ao art. Assim, as correspondentes disposições legais
243. o (10S). são normas imperativas e, como tais, subtraídas
b) A falta de forma do negócio dissimulado à vontade e disponibilidade das partes (110). As
Em relação ao negócio dissimulado, as coi-
sas não são tão simples. Complicam-se; não
por causa da lei, bem concebida, mas devido à (109) A solução do art. 241.°, n.O2, é - na sua redundân-
cia - comparável com a do art. 242.°, n.O 1, quando este,
reforçando a legitimidade para invocar a nulidade ao abri-
(106) Ressalvado o regime para a doação de coisas mó- go do regime geral do art. 286.°, para não deixar dúvidas
veis, previsto no art. 947.°, n.o 2: "a doação de coisas mó- para ninguém que a nulidade proveniente da simulação é
veis não depende de formalidade alguma externa, quan- mesmo invocável por qualquer interessado, acrescenta que
do acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo "a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos
acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por próprios simuladores entre si".
escrito". (110) Tudo isto não é preciso aprofundar neste contexto.
(107) Assim o art. 220.0. Também não interessa reflectir aqui sobre as várias acep-
(108) O art. 243.° - ao estabelecer um regime especial da ções (a este respeito, podem ver-se CARLOS FERREIRADEAL-
nulidade - atribui efeitos ao negócio nulo apenas na exacta MEIDA (n. 10), vol. lI, pp. 665-675 e 678-680, e A. MENEZES
medida da necessidade de proteger terceiros adquirentes CORDEIRO (n. 25), pp. 565-580) ou intensidades da forma
que confiaram na aparência criada pelo negócio simulado. (por exemplo, a observância da forma condiciona a pró-
De resto, o regime da nulidade aplica-se sem restrições, pria existência do negócio (como sucede no caso do con-
como sabemos. Cfr., de novo, RAúLGUICHARD (n. 8), p. 105, teúdo formalizado da letra de câmbio ou, de certo modo,
que afirma: "a [própria] cominação da [oo.] nulidade [... ] no caso da presença do funcionário do registo civil quanto
repousa [... ] numa ficção". [oo.] "E o "probh;ma" do ne- ao casamento) ou se a observância da forma legal é in-
gócio simulado põe-se, afinal, ape1las do ponto de vista da dispensável não para a existência do negócio mas para a
necessidade de protecção de terceiros (dr. art. 243.°) que sua validade (quando se exige um documento autêntico),
hajam confiado na aparência criada [... l". etc.). Em geral, pode ver-se, ainda hoje, L. HASEMEYER, Die
suas principais razões justificativas são a devida Assim, concluímos, naturalmente, que o negócio
ponderação e reflexão, a certeza quanto ao ne- dissimulado é nulo por falta de forma (115).
gócio e, sobretudo, a segurança da prova (111) (112). B) A pessoa, que deve grandes favores a um
Logicamente, segundo o art. 221.°, eventuais amigo, já não finge vender-lhe um Bugatti, mas
estipulações verbais acessórias ao documento sim um direito real de habitação periódica que
exigido por lei são nulas, salvo quando a razão possui numa praia privilegiada no Algarve.
determinante da forma lhes não seja aplicável. É feita a escritura pública de um contrato de
c) A nulidade dos negócios dissimulados, sem compra e venda, com a estipulação verbal, ver-
forma legal, segundo a lei dadeira, que a pessoa nunca vai receber, nem o
Dito isto, regressamos aos nossos exemplos amigo jamais pagar qualquer cêntimo. Portan-
das simulações relativas, introduzindo neles to, celebram, por meio de escritura pública, um
uma alteração quanto ao objecto do negócio (113), contrato de compra e venda para não valer; este
que será sempre um imóvel. não passa de uma mera ficção, sendo nulo por
á) Deste modo, António, em vez de oferecer ser simulado. Mas a doação, efectuada na reali-
uma valiosa estatueta de marfim ao seu aman- dade, não transparece, não é perceptível por nin-
te, vai oferecer-lhe um apartamento TI. A doa- guém, a começar pelo irmão enganado, porque
ção do apartamento só é válida se for celebrada está igualmente sujeita à escritura pública e esta,
por escritura pública (114). Daí que António faça, a respeito da doação, não existe. Por isso, con-
por escritura pública, uma doação a Bernardo; cluímos, também neste exemplo, que o negócio
depois este, através de nova escritura, doa ao dissimulado é nulo por falta de forma (116).
amante. De acordo com a aparência exterior, as- y) Por fim, o nosso devedor, em situação
sim criada por duas escrituras públicas, ambas económica difícil, decide vender a sua viven-
nulas por serem simuladas, ninguém diria que da de luxo a um dos seus filhos. Para não criar
António é o doador. Na realidade, é. Mas esta suspeitas, o preço da escritura corresponde ao
realidade, à qual corresponde o negócio dissi- valor do mercado. De facto, o devedor e o seu
mulado, a doação de António ao seu amante, não filho acordam, verbalmente, que o preço real
é visível, não transparece, não consta de nenhu- não é mais do que metade do valor. Os outros
ma escritura para poder ser formalmente válida.

(115) Arts. 241.°, n.o 2, e 220.°.


(116) Cfr. os arts. 947.°, n.O1, 241.°, n.o 2, e 220.°.
gesetzliche F01"m der Rechtsgeschafte, Frankfurt am Main, No mesmo sentido, ainda na vigência do Código de
1971; idem, "Die Bedeutung der Form im Privatrecht", JuS, Seabra, o assento do Supremo Tribunal de Justiça, BMJ 32,
1980, pp. 1 a 9. Setembro/1952, p. 258: "anulados os contratos de compra
(111) Cfr. D. MEDlcus(n. 7), p. 239 (n.o 612), que transcre- e venda de bens imóveis e de cessão onerosa de créditos
ve dos Motive zum BGB: "a observância da forma garan- hipotecários que dissimulam doações, não podem estas
te a prova do negócio jurídico, quanto à sua existência.e ser consideradas válidas".
conteúdo, para todos os tempos". O assento foi precedido de um parecer do Ministério
(112) Em relação a esta, podemos ler no Fausto: "sei mui- Público, BMJ 32, Setembro/1952, p. 134, que se pronun-
to bem o quanto isso auxilia: em possuindo preto sobre o ciou como se transcreve: "I - Na simulação relativa, anula-
branco, podemos ir para a casa satisfeitos". Cfr. J. W. GOE- do o acto simulado, o acta oculto só tem validade se por si
THE,Fausto, tradução de AGOSTINHO D'ORNELLAS, reimpres- tiver existência jurídica, quer sob o ponto de vista intrín-
são da nova edição ao cuidado de PAULOQUINTELA, Coim- seco, quer quanto à forma. II- O instrumento público que
bra, 1958, p. 87 (linhas de verso 1957 a 1959). serviu para a formação do acta simulado não pode tornar
('13) O conceito é entendido no sentido de "objecto do válido o acta oculto".
direito subjectivo privado", ou seja, "objecto mediato da Um outro exemplo de uma simulação sobre a natureza
relação jurídica". do negócio podemos encontrar numa cessação de quotas
('14) Art. 947.°, n.o 1. para dissimular um trespasse.
irmãos aprovam todo o negócio (117). Com esta mente sempre, na simulação do preço. No meu
"jogada", o devedor julga ter resolvido vários entender, porém, e salvo o devido respeito, não
problemas: a vivenda fica na posse de um filho, existe fundamento legal para sustentar a valida-
os credores são enganados e a paz na família de formal dos negócios dissimulados, seja qual
está preservada. for a modalidade da simulação relativa a que se re-
Neste caso, ao contrário do que consta da es- correu. Mas vamos ver primeiro os argumentos
critura pública, o devedor não quer vender e o invocados para o efeito (119).
filho não quer comprar pelo preço de mercado: b) Diz-se que o negócio dissimulado é for-
ambos mentem a respeito do valor do contrato malmente válido quando a forma observada
e estão de acordo em prejudicar os credores. Não pelo negócio simulado, por exemplo a escritura
existe nenhum contrato com o valor que as partes in- pública, é idêntica à forma exigida para o negó-
dicam na escritura. A escritura é fingida e, como cio dissimulado, também a escritura pública.
negócio simulado, é nula. O que o devedor e o Neste caso, o negócio dissimulado aproveita da
seu filho querem, na realidade, é celebrar um forma legal do negócio simulado.
contrato diferente, um negócio por metade do c) Também se sustenta que o negócio dis-
preço, mas já não querem, de modo nenhum, que simulado é formalmente válido quando as ra-
isto transpareça. Por isso, dissimulam o preço zões que justificam a forma legal, utilizada no
verdadeiro. E assim, claro, o contrato realmente
pretendido não convém constar, como não cons.-
ta, de escritura pública alguma. Por isso, concluí- ção feita pelo alienante, realizada por interposta pessoa

mos, novamente, que o negócio dissimulado é r.


[... ], o acto dissimulado é válido [... Ver, também, Su-
premo Tribunal de Justiça, RLJ 129,1996/1997, p. 263: "é
nulo por falta de forma. válida uma doação de bens imóveis dissimulada sob um
contrato de compra e venda simulado, desde que este te-
2. A validade dos negócios dissimulados, segun- nha sido feito por escritura pública. Mas já é nula, por falta
de forma legal, uma doação realizada nos mesmos termos,
do a doutrina
se se houver convencionado que apenas produzirá efeitos
Todavia, por mais estranho que nos possa por morte do doador e não tiverem intervindo na escri-
parecer, estes negócios dissimulados, escondi- tura duas testemunhas instrumentárias (art. 946. n.O 2,
0
,

dos da luz do dia e encobertos, celebrados nas do Cód. Civil e art. 67.°, n.o 1, aI. a), e n.o 3 do Cód. do

circunstâncias referidas, uma vez descobertos, Notariado)", com anotação concordante de M. HENRIQUE
MESQUITA, pp. 271, 301 e segs.
podem ser, de acordo com a doutrina e a juris-
Um resumo relativo às posições doutrinais e às dife-
prudência, formalmente válidos. renciações entre elas, encontramos em P. PAISDEVASCON-
a) Esta validade formal é sustentada, pon- CELOS (n. 13), pp. 521 e segs., e C. A. DAMOTAPINTO- A.
tualmente, no caso da interposição fictícia de PINTOMONTEmo- PAULOMOTAPINTO(n. 6), pp. 473-476;
estes últimos autores sustentam - como nós - a nulidade
pessoas, com alguma frequência, quando há si-
dos negócios dissimulados por falta da forma legal, mas
mulação da natureza do negócio (118) e, pratica- exceptuam desta posição os casos da simulação do preço,
em que consideram o negócio dissimulado válido, porque,
de acordo com art. 883.°, o preço não seria essencial.
(117) Art. 877.°. Ao que parece, a lei não sujeita o con- (1'9) A este respeito são muito elucidativas as extensas
sentimento a forma. Assim, ele pode ser dado tacitamente. considerações feitas por ADRIANO VAZSERRA na sua anota-
Esta solução não contribui para facilitar a prova, em caso ção ao ac. do STJ, RLJ 101,1968-1969, p. 68, às pp. 71-79, e
de litígio. na anotação ao ac. do STJ, RLJ 113,1980-1981, p. 57, citada
(1lR) Cfr. Supremo Tribunal de Justiça, RLJ 113, na nota 118, às pp. 60, 70 e segs. Contudo, as reflexões para
1980/1981, p. 57, com anotação concordante (?) de ADRIANO justificar a validade do negócio dissimulado formal, com o
VAZSERRA,pp. 60 e segs., que decidiu: "encobrindo dois recurso ao art. 241.°, n.o 2, e a aplicação da regra interpre-
contratos, um de compra e venda e outro de doação de tativa da falsa demol1stratio do art. 238.°, n.O 2, não vão ao
bens imóveis, celebrados por escritura pública, uma doa- encontro das soluções do Código Civil.
negócio simulado, por exemplo a ponderação Assim, não se compreende como é lógica e
e reflexão das partes e a prova da transferência legalmente possível aproveitar um negócio nu-
do direito, são as mesmas que determinam a lo, que foi celebrado para não valer e ao qual
exigência da forma para o negócio dissimulado. ninguém - nem as partes, nem a lei (122) - nunca
Então, este aproveita da forma utilizada e é, sob quis atribuir efeitos, para um negócio diferente,
este aspecto, válido. pondo-lhe uma forma em cima (123) sem que ha-
d) Além disso, recorre-se à figura da falsa ja disposição legal expressa (124) que permita tal
demonstra tio, ou seja, atende-se à vontade dos simulacro (125) (126). Por isso, aplicar a forma do
simuladores, apenas existente no negócio dis-
simulado, e conjuga-se esta figura com o apro-
veitamento da forma do negócio simulado, sequência normal, a nulidade por inobservância da forma
argumentando que, desta maneira, melhor é legal, este autor admite que interesses da ordem jurídica
podem reclamar a subsistência do acto jurídico (conceito
respeitada a vontade das partes.
que prefere ao de negócio jurídico), fazendo prevalecer a
e) Nos casos da simulação do preço, invoca-se declaração formal, sem explicar, no entanto, quais seriam
ainda o argumento de, num contrato de compra aqueles interesses (por exemplo, em relação a factos sujei-
e venda, a indicação do preço não ser essencial, tos a registo?).
(122) Para as partes trata-se de um "não-negócio", como
sendo, por isso, o negócio dissimulado perfeita-
vimos. Ora, dentro da lógica, a forma de um "não-negó-
mente válido com a observância da forma legal cio", de um negócio puramente fictício, não pode aprovei-
pelo negócio simulado. tar a um negócio real.
('23) O insólito da argumentação fica patente quando
recorremos ao seguinte exemplo: A vende a B, em simul-
3. O infundado da doutrina que sustenta a vali-
tâneo, dois imóveis; o primeiro, simuladamente, com ob-
dade formal do negócio dissimulado
servância da forma legal, o segundo, por acto verdadeiro,
Como já referi, todos os argumentos invoca- mas sem respeito da forma. Obviamente, não se "salva" o
dos carecem de fundamento legal. segundo negócio ao aproveitar-se da forma do primeiro.
a) A falta de respeito pela sistematização do Có- (124) Por via da consagração de uma excepção clara à
regra da nulidade.
digo Civil e pelo regime da nulidade
('25) Há um procedimento errado na subsunção. Cfr.,
Em primeiro lugar, pode dizer-se que é des- neste contexto, RAúLGUICHARD (n. 8), p. 100, que se refe-
respeitada a própria sistematização do Código re ao estudo de G. HAssoLD,"Rechtsfindung durch Kons-
Civil, no que toca ao regime da simulação. De truktion", AcP 181, 1981, pp. 131 e segs. (no nosso contex-
to, interessam apenas as pp. 139 e segs.).
facto, a lei regula o negócio simulado, quase
(126) Nos trabalhos preparatórios para o art. 241.°, n.o
como num" circuito fechado", quanto aos seus 2, podemos verificar a seguinte evolução: (1) No antepro-
pressupostos, à sua nulidade e aos legitimados jecto, Simulação - Anteprojecto para o novo Código Civil, da
para a invocar, e consagra ainda, como única ex- autoria de RUIDEALARcÃo, BM] n.O84, Março/1959, p. 305,
propôs-se o texto "sendo o negócio dissimulado de natu-
cepção, expressamente ressalvada, a inoponibili-
reza formal, a sua validade supõe [... 1 que as razões do seu
dade da nulidade contra terceiros de boa fé (120). formalismo se mostrem satisfeitas com a observância das
Posto isso, o Código Civil só podia ter tratado formalidades revestidas pelo negócio simulado". (2) Na 1."
os negócios dissimulados como o fez: à parte, ao revisão ministerial, BM] n.o 107, Junho/ 1961, p. 5 (93), este
texto sofreu ligeiras alterações, ficando redigido "se for,
abrigo da simulação, como negócios diferentes,
porém, de natureza formal, o negócio dissimulado só vale
e autonomamente (121). [... ] se as razões justificativas do formalismo se mostrarem
preenchidas com a simples observância das formalidades
('20) Neste sentido, os arts. 240.° (noção de simulação), que revestiu o negócio simulado". (3) Já na 2: revisão mi-
242.° (legitimidade para arguir a simulação) e 243.° (ino- nisterial, Ministério da Justiça, Lisboa, 1964/1966, o texto
ponibilidade da simulação a terceiros de boa fé). desapareceu. (4) O Projecto do Código Civil, Ministério da
(121) Assim já JosÉ TAVARES(n. 5), pp. 527 e 528, na vi- Justiça, Lisboa, 1966, manteve esta decisão. (5) O Código
gência do Código anterior. Apesar de aceitar, como con- Civil, no seu art. 241.°, n.O2, consagrou o texto do Projec-
negócio simulado ao dissimulado é contrário à c) O impróprio do aproveitamento das razões da
lei! Ou, para ser mais drástico, o manto da men- forma
tira não pode servir para cobrir a verdade. Dizer que as razões que justificam a forma
b) O desrespeito da forma legal (e sua manipu- legal, por exemplo, a ponderação e reflexão das
lação) partes e a prova da transferência do direito, po-
Em segundo lugar, não é respeitado o regi- dem ser as mesmas (129) não é um argumento
me do formalismo legal (127). Se a exigência de válido: (1) com toda a certeza, os simuladores
uma determinada forma para a validade de um ponderaram e reflectiram muito mais do que os
negócio jurídico se baseia em razões de ordem não simuladores o teriam feito, sendo certo que
pública e as respectivas disposições legais são as suas preocupações não se prenderam propriamente
imperativas, o aproveitamento da forma do ne- com as razões da forma; (2) a prova da (simples)
gócio simulado para o dissimulado equivale a transferência do direito também não releva na-
uma manipulação ilícita da forma legal pelos da, uma vez que a transferência de um direito é
simuladores (e a um incentivo de recorrer a si- sempre causal (130) (131), de modo que a razão da
mulações) (128). forma abrange, necessariamente, a causa e esta
há-de constar do documento relativo ao negócio
dissimulado (132), o que não se verifica.
to, que corresponde à lei vigente. Ora bem, esta evolução Além disso, é desconsiderada, de todo, a
deixa claro que o legislador não quis a existência de uma razão essencial da forma, ou seja, a certeza do
norma que permitisse o "aproveitamento automático" da negócio e, designadamente, a segurança da sua
forma adoptada pelo negócio simulado, pois conhecendo
o problema e podendo pronunciar-se neste sentido, não o
fez (e seguramente não o fez devido a negligência). tação, perfeitamente concordante, ao ac. do TRC de 11/ lO,
(127) Todavia, a escritura pública, de que consta o negó- RLJ 97,1964/1965, pp. 42 e segs.
cio simulado, não é um documento falso. Ele é verdadeiro (129) Neste sentido, dubitativa e não afirmativamente,
na medida em que reproduz fielmente as declarações ne- MANUEL DEANDRADE, cit., pp. 191 a 193.
gociais, ou seja, as mentiras feitas pelos seus autores. A (130) O direito civil português não admite negócios abs-
respeito do conceito de falsidade, ver F. A. PIRESDELIMA, tractos a respeito de atribuições patrimoniais. Assim, por
em anotação concordante ao ac. do STJ de 12/3/1963, RLJ exemplo, um contrato-promessa com o conteúdo de que o
96,1963/1964, pp. 282 e segs., 285, 286 (e ainda RLJ 102, promitente se obrigaria, inequivocamente, a "(re)transferir
1969/1970, p. 205). a propriedade" seria nulo, por ser legalmente impossível
(128) É "modelar" o ac. do STJ, C/, ano X, 2002, tomo (não existe nenhum tipo legal abstracto correspondente) e
I, p. 77: "provando-se que a doação é simulada [... ) e re- ainda por ter um conteúdo indeterminável (art. 280.°, n.° 1).
velando os factos provados, de forma clara, uma declara- (131) Por isso, a alínea a) do n.o 1 do art. 95.° do CRegP
ção de venda [... ), por respeito à realidade da vida e do em vigor, de 1984, determina: "o extracto da inscrição
processo (e não a uma lógica formal [sic!)), a venda (dissi- deve ainda conter as seguintes menções especiais: a) na de
mulada) [deve) ser considerada válida". Estamos perante aquisição: a causa". (O Código do Registo Predial anterior,
uma pura arbitrariedade: a forma legal é "desgraduada" de 1967, exigia, no seu art. 182.°, n.OI, alínea a), além disso,
para uma mera formalidade, sem relevância. a indicação do valor do prédio).
Antes de decidir, o Supremo Tribunal de Justiça de- Ora bem, se na simulação relativa sobre a natureza do
via ter-se lembrado da lição de F. A. PIRESDELIMA,que, há negócio não é inscrita a causa verdadeira (por exemplo, é
40 anos, escreveu o seguinte: "a figura a que os franceses registada como causa de aquisição uma compra (o negócio
chamam do "bom juiz", sempre pronto, ingenuamente, simulado), quando o negócio verdadeiro é uma doação (o
a inclinar-se para o lado onde julga pender a equidade, negócio dissimulado», o registo não é inexacto (art. 18.°
sem se preocupar com o direito, não é figura que convém, do CRegP), mas será nulo por falsidade (art. 16.°, alínea a),
para que, efectivamente, se faça justiça [... ). É necessário La alternativa, do CRegP). Sendo assim, a doutrina mina
não cair na casuística, nas soluções particulares, domi- a fiabilidade e o valor do registo ao promover nulidades
nadas pelos interesses especiais de cada caso e não pelos do registo!
interesses sociais em jogo, que só a norma abstracta sabe (132) Como reconhece MANUELDEANDRADE (n. 17), p.
definir e proteger". Ver RLf 97,1964/1965, p. 46, em ano- 192, na esteira de BELEZA
DOSSANTOS.
prova (133). De resto, faz-se tábua rasa da norma d) A entorse quanto ao recurso à falsa demons-
imperativa que determina que estipulações ver- tratio
bais acessórias são nulas, sempre que a razão Recorrer à figura da falsa demonstra tio é uma
determinante da forma lhes seja aplicável (1:4). perfeita distorção da lei (135). Afalsa demonstratio
respeita - tal como sucede no erro na declaração
- a um desvio no que toca ao significado das pa-
(133) Cfr. J. WIEUNG(n. 27), pp. 315-316: "deixar valer lavras empregues em relação a um negócio que se
como razão da forma apenas a sua função de prevenção quer celebrar. Bem pelo contrário, na simulação
e reflexão (WarnfUllktion) contradiz perfeitamente a inten-
relativa deparamos com a ficção de um negócio
ção do legislador e da lei".
De resto, as razões justificativas da forma quanto às
que as partes não querem celebrar para dissimular,
reflexões e ponderações de um vendedor são bem diferen- desta maneira, um negócio diferente do fingido e
tes das razões de um doador, como é patente. Daí conclui que querem concluir.
JOÃoDECASTRO MENDES,Direito Civil. Teoria Geral, vol. III,
Trata-se, obviamente, de situações assaz di-
AAFDL, Lisboa, 1979, p. 351: "parece-nos que se o negócio
simulado é venda e o dissimulado doação, ou vice-versa,
versas: na falsa demonstratio, temos um desvio,
negócios dissimulados são nulos". Além disso, a causa um interstício ou uma divergência "dentro" de
não pode ser dissociada da forma. um mesmo negócio (da mesma declaração ne-
(134) Assim, o art. 221. n.o 1. Não ignoramos que nem
0
,
gocial); no caso da simulação relativa, temos a
todas as cláusulas sobre as quais é necessário o acordo
para haver a conclusão de um contrato (art. 232.°) são,
diferença, a divergência, entre dois negócios,
só por causa disso, já abrangi das pela razão da forma a bem distintos entre si, do negócio simulado e
que o contrato, eventualmente, possa estar sujeito. Aliás, do dissimulado, que são tão distintos que um é
o próprio art. 221. admite estipulações verbais acessórias
0
fictício e o outro real.
ao documento que, por não lhes ser aplicável a razão da
forma exigida para o documento, são válidas.
Daí que o Código Civil, lógica e naturalmen-
L. CARVALHO FERNANDES,Estudos (n. 73), p. 38, escreve: te, consagre para cada uma das situações regras
"[ ... ] o negócio dissimulado será válido se para o elemen- diferentes, ou seja, há três regimes autónomos:
to a que respeita a simulação não valerem as razões deter- para a interpretação (inclusive afalsa demonstra-
minantes da forma legal (art. 221. n.o 1)".
0
,

tio), a simulação e a simulação relativa.


Não deixa de ser interessante comparar as redacções
do Código Civil e do BGB a este respeito. No Código Civil Desta maneira, quando, inconsciente ou
temos o art. 241. n. 2 ("[ ... ] o negócio dissimulado [... ] só
0
,
O
conscientemente, há um desvio do significado
é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei"), "dentro" da mesma declaração negocial, estamos
e o art. 221. ("as estipulações verbais acessórias [ ] ao
0

perante uma falsa demonstra tio. E quando, inten-


documento legalmente exigido [... ] são nulas, salvo [ l").
No BGB, temos apenas o §117, n.o 2, que diz: "Wird durch cional e conscientemente, se celebra um negócio
ein Scheingeschilft ein anderes Rechtsgeschiift verdeckt, so findm diferente daquele que se finge celebrar, estamos
die für das verdeckte Rechtsgeschiift geltenden Vorschriften An- perante uma simulação relativa. Portanto, falsa
wendung" (se por meio de um negócio aparente é ocultado
demollstratio e negócio dissimulado representam
um negócio jurídico diferente aplicam-se as disposições
vigentes para o negócio ocultado). realidades diferentes (136).
No caso do §117, n.o 2, ninguém duvida que "as dispo- Assim, o recurso à figura da falsa demonstra-
sições vigentes para o negócio ocultado" incluem também tio para "salvar" o negócio dissimulado não só
a forma, caso a lei a exija. Caso a forma não tenha sido
observada, a consequência decorre do §125, 1.a frase: "Ein
Rechtsgeschiift, welches der durch Gesetz vorgeschriebenen (135) Há, novamente, um procedimento errado na sub-
Form ennangelt, ist niclltig" (um negócio jurídico que cai'ece sunção.
da forma prescrita por lei é nulo). Este resultado corres- ('36) Escreve CARLOS FERREIRA DEALMEIDA, Contratos I, 3:
ponde à opinião totalmente dominante da jurisprudência ed., Coimbra, 2005, p. 90, nota 149: "a "validade" a que se
e doutrina alemãs (dr. L. HÃsEMEYER, Die gesetzliche Form refere o artigo 238.° não é a validade do acto, mas a vali-
(n. 110), pp. 283-285), sendo a nulidade vista como a con- dade do sentido [... ]. Raciocínio semelhante não vale, con-
sequência adequada. tudo, para a "natureza formal" do negócio dissimulado a
não faz sentido, como ainda contradiz a lógica O preço é essencial (141). O que não é neces-
intrínseca da lei (137). Caso contrário, todas as si- sário é que ele seja determinado pelas próprias
mulações relativas seriam falsae demonstrationes, partes, podendo a sua fixação ser entregue a uma
o que é, bem se vê, absurdo, pois, então, o art. terceira entidade (142). Mas esta possibilidade si-
241. estaria a mais por ser supérfluo.
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tua-se num plano diferente e é precisamente a úl-
e) A essencial idade do preço por definição legal tima coisa que os simuladores tencionam fazer.
Finalmente, também não é verdade que a in- /) A nocividade social da doutrina em defesa da
dicação do preço não é essencial. Para já, o preço validade formal do negócio dissimulado
é essencial para distinguir o contrato de compra Ao olhar para as razões que aduzimos, pode-
e venda da doação (138) (139). Depois, sobre o preço mos reafirmar que os argumentos invocados, a
pode incidir um erro na declaração que, sendo o favor da validade formal dos negócios dissimu-
preço um elemento essencial para ô declarante, lados, não têm base legal. Na realidade, acabam
torna a declaração anulável (140). Ora bem, se o por favorecer quem simula e, com isso, observa
preço é um elemento essencial para o declaran- uma conduta social condenável. Este resultado
te, em caso de erro, é o, por maioria de razão, é nocivo, porque, à partida, premeia quem fal-
também para os simuladores que o manipula- ta ao respeito da lei e desconsidera quem se lhe
ram conscientemente. Ou alguém diria que, no mantém fiel, dando assim sinais perfeitamente
nosso exemplo da venda da vivenda de luxo, o errados no que respeita a uma correcta conduta
preço não era essencial? social (143).

4. As consequências da nulidade dos negócios


que se refere o 241.°, n.o 2, porquanto aí está efectivamente
em causa apenas a validade do acto em função da obser-
dissimulados sem forma legal
vância da "forma exigida por lei"". Com a nossa reflexão prestes a terminar, falta
Cfr. W. FLUME(n. 27), p. 406: "quanto à aplicação das apenas resumir as consequências que resultam
regras do formalismo legal, há uma diferença assinalável
da nulidade dos negócios dissimulàdos, em vir-
entre o negócio simulado, ligado a um negócio dissimula-
do, e o caso da falsa demonstratio. No caso da falsa demons-
tude de inobservância da forma legal.
tratio foi observada a forma legal, não obstante a desig- a)Em relação às partes, temos o negócio
nação incorrecta. [oo.] Se, porém, por acordo das partes, o dissimulado, oculto, nulo por falta de forma e
preço é incorrectamente escriturado, o contrato de compra
e venda é nulo".
Também LARENZ/WOLF(n. 27), p. 543, escrevem que a (141) Em sentido contrário, C. A. DA MaTA PINTO- A.
indicação consciente do preço na escritura não pode ser PINTOMONTEIRO- PAULOMOTAPINTO(n. 6), p. 476 com a
corrigi da ou rectificada com o recurso ao instituto da falsa nota 620, louvando-se em duas decisões judiciais e dizen-
de11lonstratio. do que, atendendo ao disposto no art. 883.°, o preço não é
(137) E a lógica da própria língua, uma vez que as figu- essencial (como já referimos na n. 118).
ras da falsa demonstratio e da simulação relativa se situam Todavia, já na vigência do Código de Seabra, MANUEL
em níveis linguísticos diferentes. DEANDRADE tinha as suas dúvidas quanto à bondade do ar-
(138) Assim, também, MANUELDE ANDRADE(n. 17), p. gumento (inicialmente avançado por BELEZADOSSANTOS),
192. De resto, basta comparar as respectivas definições le- mas resignava-se ao reconhecer que não tinham sido in-
gais dos arts. 874.° e 940.°, n.o 1. vocadas razões melhores. Cfr. MANUELDEANDRADE(n. 17),
(139) Um outro exemplo legal, no sentido de o preço pp.193-194.
ser essencial, podemos retirar do art. 127.°, n.o 1, alínea (142) Conforme está previsto no art. 883.°. De qualquer
b), pois para o aplicar temos que decidir, primeiro,
o que é modo, o contrato de compra e venda nunca fica - nem
uma "despesa de pequena importância", decisão essa que pode ficar por definição - sem preço.
só pode ser feita através do valor (preço) da despesa em (143) Com algum cinismo, podemos dizer que, para
causa. completar este resultado, só falta eliminar a distinção, fei-
(140) Embora só nos termos limitados da 2: parte do ta no art. 253.°, n. ° 2, entre o dolo lícito e o dolo ilícito,
art.247.0. abolindo este último.
sem efeitos negociais (144), e o negócio simula- De resto, o regime geral do art. 286.° aplica-se,
do, aparente, nulo por ter sido simulado, tam- naturalmente, de modo que a nulidade pode ser
bém sem quaisquer efeitos negociais. Como os invocada, sem restrições, por qualquer interessa-
simuladores podem, a todo o tempo, arguir a do (por exemplo, um terceiro prejudicado pela
simulação entre si, sendo-lhes só vedado o re- fixação simulada de um preço alto para, deste
curso à prova testemunhal, a situação criada é modo, frustrar o seu direito de preferência).
bastante precária e depende do "pacto de silên- c) Na verdade, constituindo o negócio simu-
cio" entre eles. lado um acto socialmente nocivo e um sinal de
b) Em relação a terceiros, o negócio dissimula- corrupção, a lei só pode ter tido um único ob-
do, não aparente, oculto, nulo por falta de for1l}a, jectivo: obter a declaração de nulidade, repor a
não tem efeitos negociais. Logicamente, a pro- verdade negocial, eliminar procedimentos tor-
tecção de um terceiro pressupõe uma aparência tuosos e contribuir para a limpidez do tráfico
em que possa confiar. O negócio dissimulado, jurídico negocia!. E, como acabamos de ver, as
pórém, nulo por falta de forma, não cria apa- soluções legais concretizam, de uma maneira
rência alguma (145). irrepreensível, este objectivo.
Por isso, restam as aparências do negócio si- Podemos constatar que" o legislador consa-
mulado em relação ao terceiro de boa fé. Aqui, grou as soluções mais acertadas e soube exprimir
o art. 243.°, n.o 1, retira aos simuladores a legiti- o seu pensamento em termos adequados" (146),
midade para invocar a nulidade proveniente da sendo de lamentar que não foi entendido.
simulação contra o terceiro e concede ao terceiro d) Se houvesse maior limpidez no tráfico ju-
adquirente de boa fé uma posição jurídica prote- rídico negocial- maxime: uma redução sensível
gida relativa aos simuladores, nada mais! das simulações de preço motivadas por razões
fiscais (147) - ela poderá contribuir para diminuir
o clima de desconfiança entre a Administração
('44) Todavia, é lhe aplicável o regime dos arts. 292.°
Fiscal e os contribuintes. Esta desconfiança en-
(redução) e 293.° (conversão). E ainda é de acrescentar que
a proibição do recurso à prova testemunhal por parte dos
contra a sua expressão legal, por exemplo, no art.
simuladores e a não admissão das presunções judiciais se 55. do Código do Imposto Municipal sobre as
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estende, também, ao negócio dissimulado (arts. 394.0,.n.o Transacções Onerosas de Imóveis, que confere,
2, e 351.°).
a pessoas colectivas de direito público, o direito
No caso da simulação relativa, ao contrário do que se
verifica na simulação absoluta (cfr. n. 70), já será possível
de preferência na venda pelo preço inexactamen-
a aquisição por usucapião, nos termos dos arts. 1290.° e te indicado ou simulado, quer dizer, o preço do
1296.°, uma vez que terá havido inversão do título da pos- negócio aparente (148).
se (art. 1265.°). Todavia, esta inversão do título não se dá
por efeito do negócio dissimulado, nulo por inobservância
da forma legal, mas por efeito de facto jurídico diferente
e ulterior, ou seja, o possuir como proprietário, facto esse
com que se supera a nulidade por falta de forma e que é, ('46) Assim o texto do art. 9.°, n.o 3.
naturalmente, conhecido da outra parte. Cfr., neste con- (147) Seria ingénuo esperar que as simulações de preço
texto, embora com as devidas cautelas, W. FLUME(n. 27), vão desaparecer. Mas, pelo menos, podem deixar de estar
pp. 270 e segs. "muito divulgadas", como sempre terá acontecido. Cfr., a
('45) Ninguém tem uma legítima expectativa em ser este respeito, A. MENEzES CORDEIRO (n. 25), pp. 841 e 843.
protegido em relação a um negócio que não se conhece, (148) Com esta solução, o Código situa-se, perfeitamen-
porque não produz a mínima aparência em que se pos- te, na esteira da legislação anterior. Mas, atendendo às
sa confiar. Por outro lado, é absurdo pretender utilizar a disparidades financeiras (ou até situações precárias) entre
aparência de um negócio, que as partes deliberadamente as várias pessoas colectivas públicas do País (nomeada-
não quiseram, para um negócio diferente, que as mesmas mente, as câmaras municipais) e ainda às disparidades
partes, também deliberadamente, esconderam. dos recursos humanos à sua disposição, a aplicação do art.
e) Ora bem, a preferência pelo preço aparente, É exactamente o contrário que acontece: o ver-
aqui prevista, coincide por inteiro com a lógica dadeiro sentido útil, a precisa finalidade do n.O
do regime da simulação que subjaz à relação 2 do art. 241.° é outra: a lei tem em vista garantir
"simulador - terceiro de boa fé" e que, com os a estrita observância do formalismo legal e quer im-
efeitos penalizantes quanto ao priJ:neiro, pro- pedir que os negócios dissimulados celebrados sem a
cura por meio do art. 243.° prevenir que haja forma legalmente devida sejam válidos e produzam
simulações. efeitos~ Este é o verdadeiro objectivo da lei e do
seu regime, mas não o de "forjar" validades
5. A possibilidade da validade formal de negócios formais (151).
dissimulados Não obstante isso, pode haver casos em que
Não pode faltar ainda um pequeno reparo: o art. 241.°, n.O2, revela uma utilidade positiva.
diz-se que a não aplicação da figura da falsa de- Como o negócio simulado e o negócio dissimu-
monstratio e o não aproveitamento da forma (ou lado são negócios diferentes, podem também ter
das razões da forma) para o negócio dissimu- sido celebrados sob formas diferentes. Por exem-
lado sujeito à forma legal tiram todo o sentido plo, num contrato de arrendamento, celebrado
útil ao art. 241.°, n.o 2 (149), na medida em que o por escritura pública, é simulado um valor alto
negócio dissimulado nunca pode ser válido, tal da renda, para obter um subsídio mais elevado,
como corresponderia à finalidade do artigo (150). e no negócio dissimulado, feito por escrito parti-
cular, é estipulado o valor verdadeiro e mais bai-
xo. Aqui, o negócio dissimulado é formalmente
55.° pode levar a grandes injustiças relativas e a graves
válido, pois todos os elementos a seu respeito
desigualdades na aplicação das sanções aos simuladores.
Com vista a permitir o exercício do direito de prefe- constam do documento particular.
rência por parte das autarquias locais, os notários devem
remeter às câmaras municipais cópias das escrituras lavra-
das no mês anterior. Este policiamento devia ser dispen-
sável.
('49) Por exemplo: RAúLGUICHARD
(n. 8), pp. 107-108,
escreve: "este entendimento [do aproveitamento da for-
ma] [... ] parece ser o mais razoável e aquele capaz de
conferir um verdadeiro sentido útil [... ] à norma do n. ° 2 Cfr., também, as considerações de C. A. DAMOTAPINTO
do artigo 241.°. E, sobretudo, o único consentâneo com a - A. PINTOMONTElRO - PAULOMOTAPINTO(n. 6), pp. 475-476
solução consagrada no n.O2 do artigo 238.°. [... ] O reparo com a nota 619. Também nos trabalhos preparatórios ini-
[... ] de que tais hipóteses [... ] contemplariam situações ciais, não obstante as hesitações do autor do Anteprojecto,
bem distintas [... ] não possui verdadeira força persuasiva, encontra-se algum apoio para este resultado. Cfr. RUI DE
que dando pela constatação da diferença existente, e tem, ALARCÃO (n. 125), pp. 305, 309 e segs.
porventura, subjacente uma intenção sandonatória ou pu- ('51) Não deixa de ser interessante que afalsa demonstra-
nitiva, quanto aos simuladores, estranha à lógica do nosso tio e o negócio dissimulado têm um tratamento diferente
regime (civil) positivo". (cfr. J. SEMMELMAYER(n. 32), pp. L 11-12). Mas, na verdade,
Ora bem, esta afirmação não é correcta. A lógica da lei há-de ser assim: estamos perante situações perfeitamente
consiste, precisamente, na intenção de penalizar (e de pre- distintas; no caso de falsa demonstratio, as partes actuam
venir) os simuladores, como, aliás, já mostrámos (ver n. 77 com fidelidade à lei, mas no caso da simulação não, agem
e o texto correspondente). em desrespeito da lei e da forma por ela exigi da.
('50) Assim, expressamente, P. PAISDEVASCONCELOS (n. Contudo, pode perguntar-se se a norma do art. 238.°,
13), p. 526, que escreve: "a opção do [... ] artigo 241.°, n.o n. ° 2 - atendendo à falsa publicidade a que dá origem - é
2, é mais favorável à validade formal. Permite' que o negó- uma solução prudente ou favorável para o tráfico jurídico
cio dissimulado beneficie da forma adoptada no negócio imobiliário. Cfr., também, J. WIELlNG (n. 27), pp. 307 e segs.,
simulado [... ]. Este preceito não deve ser interpretado no que chega à conclusão que a aplicação da regra falsa de-
sentido de exigir que a parte oculta do negócio revista a monstratio non nocet a negócios formais produz resultados
forma legalmente exigida". errados.

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