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Legislação CRIMINAL ESPECIAL

MANUAL DE

VOLUME ÚNICO
Renato
Brasileiro
de Lima

2023
11a
edição
revista
atualizada
ampliada

Manuais_Vol Unico_Lima_Leg Criminal Esp Com_11ed_1a prova.indb 3 04/01/2023 09:34:06


ABUSO DE AUTORIDADE
LEI 13.869/2019

1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS ACERCA DA que, in casu, ocorria em apenas 3 (três) anos, con-
ORIGEM DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTO- soante disposto no art. 109, inciso VI, do Código
RIDADE. Penal, com redação dada pela Lei n. 12.234/10.
É ingênuo acreditar que o Congresso Nacio- Não foram estes, porém, os motivos que cer-
nal deliberou pela aprovação de uma nova Lei tamente levaram Deputados e Senadores a aprovar
de Abuso de Autoridade tendo em vista única e a Lei n. 13.869/19 em regime de urgência e com
exclusivamente o interesse da sociedade brasileira votação simbólica, não nominal.1 Inegavelmente, a
em coibir prática tão nefasta e odiosa quanto esta. Lei n. 13.869/19 não foi aprovada pelo Congresso
Não que um novo diploma normativo acerca para atender a essa finalidade, mas sim de modo
da matéria não fosse necessário. Disso não temos a impedir o exercício das funções dos órgãos de
a menor dúvida. Se o ordenamento jurídico con- soberania, bem como legitimar uma verdadeira
fere poderes, também deve impor deveres a todos vingança privada contra aqueles que, de alguma
aqueles que atuam em nome do Poder Público. É forma, se sentirem incomodados pela atuação dos
dizer, se o exercício das prerrogativas conferidas a órgãos de persecução penal, fiscal e administrativa.
todos aqueles que agem em nome do Estado deve Contaminado por centenas de casos de corrup-
atender à satisfação do interesse público, jamais ção e sob constante alvo da Polícia, do Ministério
ultrapassando os limites estabelecidos pela lei, é Público e do Poder Judiciário na operação “Lava
de rigor coibir todo e qualquer exercício abusivo Jato”, o Congresso Nacional deliberou pela aprova-
do poder por esses agentes públicos. ção ‘a toque de caixa’ do novo diploma normativo
Mas esta necessária prevenção e reprovação com a nítida intenção de buscar uma forma de
já não se mostrava mais presente na legislação retaliação a esses agentes públicos, visando ao
pretérita. De fato, dotada de dispositivos vagos e engessamento da atividade-fim de instituições de
abertos, a revogada Lei n. 4.898/65 dispensava aos Estado responsáveis pelo combate à corrupção.
crimes de abuso de autoridade uma sanção penal Prova disso, aliás, e não parece ser mera coinci-
absolutamente incompatível com o desvalor do dência, é que a sessão conjunta do Congresso na
injusto, deixando-a, assim, desprovida de qualquer qual foram derrubados 18 itens dos 33 vetados pelo
poder dissuasório sobre os agentes públicos. Com Presidente da República ocorreu menos de uma
efeito, a pena privativa de liberdade cominada aos semana depois que o Min. Luís Roberto Barroso
crimes de abuso de autoridade pelo antigo diploma havia determinado o cumprimento de mandados
normativo – detenção, por 10 (dez) dias a 6 (seis) de busca e apreensão no Congresso Nacional
meses (art. 6º, §3º, alínea “b”) – já não guardava contra o então líder do governo, Senador F. B. C.
mais compatibilidade com a gravidade de tais É dentro desse contexto, então, que surge a nova
condutas, pois tratava a integralidade desses crimes Lei de Abuso de Autoridade, contaminada por
como infrações de menor potencial ofensivo, logo,
da competência dos Juizados Especiais Criminais, 1. Na tarde do dia 14 de agosto de 2019, foi aprovado um requerimento
de urgência e, nesta mesma data, o Plenário da Câmara dos Deputados
sujeitos, portanto, aos institutos despenalizadores votou a matéria através de procedimento simbólico, sequer possibilitando
previstos na Lei n. 9.099/95. Contribuía, ademais, aos deputados federais a votação nominal do tema ou a apresentação de
emendas ou críticas. O texto foi elaborado em mandato anterior do Con-
para o advento da prescrição da pretensão punitiva, gresso Nacional e não pela maioria dos parlamentares da nova legislatura.
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diversos tipos penais abertos e indeterminados, os estritos ditames legais com receio de eventuais
de duvidosa constitucionalidade, praticamente “incômodos” proporcionados pela perspectiva de
transformando o exercício de qualquer função serem objeto de notitia criminis devido à prática
pública, ainda que de maneira legítima, em uma de supostos crimes de abuso de autoridade, contra
verdadeira atividade de risco. eles oferecidas por investigados, acusados, advoga-
De fato, mesmo antes da entrada em vigor do dos e defensores, a título de represália decorrente
novo diploma normativo, ganharam notoriedade da adoção de determinada medida legal que lhes
no meio jurídico diversas decisões de agentes fosse desfavorável. Ora, o dia a dia de qualquer
públicos abstendo-se de cumprir suas respectivas agente público, seja quando efetua uma prisão
funções “para não correr o risco de incidir em em flagrante (v.g., Policial Militar) ou quando
crime de abuso de autoridade”. Nesse sentido, sob cumpre um mandado de prisão temporária (v.g.,
o argumento de “perigo real de crime de abuso de Delegado de Polícia), seja quando oferece uma
autoridade”, juízes deixaram de realizar penhoras denúncia (Promotor de Justiça) ou quando decreta
online de eventuais contas correntes e aplicações a indisponibilidade de ativos financeiros (Juiz), é
financeiras mantidas pela parte devedora através marcado por uma sujeição corriqueira ao descon-
do sistema BacenJud. Na mesma linha, em casos tentamento dos jurisdicionados, praticamente um
concretos versando sobre tráfico de drogas (Lei n. efeito intrínseco da própria função pública.
11.343/06, art. 33), flagrantes foram relaxados por Enfim, partindo da premissa de que a Lei
autoridades judiciárias sob o argumento de que, n. 13.869/19 não criminaliza nenhuma conduta
pelo menos enquanto não sedimentado pelo STJ legítima por parte de um agente público, mas tão
o rol taxativo de hipóteses em que a prisão deve somente aquelas em que este excede os limites de
ser considerada manifestamente devida, a regra sua competência ou quando pratica um ato com
seria a soltura, ainda que a vítima e a sociedade finalidade diversa daquela que decorre explícita
estivessem em risco, in verbis: “(...) Se o Congresso ou implicitamente da lei, assim agindo com a
Nacional, pelos representantes eleitos, teve por finalidade específica de prejudicar outrem ou be-
desejo impor essa lei aos brasileiros, o fez com o neficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por
amparo democrático, cabendo ao Magistrado, a mero capricho ou satisfação pessoal, não há por
quem não compete ter desejos, limitar-se a aplicá- que se temer a nova Lei de Abuso de Autoridade,
-la e aguardar a definição de seus contornos pelos muito menos permitir que sua entrada em vigor
tribunais superiores. Assim, em que pese entender sirva como obstáculo ao escorreito exercício de
ser o caso de converter a prisão em flagrante em toda e qualquer função pública.
preventiva, diante da imposição da soltura por força
Deve se buscar, portanto, nesse ambiente cri-
da lei aprovada pelo Congresso Nacional, concedo
minal extremamente polarizado em que o Direito
liberdade provisória ao autuado mediante aplicação
Penal e o Processo Penal infelizmente caminham
de medidas cautelares diversas da prisão”.2
nos dias de hoje, equilíbrio e sensatez na interpre-
Com a devida vênia, posturas como estas tação dos diversos dispositivos legais constantes
não se justificam em hipótese alguma. Primeiro, da nova Lei de Abuso de Autoridade, seja para
porque revelam um certo “comodismo” por parte evitar corporativismos na sua exegese, tornando-
do agente público, que se abstém de exercer sua -a absolutamente estéril, seja para não se permitir
função de maneira regular para não ser objeto de que tipos penais abertos e indeterminados sejam
alguma representação criminal. Segundo, porque utilizados como instrumentos de constrangimento
demonstram completo desconhecimento da Lei ilegal contra agentes públicos no exercício regular
n. 13.869/19, que não pune qualquer conduta de suas funções, permitindo, assim, que o revan-
legítima adotada por um agente público. Terceiro chismo do Congresso Nacional consubstanciado
porque demonstram, à primeira vista, que agentes na criação de um instrumento hiperbólico atinja
públicos são figuras frágeis, covardes e medrosas, seu desiderato.
enfim, que têm medo de exercer regularmente suas
funções. Tais atributos, a nosso juízo, não são 2. BEM JURÍDICO TUTELADO.
inerentes à grande maioria dos agentes públicos,
profissionais absolutamente qualificados e idôneos, A eficiência do Estado está diretamente rela-
que certamente jamais deixariam de agir conforme cionada à credibilidade, honestidade e probidade
de seus agentes, pois a atuação do corpo funcional
2. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/wp-content/
reflete-se na coletividade, influenciando decidi-
uploads/2019/09/decisaoo.pdf> Acesso em 27/11/2019. damente na formação ético-moral e política dos
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cidadãos, especialmente no conceito que fazem contrário, a ele não se poderá imputar o delito. É
da organização estatal. Daí a importância de se o que ocorre, por exemplo, com o funcionário
coibir todo e qualquer desvio funcional, enfim, público aposentado, que não pode figurar como
de toda e qualquer conduta que, a pretexto de sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade,
atender ao interesse público, visa à satisfação de vez que, à época do delito, já havia se desvinculado
interesse pessoal do agente público, importando funcionalmente da Administração Pública.
em evidente desvio de finalidade. De todo modo, deve restar caracterizada a cor-
A tutela penal dos crimes previstos na Lei n. relação entre o abuso e as funções desempenhadas
13.869/19 pretende, na realidade, abranger dois pelo agente. Como adverte Renee do Ó Souza, na
aspectos distintos (crime pluriofensivo): em pri- eventualidade de a conduta delituosa ser pratica-da
meiro lugar, visa proteger, a depender do crime em com total desvinculação às funções, “em ato ligado
questão, a liberdade de locomoção (v.g., arts. 9º, 10, essencialmente à vida privada do agente, não há
12, etc.), a liberdade individual (v.g., arts. 13, 15, que se falar em abuso de autoridade”.3 É nesse
18, etc.), o direito à assistência de advogado (v.g., sentido a jurisprudência: “(...) não há falar em
arts. 20, 32, etc.), a intimidade ou a vida privada abuso de poder, se a ação de polícia do réu resulta
(v.g., arts. 22, 28, 38); em segundo, objetiva garan- de atividade como particular desvinculada de
tir o bom funcionamento do Estado, bem como determinação oficial e da função específica”.4
o dever do funcionário público de conduzir-se Portanto, se um policial militar de folga, ao fazer um
com lealdade e probidade, preservando-se, assim, “bico” como segurança privada em um es-
princípios básicos da Administração Pública, como tabelecimento qualquer, constranger uma pessoa
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade detida, mediante violência, a produzir prova contra si
e eficiência (CF, art. 37, caput). mesmo ou contra terceiro, não poderá responder pelo
crime do art. 13, inciso III, da Lei n. 13.869/19,
3. ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DA NOVA LEI DE porquanto o delito não guardará qualquer relação
ABUSO DE AUTORIDADE. com suas funções. Subsistirá, porém, o delito de
O abuso de poder ocorre quando o agente constrangimento ilegal previsto no art. 146 do
público excede os limites de sua competência Código Penal.
(excesso de poder) ou quando pratica um ato com
finalidade diversa daquela que decorre explícita ou 4. TIPO SUBJETIVO DOS CRIMES DE ABUSO DE
implicitamente da lei (desvio de poder). Em ambas AUTORIDADE: ELEMENTO SUBJETIVO GERAL+
as hipóteses, a tipificação do delito está ELEMENTO SUBJETIVO ESPECIAL DO TIPO.
condicionada, como deixa entrever o caput do art. 1º, Não consta da Lei n. 13.869/19 nenhuma infra-ção
ao fato de o agente público praticar a condu-ta em penal culposa. Portanto, eventual inobservância do
questão no exercício de suas funções ou a pretexto dever objetivo de cuidado na atuação funcional pode
de exercê-las. dar ensejo à responsabilização cível e/ou
Para a caracterização dos crimes de abuso de administrativa, punida exclusivamente na seara
autoridade, não se faz necessário que a conduta extrapenal, jamais no âmbito criminal.
seja contemporânea ao exercício efetivo da função. Vez por outra, o legislador introduz em deter-
Subsistirá a infração penal, portanto, ainda que minados tipos penais, ao lado do dolo, uma série de
o agente se encontre licenciado, em férias ou não características subjetivas que os integram ou os
tenha assumido o cargo, mas já tenha sido, por fundamentam. A doutrina clássica denominava,
exemplo, aprovado no concurso público ou nomeado impropriamente, o elemento subjetivo geral do
formalmente para exercer determinada função. É tipo de dolo genérico e o especial fim de agir de
exatamente nesse sentido, aliás, o disposto no art. 1º, dolo específico. A título de ilustração, o fato de o
caput, da Lei n. 13.869/19, que define como cri-mes funcionário público retardar ou deixar de praticar,
de abuso de autoridade aqueles cometidos por agente indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra
público, servidor ou não, que, no exercício de suas disposição expressa de lei, é uma atividade dirigida a
funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder um fim por imperativo do dolo, in casu, do crime de
que lhe tenha sido atribuído. prevaricação previsto no art. 319 do Código
Contudo, embora não se exija efetivo exercício
funcional no momento da conduta, é imperioso 3. Leis Penais Especiais Comentadas artigo por artigo. Coordenadores Rogério
Sanches Cunha, Ronaldo Batista Pinto, Renee do Ó Souza. 2ª ed. Salvador:
que o sujeito ativo goze do status de agente público Editora Juspodivm. p. 271.
no sentido do art. 2º da Lei n. 13.869/19. Caso 4. TACRIM-SP-AC- Rel. Ary Belfort – Jutacrim 65/248.
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Penal. No entanto, seu sentido ético-social será art. 1º, §1º, as condutas ali descritas constituem
completamente distinto, atípico, aliás, se aquela abuso de autoridade quando praticadas pelo agente
atividade não tiver sido praticada com a finalidade com a finalidade específica de prejudicar outrem
de satisfazer interesse ou sentimento pessoal. ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda,
Conquanto esse especial fim de agir amplie por mero capricho ou satisfação pessoal. Como se
sobremaneira o aspecto subjetivo do tipo, não percebe, diversamente do que geralmente ocorre na
integra e nem se confunde com o dolo, visto que redação dos tipos penais, em que esses elementos
este se esgota com a consciência e a vontade de subjetivos específicos constam da redação típica
realizar determinada conduta com a finalidade de cada delito (v.g., estelionato – para si ou para
de obter o resultado delituoso (dolo direto), ou na outrem), o legislador houve por bem inserir, logo
assunção do risco de produzi-lo (dolo eventual). no art. 1º, §1º, da Lei n. 13.869/19, uma norma
O especial fim de agir que integra determinadas penal de extensão que abrange, pelo menos em
definições de delitos, como, por exemplo, o delito de regra, todas as figuras delituosas previstas no
furto (“para si ou para outrem”), constitui, assim, novo diploma normativo. Sua presença (ou não)
elemento subjetivo do tipo de ilícito, de maneira será de todo relevante para diferenciar o agente
autônoma e independente do dolo. Sua ausência que cometeu um erro, ou mesmo uma ilegalidade
acaba por descaracterizar o tipo subjetivo, pouco de boa-fé, é dizer, sem o propósito deliberado de
importando a presença do dolo. A terminologia abusar das prerrogativas que lhe foram atribuídas,
correta, portanto, é elemento subjetivo especial daquele que agiu com a intenção inequívoca de se
do tipo ou elemento subjetivo especial do injusto. exceder no exercício das suas funções para atingir
uma das finalidades ali enumeradas.
Enquanto o dolo deve restar concretizado no
fato típico, os elementos subjetivos especiais do tipo Por conseguinte, para além da comprovação
do dolo em relação a cada crime, isoladamente
apenas têm o condão de especificar o dolo, sem
considerado, como, no exemplo do art. 20, a von-
que haja a necessidade de efetivamente se concreti-
tade e consciência de impedir, sem justa causa, a
zarem, sendo suficiente que existam no psiquismo
entrevista pessoal e reservada do preso com seu
do autor, ou seja, desde que a conduta do agente
advogado, será de rigor, pelo menos em regra, a
tenha sido orientada por essa finalidade específica.
demonstração de que o agente assim agiu com
Assim, se determinada pessoa foi sequestrada e
uma das seguintes – e alternativas – finalidades
o móvel do criminoso era o de obter, para si ou
específicas:
para outrem, qualquer vantagem, como condição
ou preço do resgate, ter-se-á como caracterizado a) prejudicar outrem: vez por outra, a atuação
o crime de extorsão mediante sequestro (CP, art. de um agente público é capaz de causar prejuízos
159), ainda que tal vantagem jamais seja obtida à determinada pessoa. Basta imaginar o cumpri-
pelo agente. Do contrário, é dizer, se ausente esse mento de um mandado de prisão. É patente que
especial fim de agir, o crime será o de sequestro sua execução irá causar prejuízos àquele que foi
ou cárcere privado (CP, art. 148). privado da sua liberdade de locomoção. Mas não
é isso o que o legislador quis dizer ao inserir
Firmadas essas premissas, parece não haver este especial fim de agir no art. 1º, §1º, da Lei
dúvida quanto à presença de um elemento subjetivo n. 13.869/19. Na verdade, esse dolo específico de
específico em relação aos crimes de abuso de au- “prejudicar outrem” deve ser compreendido como
toridade previstos na Lei n. 13.869/19, pelo menos a provocação de um prejuízo que transcenda o
em regra.5 Isso porque, consoante disposto em seu exercício regular das funções do agente público. É
o caso, por exemplo, do Delegado de Polícia que, a
5. Há exceções: a título de exemplo, o tipo penal do art. 29 da nova Lei despeito da absoluta falta de quaisquer indícios da
de Abuso de Autoridade optou por restringir o elemento subjetivo especial
do injusto constante do art. 1º, §1º, da Lei n. 13.869/19. De fato, enquanto prática de crime, determina a instauração de um
este, de aplicação genérica a todos os crimes de abuso de autoridade,
faz referência à “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar
inquérito policial em detrimento de um adversário
a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pes- político, com o nítido propósito de prejudicá-lo às
soal”, o art. 29, em sua parte final, menciona apenas o “fim de prejudicar
interesse do investigado”. Destarte, atento ao princípio da especialidade
vésperas de uma iminente disputa eleitoral;
(lex specialis derogat generali), o ideal é concluir que, em relação ao delito
do art. 29, não se aplica a regra geral do art. 1º, §1º, da Lei n. 13.869/19,
b) beneficiar a si mesmo ou a terceiro: é qual-
estando seu elemento subjetivo especial restrito à finalidade específica de quer vantagem, proveito ou benefício que possa vir
prejudicar interesse do investigado. Logo, na eventualidade de a conduta
ser praticada com a finalidade de beneficiar o investigado, por conta, por
a ser obtido pelo agente público, pouco importando
exemplo, de relação de amizade entre este e o agente público, não há falar
em tipificação do delito sob comento, subsistindo, todavia, a depender do
caso concreto, a figura delituosa de prevaricação (CP, art. 319). Raciocínio arts. 23, caput, 24, caput, 25, parágrafo único, 29, caput, e 37, caput, todos
semelhante é válido para os crimes de abuso de autoridade previstos nos da Lei n. 13.869/19.
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ABUSO DE AUTORIDADE • Lei 13.869/2019

se se trata de interesse de ordem patrimonial ou público exerce suas funções, geralmente experi-
moral. No tocante ao interesse patrimonial do menta alguma satisfação pessoal. É o que ocorre,
agente público, pouco importa, pelo menos para fins por exemplo, quando um Policial Militar prende
de tipificação do crime de abuso de autoridade, se em flagrante uma pessoa que acabara de praticar
houve (ou não) prévio oferecimento ou entrega de um crime qualquer. Certamente o militar irá sentir
vantagem indevida por um particular em troca da uma satisfação pessoal por cumprir seu dever. Mas
ação ou omissão funcional. Assim, se um Desem- não é isso o que a lei quer punir, à evidência. Na
bargador demorar demasiada e injustificadamente verdade, o que o legislador não admite é que a
no exame de processo de que tenha requerido vista consequência do exercício funcional se transforme
em órgão colegiado, com o intuito de procrastinar em causa. É dizer, a satisfação pessoal pode até
seu andamento ou retardar o julgamento, assim emergir como consequência do exercício funcional
agindo com o especial fim de agir de obter, para para a satisfação do interesse público, mas jamais
si, determinada quantia em dinheiro da parte poderá o agente exercer suas funções para buscar,
prejudicada de modo a retomar o curso regular primariamente, sua satisfação pessoal. A propósito,
do feito, deverá responder pelo crime do art. 37 da ainda sob a vigência da revogada Lei n. 4.898/65,
Lei n. 13.869/19. Igual solução deverá ocorrer se a jurisprudência já alertava que “nos abusos de
assim tiver agido, porém depois de já ter recebido autoridade, o elemento subjetivo do injusto deve
determinada quantia da parte contrária para retar- ser apreciado com muita perspicácia, merecendo
dar o andamento do feito, com a ressalva de que, punição somente as condutas daqueles que, não
neste último caso, para além do delito de abuso de visando à defesa social, agem por capricho, vin-
autoridade, também deverá responder pelo crime gança ou maldade, com o consequente propósito
de corrupção passiva (CP, art. 317). Noutro giro, de praticarem perseguições e injustiças. O que se
quanto ao interesse de cunho moral, é importante condena, enfim, é o despotismo, a tirania, a ar-
alertar que nessa situação o agente público também bitrariedade, o abuso, como indica o nomen juris
deve almejar uma vantagem ou proveito. É o que do crime”.6 Destarte, se um Promotor de Justiça
ocorre, por exemplo, se um Promotor de Justiça requisitar a instauração de um inquérito policial,
estender injustificadamente um inquérito policial, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício
procrastinando-o em prejuízo do investigado tão da prática de crime, assim agindo por vingança
somente para ganhar prestígio com o Prefeito da devido à inimizade provocada por uma briga no
cidade, pois seu principal adversário político seria condomínio em que ambos moravam, o agente
justamente o principal suspeito da prática do cri- público deverá responder pelo crime do art. 27,
me. Também haverá abuso de autoridade se um caput, da Lei n. 13.869/19.
Delegado de Polícia, com o objetivo de buscar sua
autopromoção para posteriormente se candidatar a Satisfação pessoal não se confunde com satis-
determinado cargo eletivo, usar a máquina estatal fação do interesse público.7 Essa observação tem
indevidamente, seja exibindo presos à curiosidade elevada importância prática até mesmo para se evitar
pública em suas redes sociais, seja antecipando que diversos agentes públicos, temendo eventual
atribuição de culpa a determinada pessoa em casos responsabilização penal, deixem de cumprir seus
de maior repercussão local, etc.; respectivos deveres de ofício. A título de exemplo,
suponha-se que policiais militares recebam uma
c) por mero capricho ou satisfação pessoal: denúncia anônima apontando a utilização de uma
por capricho se deve compreender a vontade casa para o tráfico de drogas. De imediato, dirigem-
repentina desprovida de qualquer justificativa, -se ao local e, por acreditarem que haveria situação
uma obstinação arbitrária. Por sua vez, a satis-
de flagrante delito no interior do domicílio (v.g., ter
fação pessoal guarda relação com algum tipo de
em depósito), haja vista o grande fluxo de pessoas
sentimento pessoal capaz de provocar certo grau
entrando e saindo do local em atitudes suspeitas,
de contentamento para o agente público, como,
ali ingressam sem prévia autorização judicial. Ora,
por exemplo, a amizade, o ódio, a vingança, a
ainda que se queira argumentar que tal conduta
inveja, o prazer em humilhar as pessoas, ideologia,
teria o condão de tipificar o crime do art. 22 da
afinidade político-partidária, etc., relativamente
às pessoas físicas ou jurídicas prejudicadas pelo
abuso de autoridade por ele cometido. Enfim, 6. JUTACrim 84/400.
7. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, “o interesse público
agir por mero capricho ou satisfação pessoal é deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos inte-
colocar o interesse particular em prevalência sobre resses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua
qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”.
o interesse público. Logicamente, quando o agente (Curso de Direito Administrativo. 2005, p. 51).
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Lei n. 13.869/19, sob o argumento de que os Tri- terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação
bunais Superiores têm precedentes no sentido de pessoal, impõe-se a rejeição da peça acusatória, ex
que uma mera denúncia anônima não configura vi do art. 395, inciso I, do CPP;
fundada razão a autorizar o interesso policial em b) o abuso de autoridade é tratado pela legis-
domicílio alheio sem o seu consentimento ou lação pátria como espécie de crime de intenção
determinação judicial,8 parece não haver qualquer (delito de tendência interna transcendente), assim
dúvida no sentido de que o Policial Militar não teria compreendido como aquele que requer um agir
ingressado no imóvel para satisfazer interesse de com ânimo, finalidade ou intenção adicional de
natureza pessoal. Na verdade, o militar teria agido obter um resultado ulterior ou uma ulterior ati-
pelo fato de acreditar que havia uma situação de vidade, distintos da realização do tipo penal. As
flagrante delito decorrente da prática de crimes de intenções especiais integram a estrutura subjetiva
natureza permanente no interior daquele domicílio, de determinados tipos penais, exigindo do autor a
fazendo-o no estrito cumprimento do dever legal persecução de um objetivo compreendido no tipo,
de zelar pela preservação da ordem pública e da mas que não precisa ser alcançado efetivamente. Faz
incolumidade das pessoas e do patrimônio (CF, parte do tipo de injusto uma finalidade transcen-
art. 144, caput). dente, no caso dos crimes de abuso de autoridade
Ausente esse especial fim de agir, não há falar a finalidade específica de prejudicar outrem ou
em crime de abuso de autoridade. Nesse sentido, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por
porém se referindo ao crime de prevaricação, cujo mero capricho ou satisfação pessoal. Esses crimes
juízo de tipicidade também demanda a presença de intenção, por sua vez, subdividem-se em delitos
de um especial fim de agir – no caso, para satis- de resultado cortado e delitos mutilados de dois
fazer interesse ou sentimento pessoal –, assim já atos. Os primeiros consistem na realização de
se pronunciou o Supremo Tribunal Federal: “(...) um ato visando à produção de um resultado, que
A configuração do crime de prevaricação requer a fica fora do tipo e sem a intervenção do autor.
demonstração não só da vontade livre e consciente Nesses tipos penais, o legislador corta a ação em
de deixar de praticar ato de ofício, como também determinado momento do processo executório,
do elemento subjetivo específico do tipo, qual seja, consumando-se o crime independentemente de
a vontade de satisfazer “interesse” ou “sentimento o agente haver atingido o propósito pretendido.
pessoal”. Instrução criminal que não evidenciou o Ocorrendo a meta optata, haverá mero exaurimento.
especial fim de agir a que os denunciados suposta- Como exemplo, podemos citar o crime de extorsão
mente cederam. Elemento essencial cuja ausência mediante sequestro, em que o resultado visado
impede o reconhecimento do tipo incriminador pelo agente – a percepção da vantagem – advirá
em causa. (...)”.9 ou não, independentemente da intervenção direta
do sujeito ativo. Por sua vez, os delitos mutilados
Firmada a importância desse elemento subjetivo de dois atos consumam-se quando o autor realiza
especial do injusto para a tipificação de todos os o primeiro ato com o objetivo de levar a termo o
crimes de abuso de autoridade, podemos extrair segundo. O autor quer alcançar, após ter realizado
algumas conclusões: o tipo, o resultado que fica fora dele (v.g, falsidade
a) o especial fim de agir do art. 1º, §1º, da Lei documental para cometer estelionato). Devido ao
n. 13.869/19 deve ser detalhadamente descrito na disposto no art. 1º, §1º, da Lei n. 13.869/19, pode-
denúncia oferecida pelo órgão ministerial – ou na mos afirmar que os crimes de abuso de autoridade,
queixa-crime subsidiária oferecida pelo ofendido em sua integralidade, são exemplos de delitos de
(Lei n. 13.869/19, art. 3º, §1º). Isso porque, consoante resultado cortado;
disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, c) considerando que se trata, a finalidade
deve constar da peça acusatória a exposição do fato específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si
criminoso com todas as suas circunstâncias. Ausente mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho
a descrição detalhada da finalidade específica de ou satisfação pessoal, de mero elemento subjetivo
prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a especial do injusto, a consecução (ou não) desse
resultado almejado pelo agente em nada interfere
8. STJ, 6ª Turma, RHC 83.501/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 06/03/2018, na consumação dos delitos de abuso de autoridade
DJe 05/04/2018. Em sentido diverso, há precedente mais antigo do Supremo
asseverando que não há ilegalidade na prisão em flagrante realizada por
(delito de resultado cortado). É o mesmo raciocí-
autoridade policial baseando-se em notícia anônima: STF, 2ª Turma, HC nio já feito pela doutrina em relação ao crime de
90.178/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/02/2010, DJe 55 25/03/2010.
9. STF, Pleno, AP 447/RS, Rel. Min. Carlos Britto, j. 18/02/2009, DJe 99
extorsão (CP, art. 158): sua tipificação também
28/05/2009. demanda um especial fim de agir, representado, in
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ABUSO DE AUTORIDADE • Lei 13.869/2019

casu, pela expressão “com o intuito de obter para pode se beneficiar da própria torpeza, nos termos
si ou para outrem indevida vantagem econômica”, do que disposto, inclusive, no art. 256 do CPP”.
daí por que se entende que estará “consumado
independentemente da obtenção da vantagem 4.1. (In)compatibilidade do elemento subje-
indevida” (súmula n. 96 do STJ); tivo especial do injusto com o dolo eventual.
d) na eventualidade de imputação de crime de O fato de o delito contemplar um especial
abuso de autoridade a determinado agente público fim de agir, como ocorre nos crimes de abuso de
por meio de notitia criminis oferecida pelo próprio autoridade, não afasta a possibilidade de o delito
investigado ou por seu defensor, impõe-se a des- ser imputado ao agente a título de dolo eventual.
crição pormenorizada desse especial fim de agir, Prova disso, aliás, é o fato de o Código Penal con-
evitando-se, assim, qualquer questionamento no templar diversos delitos cuja tipificação demanda
sentido de que teria restado configurado o crime um especial fim de agir, tais como, por exemplo,
de denunciação caluniosa (CP, art. 339, caput, com
furto (“para si ou para outrem”), extorsão mediante
redação determinada pela Lei n. 14.110/20).10 A pro-
sequestro (“com o fim de obter, para si ou para
pósito, eis o teor do enunciado n. 29 do Conselho
outrem, qualquer vantagem, como condição ou
Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios
preço do resgate”), etc., sem que a doutrina jamais
Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do
tenha questionado a possibilidade de tais delitos
Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de
serem atribuídos ao agente tanto a título de dolo
Apoio Criminal (GNCCRIM): “Representações
direto quanto a título de dolo eventual.
indevidas por abuso de autoridade podem, em
tese, caracterizar crime de denunciação caluniosa Não há nenhuma incompatibilidade entre as
(CP, art. 339), dano civil indenizável (CC, art. 953) duas figuras. Por isso, se restar comprovado que
e, caso o reclamante seja agente público, infração o agente público não queria o resultado (dolo di-
disciplinar ou político-administrativa”; reto), mas assumiu o risco de produzi-lo, deverá
e) ainda em relação a eventuais representações responder pelo crime de abuso de autoridade em
indevidas pela prática de abuso de autoridade, questão a título de dolo eventual, se assim o fizer,
convém lembrar que, nos exatos termos do art. logicamente, para prejudicar outrem ou beneficiar
256 do CPP, se a parte injuriar o juiz, não poderá a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero
arguir sua suspeição. O dispositivo em questão capricho ou satisfação pessoal.11
visa evitar que a parte, por ato unilateral, consiga A ressalva fica por conta dos tipos penais de
afastar do processo o juiz que porventura não seja abuso de autoridade cuja redação típica deixar
conveniente a seus interesses. De mais a mais, entrever que o legislador deliberadamente quis
também atende ao dever de boa-fé processual, que afastar a possibilidade de imputação a título de
deve nortear a atuação dos sujeitos, na medida em dolo eventual. Ou seja, à semelhança de outros
que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. tipos penais constantes do Código Penal ou da
Por conseguinte, eventual representação indevida Legislação Especial que fazem uso de expressões
pela prática de abuso de autoridade jamais terá o como, por exemplo, “que sabe” ou “que devia sa-
condão de acarretar a suspeição de agentes públicos, ber” (v.g., arts. 180, caput, e 339, caput, do CP), há
como, por exemplo, magistrados, Promotores de certos crimes na nova Lei de Abuso de Autoridade
Justiça, etc. É nesse sentido, aliás, o enunciado n. cuja punição é admitida apenas a título de dolo
30 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais direto. É o que ocorre em relação aos crimes do
dos Ministérios Públicos dos Estados e da União art. 19, parágrafo único (“Incorre na mesma pena
(CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores o magistrado que, ciente do impedimento ou da
de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM): “A demora, deixar de tomar as providências tendentes
representação indevida por abuso de autoridade a saná-lo ou, não sendo competente para decidir
contra juiz, promotor de justiça, delegados ou sobre a prisão, deixar de enviar o pedido à auto-
agentes públicos em geral, não enseja, por si só, a ridade judiciária que o seja”), art. 25, parágrafo
suspeição ante a aplicação da regra de que ninguém único (“Incorre na mesma pena quem faz uso de
prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado,
10. Para Igor Pereira Pinheiro, André Clark Nunes Cavalcante e Emerson
Castelo Branco (Nova Lei do Abuso de Autoridade: comentada artigo por artigo.
Leme/SP: JH Mizuno, 2020. p. 52), ausente a comprovação de plano desse 11. Em sentido diverso, Rogério Greco e Rogério Sanches Cunha (Abuso
especial fim de agir, eventual representação açodada dirigida ao Ministério de autoridade: Lei 13.869/2019: comentada artigo por artigo. Salvador: Editora
Público para fins de apuração de suposto crime de abuso de autoridade Juspodivm, 2019, p. 13) sustentam que o elemento subjetivo presente nos
pode configurar o crime de denunciação caluniosa ou de comunicação vários tipos incriminadores restringe o alcance da norma de tal forma que
falsa de crime (CP, arts. 339 e 340, respectivamente). o dolo eventual ficaria descartado.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

com prévio conhecimento de sua ilicitude”) e art. 30 oficial no entendimento dos textos. Esta hipérbole
(“Dar início ou proceder à persecução penal, civil do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu
ou administrativa sem justa causa fundamentada entre nós por geração espontânea. E, se passar,
ou contra quem sabe inocente”). Concluímos, então, fará da toga a mais humilde das profissões servis,
que, à exceção dessas 3 (três) figuras delituosas, estabelecendo, para o aplicador judicial das leis,
todos os demais crimes previstos na nova Lei de uma subalternidade constantemente ameaçada pelos
Abuso de Autoridade podem ser atribuídos ao oráculos da ortodoxia cortesã. Se o julgador, cuja
agente público tanto a título de dolo direto quanto opinião não condiga com a dos seus julgadores na
a título de dolo eventual. análise do direito escrito, incorrer, por essa dissi-
dência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária,
5. VEDAÇÃO DO CRIME DE HERMENÊUTICA. em vez de ser a garantia da justiça contra os erros
individuais dos juízes, pelo sistema de recursos,
A atuação de todo e qualquer agente público,
ter-se-á convertido, a benefício dos interesses pode-
seja ele um Ministro de Tribunal Superior, seja
rosos, em mecanismo de pressão, para substituir a
ele um Auditor da Receita Federal, envolve cons-
consciência pessoal do magistrado, base de toda a
tantemente não apenas a interpretação de leis e
confiança na judicatura, pela ação cominatória do
atos normativos, mas também a apreciação de
terror, que dissolve o homem em escravo. (...)”.13
fatos e provas. Ocorre que, por mais que sejam
utilizados critérios objetivos e métodos teóricos Aliás, mesmo na vigência da revogada Lei de
para o exercício de tais atividades, sempre haverá Abuso de Autoridade, a jurisprudência já rechaçava
uma boa dose de subjetividade. E é exatamente a possiblidade de se responsabilizar criminalmente o
dessa subjetividade que derivam divergências na magistrado pela mera divergência de interpretação:
interpretação da lei ou na avaliação dos fatos “(...) AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. ABUSO DE
e provas. Atento a isso, o art. 1º, §2º, da Lei n. AUTORIDADE. ART. 4º, “A”, DA LEI N.º 4.898/65.
13.869/19, prevê expressamente que “a divergência DESEMBARGADOR. DECISÃO JUDICIAL. CON-
na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e FRONTO COM DECISÃO DE RELATOR DO
provas não configura abuso de autoridade”.12 Com STF. CONDUÇÃO COMPULSÓRIA PARA LA-
raciocínio semelhante, porém em relação aos atos VRATURA DE TERMO CIRCUNSTANCIADO.
de improbidade administrativa, eis o teor do art. QUESTÕES ATINENTES À ATIVIDADE JUDI-
1º, §8º, da Lei n. 8.429/92, incluído pela Lei n. CANTE. ATRIBUTOS DA FUNÇÃO JURISDI-
14.230/21: “Não configura improbidade a ação ou CIONAL. 1. Faz parte da atividade jurisdicional
omissão decorrente de divergência interpretativa proferir decisões com o vício in judicando e in
da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não procedendo, razão por que, para a configuração
pacificada, mesmo que não venha a ser poste- do delito de abuso de autoridade há necessidade
riormente prevalecente nas decisões dos órgãos da demonstração de um mínimo de “má-fé” e de
de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário”. “maldade” por parte do julgador, que proferiu a
decisão com a evidente intenção de causar dano
O objetivo do art. 1º, §2º, da Lei n. 13.869/19
à pessoa. 2. Por essa razão, não se pode acolher
foi o de coibir aquilo que Rui Barbosa chamava
denúncia oferecida contra a atuação do magistra-
de crime de hermenêutica, assim compreendida
do sem a configuração mínima do dolo exigido
como toda e qualquer figura delituosa que pro-
pelo tipo do injusto, que, no caso presente, não
cure criminalizar a interpretação jurídica, fática
restou demonstrado na própria descrição da peça
ou probatória, que o agente público dê aos fatos
inicial de acusação para se caracterizar o abuso
que lhe são trazidos para sua apreciação. O tema
de autoridade. 3. Ademais, de todo o contexto, o
não é novo e, como dito, Rui Barbosa, há muitos
que se conclui é que houve uma verdadeira guerra
anos, já condenava as tentativas de se criar o cri-
de autoridades no plano jurídico, cada qual com
me de hermenêutica: “Para fazer do magistrado
suas armas e poderes, que, ao final, bem ou mal,
uma impotência equivalente, criaram a novidade
conseguiram garantir a proteção das instituições e
da doutrina, que inventou para o juiz os crimes
dos seus representantes, não possibilitando a esta
de hermenêutica, responsabilizando-o penalmen-
Corte a inferência da prática de conduta penalmente
te pelas rebeldias da sua consciência ao padrão
relevante. 4. Denúncia rejeitada”.14
12. Especificamente em relação a magistrados, o art. 1º, §2º, da nova Lei
de Abuso de Autoridade, vem ao encontro da Lei Orgânica da Magistratura 13. Obras completas de Rui Barbosa. Vol. XXIII, Tomo III, p. 2.280.
Nacional (LC n. 35/79), cujo art. 41 prevê que, salvo os casos de impropriedade 14. STJ, Corte Especial, APn 858/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis
ou excesso de linguagem, o magistrado não pode ser punido ou prejudicado Moura, j. 24/10/2018, DJe 21/11/2018. Em sentido semelhante, referindo-se,
pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir. porém, ao crime de prevaricação, cuja tipificação também demanda um
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ABUSO DE AUTORIDADE • Lei 13.869/2019

Por conseguinte, se um Promotor de Justiça norma tiver sido pacificada de maneira vinculante
oferecer denúncia contra alguém, imputando-lhe por determinado Tribunal (limitação jurispruden-
um crime de furto decorrente da subtração de cial), a exemplo do que ocorre quando o Supremo
coisa móvel alheia avaliada em R$ 50,00 (cin- Tribunal Federal delibera pela aprovação de súmula
quenta reais), o fato de a peça acusatória ser, na vinculante,15 a atuação em descompasso com a
sequência, rejeitada pelo juiz, sob o argumento norma legal poderá configurar crime de abuso de
de que a conduta seria atípica à luz do princípio autoridade, desde que presente o especial fim de
da insignificância, jamais poderá levar à conclu- agir do art. 1º, §1º.16
são de que o membro do Parquet teria incorrido É possível afirmar, portanto, que não haverá
em crime de abuso de autoridade – in casu, no crime de abuso de autoridade apenas quando se
delito do art. 30 da Lei n. 13.869/19 –, porquanto tratar de divergência razoável na interpretação da
o que houve, em última análise, teria sido uma lei ou na avaliação de fatos e provas. Logo, em se
mera divergência entre o órgão ministerial e o tratando de interpretação absurda, teratológica, ma-
magistrado em relação à interpretação do referido nifestamente descabida, é dizer, em contrariedade
postulado. Na mesma linha, se um Policial Mili- a essa limitação literal ou jurisprudencial anterior-
tar deliberar por ingressar em imóvel alheio sem mente explicada, não será cabível a aplicação da
prévia autorização judicial por entender que uma causa excludente do dolo constante do art. 1º, §2º, da
denúncia anônima seria suficiente para caracte- nova Lei de Abuso de Autoridade. É nesse sentido,
rizar a causa provável de um flagrante delito, a aliás, o enunciado n. 2 do Conselho Nacional de
ele não se poderá imputar o crime do art. 22 da Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos
Lei n. 13.869/19, eis que eventual divergência, por Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional
parte de outro agente público (v.g., Delegado de de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal
Polícia, Promotor de Justiça, Juiz, etc.), quanto à (GNCCRIM): “A divergência na interpretação de
avaliação dos fatos e provas, jamais terá o condão lei ou na avaliação de fatos e provas, salvo quando
de autorizar a tipificação de qualquer crime de teratológica, não configura abuso de autoridade,
abuso de autoridade. fixando excluído o dolo”. A título de ilustração,
Enfim, se estamos diante de uma norma que suponha-se que determinado juiz, a despeito de ter
consciência da súmula vinculante n. 25 (“É ilícita
permite interpretações diversas, o sentido adotado
a prisão civil de depositário infiel, qualquer que
pelo agente público em questão deve ser conside-
seja a modalidade de depósito”), resolva decretar,
rado válido, e não abusivo. Agora, se a norma não
a título de vingança contra um antigo desafeto,
permite interpretações diversas, seja por conta da
sua prisão civil diante do descumprimento de
literalidade do texto legal (limitação literal) – não
seus deveres como depositário. Ora, se há súmula
se pode interpretar “dia” como “noite”, nem vice-
vinculante com efeito vinculante em relação aos
-versa, ou seja, não se pode interpretar o texto
demais órgãos do Poder Judiciário (CF, art. 103-A,
legal de modo a promover a ruptura da literalidade caput) vedando a possibilidade de decretação de
da norma –, seja quando a interpretação daquela qualquer prisão civil de depositário infiel, não há
espaço para quaisquer interpretações em sentido
especial fim de agir: “CRIMINAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. DENÚNCIA.
PREVARICAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DE DECISÕES DO TST. PRERROGA-
diverso. De todo modo, para que o magistrado
TIVA DE MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. SATISFAÇÃO responda pelo crime do art. 9º, caput, da Lei n.
DE INTERESSE OU SENTIMENTO PESSOAL. ELEMENTO SUBJETIVO NÃO
CONFIGURADO. DENÚNCIA REJEITADA. Hipótese em que a denúncia trata
13.869/19, subsiste a necessidade de se demonstrar
da suposta prática de crime de prevaricação, pois os acusados teriam cabalmente que agiu com o especial fim de agir
deixado de praticar ato de ofício consistente no cumprimento de decisões
emanadas do TST referentes à prerrogativa institucional de membro do do art. 1º, §1º, verdadeira elementar em relação a
MPU de ter assento no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes todos os crimes de abuso de autoridade. Do con-
singulares ou presidentes dos órgãos judiciários perante os quais oficiem
na condição de parte ou de fiscal da lei, além de terem praticado outros trário, será um error in judicando, passível de ser
atos contra expressa disposição de lei, com vistas a satisfazer interesse ou
sentimento pessoal. Esta Corte já firmou posicionamento, concordante
sanado pelos recursos ordinários, correição parcial,
com a doutrina penal, no sentido de que a intenção de satisfazer interesse
ou sentimento pessoal é essencial à tipificação do delito do art. 319 do
Estatuto Repressor. Precedente. A controvérsia quanto à interpretação da 15. O raciocínio em questão seria válido não apenas para as hipóteses
legislação, como ocorreu no caso dos autos, não é hábil a configurar o de súmulas vinculantes (CF, art. 103-A), mas também para outras hipó-
elemento subjetivo do crime de prevaricação. Se não resta caracterizada teses em que houvesse uma decisão do Supremo Tribunal Federal com
a satisfação de interesse ou sentimento pessoal na conduta dos acusados, efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à
afasta-se a tipicidade da conduta. Ante a ausência de correspondência do Administração Pública, a exemplo do que ocorre com as decisões defini-
fato, tal como narrado na peça acusatória, à norma jurídica, vislumbra-se a tivas de mérito proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade, nas
inexistência de fato típico, afetando a possibilidade de responsabilização ações declaratórias de constitucionalidade, recursos extraordinários com
penal dos acusados pela prática do delito descrito no art. 319 do Código repercussão geral reconhecida, recursos repetitivos, etc.
Penal. Denúncia rejeitada”. (STJ, Corte Especial, APn 471/MG, Rel. Min. Gilson 16. A propósito: AGI, Samer. Comentários à nova Lei de Abuso de Autoridade
Dipp, j. 07/11/2007, DJe 10/03/2008). (Lei n. 13.869/2019). Brasília: Editora CP Iuris, 2019. p. 18.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

habeas corpus, etc., sem que se possa cogitar de as seguintes categorias de entidades, dotadas de
qualquer responsabilidade criminal do julgador.17 personalidade jurídica própria: a) autarquias; b)
empresas públicas; c) sociedades de economia
6. SUJEITO ATIVO DOS CRIMES DE ABUSO mista; d) fundações públicas. Vale lembrar que
DE AUTORIDADE. os territórios federais têm natureza jurídica de
Diversamente do conceito mais restrito con- autarquias, pertencendo, pois, à Administração
ferido pelo Direito Administrativo, a norma pe- Indireta.
nal interpretativa do art. 2º da Lei n. 13.689/19 Interessante notar que a antiga Lei de Abuso
considera agente público todo aquele que exerce, de Autoridade não fazia referência, como o faz o
ainda que transitoriamente ou sem remuneração, Código Penal em seu art. 327, § 1º, incluído pela Lei
por eleição, nomeação, designação, contratação ou n. 9.983/00, aos denominados funcionários públicos
qualquer outra forma de investidura ou vínculo, por equiparação, assim compreendido como aquele
mandato, cargo, emprego ou função na Adminis- que “exerce cargo, emprego ou função em entidade
tração Direta, Indireta ou Fundacional de qualquer paraestatal, e quem trabalha para empresa presta-
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito dora de serviço contratada ou conveniada para a
Federal, dos Municípios e de Território. execução de atividade típica da administração”. A
Esse conceito incide tanto na esfera da Ad- propósito, eis o teor do art. 5º da revogada Lei n.
ministração Pública Direta, como também no 4.898/65: “Considera-se autoridade, para os efeitos
campo da Administração Pública Indireta, no desta Lei, quem exerce cargo, emprego ou função
âmbito da União, dos Estados, do Distrito Fede- pública, de natureza civil, ou militar, ainda que
ral e dos Municípios, compreendendo, mas não transitoriamente e sem remuneração”. Destarte,
se limitando a servidores públicos e militares ou atento ao princípio da especialidade (lex specia-
pessoas a eles equiparadas, membros do Poder lis derogat generali), tal conceito de funcionário
Legislativo, membros do Poder Executivo, mem- público por equiparação não poderia ser aplicado
bros do Poder Judiciário, membros do Ministério para fins de tipificação de crimes de abuso de
Público e membros dos Tribunais ou Conselhos autoridade.19 Logo, pelo menos à época, enquanto
de Contas. Como se percebe, partindo da premissa aquele indivíduo que exercia uma função numa
de que é elemento essencial de uma República que empresa contratada para a execução de atividade
todos estejam sob o império da lei, o art. 2º deixa típica da administração pública (v.g., coleta de
entrever que até mesmo os agentes políticos estão lixo) era – e continua sendo – considerado fun-
sujeitos à punição cível, administrativa e criminal cionário público no tocante aos crimes contra a
por abuso de autoridade.18 Administração Pública, haja vista a norma do art.
Administração Direta é o conjunto de órgãos 327, §1º, do CP, podendo responder, portanto, por
que integram as pessoas federativas, aos quais foi crimes como peculato e corrupção passiva, este
atribuída a competência para o exercício, de forma mesmo funcionário público por equiparação não
centralizada, das atividades administrativas do poderia ser considerado agente público para efeito
Estado. O conceito abrange, portanto, a União, de aplicação da antiga Lei de Abuso de Autoridade,
os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, haja vista o silêncio da norma especial em relação
cada qual com sua estrutura administrativa e seus à equiparação feita pelo Código Penal, revelando-se
órgãos. Por sua vez, Administração Indireta é inviável, pois, qualquer espécie de analogia, que, in
o conjunto de pessoas administrativas que, vin- casu, seria evidentemente in malam partem. Com
culadas à respectiva Administração Direta, têm o objetivo de afastar esse evidente equívoco, a Lei
o objetivo de desempenhar as atividades admi- n. 13.869/19 refere-se, expressamente, em seu art.
nistrativas de forma descentralizada. Consoante 2º, inciso I, aos servidores públicos e militares ou
disposto no art. 4º, inciso II, do Decreto-Lei n. pessoas a eles equiparadas, conceito dentro do qual
200/67, a Administração Indireta compreende nos parece perfeitamente possível a inclusão dos
funcionários públicos por equiparação previstos
no art. 327, §1º, do Código Penal.
17. Nessa linha: PINHEIRO, Igor Pereira; CAVALCANTE, André Clark Nunes;
BRANCO, Emerson Castelo. Op. cit. p. 16. O parágrafo único do art. 2º da Lei n. 13.869/19
18. Nesse sentido, como já se pronunciou o STJ, “(...) excetuada a hipótese
de atos de improbidade praticados pelo Presidente da República (art. 85,
refere-se a mandato, cargo, emprego ou função.
V), cujo julgamento se dá em regime especial pelo Senado Federal (art.
86), não há norma constitucional alguma que imunize os agentes políticos,
sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de 19. Nessa linha: ROQUE, Fábio; TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar
improbidade previstas no art. 37, § 4º. (...)”. (STJ, 2ª Turma, REsp 1.108.490/ Rodrigues. Legislação Criminal para concursos. Salvador: Editora Juspodivm,
RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 15/09/2016, DJe 11/10/2016). 2019. p. 122.
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ABUSO DE AUTORIDADE • Lei 13.869/2019

Vejamos tais conceitos, separadamente: a) mandato: é 6.1. Concurso de agentes com particulares
aquele que, pela sua própria natureza, possui um (extraneus).
tempo certo de duração, podendo ou não ser reno- Como exposto anteriormente, o sujeito ativo dos
vado, a exemplo do que ocorre com os mandatos crimes de abuso de autoridade é apenas o agente
eletivos, conquistados através do voto popular, tal público. Trata-se, portanto, de crime próprio.
como ocorre com vereadores, prefeitos, deputados Todavia, como a condição especial agente público
(estaduais e federais), senadores, Governadores, funciona como verdadeira elementar desses deli-
Presidente da República, etc.; b) cargo: de acordo tos, comunica-se ao particular que eventualmente
com o art. 3º da Lei n. 8.112/90, cargo público é concorra, na condição de coautor ou partícipe,
o conjunto de atribuições e responsabilidades para a prática do crime, nos termos do art. 30 do
previstas na estrutura organizacional que devem ser Código Penal, segundo o qual “não se comunicam
cometidas a um servidor; c) emprego: é a ter- as circunstâncias e as condições de caráter pessoal,
minologia utilizada para identificar uma relação salvo quando elementares do crime”. Destarte, é
funcional de trabalho; é um núcleo de encargo de necessário que pelo menos um dos autores reúna
trabalho permanente a ser preenchido por agente a condição especial de agente público, podendo os
contratado para desempenhá-lo. Portanto, também demais não ostentar tal qualidade. Caso contrário,
conta com um conjunto de atribuições e é dizer, se o particular agir sozinho, jamais poderá
responsabilidades, distinguindo-se das situações responder por abuso de autoridade. Se praticar al-
anteriores pelo regime adotado (CLT); d) função: é a guma das condutas contidas nos artigos seguintes,
atividade em si mesma, ou seja, é sinônimo de poderá ser responsabilizado por crimes diversos,
atribuição e corresponde às inúmeras tarefas que como, por exemplo, lesão corporal, constrangimento
constituem o objeto dos serviços prestados pelos ilegal, ameaça, etc.21
servidores públicos. Todo cargo tem função, porque De todo modo, se o particular agir em concurso
não se pode admitir um lugar na Administração que de pessoas com um agente público, é indispensável
não tenha a predeterminação das tarefas do que o extraneus tenha consciência de sua qualidade
servidor. Mas nem toda função pressupõe a exis- especial, sob pena de não responder pelo crime de
tência do cargo. abuso de autoridade. De fato, desconhecendo essa
condição de agente público, o dolo do particular
Noutro giro, não são considerados agentes não terá o condão de abranger todos os elementos
públicos aqueles que exercem apenas um munus constitutivos do tipo, configurando-se o denomina-
público, como, por exemplo, os curadores e tutores do erro de tipo, que afasta a tipicidade da conduta.
dativos, os inventariantes judiciais, os adminis- Responderá, todavia, por outro crime, nos termos
tradores judiciais, os depositários judiciários, os da previsão do art. 29, §2, do Código Penal, que
leiloeiros dativos, etc., havendo prevalência, nesses cuida da chamada cooperação dolosamente distinta.
casos, do interesse privado. Especificamente quanto
aos advogados dativos, nomeados para exercer a 7. SUJEITO PASSIVO DOS CRIMES DE ABUSO
defesa de acusado necessitado em locais onde a DE AUTORIDADE.
Defensoria Pública não tenha sido instituída, o
Os crimes de abuso de autoridade previstos na
Superior Tribunal de Justiça tem precedentes20 no
Lei n. 13.869/19 são delitos de “dupla subjetividade
sentido de que, conquanto não sejam servidores passiva”. Isso porque são condutas que atingem
públicos propriamente ditos, pois não são Defenso-res dois sujeitos passivos: de um lado, o Estado (Poder
Públicos, devem ser considerados funcionários Público), que tem a sua imagem, credibilidade e
públicos para fins penais, nos termos do art. 327 do
Código Penal, daí por que também hão de ser
21. É assente na doutrina e na jurisprudência que o espectro de alcance
considerados agentes públicos à luz do art. 2º da do art. 30 do Código Penal se restringe às elementares típicas, sejam aquelas
Lei n. 13.869/19. constantes da figura básica ou qualificada. Por isso, em caso concreto no
qual se discutia a possibilidade de a causa especial de aumento de pena
do art. 327, §2º, do CP, ser aplicada a extraneus, a 5ª Turma do STJ assim
se manifestou: “(...) Não há que se confundir a norma penal de caráter
20. Para o STJ, “o advogado que, por força de convênio celebrado com o explicativo constante do caput do art. 327 do CP, extensível a todos os
Poder Público, atua de forma remunerada em defesa dos agraciados com o participantes (coautores ou partícipes) de crimes em que a condição de
benefício da Justiça Pública, enquadra-se no conceito de funcionário público funcionários públicos seja elementar típica, com aquela disposição prevista
para fins penais (Precedentes). (REsp n. 902.037/SP, Rel. Min. Felix Fischer, no §2º do dispositivo legal em testilha, essa última emblemática circuns-
5ª Turma, j. 17/04/2007, DJ 04/06/2007). Sendo equiparado a funcionário tância acidental que implica em especial agravamento da pena, aplicável
público, possível a adequação típica aos crimes previstos nos arts. 312 e apenas aos detentores de cargo em comissão ou função comissionada,
317 do Código Penal. (...)”. (STJ, 5ª Turma, HC 264.459/SP, Rel. Min. Reynaldo posto que o legislador presumiu lhes ser maior a culpabilidade, em linha
Soares da Fonseca, j. 10/03/2016, DJe 16/03/2016). Na mesma linha: STJ, 5ª com o disposto no art. 29 do CP”. (STJ, 5ª Turma, AgRg no REsp 1.789.273/
Turma, RHC 33.133/SC, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 21/05/2013, DJe 05/06/2013. PR, Rel. Min. Felix Fischer, j. 25.08.2020, DJe 08.09.2020).
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CRIMES HEDIONDOS
LEI Nº 8.072/1990

1. PREVISÃO CONSTITUCIONAL. crimes hediondos, outro caminho não há senão


o reconhecimento de sua natureza hedionda,
Influenciada por uma postura político-crimi-
ainda que, no caso concreto, a conduta delituosa
nal ingênua, que insiste em apresentar o Direito
não se revele tão gravosa. Logo, mesmo que o
Penal como a fórmula mágica capaz de resolver
todos os conflitos sociais, solucionando os males crime não se revele “repugnante”, “asqueroso”,
causados por uma péssima distribuição de rendas, “sórdido”, “depravado”, “horroroso” ou “hor-
pela miséria, pela fome, pelo desemprego, pela rível”, se for etiquetado como crime hediondo
corrupção e pela impunidade, a Constituição pelo legislador, deve ser tratado como tal pelo
Federal dispõe em seu art. 5º, inciso XLIII, que magistrado. O aspecto positivo desse primeiro
“a lei considerará crimes inafiançáveis e insusce- sistema é a segurança na aplicação da lei. Afinal,
tíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o somente serão considerados hediondos os delitos
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o constantes do rol taxativo elaborado pelo Poder
terrorismo e os definidos como crimes hediondos, Legislativo. O ponto negativo é que, por meio
por eles respondendo os mandantes, os executores desse sistema, o Congresso Nacional goza de
e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. ampla liberdade para definir qualquer infração
penal como hedionda, sendo livre para elevar
Como se percebe, a norma constitucional im- à referida categoria um delito qualquer, sim-
põe um regime jurídico mais gravoso aos crimes plesmente em virtude da pressão exercida pela
de tortura, tráfico de entorpecentes e terrorismo, mídia ou pela população. Aliás, foi exatamente
assim como aos delitos definidos como crimes isso o que ocorreu com o crime de falsificação
hediondos. Neste último caso, a aplicabilidade do de remédios (CP, art. 273) – o qual abrange,
referido preceito está condicionada à definição inclusive, a falsificação de cosméticos (CP, art.
dessa novel categoria de infrações penais pelo 273, § 1º-A) –, que passou a ser hediondo com a
legislador comum. Daí a importância da análise entrada em vigor da Lei nº 9.695/98, em virtude
da Lei nº 8.072/90, objeto de nosso estudo neste da repercussão negativa que a falsificação de
Capítulo. anticoncepcionais produziu à época;
2. SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO DAS INFRA- b) sistema judicial: levando-se em conside-
ÇÕES PENAIS COMO CRIMES HEDIONDOS. ração os elementos do caso concreto, confere-se
ao magistrado ampla liberdade para identificar
Há diversas formas de classificação de de- a natureza hedionda de determinada conduta
terminado delito como crime hediondo, a saber: delituosa. Logo, a depender das circunstâncias
a) sistema legal: por meio desse sistema, gravosas do caso concreto – por exemplo, gra-
cabe ao legislador enunciar, de forma exaustiva vidade objetiva da conduta, modo ou meio de
(numerus clausus), os crimes que devem ser execução, motivos e consequências do crime,
considerados hediondos. Assim, por meio de um dimensão do bem jurídico lesado –, poder-se-ia
rol taxativo de crimes, não se confere ao juiz considerar hediondo inclusive um crime contra
qualquer discricionariedade para atestar a natu- a administração pública. O ponto positivo desse
reza hedionda do delito. Em outras palavras, se critério é que o magistrado não fica adstrito a um
o crime praticado pelo agente constar do rol de rol taxativo fixado em abstrato pelo legislador,
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

o que acaba por permitir maior flexibilidade na jamais será possível considerá-la hedionda, ainda
classificação (ou não) de determinada conduta que as circunstâncias fáticas do caso concreto
delituosa como hedionda, tudo a depender das cir- se revelem extremamente gravosas. Afinal, por
cunstâncias fáticas do caso concreto. No entanto, força da adoção do sistema legal, os crimes he-
esse modelo acaba por trazer certa insegurança diondos constam do rol taxativo do art. 1º da
jurídica, porquanto os critérios adotados por Lei nº 8.072/90, que não pode ser ampliado com
cada magistrado são subjetivos, o que poderia base na analogia nem por meio de interpretação
dar ensejo a uma possível violação ao princípio extensiva.
da legalidade. Deveras, para a garantia do pró-
prio cidadão – e o Direito Penal nada mais é do 2.2. Natureza hedionda (ou não) dos crimes
que uma limitação do poder repressivo estatal militares.
diante do direito de liberdade de cada pessoa –
Ao se referir aos crimes hediondos, o art.
a incidência dos gravames penais e processuais
1º da Lei nº 8.072/90 indica o nomen iuris da
penais da Lei dos Crimes Hediondos não pode
infração penal, colocando em parênteses, na se-
ficar subordinada aos humores (ou aos azares)
quência, sua previsão legal. Basta ver o exemplo
interpretativos do magistrado;
do art. 1º, III, da Lei dos Crimes Hediondos, com
c) sistema misto: ao invés de preestabelecer redação dada pela Lei n. 13.964/19: “extorsão
um rol taxativo de crimes hediondos, o legislador qualificada pela restrição da liberdade da vítima,
apresenta apenas um conceito, fornecendo alguns ocorrência de lesão corporal ou morte (art. 158,
traços peculiares dessas infrações penais. Com §3º). Nos incisos do art. 1º da Lei nº 8.072/90
essa definição prévia de crime hediondo, caberia foram inseridos crimes que constam apenas do
ao juiz, então, enquadrar determinada conduta Código Penal, ao passo que os delitos hediondos
delituosa como hedionda. Nos mesmos moldes previstos na legislação especial estão elencados
que o critério anterior, este modelo também con- no parágrafo único do art. 1º da Lei n. 8.072/90,
fere certa liberdade ao juiz para aferir a natureza também com redação determinada pelo Pacote
hedionda de determinada conduta delituosa à Anticrime (v.g., genocídio, posse ou porte ilegal
luz das circunstâncias fáticas do caso concreto. de arma de fogo de uso proibido, etc.).
Porém, este sistema também traz consigo certa
Portanto, hedionda será apenas a infração
insegurança jurídica, já que, dificilmente, seria
penal prevista no Código Penal ou nas leis es-
possível a elaboração, por parte do legislador, de
peciais ali indicadas, jamais a mesma infração
um conceito de crime hediondo imune a dúvidas
e críticas.1 penal que encontre tipificação em outro diploma
legal. É o que ocorre, por exemplo, com o crime
2.1. Sistema adotado pela Lei nº 8.072/90. de homicídio qualificado previsto no Código
Penal Militar, que não vem referido nos parênte-
O critério adotado pela legislação brasileira ses do art. 1º, I, da Lei nº 8.072/90, daí por que
para rotular determinada conduta como hedion- não pode ser considerado hediondo. Perceba-se,
da é o sistema legal. De modo a saber se uma então, que o legislador da Lei nº 8.072/90 não
infração penal é (ou não) hedionda, incumbe ao teve o cuidado de conferir natureza hedionda
operador tão somente ficar atento ao teor do art. aos crimes militares previstos no Código Penal
1º da Lei nº 8.072/90: se o delito constar do rol Militar. Logo, os crimes militares de homicídio
taxativo de crimes ali enumerados, a infração qualificado (CPM, art. 205, § 2º), latrocínio (CPM,
será considerada hedionda, sujeitando-se a todos art. 242, § 3º), extorsão mediante sequestro (CPM,
os gravames inerentes a tais infrações penais, art. 244, caput e §§ 1º, 2º e 3º), estupro (CPM,
independentemente da aferição judicial de sua art. 232), atentado violento ao pudor (CPM,
gravidade concreta. art. 233), epidemia com resultado morte (CPM,
Lado outro, se a infração penal praticada pelo art. 292, §1º) não são considerados hediondos,
agente não constar do art. 1º da Lei nº 8.072/90, por mais que sua descrição típica seja bastante
semelhante às figuras delituosas constantes do
1. Nessa linha, Toron sugere a criação de uma “cláusula salvatória”, Código Penal. Raciocínio semelhante também se
permitindo que, a depender das circunstâncias do caso concreto, o juiz aplica ao crime militar de genocídio previsto no
afastasse a natureza hedionda de um crime constante do rol fixado pelo
legislador, mas jamais sua ampliação para inclusão de crimes que não art. 208 do Código Penal Militar, que também
foram enumerados previamente pelo legislador como crimes hediondos.
(TORON, Alberto Zacharias. Crimes hediondos: o mito da repressão penal.
não pode ser considerado hediondo, já que o art.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996. p. 98). 1º, parágrafo único, inciso I, da Lei nº 8.072/90,
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CRIMES HEDIONDOS • Lei nº 8.072/1990

ao rotular como hediondo o crime de genocídio, pelo Código Penal Militar e, em outra parte,
refere-se apenas àquelas figuras delituosas pre- pelo Código Penal comum, o que representaria
vistas nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889/56. evidente violação ao princípio da reserva legal e
Assim, caso um militar da ativa, no interior de ao próprio princípio da separação de poderes. 3
uma determinada organização militar, constranja Se o legislador da Lei nº 8.072/90 não teve o
uma mulher (civil) à conjunção carnal, mediante cuidado de conferir natureza hedionda aos crimes
violência ou grave ameaça, ter-se-á crime militar militares previstos no Código Penal Militar, daí
de estupro, nos termos do art. 232, c/c art. 9º, não se pode concluir que a Justiça Militar jamais
inciso II, alínea “b”, do Código Penal Militar. poderá processar e julgar alguém pela prática
Nessa hipótese, o detalhe peculiar é que o crime de um crime militar hediondo. Explica-se: com
militar de estupro tem pena de reclusão, de 3 o advento da Lei n. 13.491/17, a Justiça Militar
(três) a 8 (oito) anos, pena esta que, quando com- passou a ter competência para julgar não apenas
parada com o delito comum de estupro (CP, art. os crimes previstos no Código Penal Militar –
213, caput), causa certa perplexidade, na medida como ocorria antes, quando, então, não existia
em que o preceito secundário do dispositivo do nenhum crime militar hediondo –, mas também
Código Penal estabelece uma pena de reclusão, aqueles previstos na Legislação Penal, se acaso
de 6 (seis) a 10 (dez) anos, além de se tratar de praticado numa das condições do art. 9º, inciso II,
crime hediondo (Lei nº 8.072/90, art. 1º, inciso do Código Penal Militar (v.g., militar em serviço).
V, com redação dada pela Lei nº 12.015/09). A expressão legislação penal utilizada na parte
Explica-se: a pena originalmente prevista para o final do inciso II do art. 9º do CPM refere-se
crime de estupro no Código Penal comum era não apenas aos crimes previstos no Código Pe-
idêntica à do Código Penal Militar: reclusão, de nal Comum, mas também àqueles previstos na
3 (três) a 8 (oito) anos. Ocorre que o preceito Legislação Especial. Logo, considerando-se esta
secundário do art. 213 do CP foi alterado pela nova competência da Justiça Militar da União (e
Lei nº 8.072/90, tendo o legislador, todavia, se
dos Estados) para o processo e julgamento desses
esquecido do preceito secundário do crime militar
crimes militares extravagantes (crimes militares
de estupro, o que, na prática, acabou por criar
por equiparação à legislação penal comum ou
patente violação ao princípio da proporcionali-
crimes militares por extensão), é perfeitamente
dade, mormente se considerarmos que o autor
possível o reconhecimento da natureza hedionda
do crime militar não estará sujeito aos ditames
de crimes militares, desde que listados, obviamen-
gravosos da lei dos crimes hediondos.2
te, nos incisos do caput ou do parágrafo único do
A disparidade de tratamento do crime militar art. 1º da Lei n. 8.072/90. Supondo, por exemplo,
e do crime comum já foi questionada perante o a prática do crime de favorecimento da prosti-
Supremo Tribunal Federal, que, no entanto, con- tuição ou de outra forma de exploração sexual
cluiu que a diferença de tratamento legal entre de criança ou adolescente ou de vulnerável por
os crimes comuns e os crimes militares, mesmo militar da ativa em lugar sujeito à administração
em se tratando de crimes militares impróprios, militar contra civil, à respectiva Justiça Militar
não revela inconstitucionalidade, pois o Código
caberá o processo e julgamento do crime militar
Penal Militar não institui privilégios. Ao contrá-
por extensão do art. 218-B, caput, do CP, c/c
rio, em muitos pontos, o tratamento dispensado
art. 9º, inciso II, alínea “b”, do Código Penal
ao autor de um delito é mais gravoso do que
Militar, sujeitando-se o agente, portanto, a todos
aquele do Código Penal comum. Portanto, aos
os gravames constantes da Lei n. 8.072/90, por
olhos da Suprema Corte, não se afigura possível
se tratar de crime hediondo, nos termos do art.
a aplicação do Código Penal Militar apenas na
1º, VIII, da Lei n. 8.072/90, incluído pela Lei n.
parte que interessa ao acusado, sob pena de se
criar uma norma híbrida, em parte composta 12.978/14.

3. ROL DE CRIMES HEDIONDOS (CONSUMA-


2. Apesar do esquecimento do legislador, não é possível uma reclas-
sificação “tipológica” do delito, sob pena de violação ao princípio da DOS OU TENTADOS).
reserva legal. Portanto, se um crime de estupro for cometido por militar
fora de seu horário de serviço e de suas funções, como se trata de crime Os crimes hediondos estão listados no rol
comum (e não militar), sujeitar-se-á o agente aos rigores da Lei de Crimes
Hediondos. Por outro lado, se um outro crime de estupro for praticado
taxativo do art. 1º da Lei nº 8.072/90, que preferiu
por policial militar em serviço e, portanto, no exercício de suas funções,
como se trata de crime militar impróprio, não há falar em aplicação da
Lei nº 8.072/90. Nesse sentido: STJ, 6ª Turma, HC 30.056/RJ, Rel. Min. Hélio 3. Nessa linha: STF, 2ª Turma, HC 86.459/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa,
Quaglia Barbosa, DJ 23/05/2005 p. 353. DJ 02/02/2007 p. 159.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

colocar nos incisos do caput os crimes constantes cometido em 16 de janeiro de 1994 não pode ser
do Código Penal e nos incisos do parágrafo único, considerado hediondo, pois tal crime passou a
com redação dada pelo Pacote Anticrime, aqueles integrar o rol previsto na Lei nº 8.072/90 com o
que estão previstos na legislação extravagante (Lei advento da Lei nº 8.930/94, cuja vigência se deu
nº 2.889/56, Lei n. 10.826/03 e Lei n. 12.850/13). apenas em 7 de setembro de 1994.5
Antes de ingressarmos na análise específica
de cada um desses crimes, convém ressaltar que o 3.1.1. Homicídio simples praticado em ativi-
art. 1º, caput, e parágrafo único, da Lei nº 8.072/90 dade típica de grupo de extermínio (Lei nº
deixa evidente que, para fins de reconhecimento 8.072/90, art. 1º, I, 1ª parte, com redação
de sua natureza hedionda, pouco importa que o dada pela Lei nº 8.930/94) e a entrada em
delito seja consumado ou tentado. Exemplifican- vigor da Lei nº 12.720/12 (CP, art. 121, § 6º).
do, se determinado agente der início à execução À época em que a Lei nº 8.930/94 entrou
de um homicídio qualificado por motivo torpe, em vigor, ao invés de arrolar a prática do cri-
que não se consumar por circunstâncias alheias me de homicídio em atividade típica de grupo
a sua vontade, deverá responder pelo crime de de extermínio como qualificadora desse delito,
homicídio qualificado tentado (CP, art. 121, § 2º, acrescentando mais um inciso ao § 2º do art.
inciso I, na forma do art. 14, II), sujeitando-se a 121, ou até mesmo como uma causa de aumento
todos os gravames constantes da Lei nº 8.072/90, de pena, enfim, criando um tipo penal especial
que incide sobre crimes consumados e tentados.4 de homicídio simples, o legislador simplesmente
optou por tachar essa figura delituosa com o
3.1. Natureza hedionda do crime de homicídio rótulo da hediondez.
(Lei nº 8.930/94). Com efeito, após se referir ao crime de ho-
Quando a Lei nº 8.072/90 entrou em vigor micídio, o art. 1º, inciso I, 1ª parte, da Lei nº
em 26 de julho de 1990, o crime de homicídio, 8.072/90, com redação determinada pela Lei nº
mesmo que qualificado, não era etiquetado como 8.930/94, faz menção tão somente ao art. 121
hediondo. Ocorre que, em virtude das chacinas da em parênteses, sem fazer qualquer referência ao
Candelária e de Vigário Geral, e do assassinato seu § 2º, onde estão inseridas as qualificadoras
da artista da Rede Globo Daniela Perez, fato este desse crime, do que se conclui que o crime de
ocorrido no final do ano de 1992, houve enorme homicídio simples podia ser considerado hedion-
clamor social provocado pela mídia para que o do, desde que praticado em atividade típica de
crime de homicídio fosse incluído no rol dos grupo de extermínio.
crimes hediondos. Na prática, todavia, a hipótese revela-se in-
Surge, então, a Lei nº 8.930/94, conferindo viável. Afinal, é praticamente impossível se con-
nova redação ao art. 1º da Lei nº 8.072/90. As- ceber um crime de homicídio simples praticado
sim, à época, passou a constar como hediondo em atividade típica de grupo de extermínio no
o “homicídio (art. 121), quando praticado em qual não esteja presente uma das qualificadoras
atividade típica de grupo de extermínio, ainda subjetivas ou objetivas relacionadas nos incisos I
que cometido por um só agente, e homicídio a VII do § 2º do art. 121 do Código Penal (v.g.,
qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V)”. motivo torpe, recurso que tornou impossível a
defesa do ofendido, etc.). Nesse caso, por força
Trata-se, a Lei nº 8.930/94, de evidente exemplo do princípio da especialidade, deverá prevalecer a
de novatio legis in pejus. Logo, se tais crimes foram figura do homicídio qualificado, o que acaba por
cometidos antes de sua vigência, não é possível demonstrar o quanto foi inócua esta mudança
a sujeição do agente aos gravames constantes da produzida pela Lei nº 8.930/94.
Lei nº 8.072/90, sob pena de violação ao princí-
Insistimos em dizer que, à época, tal fato não
pio da irretroatividade da lei penal mais gravosa
fora inserido como qualificadora nem tampouco
(CF, art. 5º, XL). Daí o motivo pelo qual o STJ
como circunstância do crime de homicídio, por-
concluiu que o crime de homicídio qualificado
quanto, em data de 28 de setembro de 2012, o
fato de o crime de homicídio ser praticado por
4. Como se pronunciou o STJ, a progressão de regime prisional para o
cumprimento de pena pela prática de crime hediondo, ainda que na forma
grupo de extermínio passou a vigorar como causa
tentada, deve observar os parâmetros do art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.072/1990,
com a redação dada pela Lei nº 11.464/2007, porquanto o fato de não ter
sido consumado o crime não afasta a hediondez do delito: STJ, 5ª Turma, 5. STJ, 5ª Turma, HC 73.207/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j.
HC 220.978/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 16/10/2012. 19/04/2007, DJ 21/05/2007 p. 603.
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CRIMES HEDIONDOS • Lei nº 8.072/1990

de aumento de pena do referido delito. Por força gravitam ao redor do tipo básico: podem au-
da Lei nº 12.720/12, foi introduzida uma nova mentar ou diminuir a pena do delito, mas não
causa de aumento de pena no § 6º do art. 121, têm o condão de alterar a tipificação básica da
com a seguinte redação: “A pena é aumentada conduta delituosa (v.g., qualificadoras, causas de
de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for aumento ou de diminuição de pena, etc.). Como
praticado por milícia privada, sob o pretexto de ensina Bitencourt, para que se possa diferenciar
prestação de serviço de segurança, ou por grupo uma elementar do tipo penal de uma simples
de extermínio”. Daí a importância de se distinguir circunstância, basta exclui-la, hipoteticamente:
os crimes de homicídio praticados por grupo de se esse raciocínio levar à descaracterização do
extermínio sob a égide da Lei nº 8.930/94 e os fato como crime (atipicidade absoluta) ou fizer
fatos delituosos cometidos a partir da vigência surgir outro tipo de crime (atipicidade relativa),
da Lei nº 12.720/12. estaremos diante de uma elementar. Se, todavia,
O primeiro questionamento decorrente das a exclusão de determinado requisito não alterar
mudanças produzidas pela Lei nº 8.930/94 diz a caracterização do crime, tratar-se-á de uma
respeito à criação (ou não) de um novo tipo circunstância do delito. Exemplificando, no crime
penal especial de homicídio. de peculato, a qualidade de funcionário público
é uma elementar do delito, visto que, diante
Sobre o assunto, uma primeira corrente sus- de sua ausência, haverá a desclassificação para
tenta que teria sido criado, à época, um novo tipo apropriação indébita. Por outro lado, no furto,
penal especial de homicídio simples, de natureza o fato de o delito ter sido praticado durante o
hedionda, nos seguintes termos: “Matar alguém repouso noturno autoriza a incidência da causa
em atividade típica de grupo de extermínio, ainda de aumento de pena prevista no art. 155, § 1º,
que o crime seja cometido por um só agente”. do CP. Suprimido o repouso noturno, o tipo
É nesse sentido a lição de Alberto Silva Franco, fundamental continuará o mesmo, ou seja, furto.
para quem não basta que a conduta típica encon- Logo, trata-se de mera circunstância.7
tre expressão no verbo “matar” e que o objeto
dessa conduta seja um ser humano. Para além Como se percebe, à época em que a Lei nº
disso, para que o crime de homicídio simples 8.930/94 entrou em vigor (07/09/94), o fato de o
delito ser praticado em atividade típica de grupo
seja rotulado como hediondo, aduz o autor que
de extermínio não foi inserido no Código Penal
“é mister acrescer à conduta de ‘matar alguém’
como elementar do crime de homicídio. Afinal,
a circunstância fática de que o agente tenha
ainda que o crime não fosse praticado em ati-
executado o homicídio em ‘atividade típica de
vidade típica de grupo de extermínio, isso não
grupo de extermínio’. A locução mencionada
acarretaria a atipicidade absoluta nem tampouco
na Lei nº 8.930/94 denuncia a presença de um
relativa da conduta. Também não fora introduzido
elemento da realidade fática que anormaliza o
como circunstância do crime de homicídio, uma
tipo do homicídio simples na medida em que
vez que, à época, não tinha o condão de modifi-
o exclui, nessa situação especial, dos tipos de
car a pena do crime de homicídio. Daí por que
composição puramente objetiva”.6
grande parte da doutrina se referia a esse crime
Em sentido diverso, uma segunda corrente como homicídio condicionado, pois o reconhe-
entende que o fato de o homicídio simples ter cimento de sua natureza hedionda dependia da
sido praticado em atividade típica de grupo de verificação de um requisito (ou condição): que
extermínio não foi inserido pela Lei nº 8.930/94 o ilícito tivesse sido praticado em ação típica de
como elementar nem tampouco como circuns- grupo de extermínio.8
tância do referido delito. Trata-se, na verdade, de
Com o advento da Lei nº 12.720/12, o tema
mero pressuposto para que o crime de homicídio
está a merecer novas considerações. Com vigência
simples seja considerado hediondo.
Explica-se: elementares são dados essenciais 7. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Geral. Vol.
da figura típica, cuja ausência pode acarretar 1. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 663. Ainda segundo o autor, somente os tipos
a atipicidade absoluta (a conduta é atípica) ou básicos contêm as elementares do crime, porquanto os chamados tipos
derivados – qualificados – contêm circunstâncias especiais que, embora
a atipicidade relativa (desclassificação). De seu constituindo elementos específicos dessas figuras derivadas, não são ele-
mentares do crime básico, cuja existência ou inexistência não alteram a
turno, circunstâncias são dados periféricos que definição deste. Assim, as qualificadoras, como dados acidentais, servem
apenas para definir a classificação do crime derivado, estabelecendo novos
limites mínimo e máximo, cominados ao novo tipo.
6. FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael; FELIX, Yuri. Crimes hediondos. 7ª 8. JESUS, Damásio Evangelista. Homicídio simples, crime hediondo e Júri.
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 555. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), nº 29, abril de 1995.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

a partir do dia 28 de setembro de 2012, esta Penal, o que, a nosso ver, não caracteriza bis
Lei introduziu no Código Penal a novel figura in idem, na medida em que estamos diante de
delituosa do crime de constituição de milícia crimes autônomos, que tutelam bens jurídicos
privada, valendo-se de fórmula vaga e impre- distintos, quais sejam, a vida e a paz pública,
cisa na definição dos elementos do tipo, o que, respectivamente.12
certamente, irá gerar questionamentos acerca
de possível violação à garantia da taxatividade 3.1.1.1. Conceito de grupo de extermínio.
inerente ao princípio da legalidade. Eis a redação Revelando péssima técnica legislativa, apesar
do art. 288-A: “Constituir, organizar, integrar, de ter rotulado o homicídio simples praticado em
manter ou custear organização paramilitar, milícia atividade típica de grupo de extermínio como
particular, grupo ou esquadrão com a finalidade crime hediondo, a Lei nº 8.930/94 não teve o
de praticar qualquer dos crimes previstos neste cuidado de definir esse pressuposto da hedion-
Código”.9 dez, tarefa esta que acabou ficando a cargo da
Para além da criação desse novo tipo penal, doutrina e dos Tribunais.
a Lei nº 12.720/12 também introduziu uma Grupo significa um conjunto de pessoas ou
nova causa de aumento de pena para o crime coisas dispostas proximamente e formando um
de homicídio: “Art. 121. (...) § 6º. A pena é todo, um conjunto de indivíduos com caracte-
aumentada de 1/3 até a metade se o crime for rísticas, objetivos, interesses comuns.13 Portanto,
praticado por milícia privada, sob o pretexto de se o art. 1º, I, primeira parte, da Lei nº 8.072/90,
prestação de serviço de segurança, ou por grupo refere-se à existência de um grupo, forçoso é
de extermínio”.10 concluir que se trata de crime plurissubjetivo, ou
Perceba-se que, doravante, o fato de o crime de seja, hipótese de concurso necessário de agentes.
homicídio ser praticado por milícia privada, sob A redação da Lei dos Crimes Hediondos deixa
o pretexto de prestação de serviço de segurança, claro que este delito será considerado hediondo
ou por grupo de extermínio, passa a funcionar ainda que o crime seja cometido por um só agen-
como circunstância do crime de homicídio, te. No entanto, é necessário comprovar que este
autorizando a incidência da causa de aumento executor faz parte de um grupo de extermínio.
de 1/3 (um terço) até metade, quantum este de A controvérsia gira em torno da quantidade de
majoração que pode incidir inclusive nos crimes pessoas necessárias para que se possa atestar a
de homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º).11 presença de um grupo: 02 (duas), 03 (três) ou
Evidentemente, cuida-se de novatio legis in 04 (quatro)?
pejus, daí por que esta causa de aumento de A nosso juízo, com todas as mudanças pro-
pena e o novel crime do art. 288-A poderão vocadas pela Lei nº 12.850/13, o ideal é concluir
incidir apenas em relação aos fatos delituosos que são necessárias pelo menos 3 (três) pessoas
cometidos por milícias privadas ou por grupos para que se possa atestar a presença de um grupo
de extermínio a partir do dia 28 de setembro de extermínio, ainda que a execução direta da
de 2012, data da vigência da Lei nº 12.720/12. conduta de matar alguém seja delegada a apenas
Nesse caso, evidenciada a estabilidade e per- um de seus membros.
manência do grupo de extermínio, o agente deverá Quando o legislador quer se referir à necessi-
responder pelo crime de homicídio (simples ou dade de duas pessoas, o faz de maneira expressa.
qualificado), com a aplicação da majorante do § A título de exemplo, basta atentar para a redação
6º do art. 121 – que continua sendo considerado da qualificadora do crime de furto constante
hediondo com fundamento no art. 1º, I, 1ª parte, do art. 155, § 4º, inciso IV, do CP: “mediante
da Lei nº 8.072/90 –, em concurso material com
o novel delito do art. 288-A, todos do Código 12. Valendo-se de um exemplo aleatoriamente escolhido, podemos dizer
que este raciocínio referente à ausência de bis in idem é bem semelhante
àquele atinente ao concurso material entre o crime de roubo circuns-
9. Para mais detalhes acerca dos conceitos de organização paramilitar, tanciado pelo emprego de arma de fogo (CP, art. 157, § 2º, I) e o delito
milícia particular, ou grupo ou esquadrão, remetemos o leitor ao capítulo de associação criminosa armada (CP, art. 288, parágrafo único), hipótese
referente às organizações criminosas. esta que, segundo o próprio Supremo, não configura dupla punição pelo
10. A Lei nº 12.720/12 também acrescentou uma causa de aumento de mesmo fato, seja porque não há nenhuma relação de dependência ou
pena ao crime de lesão corporal, nos seguintes termos: “Aumenta-se a subordinação entre as referidas condutas delituosas, seja porque visam à
pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4º e 6º proteção de bens jurídicos diversos. A propósito: STF, 2ª Turma, HC 113.413/
do art. 121 deste Código” (CP, art. 129, § 7º). SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 16/10/2012, DJe 222 09/11/2012. E
11. Como observa Cleber Masson (Código Penal comentado. São Paulo: ainda: STF, 1ª Turma, RHC 102.984/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 08/02/2011,
Editora Método, 2013. p. 476), a novel causa de aumento de pena do art. DJe 86 09/05/2011.
121, § 6º, do do CP, incide no homicídio doloso – simples, privilegiado ou 13. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora
qualificado –, consumado ou tentado. Objetiva, 2009. p. 992.
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ESTATUTO DO DESARMAMENTO
LEI 10.826/2003

1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS: A SOCIEDADE crime de mera conduta e de perigo abstrato que


CIVIL (DES) ARMADA. tem como bem jurídico tutelado a segurança e a
paz públicas é idêntica à pena mínima cominada
Em referendo realizado em outubro de 2005,
para o crime de homicídio simples (CP, art. 121,
63% dos brasileiros votaram favoravelmente à
caput), crime de lesão que atenta contra o bem
comercialização de armas de fogo, acessórios e
jurídico mais relevante de todos, a vida.
munições.1 Conquanto mantida a comercialização,
a Lei n. 10.826/03 impôs rígido controle de arma- Esse recrudescimento penal e administrativo
mento, adotando uma política de desarmamento decorrente do Estatuto do Desarmamento despertou
da população civil, restringindo ao máximo a – e continua despertando – debates acalorados. Isso
porque é cada vez maior o coro de vozes daqueles
possibilidade de as pessoas possuírem e porta-
que sustentam que toda e qualquer pessoa tem
rem armas de fogo e munições. De fato, uma das
direito a possuir armas de fogo, seja para fins de
marcas do Estatuto foi exatamente a de tornar
autodefesa, seja para defesa do patrimônio próprio
ainda mais difícil a autorização para aquisição das
ou alheio. Vejamos as duas correntes acerca da
armas e a obtenção de autorização para o porte,
polêmica, e seus respectivos argumentos:
pelo menos para os cidadãos que não fazem parte
das instituições de segurança pública. a) sociedade civil armada: à semelhança
do que ocorre nos Estados Unidos da América,2
Para além do incremento da burocracia legal onde armas são vendidas livremente em lojas de
necessária para se obter a autorização para a posse artigos esportivos, e até mesmo para crianças
e, especialmente, para o porte legal de uma arma e adolescentes,3 há quem entenda que se deve
de fogo, acessório ou munição, também houve um assegurar a toda e qualquer pessoa maior liber-
recrudescimento da punição aos crimes atinentes à dade para comprar armas, pois todos têm direito
posse e porte de armas de fogo, de uso permitido, à legitima defesa contra atentados contra a sua
proibido ou restrito. Somente a título de exemplo, vida, integridade física, liberdade e propriedade.
enquanto o art. 10, §2º, da antiga Lei de Armas Essa maior flexibilização do acesso às armas pela
(revogada Lei n. 9.437/97) cominava uma pena de população civil teria efeitos imediatos na redução
reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, dos índices criminais. Isso porque os criminosos
para o crime de porte ilegal de arma de fogo de teriam receio de serem vítimas de um disparo
uso restrito, essa mesma conduta, sob a égide da de arma de fogo por ocasião da prática de um
Lei n. 10.826/03 (art. 16), passou a se sujeitar a
uma pena de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, 2. Nos Estados Unidos da América, o direito de ter armas chega a ser
e multa. Ou seja, de maneira absurdamente des- tratado em nível constitucional. A Segunda Emenda à Constituição dos
EUA estabelece que “sendo necessária à segurança de um Estado livre a
proporcional, a pena máxima cominada a um existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e
usar armas não poderá ser infringido”.
3. Pedindo vênia ao leitor para falar na primeira pessoa, conto um pouco
1. Lei n. 10.826/03: “Art. 35. É proibida a comercialização de arma de da minha experiência pessoal, apenas para demonstrar o quanto a cultura
fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades de armas é difundida nos Estados Unidos: entre agosto de 1993 e junho de
previstas no art. 6º desta Lei. §1º Este dispositivo, para entrar em vigor, 1994, morei nos EUA como estudante intercambiário. Durante esse período
dependerá de aprovação, mediante referendo popular, a ser realizado residi no Estado de Minnesota, numa pequena cidade chamada Hugo. Na
em outubro de 2005. §2º Em caso de aprovação do referendo popular, família com a qual morava, composta pelo pai, pela mãe, por uma filha e
o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu um filho, este último, que tinha apenas 13 (treze) anos de idade, guardava
resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral”. sobre o guarda-roupa um rifle semiautomático municiado para caçar.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

crime qualquer. Enfim, mais armas, menos crimes. mortes foi alavancada, de forma quase exclusiva,
Argumenta-se, ademais, que tamanhas restrições pelos homicídios por arma de fogo, que cresceram
impostas à sociedade civil quanto ao acesso às 592,8%, setuplicando, em 2014, o volume de 1980.
armas de fogo não contribuem para a diminuição
da circulação de tais artefatos, porquanto os crimi- 1.1. Caos normativo decorrente da sucessão
nosos certamente continuarão tendo acesso a eles, de Decretos do Presidente da República ao
porque assim o fazem de maneira ilegal. É dizer, longo do ano de 2019.
para os criminosos, não é o fato de o Estatuto do
Desarmamento ter incrementado a punição aos Ao longo dos 4 (quatro) anos de governo do
crimes relacionados à posse e porte de armas de ex-Presidente Jair Bolsonaro, e de modo a atender
fogo que irá dissuadi-los quanto à aquisição de tais às promessas de campanha, foram editados mais de
artefatos, sobretudo porque deles necessitam para 10 (dez) Decretos com o objetivo de regulamentar
levar adiante a prática de outros crimes contra a a Lei n. 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento),
vida, contra o patrimônio, etc.; instalando, nessa seara, um verdadeiro caos nor-
mativo. São eles, pelo menos por enquanto: Decreto
b) sociedade civil desarmada (nossa posição):
n. 9.685, de 15 de janeiro de 2019, revogado pelo
o aumento do número de armas em mãos da so-
Decreto n. 9.785, de 7 de maio de 2019, revogado
ciedade civil contribui, inegavelmente, não apenas
pelo Decreto n. 9.844, de 25 de junho de 2019,
para o incremento de confrontos letais em discus-
revogado pelo Decreto n. 9.847, de 25 de junho de
sões banais do nosso cotidiano, seja numa briga de
2019, o qual, por sua vez, teve diversos dispositivos
trânsito, seja numa discussão entre torcedores de
alterados e revogados pelo Decreto n. 10.630/21.
times rivais, não muito frequentemente sob efeito
No meio tempo, também foi editado o Decreto
de álcool, como também facilita sobremaneira o
acesso dos criminosos às armas que estariam de n. 9.797, de 21 de maio de 2019, que também foi
posse da população civil. É ilusório, ademais, acre- revogado pelo Decreto n. 9.844/19, o qual, como
ditar que o fato de um civil estar armado poderá exposto anteriormente, foi revogado pelo Decreto
contribuir para a redução das estatísticas criminais. n. 9.847/19. Para além deste último – Decreto n.
Ora, diversamente de um criminoso, que já traz a 9.847/19 –, que, pelo menos por ora, ainda está
arma em suas mãos, pronta, portanto, para o uso, vigente, também estão em vigor os Decretos 9.845
e está acostumado a usá-la no dia-a-dia, o civil e 9.846, ambos de 25 de junho de 2019, os quais
não está preparado para manusear a arma de fogo tiveram diversos dispositivos alterados e revogados
de imediato. Logo, ao tentar oferecer resistência a pelos Decretos 10.628/21 e 10.629/21, respectiva-
uma investida criminosa, como, por exemplo, numa mente, e o Decreto n. 10.030, de 30 de setembro
tentativa de roubo circunstanciado pelo emprego de 2019, que também sofreu alterações em virtude
de arma, tal civil poderia acabar sendo ferido ou pelo Decreto n. 10.627/21.
morto, aumentando ainda mais a letalidade no A legalidade5 desse “conjunto” normativo tem
nosso país e ensejando ao infrator a possibilidade sido alvo de diversas críticas. Isso porque é fla-
de subtração de mais uma arma de fogo e munição. grante o desrespeito a diversos pontos do Estatuto
O Estado deve, portanto, desenvolver uma política do Desarmamento. Não por outro motivo, diversos
eficaz de combate à comercialização e circulação procedimentos já foram instaurados no Congresso
de armas de fogo, até mesmo para tentar pôr Nacional para sustar a execução desses decretos,
freio à escalada de crimes cometidos por armas isso sem contar nas inúmeras Ações Diretas de
de fogo. Deveras, de acordo com os registros do Inconstitucionalidade – ADI’s 6.119, 6.134 e 6.139,
Subsistema de Informação sobre Mortalidade do 6.675, 6.676, 6.677, 6.680 e 6.695 – e Arguições
Ministério da Saúde (SIM/MS), é possível afirmar de Descumprimento de Preceito Fundamental
que, entre 1980 e 2014, morreram 967.851 pessoas
no Brasil, vítimas de disparo de algum tipo de longo desse período. Entre 1980 e 2003, o crescimento dos homicídios por
arma de fogo. Nesse período, as vítimas passaram armas de fogo foi sistemático e constante, com um ritmo enormemente
acelerado: 8,1% ao ano. A partir do pico de 36,1 mil mortes em 2003, os
de 8.710, no ano de 1980, para 44.861, em 2014, o números caíram, pelo menos num primeiro momento, para aproximada-
que representa um crescimento em torno de 65%. mente 34 mil e, depois de 2008, ficaram oscilando em torno de 36 mil
mortes anuais, para acelerar novamente a partir de 2012. Por isso, conclui
Segundo Julio Jacobo Waiselfisz,4 essa eclosão das o autor que o Estatuto e a Campanha do Desarmamento, iniciados em
2004, funcionaram como um dos fatores determinados para a explicação
dessa queda de ritmo dos homicídios por armas de fogo.
4. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2016: homicídios por 5. Atos regulamentares, cujo conteúdo ultrapassa o que na lei regula-
armas de fogo no Brasil. Disponível em: https://www.mapadaviolencia.org. mentada se contém, podem estar eivados de ilegalidade. Nesse sentido:
br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf Acesso em: 29/10/2018. Segundo o STF, Pleno, ADI 4.176 AgR/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 20/06/2012, DJe
autor, a evolução da letalidade das armas de fogo não foi homogênea ao 150 31/07/2012.
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ESTATUTO DO DESARMAMENTO • Lei 10.826/2003

– ADPF’s 581 e 586 – que foram propostas perante Tribunal Federal nas ADI’s 6.119, 6.139 e 6.466
o Supremo Tribunal Federal. MC-Ref/DF, que será objeto de análise na sequência,
Não por outro motivo, em nota técnica elabo- caçadores poderiam até 30 armas, sendo 15 de uso
rada em outubro de 2019, a Procuradoria Federal permitido e 15 de uso restrito, o que inclui armas
dos Direitos do Cidadão do Ministério Público não portáteis; atiradores, até 60 armas, sendo 30 de
Federal afirmou: “(...) Nesse cenário de profusão uso permitido e 30 de uso restrito. Essas categorias
e confusão de preceitos, não é exagerado dizer poderiam adquirir até mil munições anuais para
que, para a polícia, no exercício de suas funções cada arma de fogo de uso restrito e cinco mil mu-
administrativas e também de patrulhamento, ficou nições para as de uso permitido. Assim, um único
praticamente impossível discernir o que é autorizado atirador poderia, a cada ano, comprar até 150 mil
ou não autorizado em termos de posse de armas. munições de armas de uso permitido e até 30 mil
E isso gera deterioração da capacidade do Poder munições de armas de uso restrito, sem qualquer
Público de controlar e reprimir adequadamente intervenção ou controle pelo Poder Público, que
o comércio, a posse e o porte ilícito de armas de será apenas informado da aquisição;
fogo, com o consequente alargamento de espaços d) autorização para que menores de 14 a 18
para que organizações criminosas violentas e milí- anos pratiquem tiro, sem a necessidade de auto-
cias tenham acesso indireto a produtos de elevado rização ou controle estatal, em contrariedade à
poderio bélico”.6 regra que fixa a idade mínima de 25 anos para a
Essa avalanche de Decretos tem sido levada posse de armas de fogo (Lei n. 10.826/03, art. 28)
adiante à margem do necessário respeito aos prin- e ao princípio da proteção integral da criança e
cípios da legalidade, da separação dos poderes, do do adolescente.
devido processo legal substantivo, bem como das Não por outro motivo, no bojo da ADI n. 6.675/
normas constitucionais que dão as balizas para DF (j. 12.04.2021), a Min. Rosa Weber deferiu, em
a promoção do direito fundamental à segurança parte, os pedidos de medida cautelar pleiteados, ad
pública no País (CF, arts. 5º, caput, 6º, caput, e referendum do Plenário do STF, para suspender a
144). Dentre as principais violações ao Estatuto eficácia de diversos dispositivos constantes desses
do Desarmamento perpetradas por esses diversos Decretos, na parte em que introduzem as seguintes
Decretos, merecem especial destaque: inovações: i. Afastamento do controle exercido pelo
Comando do Exército sobre projéteis para armas
a) dispensa da obrigação do interessado de
de até 12,7 mm, máquinas e prensas para recarga
comprovar a efetiva necessidade para a compra e
de munições e de diversos tipos de miras, como as
posse de arma, requisito básico para tanto, conso-
telescópicas; ii. Autorização para a prática de tiro
ante disposto no art. 4º, caput, da Lei n. 10.826/03;
recreativo em entidades e clubes de tiro, indepen-
b) ampliação do conceito de residência ou dentemente de prévio registro dos praticantes; iii.
domicílio, para o propósito de, no caso das pro- Possibilidade de aquisição de até seis armas de fogo
priedades rurais, autorizar que o armamento seja de uso permitido por civis e oito armas por agentes
utilizado em toda a extensão da propriedade, edi- estatais com simples declaração de necessidade, com
ficada ou não, em que resida ou tenha instalação presunção de veracidade; iv. Comprovação, pelos
o titular do registro, seja pessoa física ou jurídica, CAC’s (caçadores, atiradores e colecionadores) da
atentando, in casu, contra a redação original do capacidade técnica para o manuseio de armas de
art. 5º, caput, da Lei n. 10.826/03. Esta ilegalidade, fogo por laudo de instrutor de tiro desportivo; v.
todavia, acabou sendo sanada pelo advento da Lei Comprovação pelos CAC’s da aptidão psicológica
n. 13.870/19, que acrescentou o §5º ao art. 5º da para aquisição de arma mediante laudo fornecido
Lei n. 10.826/03 para dispor que “aos residentes por psicólogo, dispensado o credenciamento na
em área rural, para os fins do disposto no caput Polícia Federal; vi. Dispensa de prévia autorização
deste artigo, considera-se residência ou domicílio do Comando do Exército para que os CAC’s possam
toda a extensão do respectivo imóvel rural”; adquirir armas de fogo; vii. Aumento do limite
c) tratamento privilegiado para caçadores, máximo de munições que podem ser adquiridas,
colecionadores e atiradores (CAC) nas regras de anualmente, pelos CAC’s; viii. Possibilidade do
registro, posse e porte de armas, sem amparo na lei. Comando do Exército autorizar os CAC’s a ad-
Pelo menos até a decisão proferida pelo Supremo quirir munições em número superior aos limites
pré-estabelecidos; ix. Aquisição de munições por
6. Nota Técnica Conjunta n. 2/2019, PFDC/7ªCCR/MPF, de 14 de outubro
entidades e escolas de tiro em quantidade ilimita-
de 2019. da; x. Prática de tiro desportivo por adolescentes a
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

partir dos 14 nos de idade completos; xi. Validade alteração dada pelo Decreto 9.685/2019);8 do art. 9º,
do porte de armas para todo território nacional; §1º, do Decreto 9.785/2019;9 e do art. 3º, §1º, do
xii. Porte de trânsito dos CAC’s para armas de Decreto 9.845/2019;10 e (i.2) concedeu a cautelar
fogo municiadas; e xiii. Porte simultâneo de até para conferir interpretação conforme à Constituição ao
duas armas de fogo por cidadãos. art. 4º do Estatuto do Desarmamento;11 ao inciso I do
Na mesma linha, por ocasião do julgamento art. 9º do Decreto 9.785/2019;12 e ao inciso I do
das ADI’s 6.119, 6.139 e 6.466 MC-Ref/DF,7 o art. 3º do Decreto 9.845/2019,13 fixando a
Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu orientação hermenêutica de que a posse de armas de
que a flexibilização, via decreto presidencial, dos fogo só pode ser autorizada às pessoas que de-
critérios e requisitos para a aquisição de armas de monstrem concretamente, por razões profissionais ou
fogo prejudica a fiscalização do Poder Pú-blico, pessoais, possuírem efetiva necessidade;
além de violar a competência legislativa em (ii) a decisão que concedeu, com efeitos ex
sentido estrito para a normatização das hi-póteses nunc, a medida cautelar para: (ii.1) dar interpretação
legais quanto à sua efetiva necessidade. Na visão conforme a Constituição ao art. 4o, § 2o, da Lei
da Corte, do exame do ordenamento jurídico- 10.826/2003,14 para se fixar a tese de que a limitação
constitucional brasileiro, já consideradas as dos quantitativos de munições adquiríveis se vincula
incorporações provenientes do direito interna-cional àquilo que, de forma diligente e proporcional, ga-
sobre direitos humanos, é possível concluir que (a) o ranta apenas o necessário à segurança dos cidadãos;
direito à vida e à segurança geram o dever positivo (ii.2) dar interpretação conforme a Constituição ao art.
do Estado ser o agente primário na construção de 10, § 1º, I, da Lei 10.826/2003,15 para fixar a tese
uma política pública de segurança e controle da hermenêutica de que a atividade regulamentar do
violência armada; (b) não existe direito fundamental Poder Executivo não pode criar presunções de efetiva
de possuir armas de fogo no Brasil; necessidade outras que aquelas já discipli-nadas em
(c) ainda que a Constituição Federal não proíba
lei; (ii.3) dar interpretação conforme a Constituição
universalmente a aquisição e o porte de armas de
ao art. 27 da Lei 10.826/2003,16 a fim
fogo, ela exige que sempre ocorram em caráter
excepcional, devidamente justificado por uma
particular necessidade; (d) o dever de diligência 8. Decreto n. 5.123/04: “Art. 12. (…) §1o Presume-se a veracidade dos fatos e
das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade a que se refere o
estatal o obriga a conceber e implementar meca- inciso I do caput, a qual será eaxminada pela Polícia Federal nos termos deste
artigo. (…) §7o Para a aquisição de armas de fogo de uso permitido, considera-
nismos institucionais e regulatórios apropriados se presente a efetiva necessidade nas seguintes hipóteses: (…) IV – residents em
para o controle do acesso a armas de fogo, como áreas urbanas com elevados índices de violência, assim consideradas aquelas
localizadas em unidades federativas com índices anuais de mais de dez
procedimentos fiscalizatórios de licenciamento, de homicícios por cem mil habitants, no ano de 2016, conforme os dados do Atlas
registro, de monitoramento periódico e de exigência de da VioLência 2018, produzido pelo Institutio de Pesquisa Econômica Aplicada e
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública”.
treinamentos compulsórios; e (e) qualquer 9. Decreto 9.785/2019: “Art. 9º. (...) §1º Presume-se a veracidade dos fatos e
política pública que envolva acesso a armas de das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade a que se refere
o inciso I do caput”.
fogo deve observar os requisitos da necessidade, da 10. Decreto 9.845/2019: “Art. 3º (...) §1º Presume-se a veracidade dos fatos e
adequação e da proporcionalidade. Nesse con-texto, das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade a que se refere
o inciso I do caput”.
não cabe ao Poder Executivo, no exercício de sua
atividade regulamentar, criar presunções de efetiva 11. Lei n. 10.826/03: “Art. 4º Para adquirir arma de fogo de uso permitido
o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos
necessidade para a aquisição de uma arma de fogo seguintes requisitos: (...)”.
distintas das hipóteses já disciplinadas em lei, visto se 12. Decreto 9.785/2019: “Art. 9º Para fins de aquisição de arma de fogo
de uso permitido e de emissão do Certificado de Registro de Arma de fogo,
tratar de requisito cuja demonstração fática é o interessado deverá: I – apresentar declaração de efetiva necessidade; (...)”.
indispensável, mostrando-se imperti-nente 13. Decreto n. 9.845/19: “Art. 3º Para fins de aquisição de arma de fogo
de uso permitido e de emissão do Certificado de Registro de Arma de Fogo
estabelecer a inversão do ônus probatório quanto administrada pelo Sistema Nacional de Armas – Sinarm, o interessado deverá: I –
à veracidade das informações constantes na apresentar declaração de efetiva necessidade; (...)”.
14. Lei n. 10.826/03: “Art. 4º Para adequirir arma de fogo de uso permi-tido o
declaração de seu preenchimento. Com base nesse interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes
entendimento, o Plenário, por maioria, em requisitos: (...) §2º A aquisição de munição somente poderá ser feita no calibre
correspondente à arma registrada e na quantidade estabelecida no
apreciação conjunta, referendou: regulamento desta Lei”.
i. a decisão que: (i.1) concedeu com efeitos ex 15. Lei n. 10.826/03: “Art. 10. A autorização para o porte de arma de fogo de uso
permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e
nunc a medida cautelar para suspender a eficácia do somente será concedida após autorização do Sinarm. §1º A auto-rização prevista
neste artigo poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada,
art. 12, §1º e §7º, IV, do Decreto 5.123/2004 (com nos termos de atos regulamentares, e dependerá de
o requerente: I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de
atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física; (...)”.
7. STF, Pleno, ADI’s 6.119, 6.139 e 6.466 MC-Ref/DF, Rel. Min. Edson 16. Lei n. 10.826/03: “Art. 27. Caberá ao Comando do Exército autorizar,
Fachin, j. 20.9.2022. excepcionalmente, a aquisição de armas de fogo de uso restrito”.
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ESTATUTO DO DESARMAMENTO • Lei 10.826/2003

de fixar a tese hermenêutica de que aquisição de cadastrar as transferências de propriedade, extra-


armas de fogo de uso restrito só pode ser autorizada vio, furto, roubo e outras ocorrências suscetíveis
no interesse da própria segurança pública ou da de alterar os dados cadastrais, inclusive as decor-
defesa nacional, não em razão do interesse pessoal rentes de fechamento de empresas de segurança
do requerente; e (ii.4) suspender a eficácia do art. privada e de transporte de valores; e) identificar
3º, II, “a”, “b” e “c” do Decreto 9.846/2019;17 e as modificações que alterem as características ou
(iii) a decisão que concedeu, com efeitos o funcionamento de arma de fogo; f) integrar no
ex nunc, a medida cautelar para: (iii.1) dar cadastro os acervos policiais já existentes; g) ca-
interpretação conforme a Constituição ao art. dastrar as apreensões de armas de fogo, inclusive
4º, §2º, da Lei 10.826/2003;18 ao art. 2º, §2º, do as vinculadas a procedimentos policiais e judiciais;
Decreto 9.845/2019;19 e ao art. 2º, §3º, do Decre- h) cadastrar os armeiros em atividade no País, bem
to 9.847/2019,20 fixando a tese de que os limites como conceder licença para exercer a atividade;
quantitativos de munições adquiríveis se limitam i) cadastrar mediante registro os produtores, ata-
àquilo que, de forma diligente e proporcional, cadistas, varejistas, exportadores e importadores
garanta apenas o necessário à segurança dos autorizados de armas de fogo, acessórios e munições;
cidadãos; e (iii.2) suspender a eficácia da Portaria j) cadastrar a identificação do cano da arma, as
Interministerial 1.634/2020-GM-MD.21 características das impressões de raiamento e de
microestriamento de projétil disparado, conforme
2. SUBDIVISÃO DO ESTATUTO DO DESAR- marcação e testes obrigatoriamente realizados pelo
MAMENTO. fabricante; k) informar às Secretarias de Segu-
O Estatuto do Desarmamento é dividido em 6 rança Pública dos Estados e do Distrito Federal
(seis) capítulos, estruturados nos seguintes termos: os registros e autorizações de porte de armas de
fogo nos respectivos territórios, bem como manter
a) Capítulo I (“Do Sistema Nacional de Ar- o cadastro atualizado para consulta. Por força
mas”): abrange os dois primeiros artigos da Lei n. do art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 10.826/03,
10.826/03. Com circunscrição em todo o território estão expressamente excluídas das atribuições do
nacional, compete ao Sistema Nacional de Armas
SINARM as armas de fogo das Forças Armadas
(SINARM), instituído no Ministério da Justiça
e Auxiliares, bem como as demais que constem
no âmbito da Polícia Federal: a) identificar as
dos seus registros próprios. Ao mesmo tempo, o
características e a propriedade de armas de fogo,
art. 4º do Decreto n. 9.847/19 previu o Sistema
mediante cadastro; b) cadastrar as armas de fogo
de Gerenciamento Militar de Armas (SIGMA),
produzidas, importadas e vendidas no País; c) ca-
instituído no Ministério da Defesa no âmbito do
dastrar as autorizações de porte de arma de fogo
Comando do Exército. Há, portanto, dois sistemas
e as renovações expedidas pela Polícia Federal; d)
diferentes para registro de armas de fogo;22
b) Capítulo II (“Do Registro”): compreende
17. Decreto 9.846/2019: “Art. 3º A aquisição de arma de fogo de porte e
de arma de fogo portátil por colecionadores, atiradores e caçadores estará os arts. 3º, 4º e 5º. Grosso modo, dispõe sobre os
condicionada aos seguintes limites: (...) II – para armas de uso restrito: a)
cinco armas de cada modelo, para os colecionadores; b) quinze armas,
requisitos para que alguém possa adquirir arma
para os caçadores; e c) trinta armas, para os atiradores”. de fogo de uso permitido. Cuida, ademais, do
18. Lei n. 10.826/03: “Art. 4º (...) §2º A aquisição de munição somente
poderá ser feita no calibre correspondente à arma registrada e na quan-
certificado de registro de arma de fogo;23
tidade estabelecida no regulamento desta Lei”. c) Capítulo III (“Do porte”): compreende os
19. Decreto 9.845/2019: “Art. 2º (...) §2º Ato conjunto do Ministro de
Estado da Defesa e do Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública arts. 6º ao 11. Em síntese, o Capítulo em questão
estabelecerá as quantidades de munições passíveis de aquisição pelas
pessoas físicas autorizadas a adquirir ou portar arma de fogo e pelos inte-
grantes dos órgãos e das instituições a que se referem o §2º do art. 4º, os 22. Ao SIGMA compete manter cadastro nacional das armas de fogo
incisos I a VII e X do caput do art. 6º da Lei n. 10.826, de 2003, observada a importadas, produzidas e comercializadas no País que não estejam sujeitas
legislação, no prazo de sessenta dias, contado da data de publicação do ao cadastramento no Sinarm. Consoante disposto no art. 4º, §2º, do Decreto
Decreto n. 10.030, de 30 de setembro de 2019”. n. 9.847/19, serão cadastradas no Sigma as armas de fogo, ainda que de uso
20. Decreto 9.847/2019: “Art. 2º (...) §3º Ato conjunto do Ministro de permitido: I – institucionais, constantes de registros próprios: a) das Forças
Estado da Defesa e do Ministro de Estado da Justiça e Seegurança Pública Armadas; b) das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares dos
estabelecerá as quantidades de munições passíveis de aquisição pelas Estados e do Distrito Federal; c) da Agência Brasileira de Inteligência; e d)
pessoas físicas autorizadas a adquirir ou portar arma de fogo e pelos do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; II – dos
integrantes dos órgãos e das instituições a que se referem os incisos I a VII e integrantes: a) das Forças Armadas; b) das polícias militares e dos corpos
X do caput do art. 6º da Lei n. 10.826, de 2003, observada a legislação, no de bombeiros militares dos Estados e do Distrito Federal; c) da Agência
prazo de sessenta dias, contado da data de publicação do Decreto n. Brasileira de Inteligência; e d) do Gabinete de Segurança Institucional da
10.030, de 30 de setembro de 2019”. e Presidência da República; III – obsoletas; IV – das representações diplomá-
21. Referida Portaria estabelecia os quantitativos máximos de munições ticas; e V – importadas ou adquiridas no País com a finalidade de servir
passíveis de aquisição pelos integrantes dos órgãos e instituições previstos como instrumento para a realização de testes e avaliações técnicas. Serão,
nos incisos I a VII e X do caput do art. 6º da Lei n. 10.826, de 2003, pelas ainda, cadastradas no Sigma as informações relativas às importações e às
pessoas físicas autorizadas a adquirir ou portar arma de fogo, e pelos exportações de armas de fogo, munições e demais produtos controlados.
demais agentes autorizados por legislação especial a portar arma de fogo. 23. Vide adiante comentários ao conceito de registro de arma de fogo.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

proíbe o porte de arma de fogo em todo o terri- regulamento da Lei 10.826/03.25 Uma vez atendidos
tório nacional, salvo para os casos previstos em esses requisitos, o SINARM expedirá autorização
legislação própria e para as hipóteses elencadas nos de compra de arma de fogo em nome do reque-
incisos do art. 6º da Lei n. 10.826/03;24 rente e para a arma indicada, sendo intransferível
d) Capítulo IV (“Dos crimes e das penas”): esta autorização.
abrange os arts. 12 a 21. É a parte criminal, pro- Esses requisitos constantes do art. 4º do Esta-
priamente dita, do Estatuto de Desarmamento, tuto do Desarmamento eram regulamentados pelo
onde estão inseridos não apenas os crimes (arts. 12 art. 12 do Decreto n. 5.123/04, o qual, todavia, foi
a 18), como também causas de aumento de pena revogado pelo Decreto n. 9.785/19, posteriormente
(arts. 19 e 20) e disposições referentes à liberdade revogado pelo Decreto n. 9.844/19, o qual, por
sua vez, foi revogado pelo Decreto n. 9.847/19,
provisória (art. 21), cuja inconstitucionalidade, aliás,
cujo art. 12 prevê que, para fins de aquisição
foi declarada pelo STF no julgamento da ADI 3.112;
de arma de fogo de uso permitido e de emissão
e) Capítulo V (“Disposições Gerais”): abran- do Certificado de Registro de Arma de Fogo, o
ge os arts. 22 ao 37. Como sugere o nome do interessado deverá: I – ter, no mínimo, vinte e
Capítulo, versa sobre aspectos gerais atinentes ao cinco anos de idade;26 II – apresentar original e
Estatuto do Desarmamento, como, por exemplo, a cópia de documento de identificação pessoal; III –
destruição das armas de fogo apreendidas (art. 25), comprovar a idoneidade moral e a inexistência de
a proibição da fabricação, venda, comercialização inquérito policial ou processo criminal, por meio
e importação de brinquedos, réplicas e simulacros de certidões de antecedentes criminais das Justiças
de armas de fogo, que com estas possam se con- Federal, Estadual, Militar e Eleitoral; IV – apresentar
fundir (art. 26), etc.; documento comprobatório de ocupação lícita e de
f) Capítulo VI (“Disposições finais”): com- residência fixa; V – comprovar, periodicamente, a
preende os arts. 35, 36 e 37. capacidade técnica para o manuseio da arma de
fogo; e VI – comprovar a aptidão psicológica para
Para além dos 6 Capítulos acima relacionados, o manuseio da arma de fogo, atestada em laudo
a Lei n. 10.826/03 também contém um anexo, com conclusivo fornecido por psicólogo credenciado
tabela de taxas para registro das armas, renovação pela Polícia Federal.
do certificado de registro, etc.
4. REGISTRO DE ARMA DE FOGO.
3. AQUISIÇÃO DE ARMA DE FOGO.
Registro de Arma de Fogo é a autorização
Nos exatos termos do art. 4º do Estatuto do para o proprietário manter a arma de fogo ex-
Desarmamento, para adquirir arma de fogo de uso clusivamente no interior de sua residência ou
permitido, o interessado deverá, além de demonstrar domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no
concretamente, por razões profissionais ou pesso- seu local de trabalho, desde que seja ele o titular
as, possuir efetiva necessidade (STF, Pleno, ADI’s ou o responsável legal pelo estabelecimento ou
6.119, 6.139 e 6.466 MC-Ref/DF, Rel. Min. Edson empresa, valendo lembrar que, para os residentes
Fachin, j. 20.9.2022), atender aos seguintes requisitos em área rural, considera-se residência ou domicílio
cumulativos, que devem ser comprovados, periodi- toda a extensão do respectivo imóvel rural (Lei n.
camente, em período não inferior a 3 (três) anos: 10.926/03, art. 5º, §5º, incluído pela Lei n. 13.870/19).
a) comprovação de idoneidade, com a apresentação Com o advento do Estatuto do Desarmamento,
de certidões negativas de antecedentes criminais as armas de fogo devem ser registradas na Polícia
fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar Federal ou no Comando do Exército, nos seguintes
e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito termos:
policial ou a processo criminal, que poderão ser a) Polícia Federal: por força do art. 3º, §3º,
fornecidas por meios eletrônicos; b) apresentação do Decreto n. 9.847/19, deverão ser registradas –
de documento comprobatório de ocupação lícita e e cadastradas no SINARM –, dentre outras, as
de residência certa; c) comprovação de capacidade
técnica e de aptidão psicológica para o manuseio 25. O interessado em adquirir arma de fogo de uso permitido que
comprove estar autorizado a portar arma com as mesmas características
de arma de fogo, atestadas na forma disposta no daquela a ser adquirida está dispensado desta exigência.
26. No Brasil, menores de 25 anos não podem adquirir armas de fogo,
salvo se integrantes das entidades previstas nos incisos I, II, III, V, VI, VII e X
24. Para mais detalhes acerca do porte de arma de fogo, vide adiante do caput do art. 6º do Estatuto, por força do que dispõe seu art. 28, com a
comentários ao art. 12 da Lei n. 10.826/03. nova redação que lhe foi dada pela Lei n. 11.706/08.
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ESTATUTO DO DESARMAMENTO • Lei 10.826/2003

armas de fogo adquiridas pelo cidadão comum e arma de fogo está restrito ao trajeto indispensável
que tenham atendido às disposições do art. 4º da à prática do desporto, é dizer, na eventualidade de
Lei n. 10.826/03, as armas de fogo das empresas o atirador portar sua arma em local ou horário
de segurança privada e de transporte de valores, incompatíveis com o esporte, restarão tipificados
as armas de fogo institucionais, constantes de os crimes dos arts. 14 ou 16, a depender da arma
cadastros próprios, e dos integrantes da Polícia de fogo em questão.
Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Força
Nacional de Segurança Pública, do Departamento 5. AUTORIZAÇÃO DE PORTE DE ARMA DE
Penitenciário Nacional, das polícias civis dos Esta- FOGO.
dos e do Distrito Federal, dos órgãos policiais da
Como exposto anteriormente, o registro de
Câmara dos Deputados e do Senado Federal, das
arma de fogo autoriza o agente a possuir arma
guardas municipais, etc. De se notar que cabe ao
de fogo, acessório ou munição, exclusivamente
SINARM cadastrar a arma e autorizar a expedição
em sua residência ou local de trabalho, desde que
do certificado, que, na verdade, é expedido pela
seja o proprietário ou o responsável legal pelo es-
Polícia Federal;
tabelecimento. Não se confunde, portanto, com o
b) Comando do Exército: deverão ser cadas- porte de arma de fogo, que deve ser compreendido
tradas no SIGMA as armas de fogo listadas no art. como uma autorização legal ou da autoridade para
4º, §2º, do Decreto n. 9.847/19. Por força do art. carregar uma arma, vinculado ao prévio registro
1º, §1º, do Decreto n. 9.846/19, as armas de fogo da arma,27 que autoriza o agente a trazê-la consigo,
de colecionadores, atiradores e caçadores também em condições de uso imediato. Daí, logicamente,
serão cadastradas no Sistema de Gerenciamento os maiores rigores para a sua obtenção. Cuida-se
Militar de Armas – Sigma. de simples autorização, ou seja, é precária (art.
Em caso de mudança de residência ou outra 17 do Decreto n. 9.847/19) e tem prazo temporal
situação que implique no transporte de arma de determinado, restando sua renovação a critério da
fogo, o seu proprietário deverá solicitar guia de administração para que possa novamente aferir a
trânsito à Polícia Federal. Assim, se alguém tem continuidade da capacidade do sujeito em portar
o registro de um revólver calibre .38, e o mantém arma de fogo. Territorialmente também é limitado,
em sua residência, caso queira levá-lo para outra sendo que os limites constarão do próprio docu-
localidade, deverá solicitar a referida guia de trânsito, mento (art. 16, I, do Decreto n. 9.847/19).
sob pena de responder pelo crime de porte ilegal O porte de arma de fogo de uso permitido
de arma de fogo. Essa guia de trânsito também era também é emitido pela Polícia Federal, após regular
necessária para que atiradores esportivos fizessem autorização do SINARM. Cuida-se de documento
o transporte das armas utilizadas no desporto. obrigatório para a condução da arma e deverá
Nesse caso, a arma deveria ser transportada conter os seguintes dados (abrangência territorial,
desmuniciada, desmontada e, de preferência, no eficácia temporal, características da arma, número
porta-malas do veículo, evitando-se, assim, que do cadastro da arma no SINARM; identificação do
uma guia de trânsito fosse transformada em uma proprietário da arma; e assinatura, cargo e função
autorização para o porte. No entanto, a Portaria da autoridade concedente). O Porte de Arma de
n. 28 – COLOG, de 14 de março de 2017, passou Fogo é pessoal, intransferível e revogável a qual-
a permitir aos atiradores o porte de uma arma quer tempo, sendo válido apenas com relação à
de fogo municiada nos deslocamentos do local arma nele especificada e com a apresentação do
de guarda do acervo até os locais de prática e/ou documento de identificação do portador. Em se
treinamento. Mais recentemente, o art. 5º, §3º, tratando de portes funcionais (v.g., juízes e promo-
do Decreto n. 9.846/19, passou a dispor que os tores), o documento não indica qual a arma que
colecionadores, os atiradores e os caçadores po- poderá ser portada, mas exige-se que o portador
derão portar uma arma de fogo curta municiada,
alimentada e carregada, pertencente a seu acervo
27. O porte funcional previsto pela Lei n. 10.826/03 ou por outro texto
cadastrado no Sinarm ou no Sigma, conforme o legislativo (v.g., juízes e promotores) não afasta a necessidade do registro da
caso, sempre que estiverem em deslocamento para arma, sob pena de tipificação dos crimes dos arts. 14 ou 16, a depender da
espécie de arma em questão. Logicamente, armas com numeração, marca
treinamento ou participação em competições, por ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado,
meio da apresentação do Certificado de Registro de não podem ser portadas em hipótese alguma. Como já se pronunciou
o STJ, “(...) é típica e antijurídica a conduta de policial civil que, mesmo
Colecionador, Atirador e Caçado9r, do Certificado autorizado a portar ou possuir arma de fogo, não observa as imposições
de Registro de Arma de Fogo e da Guia de Tráfe- legais previstas no Estatuto do Desarmamento, que impõem registro das
armas no órgão competente (...)”. (STJ, 6ª Turma, RHC 70.141/RJ, Rel. Min.
go válidos. Em tal hipótese, o direito ao porte de Rogerio Schietti Cruz, j. 07/02/2017).
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

da arma tenha consigo sua carteira funcional e servidores de seus quadros pessoais que efetivamente
que a arma seja registrada. estejam no exercício de funções de segurança, na
forma de regulamento a ser emitido pelo Conselho
Pelo menos em regra, o porte de arma de Nacional de Justiça – CNJ e pelo Conselho Nacional
fogo é proibido em todo o território nacional, do Ministério Público – CNMP.
salvo para os casos previstos em legislação própria
Sempre houve controvérsias quanto à (in) cons-
(v.g., magistrados e promotores) e nas seguintes titucionalidade dessa restrição imposta aos guardas
hipóteses previstas no rol não taxativo do art. 6º municipais de municípios menores, que só poderiam
do Estatuto do Desarmamento: portar arma de fogo quando em serviço. De fato,
I – os integrantes das Forças Armadas; se levarmos em consideração que o art. 6º, §3º, da
II – os integrantes de órgãos referidos nos incisos Lei n. 10.826/03, dispõe que a autorização para o
I, II, III, IV e V do caput do art. 144 da Constituição porte de arma de fogo das guardas municipais,
Federal (v.g., policiais federais, rodoviários, ferroviá-
independentemente do número de habitantes do
rios, civis, policiais militares e membros dos corpos
de bombeiros militares), e os da Força Nacional de município, está condicionada à formação funcional
Segurança Pública (FNSP); de seus integrantes em estabelecimentos de ensino
III – os integrantes das guardas municipais das ca- de atividade policial, à existência de mecanismos
pitais dos Estados e dos Municípios com mais de de fiscalização e de controle interno, observada
500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições a supervisão do Ministério da Justiça, é de todo
estabelecidas no regulamento desta Lei: nesse caso, evidente que a população do município não é
os guardas municipais terão direito de portar arma um critério razoável para se estabelecer tamanho
de fogo de propriedade particular ou fornecida discrimine. Com efeito, se a função exercida por
pela respectiva corporação ou instituição, mesmo um guarda civil de uma capital é idêntica àquela
fora de serviço;
exercida por um guarda civil de uma cidade me-
IV – os integrantes das guardas municipais dos nor, e se a formação funcional de ambos deve ser
Municípios com mais de 50.000 (cinquenta mil)
e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes,
semelhante, por que admitir que aqueles possam
quando em serviço; portar armas de fogo fora do serviço, e estes não?
V – os agentes operacionais da Agência Brasileira
Somando-se a isso o fato de que agentes estatais
de Inteligência e os agentes do Departamento de ligados à segurança pública estão cada vez mais
Segurança do Gabinete de Segurança Institucional expostos a represálias cometidas por organizações
da Presidência da República; criminosas, pouco importando a população do
VI – os integrantes dos órgãos policiais referidos no município em questão, revela-se temerário privar
art. 51, IV, e no art. 52, XIII, da Constituição Federal; os guardas civis de instrumento indispensável
VII – os integrantes do quadro efetivo dos agentes para a sua própria segurança pessoal. Portanto, a
e guardas prisionais, os integrantes das escoltas de nosso juízo, revela-se inconstitucional, por violação
presos e as guardas portuárias: os integrantes do ao princípio da isonomia, a utilização do critério
quadro efetivo de agentes e guardas prisionais tam- populacional para restringir o porte dos guardas
bém poderão portar arma de fogo de propriedade municipais de municípios menores exclusivamente
particular ou fornecida pela respectiva corporação
para quando estiverem em serviço.
ou instituição, mesmo fora de serviço, desde que
estejam submetidos a regime de dedicação exclu- Dentro desse contexto, por ocasião do julga-
siva, sujeitos à formação funcional, nos termos do mento da ADC 38/DF, da ADI 5.538/DF e da
regulamento, e subordinados a mecanismos de ADI 5.948/DF,28 o Plenário do Supremo Tribunal
fiscalização e de controle interno; Federal declarou ser “(...) inconstitucional a res-
VIII – as empresas de segurança privada e de trans- trição do porte de arma de fogo aos integrantes
porte de valores constituídas, nos termos desta Lei; de guardas municipais das Capitais dos Estados
IX – para os integrantes das entidades de desporto e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhen-
legalmente constituídas, cujas atividades esportivas tos mil) habitantes e de guardas municipais dos
demandem o uso de armas de fogo, na forma do Municípios com mais de 50.000 (cinquenta mil)
regulamento desta Lei, observando-se, no que
e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes,
couber, a legislação ambiental;
quando em serviço. Na visão da Corte, a comprovada
X – integrantes das Carreiras de Auditoria da Receita
participação das guardas municipais no combate à
Federal do Brasil e de Auditoria-Fiscal do Trabalho,
cargos de Auditor-Fiscal e Analista Tributário; criminalidade, principalmente nos municípios com
menos de 500 mil habitantes, e as estatísticas de
XI – os tribunais do Poder Judiciário descritos no
art. 92 da Constituição Federal e os Ministérios Pú-
blicos da União e dos Estados, para uso exclusivo de 28 STF, Pleno, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 27.02.2021.
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ESTATUTO DO DESARMAMENTO • Lei 10.826/2003

mortes demonstram que o aumento da crimina- servidores públicos estaduais ou municipais, em


lidade violenta não distinguiu municípios por seu prol da uniformidade da regulamentação do tema
número de habitantes. Diante disso, é impossível no país. Além disso, a competência atribuída aos
compatibilizar dados estatísticos, que retratam estados em matéria de segurança pública não pode
um componente importante da violência urbana, se sobrepor ao interesse mais amplo da União no
com o fator discriminante eleito nos dispositivos tocante à formulação de uma política criminal
citados. O aumento maior do número de mortes de âmbito nacional, cujo pilar central constitui
violentas, nos últimos anos, tem sido consistente- exatamente o estabelecimento de regras uniformes,
mente maior exatamente nos grupos de municípios em todo o País, para a fabricação, comercialização,
em que a lei estimou como passíveis de restrição circulação e utilização de armas de fogo. Há, por-
ou até supressão do porte de arma por agentes tanto, preponderância do interesse da União nessa
encarregados constitucionalmente da preservação matéria, quando confrontado o eventual interesse
da segurança pública. Patente, pois, o desrespei- do estado-membro em regulamentar e expedir
to ao postulado básico da igualdade, que exige autorização para o porte de arma de fogo. Não
que situações iguais sejam tratadas igualmente, por outro motivo, por ocasião do julgamento da
e que eventuais fatores de diferenciação guar- ADI 3.996/DF,29 proposta em face do art. 1º da
dem observância ao princípio da razoabilidade, Lei n. 2.176/98, dos arts. 2º, XVIII, 4º, e 11 da Lei
que pode ser definido como aquele que exige n. 2.990/2002, e do art. 5º da Lei n. 3.190/2003,
proporcionalidade, justiça e adequação entre os todas do Distrito Federal, que atribuíram porte de
meios utilizados pelo Poder Público, no exercício arma e de exercício de atividades de segurança a
de suas atividades, levando-se em conta critérios agentes de trânsito, com a correlata obrigação de
racionais e coerentes. A opção do Poder Público fornecimento de armas de fogo pelo Departamento
será sempre ilegítima, desde que sem racionalidade, de Trânsito a seus agentes, criando, pois, hipóteses
mesmo que não transgrida explicitamente norma não previstas na legislação federal de regência, o
concreta e expressa, porque a razoabilidade englo- Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu
ba a prudência, a proporção, a indiscriminação, a haver manifesta inconstitucionalidade formal, por
proteção, a proporcionalidade, a causalidade, em invasão da competência da União para definir os
suma, a não arbitrariedade. A razoabilidade deve requisitos para a concessão do porte de arma de
ser utilizada como parâmetro para se evitarem, fogo e os possíveis titulares de tal direito (CF, arts.
como ocorreu na presente hipótese, os tratamen- 21, VI, e 22, I), bem como ditar normas sobre
tos excessivos, inadequados, buscando-se sempre, material bélico (CF, art. 22, XXI).
no caso concreto, o tratamento necessariamente
Aos residentes em áreas rurais, maiores de
exigível. Na presente hipótese, o tratamento exigível,
25 (vinte e cinco) anos que comprovem depender
adequado e não excessivo corresponde a conceder
do emprego de arma de fogo para prover sua
idêntica possibilidade de porte de arma a todos os
subsistência alimentar familiar será concedido
integrantes das guardas civis, em face da efetiva
participação na segurança pública e na existência pela Polícia Federal o porte de arma de fogo, na
de similitude nos índices de mortes violentas categoria caçador para subsistência, de uma arma
nos diversos municípios, independentemente de de uso permitido, de tiro simples, com 1 (um) ou
sua população. Com base nesses fundamentos, o 2 (dois) canos, de alma lisa e de calibre igual ou
Plenário, por maioria, julgou parcialmente pro- inferior a 16 (dezesseis), desde que o interessado
cedentes os pedidos formulados nas ADI’s 5.538 comprove a efetiva necessidade em requerimento
e 5.948 para declarar a inconstitucionalidade do ao qual deverão ser anexados os seguintes docu-
inciso III do art. 6º da Lei 10.826/2003, a fim de mentos: I – documento de identificação pessoal;
invalidar as expressões “das capitais dos Estados” e II – comprovante de residência em área rural; e
“com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes”, III – atestado de bons antecedentes. O caçador para
e declarar a inconstitucionalidade do inciso IV do
art. 6º da Lei 10.826/2003. Na mesma assentada, o 29. STF, Pleno, ADI 3.996/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 15.04.2020, DJe
17.08.2020. Com raciocínio semelhante, no julgamento da ADI 6.985/AL (Rel.
Plenário, por maioria, também julgou improcedente Min. Alexandre de Moraes, j. 25.2.2022), o Supremo também concluiu que a
a ADC 38, que versava o mesmo tema. concessão de porte de arma a procuradores estaduais, por lei estadual, é
incompatível com a Constituição Federal. Na mesma linha, declarando a
Porquanto afetos a políticas de segurança pú- inconstitucionalidade, por violar competência da União para legislar sobre
materiais bélicos, de norma estadual que reconhece o risco da atividade e
blica de âmbito nacional, o porte de arma de fogo a efetiva necessidade do porte de arma de fogo ao atirador desportivo
e os seus possíveis titulares possuem requisitos que integrante de entidades de desporto legalmente constituídas e ao vigilante
de empresa de segurança privada: STF, Pleno, ADI’s 7.188/AC e 7.189/AM,
cabe à União regular, inclusive no que se refere a Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 23.9.2022.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

subsistência que der outro uso à sua arma de fogo, interpretação conforme ao art. §1º, I, do Estatuto do
independentemente de outras tipificações penais, Desarmamento, para fixar a tese hermenêutica de
responderá, conforme o caso, por porte ilegal ou que a atividade regulamentar do Poder Executivo
por disparo de arma de fogo de uso permitido. não pode criar presunções de efetiva necessidade
As armas de fogo utilizadas pelos empregados outras que aquelas já disciplinadas em lei.
das empresas de segurança privada e de transporte Não se pode confundir a suspensão do porte
de valores, constituídas na forma da lei, serão de pro- com a sua cassação. As hipóteses de suspensão do
priedade, responsabilidade e guarda das respectivas porte de arma de fogo, cujo prazo é estipulado
empresas, somente podendo ser utilizadas quando em pela autoridade concedente, são as seguintes: a) não
serviço, devendo ser observadas as condições de uso comunicação imediata da mudança de domicílio
e de armazenagem estabelecidas pelo órgão compe- ao órgão expedidor do porte de arma de fogo; b)
tente, sendo o certificado de registro e a autorização não comunicação imediata do extravio, furto ou
de porte expedidos pela Polícia Federal em nome da roubo da arma de fogo, à unidade Policial mais
empresa. O proprietário ou diretor responsável de próxima e, posteriormente, à polícia Federal (De-
empresa de segurança privada e de transporte de creto n. 9.847/19, art. 19, incisos I e II). Para além
valores responderá pelo crime previsto no parágrafo dessas hipóteses, consoante disposto no art. 22, I,
único do art. 13 desta Lei, sem prejuízo das demais da Lei Maria da Penha, constatada a prática de
sanções administrativas e civis, se deixar de registrar violência doméstica e familiar contra a mulher,
ocorrência policial e de comunicar à Polícia Federal o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor,
perda, furto, roubo ou outras formas de extravio de dentre outras, a medida protetiva de urgência
armas de fogo, acessórios e munições que estejam de suspensão da posse ou restrição do porte de
sob sua guarda, nas primeiras 24 (vinte e quatro) armas, com comunicação ao órgão competente,
horas depois de ocorrido o fato. nos termos da Lei n. 10.826/03.
Compete ao Ministério da Justiça a autorização De seu turno, a cassação do porte de arma
do porte de arma para os responsáveis pela segurança de fogo dar-se-á quando o titular de porte de
de cidadãos estrangeiros em visita ou sediados no arma de fogo para defesa pessoal concedido nos
Brasil e, ao Comando do Exército, nos termos do termos do art. 10 da Lei n. 10.826/03 conduzi-la
regulamento desta Lei, o registro e a concessão de ostensivamente ou com ela adentrar ou permane-
porte de trânsito de arma de fogo para coleciona- cer em locais públicos, tais como igrejas, escolas,
dores, atiradores e caçadores e de representantes estádios desportivos, clubes, agências bancárias ou
estrangeiros em competição internacional oficial outros locais onde haja aglomeração de pessoas
de tiro realizada no território nacional. em virtude de eventos de qualquer natureza. A
A autorização para o porte de arma de fogo autorização de porte de arma de fogo também
de uso permitido, em todo o território nacional, é perderá automaticamente sua eficácia caso o por-
de competência da Polícia Federal e somente será tador dela seja detido ou abordado em estado de
concedida após autorização do Sinarm. Fora das embriaguez ou sob efeito de substâncias químicas
hipóteses acima especificadas, essa autorização poderá ou alucinógenas. Noutro giro, de acordo com o
ser concedida com eficácia temporária e territorial art. 14 do Decreto n. 9.847/19, serão cassadas as
limitada, nos termos de atos regulamentares, e de- autorizações de porte de arma de fogo do titular a
penderá de o requerente: a) demonstrar a sua efetiva que se referem o inciso VIII ao inciso XI do caput
necessidade por exercício de atividade profissional de do art. 6º e o §1º do art. 10 da Lei n. 10.826/03,
risco ou de ameaça à sua integridade física; b) atender que esteja respondendo a inquérito ou a processo
às exigências previstas no art. 4º da Lei n. 10.826/03; criminal por crime doloso, salvo nas hipóteses
III – apresentar documentação de propriedade de em que houver indícios de que a arma teria sido
arma de fogo, bem como o seu devido registro no utilizada em estado de necessidade, legítima defesa,
órgão competente. Essa autorização perderá auto- estrito cumprimento do dever legal ou exercício
maticamente sua eficácia caso o portador dela seja regular de direito, hipótese em que a arma será
detido ou abordado em estado de embriaguez ou apreendida quando necessário periciá-la, com
sob efeito de substâncias químicas ou alucinógenas. ulterior restituição ao proprietário.
Nesse ponto, importante lembrar que, por força Ao fim e ao cabo, é de todo conveniente destacar
da decisão proferida pelo STF no julgamento que não se admite que Leis Estaduais outorguem
das ADI’s 6.119, 6.139 e 6.466 MC-Ref/DF (Rel. o direito de porte de arma aos seus respectivos
Min. Edson Fachin, j. 20.9.2022), foi conferida servidores, sob pena de violação aos arts. 21, VI,
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ESTATUTO DO DESARMAMENTO • Lei 10.826/2003

e 22, I, ambos da Constituição Federal, que atri- que a marginalidade compra armas de fogo em
buem exclusivamente à União a competência para lojas, promovendo o devido registro e conseguin-
autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de do o necessário porte. Ocorre que a proliferação
material bélico e para legislar sobre direito civil, incontrolada das armas de fogo pelo País pode
comercial, penal, do trabalho e outros. A propósito, levar à sensível piora na segurança pública, pois
no julgamento da ADI 5.010, o Supremo Tribunal não somente o criminoso faz uso indevido desses
Federal decidiu que norma estadual concessiva de instrumentos, mas também o pacato indivíduo
porte é inconstitucional, por violar a competência que, pela facilidade de ter e usar uma arma de
privativa da União para legislar sobre matéria fogo, pode ser levado a resolver conflitos fúteis
criminal, uma vez que retira a incidência do tipo com agressão a tiros, gerando homicídios e lesões
penal do art. 14 do Estatuto do Desarmamento, corporais de toda espécie cometidos de forma
tendo, nesse aspecto, natureza penal. leviana e inconsequente; Em suma, o Estatuto
do Desarmamento não trará a paz permanente à
6. BEM JURÍDICO TUTELADO. sociedade, mas poderá contribuir para melhorar
Diversamente de outros objetos vulnerantes, como a segurança pública, retirando de circulação, cada
uma faca, por exemplo, que pode ser usada para vez mais, armas de fogo sem qualquer registro
cortar carne, mas também para matar um homem, ou controle, bem como permitindo à polícia que,
as armas de fogo são produzidas com a finalidade prendendo o infrator que porta arma ilegal, evite
única de lesionar ou causar a morte de uma pessoa. a prática de delitos mais graves, como roubos,
Pouco importa o motivo do seu uso: se para fins de homicídios, estupros, extorsões, etc. O potencial
legítima defesa ou para ataque à integridade física de assaltante pode ser preso pelo simples porte ilegal
outrem. Tais artefatos são instrumentos letais. São de arma de fogo, antes de cometer o mal maior”;30
intrinsecamente perigosas e tal perigo cresce, expo- b) Paz pública: a expressão paz pública pode
nencialmente, a depender da pessoa que a tem em ser compreendida em sentido objetivo e subjetivo.
mãos. Surge daí, portanto, a necessidade de maior Objetivamente, a paz pública corresponde à ordem
controle por parte do Estado, de modo a assegurar social, ou seja, à ordem nas relações da vida em
que a posse e o porte dessas armas de fogo sejam sociedade, que resulta das normas jurídicas que
confiados apenas àqueles indivíduos que efetivarem regulam essas relações, abrangendo, portanto, a
delas necessitarem e com elas saibam lidar. paz, a tranquilidade e a segurança social. Subjeti-
Se não há qualquer dúvida quanto à importância vamente, a paz pública corresponde ao sentimento
de se controlar a posse e principalmente o porte coletivo de confiança na ordem jurídica. É exa-
de armas de fogo, não há consenso na doutrina e tamente nesse segundo sentido, ou seja, em seu
na jurisprudência acerca do bem jurídico tutelado aspecto subjetivo, que a lei penal brasileira visa
pela Lei de Armas. Vejamos as principais correntes proteger a paz pública com os crimes previstos
acerca do assunto: no Estatuto do Desarmamento. Enfim, como
a) Segurança Pública: permitir a posse e o bem jurídico tutelado, a paz pública não deve
porte de armas de fogo sem qualquer controle ser compreendida como a defesa da segurança
causaria evidente prejuízo à segurança pública, social, mas sim a opinião ou o sentimento da
direito fundamental de todos, conforme previsto população em relação a essa segurança, ou seja,
no art. 5º, caput, da Constituição Federal. Ora, aquela sensação de proteção e segurança geral.
pelo menos em tese, quanto mais rigorosos forem Por mais que não se possa negar que as armas de
os requisitos para o registro das armas e para a fogo invariavelmente são utilizadas para a prática
emissão de portes, e pelo menos enquanto certas de outros crimes, como, por exemplo, homicídios,
condutas relacionadas à circulação de armas em roubos, latrocínios, etc., não se pode confundir o
situação de ilegalidade forem criminalizadas, bem jurídico tutelado por tais delitos – no exemplo
deverá haver um aumento do grau de seguran- dado, a vida e o patrimônio, respectivamente –,
ça dos habitantes, já que teremos menos armas
circulando pelas ruas. Como esclarece Nucci, “o
30. NUCCI. Op. cit. p. 45. Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira
cidadão honesto, ao menos, que não mais poderá (Lei das Armas de Fogo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 51-52)
encontrar armas de fogo em qualquer canto, fica apontam a segurança pública como o bem jurídico protegido nos delitos
relacionados às armas de fogo. Com o mesmo entendimento: SILVARES,
livre de sua má utilização. Não temos a ilusão de Ricardo. Leis Penais Especiais Comentadas artigo por artigo. Coordenadores
que o controle estatal impedirá a ocorrência de Rogério Sanches Cunha, Ronaldo Batista Pinto, Renee do Ó Souza. Salvador:
Editora Juspodivm, 2018. p. 1.495; CABETTE, Eduardo; SANNINI, Francisco.
crimes em geral, afinal, seria ingênuo imaginar Tratado de legislação especial criminal. Salvador: Juspodivm, 2018. p. 46.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

com aquele tutelado especificamente pela Lei n. ou classes de ações que geralmente levam consigo
10.826/03, qual seja, a paz pública. o indesejado perigo ao bem jurídico. Há, pois, uma
A nosso juízo, os crimes previstos no Estatuto presunção absoluta, logo, que não admite prova em
do Desarmamento atentam contra a segurança e sentido contrário, de que a prática de determinada
a paz públicas, sobretudo a política de controle conduta representa um risco ao bem jurídico, sendo
federal de armas de fogo e a incolumidade dos desnecessária, portanto, a comprovação no caso con-
cidadãos, uma vez que, com o desarmamento e o creto de que a conduta do agente tenha efetivamente
controle, busca-se diminuir o número de pessoas produzido a situação de perigo que o tipo penal
mortas por armamentos.31 visa evitar. Assim, se alguém andar pelas ruas com
uma arma de fogo de uso permitido, porém sem o
7. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO E SUA (IN) devido porte, responderá pelo crime do art. 14 da
CONSTITUCIONALIDADE. Lei n. 10.826/03, mesmo que o agente sequer tenha
passado perto de outra pessoa, ou seja, não tenha
No tocante ao grau de intensidade do resultado concretamente exposto outrem a algum risco;33
almejado pelo agente como consequência da prática b.2) crimes de perigo concreto: a situação de
da conduta, os crimes podem ser classificados da perigo supostamente criada pela conduta do agente
seguinte forma: faz parte do tipo penal, daí por que deve ser com-
a) crime de dano (ou de lesão): é aquele cuja provada no caso concreto, sob pena de atipicidade
consumação está condicionada à efetiva lesão ao da conduta. É o que ocorre, a título de exemplo,
bem jurídico tutelado, a exemplo do que ocorre com o crime do art. 309 do Código de Trânsito
com o crime de homicídio; Brasileiro (“Dirigir veículo automotor, em via pública,
b) crime de perigo: é aquele em que há uma sem a devida permissão para dirigir ou habilitação
probabilidade de dano, que, no entanto, não precisa ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando
ocorrer para a consumação do delito. Na verdade, perigo de dano”), cujo juízo de tipicidade demanda a
quando o legislador cria um crime de perigo, seu comprovação, no caso concreto, que a condução de
objetivo é levar a efeito a punição do agente antes veículo automotor pelo agente trouxe risco à vida ou
que sua conduta venha, efetivamente, a causar lesão à saúde de outrem (v.g., motorista em zigue-zague,
ao bem juridicamente protegido. Por isso, os crimes na contramão, em alta velocidade, etc.).
de perigo são, em regra, de natureza subsidiária, Conquanto parte da doutrina seja contrária
sendo absorvidos pelos crimes de dano. Há, por aos crimes de perigo abstrato, por entender que, à
sua vez, duas subespécies de crimes de perigo:32 luz do princípio da ofensividade (ou lesividade), só
b.1.) crimes de perigo abstrato: nesse caso, o se justifica a punição de determinado crime se a
legislador penal não toma como pressuposto da conduta do agente produzir efetiva lesão ou perigo
criminalização a lesão ou o perigo concreto de lesão concreto de lesão ao bem jurídico tutelado,34 tais
a determinado bem jurídico. Na verdade, baseado crimes são amplamente admitidos pela jurispru-
em dados empíricos, o legislador seleciona grupos dência pátria.
Ao criminalizar condutas relativas à posse (ou
31. Nesse contexto: DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; porte) clandestino de armas, a Lei n. 10.826/03
DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Leis penais especiais comentadas. São Paulo: preocupou-se, essencialmente, com o risco que essa
Saraiva, 2014. p. 780. Para NUCCI (op. cit. p. 45), os bens jurídicos tutelados
pela Lei n. 10.826/03 também são a segurança e a paz públicas. Em sentido conduta, quando executada à deriva do controle
diverso, Renato Marcão (op. cit. p. 3), César Dario Mariano da Silva (op. cit.
p. 31) e Armando de Mattos Jr (Estatuto do Desarmamento. Organizadores:
estatal, representa para bens jurídicos fundamentais,
Clever Rodolfo Carvalho Vasconcellos e Levy Emanuel Magno. São Paulo: tais como a vida, o patrimônio, a integridade física,
Atlas, 2011. p. 28) sustentam que o Estatuto do Desarmamento busca a
proteção da incolumidade pública, ou seja, a segurança da sociedade como
entre outros, levando em consideração que o porte,
um todo, que deve ser preservada, evitando-se que bens jurídicos como a
vida, a segurança e a integridade física da coletividade sejam lesionados
ou expostos a perigo de dano. 33. Na visão do STJ, o delito do art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro
32. Na lição de Cleber Masson (Direito penal – parte geral, vol. 1. 10ª também é espécie de crime de perigo abstrato. A propósito, eis o teor da
ed. São Paulo: Método, 2016. p. 221), há outras subespécies de crimes de súmula n. 575 do STJ: “Constitui crime a conduta de permitir, confiar ou
perigo. De acordo com o referido autor, para além dos crimes de perigo entregar a direção de veículo automotor a pessoa que não seja habilitada,
abstrato e concreto, também se pode falar em crime de perigo individual, ou que se encontre em qualquer das situações previstas no art. 310 do CTB,
assim compreendido como aquele que atinge uma pessoa ou um número independentemente da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na
determinado de pessoas (v.g., perigo de contágio venéreo – CP, art. 13), condução do veículo”.
de perigo comum ou coletivo, que é aquele que atinge um número inde- 34. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no Direito Penal. Série
terminado de pessoas (v.g., explosão criminosa - CP, art. 251), de perigo “As Ciências Criminais no Século XXI”. Vol. 6. São Paulo: Editora Revista dos
iminente, quando o perigo está prestes a ocorrer, e de perigo futuro ou Tribunais, 2002. p. 116. Para Delmanto (op. cit. p. 782), os crimes de perigo
mediato, quando a situação de perigo decorrente da conduta se projeta abstrato não se justificam em um Estado Democrático de Direito, nem
para o futuro, como no porte ilegal de arma de fogo de uso permitido ou tampouco se sustentam em face dos princípios da intervenção mínima,
restrito (Lei n. 10.826/03, arts. 14 e 16), o que, em tese, autoriza a criação da ofensividade e da proporcionalidade ou razoabilidade entre conduta
de tipos penais preventivos. e resposta penal.
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ESTATUTO DO DESARMAMENTO • Lei 10.826/2003

usualmente, constitui ato preparatório (delito de portanto, de possíveis injustiças pontuais, de


preparação) para diversas condutas mais graves, absoluta ausência de significado lesivo deve ser
quase todas dotadas com a relevante contingên- aferida concretamente e não em linha diretiva de
cia de envolver violência contra a pessoa. Assim, ilegitimidade normativa (...)”.36
antecipando a tutela penal, pune essas condutas
antes mesmo que representem qualquer lesão ou 8. COMPETÊNCIA DE JUSTIÇA PARA O PROCES-
perigo concreto.35 SO E JULGAMENTO DOS CRIMES PREVISTOS
Para o Supremo Tribunal Federal, a criação NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO.
de crimes de perigo abstrato não representa, por Quando da entrada em vigor do Estatuto do
si só, comportamento inconstitucional por parte Desarmamento (Lei nº 10.826/03), surgiu discussão
do legislador penal. A tipificação de condutas que na doutrina quanto à competência para processar
geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo e julgar os delitos ali previstos. Isso porque a re-
a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para ferida lei instituiu o Sistema Nacional de Armas
a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais (SINARM) no âmbito do Ministério da Justiça e
ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio da Polícia Federal, com circunscrição em todo o
ambiente, a segurança e a paz públicas, a saúde etc. território nacional (art. 1º), ao qual, dentre outras
Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas atribuições, compete identificar as características
margens de avaliação e de decisão, definir quais e a propriedade de armas de fogo, mediante ca-
as medidas mais adequadas e necessárias para a dastro; cadastrar as armas de fogo produzidas,
efetiva proteção de determinado bem jurídico, o importadas e vendidas no país; cadastrar as auto-
que lhe permite escolher espécies de tipificação rizações de porte de arma de fogo e as renovações
próprias de um direito penal preventivo. expedidas pela Polícia Federal, etc. Além disso,
A propósito, confira-se: “(...) A Lei 10.826/2003 segundo a referida lei, compete à Polícia Federal,
(Estatuto do Desarmamento) tipifica o porte de com prévia autorização do SINARM, expedir o
arma como crime de perigo abstrato. De acordo certificado de registro de arma de fogo, o qual
com a lei, constituem crimes as meras condutas de autoriza o seu proprietário a manter a arma de
possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter fogo exclusivamente no interior de sua residência
em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, ou domicílio, ou, ainda, no seu local de trabalho,
empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma desde que seja ele o titular ou o responsável legal
de fogo. Nessa espécie de delito, o legislador penal pelo estabelecimento ou empresa (art. 5º), assim
não toma como pressuposto da criminalização a como a autorização para o porte de arma de fogo
lesão ou o perigo de lesão concreta a determinado de uso permitido (art. 10).
bem jurídico. Baseado em dados empíricos, o le- À primeira vista, poder-se-ia pensar que todos
gislador seleciona grupos ou classes de ações que os delitos previstos no Estatuto do Desarmamento
geralmente levam consigo o indesejado perigo ao passariam a ser de competência da Justiça Fede-
bem jurídico. (...) LEGITIMIDADE DA CRIMI- ral, uma vez que afetariam interesses de órgãos
NALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há, no pertencentes à estrutura da União. No entanto, o
contexto empírico legitimador da veiculação da bem jurídico tutelado pelas citadas normas não
norma, aparente lesividade da conduta, porquanto é o regular funcionamento ou atuação da Admi-
se tutela a segurança pública (art. 6º e 144, CF) nistração Pública Federal, mas sim a segurança e
e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade
a paz públicas, ou seja, a garantia e preservação
física e psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco
do estado de segurança, integridade corporal,
interesse público e social na proscrição da conduta.
vida, saúde e patrimônio dos cidadãos indefini-
É que a arma de fogo, diferentemente de outros
damente considerados contra possíveis atos que
objetos e artefatos (faca, vidro etc.) tem, inerente
à sua natureza, a característica da lesividade. A
danosidade é intrínseca ao objeto. A questão, 36. STF, 2ª Turma, HC 102.087/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 28/02/2012,
DJe 159 13/08/2012. Em sentido semelhante: STF, 2ª Turma, HC 109.269/
MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27/09/2011, DJe 195 10/10/2011. Com
o mesmo entendimento: STJ, 5ª Turma, HC 175.385/MG, Rel. Min. Laurita
35. No sentido de que o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso Vaz, julgado em 17/03/2011. Em sentido semelhante, reconhecendo a
permitido é crime de mera conduta e de perigo abstrato, e que o objeto legitimidade da criminalização do crime de perigo abstrato de porte de
jurídico tutelado não é a incolumidade física, mas a segurança pública e arma de fogo desmuniciada porquanto, diferentemente de outros objetos
a paz social, sendo irrelevante estar a arma de fogo desmuniciada: STF, e artefatos (faca, vidro etc.), a danosidade é intrínseca a tal objeto, daí por
2ª Turma, HC 117.206/RJ, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 05/11/2013, DJe 228 que absolutamente necessária a tipificação dessa conduta para a tutela da
19/11/2013. Na mesma linha: STJ, 5ª Turma, AgRg no AREsp 1.063.140/SE, segurança pública (art. 6º e 144, CF) e, indiretamente, da vida, da liberdade,
Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 20/04/2017, DJe 28/04/2017; STJ, 3ª da integridade física e psíquica do indivíduo: STF, 2ª Turma, HC 104.410/RS,
Seção, EREsp 1.005.300/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 14/08/2013, DJe 19/12/2013. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 06/03/2012, DJe 62 26/03/2012.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

os exponham a perigo. Logo, o simples fato de art. 109, IX);41 a.4) crime de competência da Justiça
se tratar de porte de arma de fogo não evidencia, Comum Estadual (posse ou porte ilegal de arma de
por si só, a competência da Justiça Federal. Como fogo) praticado em conexão e/ou continência com
o objeto jurídico protegido pela Lei nº 10.826/03 delito da competência da Justiça Comum Federal:
é a incolumidade de toda a sociedade, vítima em de acordo com a súmula n. 122 do STJ, “compete
potencial do uso irregular das armas de fogo, não à Justiça Federal o processo e julgamento unifica-
havendo qualquer violação direta aos interesses do dos crimes conexos de competência federal e
da União, a despeito de ser o SINARM um ente estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II,
federal, há de se concluir, pela competência da a, do Código de Processo Penal”. Logo, a título de
Justiça Estadual para julgar, em regra, os crimes exemplo, havendo prova de que o autor do delito de
previstos na Lei nº 10.826/03.37 porte ilegal de arma de origem estrangeira também
foi o responsável por sua importação ilegal, à Justiça
Se a competência para o processo e julgamento
Federal caberá o julgamento de ambos os delitos;42
dos crimes previstos na Lei n. 10.826/03 recai, em
regra, sobre a Justiça Comum Estadual, ainda que b) Justiça Militar da União (ou dos Estados):
a arma de fogo seja de uso proibido ou restrito,38 originariamente, a Justiça Militar da União (ou dos
porquanto não se vislumbra, nesses casos, qual- Estados) não tinha competência para o processo
e julgamento dos crimes previstos no Estatuto do
quer interesse direto da União capaz de despertar
Desarmamento, ainda que cometidos por militar
a competência da Justiça Comum Federal, não se
em serviço. Isso porque, à semelhança do que
pode negar que eventualmente tais crimes também
ocorria com o delito de abuso de autoridade, à
podem ser julgados por outras “Justiças”, a depender
época previsto na revogada Lei n. 4.898/65, como se
do caso concreto, senão vejamos:
tratava de crime que não estava previsto no Código
a) Justiça Comum Federal: presente uma das Penal Militar, mas sim em uma lei extravagante,
hipóteses constantes do art. 109 da Constituição não eram considerados crimes militares. Daí por
Federal, a competência para o processo e julga- que a súmula n. 172 do STJ dizia que o crime de
mento dos crimes previstos no Estatuto do Desar- abuso de autoridade deveria ser julgado pela Justiça
mamento será da Justiça Federal. Vejamos alguns Comum, ainda que praticado por militar no exer-
exemplos: a.1) crime de disparo de arma de fogo cício de suas funções. Logo, como a competência
(Lei n. 10.826/03, art. 15) cometido por funcionário da Justiça Castrense estava restrita ao processo e
público federal em razão das funções (súmula n. julgamento dos crimes militares, leia-se, àqueles
147 do STJ), conforme disposto no art. 109, IV, da previstos exclusivamente no Código Penal Militar,
CF;39 a.2) crime de tráfico internacional de arma à Justiça Comum – Estadual, no caso de militares
de fogo (Lei nº 10.826/03, art. 18), hipótese em que estaduais, e Federal, no caso de militares das Forças
a competência será da Justiça Federal, nos exatos Armadas – caberia o processo e julgamento de tais
termos do art. 109, V, da Constituição Federal, feitos.43 Todavia, com o advento da Lei n. 13.491/17,
haja vista tratar-se de crime previsto em tratado ou de duvidosa constitucionalidade, o cenário mudou
convenção internacional, caracterizado pela interna- completamente. Isso porque, consoante disposto no
cionalidade territorial do resultado relativamente à art. 9º, II, do Código Penal Militar, com redação
conduta delituosa;40 a.3) crimes previstos na Lei de dada pela Lei n. 13.491/17, a Justiça Militar da União
Armas cometido a bordo de navio ou aeronave (CF, e dos Estados passou a ter competência para julgar
não apenas os crimes previstos no referido Codex,
37. STJ, 5ª Turma, HC 57.348/RJ, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 01/08/2006 p. 502.
38. No sentido da competência da Justiça Estadual para processar e 41. Para o STJ, “(...) a apreensão de arma detectada, no interior de mala,
julgar o crime de depósito e venda de munições, ainda que de uso pri- por equipamento de raios X de aeroporto, quando do procedimento de
vativo ou restrito: TRF4, ACR 2004.71.10.002861-3, Sétima Turma, Relator embarque do passageiro que a possuía, guardava e transportava, não
Néfi Cordeiro, D.E. 10/09/2008. Em sentido semelhante: STJ, 3ª Seção, CC ofende interesse da União. A circunstância de ser o crime cometido em
44.129/RJ, Rel. Min. Paulo Medina, DJ 3/11/04; STJ, 5ª Turma, HC 79.264/PR, local sujeito à fiscalização da Polícia Federal não é capaz de induzir a
Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 03/11/2008; STJ, 5ª Turma, HC 160.547, competência da Justiça Federal”. (STJ, 3ª Seção, CC 37.877/SP, Rel. Min.
Rel. Min. Gilson Dipp, j. 07/10/2010, DJe 25/10/2010. Paulo Medina, j. 14/04/2004, DJ 10/05/2004 p. 164).
39. Como já se pronunciou a 1ª Turma do STF, “(...) Não existe nos autos 42. Reconhecendo a competência da Justiça Federal para julgar o
prova de que o paciente estivesse no exercício de suas atividades, enquanto crime de tráfico internacional de armas de fogo cometido em conexão
agente público da União. Ainda que houvesse tal prova, a competência com o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, nos termos
da justiça federal, em virtude do art. 109, IV, da Constituição Federal, da súmula n. 122 do STJ: STJ, 3ª Seção, CC 126.235/PR, Rel. Min. Ribeiro
exige comprovação do interesse ou prejuízo da União em face do delito Dantas, j. 09/11/2016.
praticado. 3. Ordem denegada”. (STF, 1ª Turma, HC 83.580/MG, Rel. Min. 43. Em momento anterior à Lei n. 13.491/17, reconhecendo a competência
Joaquim Barbosa, j. 08/06/2004, DJ 06/08/2004). da Justiça Comum Estadual para o processo e julgamento de militar das
40. Para mais detalhes acerca da competência da Justiça Comum Federal Forças Armadas que foi flagrado guardando arma de origem estrangeira
para o processo e julgamento do crime de tráfico internacional de arma e de uso restrito no interior de quartel: STJ, 3ª Seção, CC 28.251/RJ, Rel.
de fogo, remetemos o leitor aos comentários ao art. 18 da Lei n. 10.826/03. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 05/10/2005 p. 160.
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ESTATUTO DO DESARMAMENTO • Lei 10.826/2003

mas também aqueles previstos na legislação penal, é a incolumidade física e sim a segurança pública
quando praticados por militar da ativa em um dos e a paz social.44
contextos ali elencados. Referindo-se o inciso II do
art. 9º do CPM aos crimes previstos na legislação 9.3. Sujeitos do crime.
penal, é dizer, àqueles previstos no Código Penal Pelo menos em regra, o art. 12 da Lei n.
Comum e na Legislação Especial (v.g. Lei n. 8.666/93, 1.826/03 é crime comum, pois o tipo penal não
Lei n. 13.869/19, etc.), é de se concluir que, pelo menos exige qualquer característica especial por parte do
enquanto não declarada a inconstitucionalidade da sujeito ativo. Especificamente em relação à parte
Lei n. 13.491/17, a Justiça Militar da União (ou dos final do dispositivo, que faz referência à posse de
Estados) passa a ter competência para o processo arma de fogo em seu local de trabalho pelo titular
e julgamento dos crimes previstos no Estatuto do ou responsável legal pelo estabelecimento, parte da
Desarmamento. Por conseguinte, na eventualidade doutrina sustenta que se trata de crime próprio, visto
que somente tais pessoas responderiam pelo crime
de um Policial Militar do Estado de São Paulo, no
do art. 12. É dizer, se o crime for praticado, por
exercício da função, ser flagrado portando arma de
exemplo, por um funcionário da empresa, o delito
fogo de uso restrito sem autorização e em desacordo será, então, o do art. 14 ou 16 da Lei n. 10.826/03, a
com determinação legal ou regulamentar, caberá à depender da espécie de arma de fogo em questão.45
Justiça Militar do Estado de São Paulo o processo
Cuida-se de crime vago, pois o sujeito passivo
e julgamento do crime militar previsto no art. 16, é a coletividade.
caput, da Lei n. 10.826/03, c/c art. 9º, II, alínea “c”,
do Código Penal Militar, com redação dada pela 9.4. Tipo objetivo.
Lei n. 13.491/17.
O tipo penal abrange duas condutas – possuir
ou manter sob sua guarda –, que necessariamente
9. POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO DE
devem recair sobre arma de fogo, acessório ou
USO PERMITIDO. munição, de uso permitido. Os núcleos do tipo
Na vigência da revogada Lei n. 9.437/97, as podem ser conceituados nos seguintes termos:
condutas de possuir e portar arma de fogo estavam a) possuir: consiste em ter ou reter algo em
tipificadas em um mesmo dispositivo legal – art. seu poder, fruir ou gozar de algo. O agente pos-
10 –, sujeitas, portanto, à mesma pena (detenção, sui uma arma de fogo quando a tem em algum
de um a dois anos, e multa). Com o advento da lugar, à sua disposição, pouco importando se é
Lei n. 10.826/03, o legislador houve por bem in- (ou não) o seu proprietário. Conforme dispõe o
criminar tais condutas em tipos penais diversos, art. 1.196 do Código Civil, “considera-se possuidor
haja vista ofenderem o bem jurídico segurança e todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou
não, de algum dos poderes inerentes à proprie-
paz públicas de maneira absolutamente distinta.
dade”. Desde que comprovado que o agente era
o possuidor do objeto, pouco importa, para fins
9.1. Lei penal no tempo e a posse de arma de configuração do crime, que o agente estivesse
de fogo. presente no local no momento da localização e
Consultar comentários ao art. 30 da Lei n. apreensão do artefato;
10.826/03 (item n. 31). b) manter sob sua guarda: traduz a ideia de
conservar consigo. Parece não haver grande dife-
9.2. Bem jurídico tutelado. rença entre as duas condutas. Afinal, a circunstân-
cia de manter uma arma de fogo sob sua guarda
Como exposto nos comentários iniciais à Lei equivale a possui-la, já que não há necessidade de
n. 10.826/03, tutela-se a segurança e a paz públicas.
44. Nessa linha: STJ, 5ª Turma, AgRg no AREsp 1.212.969/AL, Rel. Min.
9.2.1. Crime de perigo abstrato. Joel Ilan Paciornik, j. 06/03/2018, DJe 16/03/2018; STJ, 6ª Turma, AgInt no
HC 397.946/MS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 07/11/2017, DJe 14/11/2017; STJ,
O crime de posse irregular de arma de fogo, 3ª Seção, AgRg nos EAREsp 1.027.337/MT, Rel. Min. Maria Thereza de Assis
Moura, j. 24/05/2017, DJe 30/05/2017; STJ, 6ª Turma, AgRg no REsp 1.621.389/
acessório ou munição de uso permitido (art. 12 RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 27/06/2017, DJe 01/08/2017; STJ, 5ª
Turma, AgRg no AREsp 828.250/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 20/06/2017,
da Lei n. 10.826/03) é de perigo abstrato, pres- DJe 28/06/2017.
cindindo de demonstração de efetiva situação de 45. É nesse sentido a lição de Renato Marcão: Estatuto do Desarmamento:
anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei n. 10.826, de
perigo, porquanto o objeto jurídico tutelado não 22 de dezembro de 2003. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 20.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

o possuidor também ser o proprietário. Valendo-se permitido em residência) e 16 (posse de munição


novamente do Código Civil, desta feita do disposto de uso restrito) da Lei n. 10.826/2003 – Estatuto
no art. 1.198, “considera-se detentor aquele que, do Desarmamento – são a administração pública
achando-se em relação de dependência para com e, reflexamente, a segurança, incolumidade e paz
outro, conserva a posse em nome deste e em cum- pública (crime de perigo abstrato). No primeiro
primento de ordens ou instruções suas”. Aquele que caso, para se exercer controle rigoroso do trânsito
mantém uma arma de fogo, acessório ou munição de armas e permitir a atribuição de responsabilidade
sob sua guarda equipara-se ao detentor, daí por pelo artefato; no segundo, para evitar a existência
que se pode concluir que o tipo penal do art. 12 de armas irregulares circulando livremente em mãos
abrange a posse e a detenção de tais objetos. impróprias, colocando em risco a população. Se o
agente já procedeu ao registro da arma, a expiração
9.4.1. Norma penal em branco: em desacordo do prazo é mera irregularidade administrativa
com determinação legal ou regulamentar que autoriza a apreensão do artefato e aplicação
(ausência de registro). de multa. A conduta, no entanto, não caracteriza
ilícito penal. (...)”.47
Para a tipificação do crime do art. 12 da Lei n.
10.826/03, é indispensável que a conduta do agente
9.4.2. Elementos espaciais do tipo.
seja cometida em desacordo com determinação legal
ou regulamentar. Ora, como exposto anteriormente, Não é de todo comum, mas eventualmente o
para que alguém possa manter sob sua guarda arma próprio tipo penal condiciona a tipificação da con-
de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, duta ao fato de a ação (ou omissão) ser praticada
no interior de sua residência ou dependência desta, em determinado local. São os chamados elementos
ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja espaciais do tipo penal. E é exatamente isso o que
o titular ou o responsável legal do estabelecimento ocorre com o crime do art. 12 da Lei n. 10.826/03,
ou empresa, é indispensável que o agente tenha o que condiciona a tipificação da conduta ao fato de
respectivo registro.46 o agente possuir ou manter sob sua guarda arma
Afinal, por força do art. 5º, caput, da Lei n. de fogo, acessório ou munição, de uso permitido,
10.826/03, é exatamente o certificado de registro sem o respectivo registro, nos seguintes locais:
de arma de fogo que autoriza o seu proprietário a a) no interior de sua residência ou dependência
manter a arma de fogo exclusivamente no interior desta: a palavra residência deve ser compreendida
de sua residência ou domicílio, ou dependência como expressão sinônima de casa, cujo conceito
desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, des- é tradicionalmente extraído pela doutrina e pela
de que seja ele o titular ou o responsável pelo jurisprudência do art. 150, §4º, do Código Penal.
estabelecimento ou empresa. Destarte, é possí- Não há necessidade de ser domicílio, ou seja, uma
vel concluirmos que o crime em questão estará residência com ânimo definitivo. Logo, também
caracterizado quando a posse ou a mantença se compreende por residência a casa de campo, de
ocorrer sem o devido registro da arma de fogo e praia, a casa sede de uma fazenda ou até mesmo
do acessório, nesse último caso, quando exigido. um trailer residencial. Pela locução dependência
Quanto à munição, só é possível a posse daquela desta deve-se entender toda a área próxima da
que o agente está autorizado a adquirir, do mes- casa que também esteja em recintos fechados (por
mo calibre da arma registrada e nas quantidades muros, grades ou cercas), tais como pátios, quintais,
indicadas na autorização. garagens, jardins, etc. De acordo com o Decreto n.
9.845/19, considera-se interior da residência ou de-
Vencido o prazo do registro, sem que o proprie-
pendência destas “toda a extensão da área particular
tário da arma tenha providenciado sua renovação,
do imóvel, edificada ou não, em que resida o titular
não haverá crime se o artefato for encontrado na
do registro, inclusive quando se tratar de imóvel
posse do indivíduo no interior de sua residência ou
rural”. A posse de arma de fogo em outra residência
em seu local de trabalho. Cuida-se, pois, de mera
que não a do agente tipifica o crime de porte ilegal
infração administrativa, sem qualquer reflexo no
de arma de fogo. Logo, se alguém mantiver uma
âmbito criminal. Como já se pronunciou a Corte
Especial do STJ, “(...) Os objetos jurídicos dos ti-
pos previstos nos arts. 12 (guarda de arma de uso 47. STJ, Corte Especial, APn. 686/AP, Rel. Min. João Otávio de Noronha,
j. 21/10/2015, DJe 29/10/2015. Reconhecendo a atipicidade da posse ilegal
de arma de fogo e munições em caso concreto em que o registro estava
vencido à época do fato: STJ, 6ª Turma, RHC 80.365/SP, Rel. Min. Maria Thereza
46. Para mais detalhes acerca do registro, remetemos o leitor aos de Assis Moura, j. 14/03/2017, DJe 22/03/2017. E ainda: STJ, 5ª Turma, HC
comentários introdutórios à Lei n. 10.826/03. 294.078/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 26/08/2014, DJe 04/09/2014.
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ESTATUTO DO DESARMAMENTO • Lei 10.826/2003

arma de fogo devidamente registrada, porém na no art. 14 da Lei de Armas.50 Raciocínio idêntico
casa de um terceiro (v.g., namorada), sem que este também é válido para o táxi, que não pode ser
tenha ciência, aquele deverá responder pelo crime equiparado a local de trabalho do taxista.51
do art. 14 ou do art. 16, a depender da espécie do Se a tipificação do art. 12 está condicionada ao
artefato. Aos residentes em área rural, considera-se fato de tais condutas serem praticadas no interior
residência ou domicílio toda a extensão do respectivo da sua residência ou dependência desta, ou, ainda
imóvel rural (Lei n. 10.826/03, art. 5º, §5º, incluído no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou
pela Lei n. 13.870/19); o responsável legal do estabelecimento ou empresa,
b) no seu local de trabalho, desde que seja o é de rigor concluir que a prática dessas mesmas
titular ou o responsável legal do estabelecimento condutas fora dos limites aí estabelecidos (v.g., arma
ou empresa: como o Estatuto do Desarmamento no interior de um veículo) terá o condão de tipificar
não faz qualquer ressalva, pouco importa que o o crime do art. 14 da Lei n. 10.826/03. Como já se
local de trabalho seja aberto ao público ou não. pronunciou o STJ, “(...) é entendimento desta Corte
Destarte, como norma específica, deve prevale- de Justiça que o delito de posse ilegal de arma de
cer sobre o disposto no art. 150, §4º, inciso III, fogo caracteriza-se quando esta for encontrada no
do Código Penal.48 De acordo com a doutrina,49 interior da residência ou no trabalho do acusado,
quando a lei se refere ao local de trabalho, esta- sendo que o porte ilegal configura-se quando o
belecimento ou empresa, imprime a ideia de local artefato é apreendido em local diverso. (...) Não
fixo, de um imóvel, e tais conceitos devem ser obstante o órgão ministerial tenha denunciado a
interpretados restritivamente. Logo, a regra não paciente como incursa nos delitos dispostos nos arts.
alcança, por exemplo, vendedores ambulantes, mo- 14 (porte ilegal de arma de fogo de uso permitido)
toristas profissionais, viajantes, etc. A comprovação e 16 (porte ilegal de arma de fogo de uso restrito)
da titularidade ou da responsabilidade legal pelo da Lei nº 10.826/03, da detida análise da exordial
estabelecimento pode ser feita nos termos do art. acusatória, constata-se que a descrição dos fatos
4º, §1º, do Decreto n. 9.845/19: “Para os fins do nela contida demonstra que a conduta perpetrada
disposto no caput, considera-se: (...) II – interior pela paciente se amolda aos tipos previstos nos
do local de trabalho – toda a extensão da área arts. 12 e 16 da legislação em apreço, porquanto os
particular do imóvel, edificada ou não, em que armamentos foram encontrados no interior de sua
esteja instalada a pessoa jurídica, registrada como residência, logo, restou caracterizada a posse, e não
sua sede ou filial; III – titular do estabelecimento o porte ilegal de armas de fogo de uso permitido e
ou da empresa – aquele assim definido no contrato restrito, como capitulado pelo parquet estadual. (...)”.52
social; e IV – responsável legal pelo estabelecimento Por fim, discute-se acerca da (im) possibilidade
ou pela empresa – aquele designado em contrato de o proprietário da arma de fogo registrada portá-la
individual de trabalho, com poderes de gerência. no interior de sua residência ou local de trabalho,
Assim, se o proprietário de um restaurante mantiver sendo ele o titular ou responsável legal do estabele-
um revólver calibre .38 no interior do estabeleci- cimento ou empresa. Em outras palavras, supondo
mento, deverá responder pelo crime do art. 12 se que o gerente de uma mercearia seja o proprietário
não tiver o devido registro. O garçom, todavia, de uma arma de fogo de uso permitido devidamente
não tem autorização para manter uma arma no cadastrada no SINARM e registrada pela Polícia
mesmo local, daí por que deverá responder pelo Federal, seria possível que ele circulasse livremente
delito do art. 14 da Lei de Armas. pela empresa com a arma oculta, por exemplo, em
Para o STJ, a boleia de um caminhão não suas vestes? Sem embargo de opiniões em sentido
pode ser considerada residência, nem tampouco contrário, é de rigor a conclusão no sentido de que
local de trabalho do caminhoneiro. Na verdade, o o registro autoriza o proprietário da arma de fogo
caminhão é instrumento de trabalho do motorista, tão somente a mantê-la nesses locais, guardando-a a
assim, como, mutatis mutandis, a espátula serve sua disposição, mas jamais lhe confere o direito de
ao artesão. Funciona, pois, como um meio físico circular com tal artefato, sob pena de configuração
para se chegar ao fim laboral. Logo, a apreensão
de arma de fogo de uso permitido no interior da 50. STJ, 6ª Turma, AgRg no REsp 1.362.124/MG, Rel. Min. Sebastião Reis
Júnior, j. 19/03/2013, DJe 10/04/2013.
boleia de um caminhão tipifica o delito previsto 51. Nesse sentido: STJ, 6ª Turma, AgRg no REsp 1.341.025/MG, Rel. Min.
Assusete Magalhães, j. 06/08/2013, DJe 13/05/2014.
52. STJ, 5ª Turma, HC 161.876/GO, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 12/08/2010,
48. Nessa linha: DELMANTO. Op. cit. p. 781. DJe 04/10/2010. Na mesma linha: STJ, 5ª Turma, HC 133.231, Rel. Min. Felix
49. MARCÃO, Renato. Op. cit. p. 22. Fischer, j. 13/10/2009, DJe 30/11/2009.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

do crime do art. 14 da Lei de Armas. É nesse sentido, normalmente solidária a um cano, que tem a função
aliás, a lição de César Dario Mariano da Silva: “Há de dar continuidade à combustão do propelente,
de ser observado que aquele que possui o registro além de direção e estabilidade ao projétil”. De se
da arma de fogo não poderá portá-la, mesmo nos notar que as denominadas armas brancas, assim
locais descritos no art. 12 do Estatuto. O certifica- compreendidas como aqueles artefatos cortantes
do de registro da arma de fogo dá o direito de o ou perfurantes, normalmente constituídos por
seu proprietário tê-la naqueles locais devidamente peça em lâmina ou oblonga, não constituem objeto
acondicionada. Assim, não poderá tê-la consigo, a material do Estatuto do Desarmamento, embora
não ser em ocasiões excepcionais, como quando seu porte possa caracterizar contravenção penal
faz a sua manutenção”.53
(Decreto-Lei n. 3.688/41, art. 19);
9.5. Objeto material. b) Acessório:54 a “Convenção Interamericana
contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas
Objeto material é a pessoa ou coisa sobre de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais
a qual recai a conduta delituosa. Não se pode Correlatos”, promulgada pelo Decreto n. 3.229/99,
confundir este conceito com o de bem jurídico.
não faz uso expresso da terminologia acessório,
Bens jurídicos são os pressupostos indispensáveis
referindo-se, porém, a outros materiais correlatos,
para a existência em comum, que se caracterizam
numa série de situações valiosas, tais como a vida, assim compreendido como “qualquer componente,
a integridade física, a liberdade de locomoção, o parte ou peça de reposição de uma arma de fogo,
patrimônio, a incolumidade pública, etc. A título ou acessório que possa ser acoplado a uma arma
de exemplo, enquanto o bem jurídico tutelado pelo de fogo”. De seu turno, o anexo III do Decreto n.
crime de homicídio é a vida, o objeto material do 10.030/19 define acessório de arma de fogo como
art. 121 do Código Penal é o ser humano nascido “artefato que, acoplado a uma arma, possibilita a
com vida (“alguém”). Também não se pode con- melhoria do desempenho do atirador, a modificação
fundir o objeto do crime com seus instrumentos, de um efeito secundário do tiro ou a modificação
ou seja, os meios utilizados pelo agente para levar do aspecto visual da arma”;
adiante sua prática delituosa, tais como, no caso da c) Munição: segundo o Decreto n. 3.229/99,
lavagem de capitais, a abertura de contas correntes entende-se por munição o cartucho completo ou
em nome de laranjas. seus componentes, incluindo-se estojo, espoleta, carga
Vejamos, então, os objetos materiais do crime propulsora, projétil ou bala que são utilizados em
do art. 12 da Lei n. 10.826/03: armas de fogo. Por sua vez, consoante disposto no
a) Arma de fogo: de acordo com o Decreto art. 2º, inciso X, do Decreto n. 9.845/19, considera-se
n. 3.229/99, que promulgou a “Convenção Intera- munição “cartucho completo ou seus componentes,
mericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito incluídos o estojo, a espoleta, a carga propulsora, o
de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros projétil e a bucha utilizados em armas de fogo”. De
Materiais Correlatos”, entende-se por arma de fogo acordo com a doutrina, “quando a arma de fogo
qualquer arma que conste de pelo menos um cano for de carregamento antecarga (pela boca do cano),
pelo qual uma bala ou projétil possa ser expelido a pólvora (ou a substância equivalente), a bucha e
pela ação de um explosivo, que tenha sido projetada o material empregado como projétil também serão
para isso, ou que possa ser convertida facilmente tidos como munição”.55 É firme a jurisprudência
para tal efeito, excetuando-se as armas antigas
no sentido de que, para fins de caracterização dos
fabricadas antes do século XX, ou suas réplicas,
crimes previstos na Lei n. 10.826/03 especificamente
ou qualquer outra arma ou artefato destrutivo,
tal como bomba explosiva, incendiária ou de gás, relacionados à posse (ou porte) de munição, pouco
granada, foguete, lança-foguetes, míssil, sistema de importa se esta estava (ou não) acompanhada de
mísseis ou mina. Para além do tratamento dispen- arma de fogo para a sua efetiva utilização.56
sado à matéria pela referida Convenção, o anexo
III do Decreto n. 10.030/19 conceitua arma de fogo 54. Na vigência da revogada Lei n. 9.437/97, os acessórios e as munições
não constavam como objeto material dos crimes ali previstos.
como “arma que arremessa projéteis empregando 55. SILVA, César Dario Mariano. Op. cit. p. 103.
a força expansiva dos gases, gerados pela combus- 56. De acordo com o STJ, “(...) para a caracterização do delito previsto
no artigo 14 da Lei nº 10.826/03 é irrelevante se a munição possui ou não
tão de um propelente confinado em uma câmara, potencialidade lesiva, por se tratar de delito de perigo abstrato, pouco
importando se estava acompanhada de arma de fogo para a sua efetiva
utilização. (...)”. (STJ, 6ª Turma, REsp 1.228.545/RS, Rel. Min. Og Fernandes,
53. Op. cit. p. 69. No mesmo sentido: MARCÃO (op. cit. p. 20). j. 18/04/2013, DJe 29/04/2013).
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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
E FAMILIAR CONTRA A MULHER
(LEI MARIA DA PENHA) E CONTRA CRIANÇAS
E ADOLESCENTES (LEI HENRY BOREL)
LEIS 11.340/06 E 14.344/22

I – NOTA AO LEITOR. dispositivos da Lei Maria da Penha, substituindo


tão somente o sujeito passivo da violência doméstica e
No dia 9 de julho de 2022 entrou em vigor a Lei n.
familiar, não mais a mulher, mas sim crianças e
14.344, que cria mecanismos para a prevenção e
adolescentes. Foi exatamente o que aconteceu, a
o enfrentamento da violência doméstica e familiar
título de exemplo, nos seguintes dispositivos da Lei
contra a criança e o adolescente, nos termos do art.
Henry Borel: art. 2º da LHB (idêntico ao art. 5º da
226, §8º, e do art. 227, §4º, ambos da Constituição
LMP); art. 3º da LHB (art. 6º da LMP); art. 4º da
Federal. Referido Diploma normativo foi batizado
LHB (art. 38 da LMP); art. 11 da LHB (art. 10 da
como “Lei Henry Borel”, em homenagem à trágica
LMP); art. 12 da LHB (art. 10-A, §1º, da LMP);
morte do menino “Henry”, vítima de homicídio
art. 13 da LHB (art. 11 da LMP); art. 14 da LHB
no apartamento em que morava com sua mãe,
(art. 12-C da LMP); art. 15 da LHB (art. 18 da
Monique Medeiros, e seu padrasto, o ex-vereador
LMP); art. 16 da LHB (art. 19 da LMP); art. 17 da
Jairo Souza Santos, o “Jairinho”.
LHB (art. 20 da LMP); art. 18 da LHB (art. 21 da
No afã de dar uma rápida resposta à morte do LMP); art. 19 da LHB (art. 38-A da LMP); art. 20
menino “Henry”, e até mesmo em virtude da da LHB (art. 22 da LMP); art. 21 da LHB (art. 23
similaridade da vulnerabilidade especial entre da LMP); art. 22 da LHB (art. 26 da LMP); art. 25
mulheres e crianças e adolescentes quando vítimas de da LHB (art. 24-A da LMP); art. 226, §1o, do
violência doméstica e familiar, o Congresso Estatuto da Criança e do Adolescente, incluído pela
Nacional não teve pudor algum em “copiar e colar” Lei n. 14.344/22 (art. 41 da LMP); art. 226, §2º,
praticamente todos dispositivos penais e proces- do Estatuto da Criança e do Adolescente, incluído
suais penais da Lei n. 11.340/06 (LMP) para a Lei n. pela Lei n. 14.344/22 (art. 17 da LMP) etc.
14.344/22 (LHB). Com efeito, deliberadamente1 ou Tínhamos, então, na condição de autor do
não – ficamos com a primeira opção –, a Lei n. presente Manual de Legislação Criminal Especial,
14.344/22 reproduziu, em seu texto, diversos duas opções: a primeira, escrever um capítulo
autônomo para tratar da violência doméstica e
1. Durante a tramitação do Projeto que deu origem à Lei Henry Borel, familiar contra crianças e adolescentes, opção na
constou do parecer que referido diploma normativo propõe a engenharia
“de um microssistema de prevenção e enfrentamento da violência doméstica qual provavelmente faríamos sucessivas remições
e familiar contra a criança e o adolescente, nos moldes daquele previsto
na Lei n. 11.340, de 2016, a Lei Maria da Penha, porém adaptado a esta
ao capítulo atinente à violência doméstica e fami-
parcela específica de nossa população de vulneráveis”. liar contra a mulher, tornando a própria leitura
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

cansativa e pouco produtiva; ou abordar ambas as Estas ações afirmativas podem ser conceituadas
leis concomitantemente, destacando, quando como o conjunto de ações, programas e políticas
necessário, as eventuais diferenças entre a Lei Maria da especiais e temporárias que buscam reduzir ou
Penha e a Lei Henry Borel. Por reputar mais minimizar os efeitos intoleráveis da discriminação
didática e producente, e considerando-se que boa em razão de gênero, raça, sexo, religião, deficiência
parte do entendimento doutrinário e jurisprudencial já física, ou outro fator de desigualdade. Buscam
sedimentado em relação à violência doméstica e incluir setores marginalizados num patamar sa-
familiar contra a mulher (v.g., impossibilida-de de tisfatório de oportunidades sociais, valendo-se de
aplicação do princípio da insignificância, mecanismos compensatórios. Esses programas de
constitucionalidade da vedação à aplicação da Lei dos ação afirmativa não se colocam em rota de colisão
Juizados) deverá ser aplicado, por analogia, à Lei com o princípio da igualdade, potencializando,
Henry Borel, ficamos com a segunda opção, pelo contrário, expectativas compensatórias e de
aguardando, obviamente, as críticas e sugestões do inserção social de parcelas historicamente
nosso leitor para o aprimoramento dessa ideia. marginalizadas. Destinam-se, pois, a equacionar
distorções arraigadas ou minorar-lhes as consequ-
1. FUNDAMENTO NORMATIVO DA LEI MARIA DA ências anti-sociais. A justificativa racional, neste
PENHA. caso, parte do correto diagnóstico de tendências
A Lei nº 11.340/06 foi criada não apenas para sociais refratárias à inclusão social (nos setores
atender ao disposto no art. 226, § 8º, da Constitui- da educação, trabalho, acesso aos bens culturais,
ção Federal, segundo o qual “o Estado assegurará a etc), como também da viabilidade do mecanismo
assistência à família na pessoa de cada um dos que escolhido para substituir ou contrabalançar as
a integram, criando mecanismos para coibir a referidas tendências, ainda que tomado como parte de
violência no âmbito de suas relações”, mas também políticas públicas mais amplas.
de modo a dar cumprimento a diversos tratados No ano de 1980, foi realizada na cidade de
internacionais ratificados pela República Federativa do Copenhague (Dinamarca) a II Conferência Mun-
Brasil. dial sobre a Mulher. Além de analisar o Plano
No ano de 1975, a Organização das Nações Uni- elaborado na I Conferência, foram incorporadas
das realizou na cidade do México a I Conferência outras preocupações, como, por exemplo, os pro-
Mundial sobre a Mulher, proclamando o ano de blemas relacionados à saúde, emprego e educação
1975 como o Ano Internacional da Mulher e de das mulheres. Em 1985, a cidade Nairóbi (Quênia)
1975 até o ano de 1985 a Década das Nações Unidas foi o palco da III Conferência Mundial sobre a
para a Mulher. Como resultado dessa Conferência Mulher, tendo como objetivo precípuo avaliar os
surge a Convenção sobre a Eliminação de Todas as resultados da Década das Nações Unidas para a
Formas de Discriminação contra as Mulheres, ou Mulher. Enfim, a Conferência de Direitos Humanos
simplesmente Convenção da Mulher, adotada pela das Nações Unidas realizada em Viena (Áustria)
Assembleia Geral da ONU em 18 de dezembro de no ano de 1993 definiu formalmente a violência
1979, entrando em vigor no dia 3 de setembro de 1981.2 contra a mulher como espécie de violação aos
Com o objetivo de compensar desigualdades direitos humanos.
históricas entre os gêneros masculino e feminino, e Em sede regional, a Assembleia Geral da
de modo a estimular a inserção e inclusão desse Organização dos Estados Americanos adotou a
grupo socialmente vulnerável nos espaços sociais, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
promovendo-se, assim, a tão desejada isonomia Erradicar a Violência Doméstica, também co-
constitucional entre homens e mulheres (CF, art. 5º, I), nhecida como Convenção de Belém do Pará, no
esta Convenção passou a prever a possibilidade de ano de 1994. Incorporada ao ordenamento jurídico
adoção de ações afirmativas (“discriminação pátrio pelo Decreto nº 1.973/96, esta Convenção
positiva”). Afinal, a promoção da igualdade entre os passou a tratar a violência contra a mulher como
sexos passa não apenas pelo combate à discri- grave problema de saúde pública, conceituando-a
minação contra a mulher, mas também pela adoção de nos seguintes termos: “qualquer ação ou conduta
políticas compensatórias capazes de acelerar a baseada, no gênero, que cause morte, dano ou
igualdade de gênero. sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher,
tanto no âmbito público como no privado” (art. 1º).
2. Aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo
nº 26, de 22 de junho de 1994, e promulgada pelo Presidente da República
Todas essas Convenções Internacionais visando
por meio do Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. à proteção da mulher refletem um avanço do Sistema
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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, pelo silêncio das vítimas. Há uma elevada taxa de
em um fenômeno designado pela doutrina como cifra negra nas estatísticas. Além do natural medo de
processo de especificação do sujeito de direito. Por contar para os pais (quando estes não são os
meio dele, o sistema geral de proteção aos direitos próprios agressores), não raro essas vítimas sequer
humanos – concebido com o propósito de conferir conseguem compreender adequadamente o grau
proteção genérica e abstrata a toda e qualquer pes- de anormalidade da situação vivenciada.
soa – passa a coexistir com um sistema especial, Nessa senda, revela-se importante observar que
por força do qual determinados grupos específicos nem sempre se entendeu a criança e o adolescente
(v.g., mulheres, crianças) também passam a gozar como sujeito histórico e de direitos. Em verdade, a
de uma proteção especial e particularizada em proteção às crianças e aos adolescentes é fenôme-no
virtude de sua própria vulnerabilidade.3 histórico recente. No Brasil, a situação não foi
Apesar do mandamento constitucional do art. diferente. Somente com a Constituição Federal de
226, § 8º, e dos diversos Tratados Internacionais 1988 é que esse panorama passou a sofrer subs-
firmados pelo Brasil, a Lei nº 11.340/06 surgiu tancial alteração. A partir dos inúmeros avanços
apenas no ano de 2006, exclusivamente para relacionados aos direitos sociais, que integram o
atender à recomendação da OEA decorrente de rol dos direitos e garantias fundamentais, o art. 6º
condenação imposta ao Brasil no caso que ficou elencou, expressamente, dentre eles, a proteção à
conhecido como “Maria da Penha”. infância. A Constituição Federal dispôs, de ma-neira
Mais recentemente – 28 de novembro de 2018 expressa, que recai sobre o Estado o dever de
–, entrou em vigor o Decreto n. 9.586, responsável assegurar a assistência à família na pessoa de cada
pela instituição do Sistema Nacional de Políticas um dos que a integram, criando mecanismos para
para as Mulheres - Sinapom, vinculado à Secretaria coibir a violência no âmbito de suas relações (CF,
Nacional de Políticas para Mulheres do Ministério art. 226, §8º). Mais adiante, o art. 227 da nossa
dos Direitos Humanos, com o objetivo de ampliar e Lei Maior previu que “é dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
fortalecer a formulação e a execução de políticas
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o
públicas de direitos das mulheres, de enfrentamen-to
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
a todos os tipos de violência e da inclusão das
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
mulheres nos processos de desenvolvimento social,
respeito, à liberdade e à convivência familiar e
econômico, político e cultural do País.
comunitária, além de coloca-los a salvo de toda
No mesmo contexto, em data de 29 de outubro forma de negligência, discriminação, exploração,
de 2021, entrou em vigor a Lei n. 14.232, respon- violência, crueldade e opressão”, consagrando,
sável pela criação da Política Nacional de Dados e assim, a doutrina da proteção integral, posterior-
Informações relacionadas à violência contra as mente consolidada pelo Estatuto da Criança e do
mulheres (PNAINFO), com a finalidade de reunir, Adolescente (Lei n. 8.069/90). Determinou, ade-
organizar, sistematizar e disponibilizar dados e mais, que a lei deverá punir severamente o abuso, a
informações atinentes a todos os tipos de violência violência e a exploração sexual da criança e do
contra as mulheres. Dentro do mesmo contexto, adolescente (CF, art. 227, §4º).
o Decreto n. 10.906, de 20 de dezembro de 2021, No plano internacional, especial atenção deve
institui o Plano Nacional de Enfrentamento ao ser dispensada a diversos diplomas normativos,
Feminicídio, com o objetivo de enfrentar todas as merecendo especial destaque: i. Convenção de
formas de feminicídio por meio de ações gover- Genebra de 1924: partindo da premissa de que a
namentais integradas e intersetoriais. infância é uma importante etapa do desenvolvi-
mento humano, surge a necessidade de se conferir a
2. Fundamento normativo da Lei Henry Borel. ela uma proteção especial, sendo esta, grosso
A violência doméstica e familiar contra o pú- modo, a primeira manifestação internacional em
blico infantojuvenil é uma realidade que insiste em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes,
perdurar ao longo do tempo. A grande dificuldade voltada, porém, especificamente para aquelas em
desse problema, porém, é dimensioná-lo, pois situação de delinquência e abandono; ii. Declaração
estamos diante de delitos que são cometidos no dos Direitos da Criança de 1959: considerando-se
interior dos lares, permanecendo, pois, recoberto que a humanidade deve à criança o melhor dos
seus esforços, os direitos constantes desta Decla-
3. Nesse sentido: PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2ª ed.
ração diziam respeito à especial proteção para o
São Paulo: Editora Max Limonad, 2003. p 199. desenvolvimento físico, mental e social, direito à
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

alimentação, moradia, assistência médica adequada, 3. (In) constitucionalidade do tratamento


amor, compreensão por parte dos pais e da socie- diferenciado entre os gêneros.
dade, direito a ser protegida contra o abandono e a Na visão do Supremo Tribunal Federal (ADC
exploração no trabalho; iii. Pacto Internacional 19/DF),4 ao criar mecanismos específicos para
sobre Direitos Civis e Políticos (1966): especifi- coibir e prevenir a violência doméstica e familiar
camente em relação à temática ora tratada, este contra a mulher e estabelecer medidas especiais de
pacto dispõe que toda criança terá direito, sem proteção, assistência e punição, tomando como base
discriminação alguma por motivo de cor, sexo, o gênero da vítima, a Lei Maria da Penha utiliza-se
religião, origem nacional ou social, situação eco- de meio adequado e necessário visando fomentar o
nômica ou nascimento, às medidas de proteção fim traçado pelo artigo 226, § 8º, da Carta Federal.
que a sua condição de menor requerer por parte Para frear a violência doméstica, não se revela
de sua família, da sociedade e do Estado e que desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como
toda criança deverá ser registrada imediatamente critério de diferenciação. A mulher é eminentemente
após seu nascimento e deverá receber um nome, vulnerável quando se trata de constrangimentos
tendo direito de adquirir uma nacionalidade; iv. físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito
Convenção Americana sobre Direitos Humanos privado. Não há dúvida sobre o histórico de
(1969): em seus arts. 4 e 19, o Pacto de San José da discriminação e sujeição por ela enfrentado na esfera
Costa Rica discorre sobre os direitos da população afetiva. As agressões sofridas são significativamente
infantojuvenil, prescrevendo os direitos à vida, maiores do que as que acontecem contra homens
desde o momento da sua concepção. O art. 19, por em situação similar. Além disso, mesmo quando
sua vez, preceitua que toda criança terá direito às homens, eventualmente, sofrem violência doméstica,
medidas de proteção que a sua condição de menor a prática não decorre de fatores culturais e sociais e
requer, por parte da sua família, da sociedade e da usual diferença de força física entre os gêneros.
do Estado; v. Regras Mínimas das Nações Unidas Na seara internacional, a Lei Maria da Penha está
para a Administração da Justiça e da Juventude em harmonia com a obrigação, assumida pelo Estado
(Regras Mínimas de Beijing - 1985): orientam os brasileiro, de incorporar, na legislação interna, as
Estados signatários a lidar com os jovens delin- normas penais, civis e administrativas necessárias
quentes, coferindo e resguardando-lhes direitos, para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
assegurando as garantias básicas processuais, mulher, tal como previsto no artigo 7º, item “c”, da
pautando pela proporcionalidade das medidas Convenção de Belém do Pará e em outros tratados
adotadas; vi. Convenção Internacional sobre os internacionais ratificados pelo país.
Direitos da Criança (1989): ratificada pelo Brasil Sob a óptica constitucional, a norma também
em 1991 (Decreto Legislativo n. 28/90), trata-se do é corolário da incidência do princípio da proibição
documento que sedimenta a teoria da proteção de proteção insuficiente dos direitos fundamentais,
integral, posteriormente adotada pelo Estatuto na medida em que ao Estado compete a adoção
da Criança e do Adolescente; vii. Diretrizes das dos meios imprescindíveis à efetiva concretização
Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência de preceitos contidos na Carta da República. A
Juvenil (Diretrizes de Riad - 1990): recomendam abstenção do Estado na promoção da igualdade
considerar que o comportamento dos jovens que de gêneros e a omissão no cumprimento, em
não se ajustem às normas da sociedade é, frequen- maior ou menor extensão, de finalidade imposta
pelo Diploma Maior implicam situação da maior
temente, etapa do processo de amadurecimento
gravidade político-jurídica, pois deixou claro o
destes, de modo que tal comportamento não deve
constituinte originário que, mediante inércia,
redundar em tratamento indevidamente severo
pode o Estado brasileiro também contrariar o
do sujeito; viii. Regras Mínimas das Nações
Diploma Maior. Na verdade, a Lei Maria da
Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Penha retirou da invisibilidade e do silêncio a
Liberdade (1990): para além de tratar das regras vítima de hostilidades ocorridas na privacidade
para os jovens privados de liberdade, também do lar e representou movimento legislativo claro
contemplam uma preocupação com a reinserção no sentido de assegurar às mulheres agredidas o
dos jovens na sociedade, abrangendo a proteção acesso efetivo à reparação, à proteção e à Justiça.
durante e depois do período de privação, quando
devem ser beneficiados com medidas destinadas a 4. STF, Pleno, ADC 19/DF, Rel. Min. Marco Aurelio, j. 09.02.2012, DJe
auxiliá-los no processo de ressocialização. 80 28.04.2014.
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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

A norma mitiga realidade de discriminação social e 5. ORIGEM DA “LEI HENRY BOREL”.


cultural que, enquanto existente no país, legitima a
Como exposto anteriormente, a Lei n. 14.344/22 foi
adoção de legislação compensatória a promover a
batizada como “Lei Henry Borel” em homena-gem à
igualdade material, sem restringir, de maneira
trágica morte do menino “Henry”, vítima de
desarrazoada, o direito das pessoas pertencentes ao
homicídio no apartamento em que morava com sua
gênero masculino. A dimensão objetiva dos
mãe, Monique Medeiros, e seu padrasto, o ex--
direitos fundamentais, vale ressaltar, reclama vereador Jairo Souza Santos, o “Jairinho”. Segundo as
providências na salvaguarda dos bens protegidos investigações, a criança teria sido morta pelo
pela Lei Maior, quer materiais, quer jurídicos, padrasto, contando, para tanto, com a omissão
sendo importante lembrar a proteção especial que dolosa da mãe. Um laudo constante do inquérito
merecem a família e todos os seus integrantes. teria atestado que o corpo da criança apresentava 23
Nessa linha, aliás, o mesmo legislador já editou (vinte e três) lesões por ação violenta.
microssistemas próprios, em ocasiões anteriores, a
fim de conferir tratamento distinto e proteção É bem verdade que, diversamente do que
especial a outros sujeitos de direito em situação de ocorreu com a chamada “Lei Mariana Ferrer” (Lei n.
hipossuficiência, como se depreende da aprovação 14.245/21), em que o legislador fez constar essa
pelo Congresso Nacional dos Estatutos da Pessoa homenagem da própria ementa do diploma nor-
Idosa e da Criança e do Adolescente, sem que se mativo, não houve semelhante cautela por parte da Lei
jamais fosse questionada sua constitucionalidade. n. 14.344/22. Sem embargo, se atentarmos para
o fato de que o próprio art. 27 da Lei n. 14.344/22
instituiu o dia 3 de maio de cada ano como “Dia
4. ORIGEM DA “LEI MARIA DA PENHA”.
Nacional de Combate à Violência Doméstica e
Em data de 22 de setembro de 2006, entrou Familiar contra a Criança e o Adolescente”, em
em vigor a Lei nº 11.340/06, referente à violência homenagem ao menino Henry Borel, parece não
doméstica e familiar contra a mulher. Esta lei ficou haver qualquer dúvida em relação à adequada
conhecida como Lei Maria da Penha em virtude da terminologia a ser utilizada em relação ao novel
grave violência de que foi vítima Maria da Penha diploma normativo. Esclareça-se, a propósito, que 3 de
Maia Fernandes: em 29 de maio de 1983, na cidade de maio era o dia do aniversário do menino Henry.
Fortaleza, a farmacêutica Maria da Penha, enquanto Conquanto se trate, o homicídio do menino
dormia, foi atingida por disparo de espingarda desfe- “Henry”, do episódio mais recente e trágico en-
rido por seu próprio marido. Por força desse disparo, volvendo a violência doméstica e familiar contra
que atingiu a vítima em sua coluna, Maria da Penha crianças e adolescentes, infelizmente não estamos
ficou paraplégica. Porém, as agressões não cessaram. diante de um fato isolado. Com efeito, segundo
Uma semana depois, a vítima sofreu nova violência dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos,5
por parte de seu então marido, tendo recebido uma foram recebidas, exclusivamente em relação ao ano de
descarga elétrica enquanto se banhava. O agressor 2021, cerca de 101.186 denúncias de relatos de
foi denunciado em 28 de setembro de 1984. Devido violência contra crianças ou adolescentes, número
a sucessivos recursos e apelos, sua prisão ocorreu este que superou inclusive o total de denúncias
somente em setembro de 2002. com relatos de violência doméstica e familiar
Por conta da lentidão do processo, e por en- contra a mulher, que atingiu, também em 2021,
volver grave violação aos direitos humanos, o caso o total de 69.407.
foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Boa parte desses episódios guarda relação com
Humanos, que publicou o Relatório nº 54/2001, no uma equivocada tolerância da sociedade em relação ao
sentido de que a ineficácia judicial, a impunidade e uso de castigos físicos na correção de crianças e
a impossibilidade de a vítima obter uma reparação adolescentes, algo, aliás, que se encontra legalmente
mostra a falta de cumprimento do compromisso proibido desde a entrada em vigor da Lei “Menino
assumido pelo Brasil de reagir adequadamente Bernardo” (Lei n. 13.010/14), que acrescentou ao
ante a violência doméstica. Cinco anos depois da Estatuto da Criança e do Adolescente o seguinte
publicação do referido relatório, com o objetivo de dispositivo: “Art. 18-A. A criança e o adolescente
coibir e reprimir a violência doméstica e familiar têm o direito de ser educados e cuidados sem o
contra a mulher e superar uma violência há muito uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou
arraigada na cultura machista do povo brasileiro,
entrou em vigor a Lei nº 11.340/06, que ficou mais 5. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh/painel-de--
conhecida como Lei Maria da Penha. dados/2021 . Acesso em 15 de dezembro de 2022.
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MANUAL DE LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL • Renato Brasileiro de Lima

degradante, como formas de correção, disciplina, humana começou no Éden: por causa da mulher,
educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, todos nós sabemos, mas também em virtude da
pelos integrantes da família ampliada, pelos res- ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional
ponsáveis, pelos agentes públicos executores de do homem (...) O mundo é masculino! A ideia que
medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!”.
encarregada de cuidar deles, trata-los, educá-los Felizmente, tal decisão acabou sendo reformada
ou protegê-los. Parágrafo único. Para os fins desta pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.6
Lei, considera-se: I – castigo físico: ação de natu- A Lei Henry Borel não contempla dispositivo
reza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso legal semelhante ao do art. 4º da Lei Maria da
da força física sobre a criança ou o adolescente Penha. Sem embargo, considerando-se que a Lei
que resulte em: a) sofrimento físico; ou b) lesão; II de Introdução às normas do Direito Brasileiro
– tratamento cruel ou degradanete: conduta ou (Dec-Lei nº 4.657/42), prevê, em seu art. 5º, que,
forma cruel de tratamento em relação à criança “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins so-
ou adolescente que: a) humilhe; ou b) ameace ciais a que ela se dirige”, parece de todo evidente
gravemente; ou c) ridicularize”. que os dispositivos da Lei n. 14.344/22 devem
Parte considerável dessas agressões é cometida ser igualmente interpretados em favor daquelas
por ofensores homens, não raramente o próprio pessoas que mereceram maior proteção do legisla-
pai (ou padrasto), e geralmente envolve abusos dor – crianças e adolescentes vítimas de violência
físicos e sexuais. Nesse caso, costuma-se atribuir tal em relações domésticas ou familiares –, e não em
violência não apenas à associação entre viri-lidade sentido contrário.
e agressividade, mas também ao fato de o agressor
muito provavelmente ter sido vítima de 7. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CON-
semelhante violência quando criança. As mulheres, TRA A MULHER.
inclusive as próprias mães, também costumam
Partindo da premissa de que a mulher ainda é
ser responsabilizadas por esse tipo de violência,
comumente oprimida em nossa sociedade, espe-
geralmente quando lhes são imputados crimes
cialmente pelo homem, a Lei Maria da Penha criou
omissivos impróprios que guardam relação com
mecanismos para coibir a violência doméstica e
o dever de cuidado dos filhos, seja quando, por
familiar contra a mulher, conferindo proteção dife-
exemplo, assistem passivamente ao estupro da filha
renciada ao gênero feminino, tido como vulnerável
cometido pelo próprio companheiro, deixando de
quando inserido em situações legais específicas
tomar quaisquer providências para fazer cessar a
elencadas pelo art. 5º: a) ambiente doméstico; b)
prática delituosa, seja quando deixam de pôr fim a
ambiente familiar; ou c) relação íntima de afeto. Por
um relacionamento afetivo que expõe as crianças a
conseguinte, a proteção diferenciada contemplada
sucessivos maus-tratos, dos quais ocasionalmente
pela Lei Maria da Penha para o gênero feminino
resulta a morte da criança.
terá incidência apenas quando a violência contra a
mulher for executada em tais situações de vul-
6. INTERPRETAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA E
nerabilidade. A contrario sensu, se uma mulher
DA LEI HENRY BOREL.
for vítima de determinada violência, mas o delito
O art. 4º da Lei Maria da Penha dispõe que, não tiver sido executado no ambiente doméstico,
para sua interpretação, serão considerados os fins familiar ou em qualquer relação íntima de afeto
sociais a que ela se destina. Como a Lei nº 11.340/06 foi (v.g., briga entre vizinhos), afigura-se indevida a
concebida para tutelar a mulher que se encontra em aplicação da Lei nº 11.340/06.7
uma situação de vulnerabilidade no âmbito de uma Por conseguinte, a proteção diferenciada con-
relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, é nesse templada pela Lei Maria da Penha para o gênero
sentido que seus dispositivos deverão ser
interpretados, atentando o operador sobremaneira às
6. TJMG, ApCrim 1.0672.06.225305-5, j. 11/12/2007, Rel. Min. Judimar
peculiares condições das mulheres em situação de Biber, DO 11/02/2008.
violência doméstica e familiar. Por isso, causou 7. Para a aplicação da Lei n. 11.340/06, há necessidade de demons-
tração da situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência da mulher,
bastante polêmica uma decisão oriunda da Comar-ca numa perspectiva de gênero. A propósito: STJ, 3ª Seção, CC 096.533/MG,
de Sete Lagoas/MG, na qual um juiz definiu a Lei Rel. Min. Og Fernandes, j. 05/12/2008, DJe 05/02/2009; STJ, 5ª Turma, HC
175.816/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 20/06/2013, DJe 28/06/2013.
Maria da Penha, por ele qualificada como um A vulnerabilidade, hipossuficiência ou fragilidade da mulher têm-se como
“monstrengo tinhoso”, como um “conjunto de regras presumidas nas circunstâncias descritas na Lei n. 11.340/06. Nesse contexto:
STJ, 5ª Turma, RHC 055.030/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j.
diabólicas”, apontando, ademais, que a “desgraça 23/06/2015, DJe 29/06/2015.
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