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HISTÓRIA DA

GASTRONOMIA
Mariana Amabile Waideman
Patrícia de Oliveira Leite Farias
História da
Gastronomia
Mariana Amabile Waideman
Patrícia de Oliveira Leite Farias
Presidente da Divisão de Ensino Prof. Paulo Arns da Cunha
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Profa. Patrícia de Oliveira Leite Farias
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Sumário
Apresentação........................................................................................................................... 15
A Autora................................................................................................................................... 17

Capítulo 1
História da alimentação........................................................................................................... 19
1.1 Alimentação na Pré-História............................................................................................. 20
1.1.1 O homem primitivo e as descobertas alimentares.......................................................................................................... 21
1.1.2 O período paleolítico: caça e pesca.................................................................................................................................. 21
1.1.3 A época carnívora da humanidade.................................................................................................................................. 22
1.1.4 A alimentação vegetal e carnívora................................................................................................................................... 23
1.2 Gastronomia na Idade Antiga e Idade Média...................................................................25
1.2.1 Os povos dos grandes banquetes..................................................................................................................................... 25
1.2.2 Civilização romana............................................................................................................................................................ 26
1.2.3 Destaque para o cozinheiro dos reis: Taillevent............................................................................................................... 27
1.3 Gastronomia na Idade Moderna....................................................................................... 28
1.3.1 A época das grandes inovações....................................................................................................................................... 28
1.3.2 As boas maneiras atribuídas à época: uso de talheres.................................................................................................... 29
1.3.3 Tabernas, estalagem e cozinha de rua............................................................................................................................. 29
1.3.4 A alimentação nos mosteiros........................................................................................................................................... 30
1.4 Gastronomia na Idade Contemporânea............................................................................ 31
1.4.1 O caminho do aperfeiçoamento...................................................................................................................................... 31
1.4.2 Surgimento de técnicas de conservação.......................................................................................................................... 32
1.4.3 Instalação do comodismo alimentar............................................................................................................................... 33
1.4.4 A industrialização dos alimentos..................................................................................................................................... 34
Referências............................................................................................................................... 35

Capítulo 2
Gastronomia pelo mundo....................................................................................................... 37
2.1 História da Gastronomia no Brasil..................................................................................... 38
2.1.1 A chegada dos portugueses: início da construção da identidade alimentar no país..................................................... 38
2.1.2 Gastronomia brasileira: originária da mistura de povos (portugueses, africanos e indígenas).................................... 39
2.1.3 A unanimidade nacional: arroz e feijão........................................................................................................................... 43
2.1.4 Influência das regiões nos cardápios brasileiros.............................................................................................................. 44
2.2 História da Gastronomia na Europa..................................................................................46
2.2.1 Vestígios das civilizações: particularidades da França..................................................................................................... 47
2.2.2 Influências da Itália.......................................................................................................................................................... 48
2.2.3 Atribuições portuguesas e espanholas na gastronomia europeia.................................................................................. 49
2.2.4 Contribuições da Alemanha............................................................................................................................................. 50
2.3 História da Gastronomia na Ásia....................................................................................... 51
2.3.1 Particularidades gastronômicas do Japão e da China..................................................................................................... 51
2.3.2 Curiosidades da Gastronomia na Tailândia...................................................................................................................... 53
2.3.3 Alimentação na Mongólia................................................................................................................................................ 53
2.3.4 A alimentação na Coréia do Norte e Coréia do Sul.......................................................................................................... 54
Referências............................................................................................................................... 56

Capítulo 3
Padrões alimentares................................................................................................................. 57
3.1 Padrões e hábitos alimentares da população................................................................... 58
3.1.1 A prática de hábitos saudáveis no Brasil.......................................................................................................................... 58
3.1.2 Classificação dos padrões alimentares............................................................................................................................. 59
3.1.3 Padrão alimentar x Saúde................................................................................................................................................ 60
3.2 Padrão alimentar na infância e adolescência.................................................................... 61
3.2.1 Padrão alimentar e crescimento....................................................................................................................................... 63
3.2.2 Padrão alimentar e desenvolvimento ............................................................................................................................. 64
3.2.3 Padrão alimentar e saúde................................................................................................................................................. 64
3.3 Padrão alimentar na vida adulta....................................................................................... 65
3.3.1 Padrão alimentar saudável............................................................................................................................................... 65
3.3.2 Consumo de alimentos e estilo de vida........................................................................................................................... 66
3.3.3 Perfil qualitativo da alimentação..................................................................................................................................... 67
3.3.4 Perfil quantitativo da alimentação................................................................................................................................... 68
3.4 A globalização alimentar................................................................................................... 69
3.4.1 Influência da globalização nas escolhas alimentares ..................................................................................................... 70
3.4.2 Oferta e demanda de alimento no cotidiano.................................................................................................................. 71
3.4.3 Perfil qualitativo da alimentação globalizada................................................................................................................. 71
Referências............................................................................................................................... 73

Capítulo 4
Alimentação, cultura e subjetividade...................................................................................... 75
4.1 Alimentação/Mitos e tabus............................................................................................... 76
4.1.1 Conceito de tabus alimentares......................................................................................................................................... 76
4.1.2 Os tabus alimentares mais populares.............................................................................................................................. 76
4.1.3 Tabu segmentar, tabus de método e tabus históricos..................................................................................................... 78
4.2 Religiosidade e alimentação............................................................................................. 79
4.2.1 Práticas religiosas e escolhas alimentares....................................................................................................................... 79
4.2.2 Rituais alimentícios e religião.......................................................................................................................................... 80
4.2.3 Crenças alimentares.......................................................................................................................................................... 83
4.3 Intervenção mística na alimentação.................................................................................84
4.3.1 Antropologia e alimentação ............................................................................................................................................ 85
4.3.2 Alimentos sagrados.......................................................................................................................................................... 85
Referências............................................................................................................................... 87
Capítulo 5
A gastronomia no tempo: algumas referências...................................................................... 89
5.1 Gastronomia Italiana.........................................................................................................90
5.1.1 A Renascença e Catarina de Médici................................................................................................................................. 90
5.1.2 Pós-Renascença: rupturas da gastronomia medieval para a modernidade................................................................... 92
5.1.3 As cozinhas regionais....................................................................................................................................................... 94
5.2 Gastronomia francesa........................................................................................................96
5.2.1 Revolução Francesa e os padrões burgueses................................................................................................................... 97
5.2.2 O surgimento e a consolidação dos restaurantes ........................................................................................................... 99
5.2.3 Séculos XVIII a XX: características da gastronomia francesa ........................................................................................ 101
5.3 Gastronomia japonesa e a cozinha oriental...................................................................104
5.3.1 A cozinha japonesa e suas bases conceituais................................................................................................................ 104
5.3.2 A relação comida e saúde na cozinha oriental.............................................................................................................. 107
5.3.3 A cozinha chinesa........................................................................................................................................................... 108
5.3.4 As cozinhas asiáticas mais populares no ocidente ....................................................................................................... 110
Referências............................................................................................................................. 113
Capítulo 6
Gastronomia e a literatura gastronômica.............................................................................. 115
6.1 Regras à mesa.................................................................................................................. 116
6.1.1 História das regras de comportamento à mesa............................................................................................................. 116
6.1.2 Os manuais de boas maneiras....................................................................................................................................... 118
6.1.3 Shou-plate e sousplat: O processo civilizatório à mesa................................................................................................ 119
6.1.4 A gastronomia diplomática, o banquete e os tipos de serviços ................................................................................... 121
6.2 A literatura gastronômica na história..............................................................................123
6.2.1 Os primeiros livros de cozinha: Antiguidade e Idade Média........................................................................................ 123
6.2.2 A literatura gastronômica dos séculos XVII-XVIII ......................................................................................................... 125
6.2.3 A literatura gastronômica do século XIX aos dias atuais .............................................................................................. 126
6.2.4 A crítica e os guias gastronômicos................................................................................................................................. 127
6.3 Personagens e profissionais da cozinha ao longo do tempo......................................... 128
6.3.1 Os cozinheiros gregos e romanos................................................................................................................................... 128
6.3.2 Os grandes personagens da gastronomia até o século XIX........................................................................................... 129
6.3.3 Antoine Carême e Auguste Escoffier: os grandes nomes ............................................................................................. 130
6.3.4 As escolas de cozinha..................................................................................................................................................... 132
6.4 A gastronomia e o turismo............................................................................................. 134
6.4.1 O surgimento do lazer.................................................................................................................................................... 134
6.4.2 O turismo e a hospitalidade encontram a gastronomia................................................................................................ 136
6.4.3 As grandes redes de hotéis e seus personagens............................................................................................................ 137
Referências.............................................................................................................................140
Capítulo 7
Globalização alimentar.......................................................................................................... 143
7.1 A globalização e seu impacto na alimentação...............................................................144
7.1.1 Características da globalização...................................................................................................................................... 145
7.1.2 Mudanças do processo de produção, circulação e consumo de alimentos no mundo globalizado............................ 148
7.1.3 Escolhas, hábitos e padrões alimentares na contemporaneidade................................................................................ 152
7.2 Reflexos da globalização.................................................................................................154
7.2.1 Demandas para uma nova comensalidade................................................................................................................... 154
7.2.2 Reflexos da globalização na cultura alimentar.............................................................................................................. 156
7.2.3 As mudanças no perfil do consumidor em relação à comida....................................................................................... 158
Referência .............................................................................................................................. 162

Capítulo 8
Gastronomia e saúde............................................................................................................. 165
8.1 O padrão alimentar americano: os fast-foods................................................................166
8.1.1 Alimentação e saúde x comida e cultura....................................................................................................................... 166
8.1.2 A relação das escolhas da alimentação e os novos estilos de vida............................................................................... 168
8.1.3 Os novos movimentos gastronômicos (Fast-Food, Slow Food, Comfort Food)............................................................. 170
8.1.4 A reação aos fast-foods................................................................................................................................................. 174
8.2 As tendências alimentares da contemporaneidade....................................................... 176
8.2.1 A mudança nos padrões de consumo alimentar........................................................................................................... 177
8.2.2 Os movimentos e as tendências da contemporaneidade.............................................................................................. 179
8.2.3 A ética da alimentação................................................................................................................................................... 180
Referências ............................................................................................................................184
Apresentação

Quando se fala em gastronomia, no seu sentido mais amplo, podemos dizer que ela
nasceu juntamente com o homem. Todo ser vivo precisa se alimentar para sobreviver, mas
somente o homem transformou essa prática em algo prazeroso e elaborado. As técnicas e
preparações que envolvem alimentos estão em evolução constante. Quanto mais o homem
aprendia sobre a vida, mais sua forma de se alimentar sofria alterações.
Com o conteúdo apresentado na disciplina de História da Gastronomia, você poderá
viajar aos tempos da pré-história, passando pelos principais marcos na alimentação humana
até a gastronomia contemporânea. Os capítulos mostrarão que quanto mais os povos ex-
ploravam novos lugares e conheciam novas culturas, a alimentação também mudava. Você
verá que por trás do alimento que é consumido todos os dias, há riqueza de influências his-
tóricas e culturais.
Bons estudos!
A Autoria
A professora Mariana Amabile Waideman, é Mestre em Segurança Alimentar e Nutricional
(2015, UFPR), especialista em Gastronomia (2008, Universidade Positivo) e graduada em Nutrição
(2006, PUC-PR).

Currículo Lattes:
<lattes.cnpq.br/7676236165155491>

Dedico esta obra aos meus professores da Pós-Graduação


em Gastronomia, que despertaram meu interesse pelo
tema. É gratificante estar construindo um material que
poderá servir como incentivo para muitos alunos, frente às
curiosidades peculiares da História da Gastronomia.
A professora Patrícia de Oliveira Leite Farias, é Bacharel em Gastronomia e Segurança
Alimentar pela UFRPE - Universidade Federal Rural de Pernambuco. Mestre em Ciência e Tecnologia
dos Alimentos pela UFRPE. Professora de Ensino Superior em Gastronomia de disciplinas como
Bioquímica e Microbiologia dos Alimentos e História da Gastronomia.

Currículo Lattes:
<lattes.cnpq.br/4365200028590039 >

Dedico esse livro aos meus pais, meu marido


Luciano, minha irmã Paula e a todos os que me
acompanham na trajetória da vida.
Capítulo 1
História da alimentação

Uma das primeiras rotinas em que o ser humano é inserido logo após nascer é a ali-
mentação. Apesar de ser essencial para sobrevivência, ela já ultrapassou o conceito de que
o homem precisa se alimentar apenas para viver. Atualmente, o ato de comer pode envolver
técnica, conhecimento, história e prazer.
Até a gastronomia da atualidade chegar ao patamar em que se encontra, passou por
grandes evoluções e foi influenciada por, praticamente, todos os povos do mundo. Por isso,
compreender todos esses processos de modificações e a grande carga cultura presente na
alimentação é importante para o profissional da gastronomia.
Para Cascudo (2005), a história da alimentação tem finalidade de comunicação, notí-
cia e entendimento, com destaque para as particularidades alimentares dos povos nos dife-
rentes momentos da história, com preservação das heranças e tradições de cada época. O
autor ainda salienta que a evolução histórica da gastronomia permite a compreensão dos
diferentes padrões alimentícios de cada localidade, auxiliando o entendimento da variedade
alimentar entre as culturas, regiões e países, conforme está exposto no diagrama a seguir.
20 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Comunicação entre as culturas

Preservação de herança H ISTÓ RIA DA ALIMEN TAÇ Ã O Variedade alimentar

Compreensão padrões alimentares

A partir do diagrama é possível notar Nesse capítulo conheceremos mais a


que a história da alimentação envolve fundo como era a alimentação no período
muito mais do que a forma como os pratos da pré-história e, partindo desse momento
foram desenvolvidos. Ela está interligada histórico, como aconteceu a evolução com
com fatores que foram essenciais para a o passar dos milênios até chegar à atuali-
evolução humana como um todo. dade, onde a comida industrializada já faz
parte do dia a dia da maioria das pessoas.
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1.1 Alimentação na Pré-História


A alimentação, desde a pré-história,
sempre foi determinante nas atividades
desenvolvidas pelo homem. Os registros
de seus ancestrais mais antigos mostram
a necessidade de percorrer grandes dis-
tâncias em busca de alimento, uma vez
que tecnologias como o plantio, a criação
de animais e a conservação dos alimentos
só apareceriam milhares de anos depois,
sobretudo com a Revolução Neolítica.
A seguir, veremos como o homem da
pré-história se alimentava e quais eram as
condições às quais ele precisava se subme-
ter para conseguir alimento.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 21

da alimentação de outros animais. Raízes,


1.1.1 O homem primitivo tubérculos e frutas eram mais facilmente
e as descobertas alimentares adquiridas do que carcaças de animais, pois
A pré-história é o período compreen- o homem demorou para desenvolver técni-
dido entre o aparecimento dos primei- cas de caça.
ros hominídeos, há aproximadamente 2,2 Depois disso, com o desenvolvimento
milhões de anos, e o surgimento da escrita, do hábito de se alimentar de proteína animal,
por volta de 3.000 a.C. decorrente da caça, da pesca e da coleta de
Diversas espécies do gênero Homo mariscos (CAVALCANTI, 2007), ocorreu o
desenvolveram-se ao longo de milhões aumento do consumo de carnes, já no cha-
de anos até a chegada à espécie do Homo mado período paleolítico superior (10.000
sapiens, da qual os cientistas afirmam que A.C.) (FLANDRIN; MONTANARI, 1998).
nós, humanos contemporâneos, fazemos

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parte (CASCUDO, 2005).
Segundo Abramovay (1996), vários
destes cientistas também afirmam que a
adoção de uma dieta baseada em proteína
animal teria contribuído para a evolução
dos seres humanos.

1.1.2 O período paleolítico:


caça e pesca
Durante o chamado período Paleolí-
tico, uma divisão temporal que se esten-
deu por cerca de dois milhões de anos
– até, mais ou menos, 10 mil anos atrás –,
o homem pré-histórico caracterizava-se
como um indivíduo onívoro, cujas práti-
cas alimentares derivavam da observação
22 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

De acordo com Garcia (1995), o


homem dessa época inventou ferramentas
1.1.3 A época carnívora da humanidade
simples e descobriu a utilização do fogo. A partir do momento em que o homem
Com a descoberta de algumas ferramen- descobriu que poderia fabricar ferramentas
tas, realizou pinturas em cavernas, retra- como machados, facas e outros objetos de
tando animais da época e cenas do dia a pedra ou madeira, passou a ser representada
dia. Nesse período, a caça e a pesca eram a fase do paleolítico superior, no período da
coisas imprescindíveis para sobrevivência, pré-história em que a vida da comunidade
junto à colheita de frutas, consideradas as era baseada na caça de animais, pescaria e
únicas formas de se obter alimento. coleta de alimentos plantados.

O fogo foi considerado o primeiro


tempero descoberto pelo homem. Devido
aos incêndios frequentes nas florestas, os
animais eram mortos pelas queimadas
e suas carnes eram chamuscadas pela
brasa, oferecendo sabor diferenciado.

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Com o fogo, o homem descobriu tam-
bém o ato de cozinhar. Esse fato merece
destaque, pois essa descoberta não mudou
apenas o modo de transformar a comida,
mas também revolucionou a sociedade,
pois possibilitou a ingestão de alimentos Nesse período, conforme explica o
mais nutritivos além de aumentar sua vida paleoantropólogo Henry Bunn, a habili-
útil, permitindo seu transporte maiores dade de obtenção da carne e a forma de
distâncias. dilacerar a carcaça dos animais sofreram
alterações. De acordo com Cascudo (2005)
A seguir veremos como a carne foi
e Flandrin e Montanari (1998), a técnica
incluída nas refeições do homem.
que era emprega pelo homem pode ser
dividida em três partes:
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 23

• Primeiramente, os chamados hominídeos de novas habilidades de apropriação de


retalhavam a carne dos ossos das car- presas de outros carnívoros, ou mesmo
caças de animais, usando alguns instru- decorrentes da prática da caça, que se
mentos feitos de pedra ou de lascas de tornava cada vez mais rotineira.
pedras. Esse primeiro período teria ocor- Embora a carne não fosse o alimento
rido entre 2,6 e 2,5 milhões de anos atrás, exclusivo, passou a ter grande importân-
indicando ainda uma capacidade pequena cia na alimentação do ser humano (FLAN-
de obter alimentos com proteína animal. DRIN; MONTANARI, 1998). Cabe destacar,
• Um segundo momento seria caracterizado no entanto, que a alimentação humana
por um procedimento mais comum de ma- não se baseou somente em carne. A seguir,
nuseio da carne, desenvolvendo a habilida- veremos um pouco da influência dos vege-
de de se alimentarem a partir da quebra tais na alimentação do homem.
de ossos para usufruir do tutano presente
em seu interior e carregarem as carcaças 1.1.4 A alimentação vegetal e
de animais para lugares distintos de onde
haviam sido encontrados, ou abatidos. carnívora
• O terceiro estágio chamado de Evolução O homem pré-histórico se alimentava
Carnívora foi caracterizado pelo reta- a partir de insumos disponibilizados pela
lho extensivo dos restos dos animais, natureza. Com o desenvolvimento das téc-
obtendo carcaças intactas, decorrentes nicas de caça, os homens caçavam porcos,
mamutes, coelhos, veados e outros ani-
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mais (BOURDAN, 2006). Nesse período,


vivia-se em cavernas e as tarefas eram divi-
dias entre homens e mulheres. Enquanto
os homens dedicavam-se, basicamente, à
caça, as mulheres colhiam frutos, nozes e
raízes para complementar a alimentação.
24 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Anos mais tarde, na época chamada


de Neolítica (aproximadamente 10 mil anos
atrás), os seres humanos perceberam que
poderiam domesticar animais e cultivar
frutas e vegetais. Foi nessa fase da história
que o homem começou a criar animais con-
finados para o posterior abate e consumo,
além de selecionar os que tinham melhor
aparência e eram mais resistentes. Essa
prática é considerada um grande avanço
para a época (BOURDAN, 2006).

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Quanto ao estudo da evolução
humana podemos citar duas ciências: a
paleontologia, que estuda as etapas da
evolução do homem por meio dos fós-
seis, e a Taxonomia, que estuda a com-
paração da biologia humana com os
Além de alterar a forma como a
outros seres vivos.
humanidade se alimentava e vivia em
sociedade, o cultivo de plantas e criação
Da mesma forma que aconteceu com a de animais também despertou o lado artís-
domesticação dos animais, o homem criou tico e estético do ser humano. Flandrin e
técnicas para cultivar vegetais e frutos. Montanari (1998) afirmam que os primei-
Somente os mais produtivos eram selecio- ros registros de pinturas em cavernas cal-
nados e as áreas de plantio cresciam cada cáreas, com representação de animais,
vez mais. De acordo com Cascudo (2005), são dessa época. Dessa forma, consegui-
investigações científicas indicam que as mos ter uma base sobre o que aconteceu à
primeiras culturas foram de cevada, trigo, época da alimentação carnívora e vegetal
milho, batata, feijão, mandioca e arroz. da população do período.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 25

1.2 Gastronomia na Idade A seguir, veremos um pouco mais


sobre a evolução da culinária, começando
Antiga e Idade Média com os povos que deram origem à cultura
de grandes banquetes.
Com o passar do tempo, as desco-
bertas alimentares foram ganhando novas
e maiores dimensões. O uso de diferentes
1.2.1 Os povos dos grandes banquetes
tipos de alimentos em diversas regiões do Há dúvidas de qual foi o primeiro
mundo deve-se à diversidade de plantas e cereal cultivado no Egito, no entanto, há
animais de cada localidade. Gregos e roma- registros de terem encontrado cevada em
nos, por exemplo, consumiam em grande sítios pré-históricos datados de cerca de
escala plantas comestíveis, azeites de 4.000 a.C., e também trigo. O trigo e a
oliva, e, além do consumo regional, ainda cevada constituíam a base da alimentação
exportavam muitos desses alimentos. do povo egípcio, e eram usados na fabrica-
ção do pão e da cerveja.
A partir da Idade Antiga, que com-
preende o período de 3.000 a.C. (invenção Os pães tinham formatos variados,
da escrita) até 476 d.C. (queda do Império redondos, ovais, triangulares, cônicos e
Romano), o consumo de especiarias e ervas eram utilizados em oferendas e na pre-
aromáticas foi realizado em grande escala, paração de rituais religiosos (FLANDRIN;
sendo ingredientes muito comuns em ban- MONTANARI, 1998).
quetes das famílias mais nobres. A desco-
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berta de novos alimentos e ingredientes


despertou em vários povos a vontade de
apoderar-se dos centros produtores, con-
tribuindo, assim, com a expansão econô-
mica e política da região, sobretudo entre
os romanos. Desta forma, na busca por
conquistar novas oportunidades econômi-
cas, houve intercâmbio de cultura, hábitos
e culinária, agregando valores aos países
e despertando interesse para as regiões
(CASCUDO, 2005).
26 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Outra característica histórica do pão


que fazia com que ele reunisse pessoas,
1.2.2 Civilização romana
é que ele sempre foi muito apreciado em A gastronomia na Roma Antiga era
ceias juntamente ao vinho. De acordo com constituída, praticamente, pelo consumo
Giacometti (1989), esse costume é um de frutas e vegetais. Os romanos consu-
marco sagrado, que tem o pão como um ali- miam muito alho, cebola e nabo, além de
mento não apenas do corpo, mas também frutas como laranjas, maçãs e uvas. O
da alma, sendo, então, o “pão da vida”. prato típico da região era constituído de
mingau de água com cevada, e uma versão
Além do pão, o aumento da relação
mais refinada do prato contava com a pre-
com vizinhos, quando as pessoas passaram
sença de vinho e miolos de animais.
a se juntar para consumir carnes, e peixes,
também contribuiu para a evolução dos
banquetes. Entre as civilizações que inicia-
ram essa prática, estão os gregos da anti-
guidade. Esse povo tinha como prática a
recepção de visitas em casa, aliada a jan-
tares, o que levou ao requinte das prepara-
ções. Como exemplo, podemos citar o fato
de que as famílias mais providas financei-
ramente consumiam carnes mais nobres,
como boi, carneiro, cabras e porcos.

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Outra civilização importante para
esse resgate histórico é a romana. Os cozi-
nheiros dos banquetes desse povo eram
pessoas importantes e reconhecidas e
recebiam altos salários. O fato de uma As carnes eram consideradas artigos
família ter um cozinheiro desses era sím- de luxo, privilégio das famílias mais ricas
bolo de ascensão social. que faziam consumo de carneiro, porco,
Na sequência conheceremos um ganso e pato. Uma particularidade da gas-
pouco mais sobre a contribuição romana tronomia do local era a alimentação dos
para a história da gastronomia. animais com figos, para que as carnes
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 27

ficassem perfumadas e mais macias. Além cozinha. Porém, um deles merece desta-
disso, os gansos eram criados de maneira que, Guillaume Tirel, ou, como era conhe-
especial para o preparo dos patês e os fran- cido, Taillevent, o cozinheiro dos reis. Nas-
gos eram alimentados com anis e especia- cido em 1310, em Pont-Audemer na França,
rias para que houvesse reflexo e melhorias o cozinheiro iniciou sua carreira ainda
no sabor da carne. quando menino. Mesmo quando criança,
De acordo com Cascudo (2005), as suas preparações já se destacavam.
carnes eram conservadas por meio de uma
técnica que utilizava sal e condimentos,
pois essas civilizações não contavam com Guillaume Tirel tinha o apelido de
tecnologias de refrigeração, e, em tempos Taillevent devido ao seu grande nariz.
Taillevent, em francês, significa “quebra-
quentes, a degradação dos produtos ali-
-vento”.
mentícios acontecia muito rapidamente.
Outra característica dos romanos era o uso
de especiarias fortes, o que culminava em Taillevent foi considerado um dos
sabores marcantes e únicos. Esses hábi- maiores chefs de cozinhas de todos os
tos e costumes gastronômicos marcaram tempos na história, revolucionando, a sua
toda uma era e deixaram uma herança que maneira, o modo de pensar e fazer cozi-
ainda é observada na atualidade por meio nha. O chef cozinhou para a corte francesa
dos pratos considerados “quentes”, devido e escreveu reconhecidas obras culinárias,
ao sabor picante. com enfoque aos molhos condimenta-
Em linhas gerais, a evolução da gas- dos (com presença de açafrão, gengibre,
tronomia está ligada ao fato de que se ali- pimenta e canela). Também escreveu sobre
mentar é um ato que envolve prazer. Fato diversos ingredientes, sobretudo carne.
esse que será trabalhado a seguir. De acordo com Cascudo (2005), ele
era adepto de assados e molhos, que sem-
1.2.3 Destaque para o cozinheiro pre se sobrepunham ao sabor do ingre-
diente principal. O renomado cozinheiro
dos reis: Taillevent faleceu em 1395, mas suas influências culi-
Ao fim da Idade Antiga e durante a nárias estenderam-se por toda a Idade
Idade Média, surgiram diversos chefs de Moderna até a atualidade.
28 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

1.3 Gastronomia na Idade As boas maneiras à mesa foram fruto


do Renascimento, assim como o hábito de
Moderna lavar as mãos, usar guardanapos e talheres.
Foi somente neste período que o uso de
A Idade Moderna, que compreende os talheres tornou-se um hábito comum, pois
séculos XV e XVIII, foi marcada pelas nave- até então a comida era saboreada com as
gações portuguesas e espanholas e também mãos. Outro ponto que também se sofisti-
pelo Renascimento, movimento que des- cou na Idade Moderna foi a confeitaria.
pertou a liberação dos prazeres, entre eles,
A seguir, veremos quais foram as ino-
o prazer gastronômico. A gastronomia na
vações surgidas na Idade Moderna.
idade moderna, ainda que houvesse even-
tual escassez de alimentos, era diversifi-
cada, inclusive pelo intercâmbio decorrente 1.3.1 A época das grandes inovações
das trocas de insumos entre Novo Mundo e Apesar da escassez de alimentos pre-
a Europa. sente na época, a Idade Moderna propiciou
Durante este período, foi observado diversas inovações técnico-científicas que
um declínio no consumo de carne e contribuíram para a modificação de alguns
aumento no consumo de pão. Este fato costumes alimentícios.
deve-se à ocorrência de uma maior dispo- Segundo Mondini e Monteiro (1994),
nibilidade de terras férteis ao plantio do novos itens apareceram nos mercados,
trigo, essencial na produção do pão. atrelados a melhorias nos setores de pro-
dução de bebidas como vinho, cervejas,
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queijos e produtos lácteos.


Os autores ainda destacam que os
ramos de cultivo de plantas e de criação de
animais contaram com avanços significa-
tivos na área da genética, além de impor-
tantes melhorias no campo com a mecani-
zação agrícola. As inovações foram respon-
sáveis pelo aumento no consumo de uma
gama de alimentos, tornando os banque-
tes mais refinados e sofisticados, exigindo
boas regras de conduta à mesa.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 29

Por esse motivo, o uso dos talheres sempre de talher quando houver necessi-
foi intensificado e ganhou notória impor- dade de servir-se de outro alimento.
tância. Falaremos mais sobre esse assunto As regras quanto ao uso de talheres
no próximo tópico. eram criteriosamente seguidas pela alta
sociedade e exigidas como postura e eti-
1.3.2 As boas maneiras atribuídas à queta aos banquetes gastronômicos da
época. Entretanto, as tabernas da cidade,
época: uso de talheres pequenos bares, com aparência rústica e
A partir da Idade Moderna, a eti- ambiente despojado, ofereciam à comuni-
queta passou a cumprir papel distintivo na dade descontração e liberdade para apre-
sociedade. Luxo e ostentação firmaram-se ciar a alimentação de modo rudimentar,
como referenciais aos indivíduos, refle- apenas com bebidas quentes e petiscos.
tindo o contexto social da família. Veremos mais sobre esses estabeleci-
Ruhlman (2009) afirma que não mentos a seguir.
bastava ter nobreza, o importante era
portar-se como tal. A etiqueta foi con- 1.3.3 Tabernas, estalagem
siderada elemento importantíssimo aos
pertencentes das classes dominantes, e cozinha de rua
qualquer deslize poderia ser considerado Um aspecto relevante para o estudo
ofensa à imagem pessoal. das tabernas medievais é a questão da
O autor ainda destaca que uma regra administração. Segundo Garcia (1996), em
básica era que no momento em que todos alguns casos, muitas tabernas da época
estivessem se servindo de um determi- eram controladas pela própria Igreja, que
nado prato, deveria ser evitado servir-se via nesses locais uma excelente fonte de
antes que as pessoas da mais alta catego- rendimentos, mesmo conscientes que
ria. Outro ponto referenciado era quanto ali seriam cometidos alguns pecados aos
ao uso da colher, que deveria estar sem- olhos da religião. Mesmo conscientes das
pre limpa para retirar algum alimento de atitudes errôneas que poderiam ocorrer
outro prato, pois os demais presentes nas tabernas, o local continuou existindo
em uma refeição não iriam apreciar o uso e circulando grandes quantias financeiras
de uma colher já levada anteriormente à para a região.
boca. Sendo assim, a regra era clara, trocar
30 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Na Idade Moderna, as tabernas e de diversas classes sociais. Esse costume


estalagens funcionavam como espécie de perdurou até a Idade Contemporânea, em
local para pessoas confraternizarem, onde meados do século XX. Após esse período, as
havia diversas opções de comidas. tabernas foram consideradas locais mal fre-
quentados, sinônimos de farra e bagunça,
Flandrin e Montanari (1998) destacam
sendo extintas devido a essa concepção.
que, enquanto bebiam, tanto os homens
quanto as mulheres, acabavam muitas Agora, vamos compreender um pouco
vezes até se expondo de maneiras mais mais da alimentação realizada nos mosteiros.
vulgares, em troca de dinheiro, para auxi-
liar obter lucros.
1.3.4 A alimentação nos mosteiros
A alimentação nos mosteiros nos
Nesses locais as pessoas não se
séculos XVII e XVIII, a princípio, era
preocupavam muito com boas maneiras
baseada em sardinha salgada (que era pre-
e regras, causando até mesmo arruaças
servada por até dois anos) e broa de milho
pelas ruas, o que trazia como consequên-
(sustento de grande parte da população do
cia problemas com a lei, sendo que alguns
Norte de Portugal e da Galícia). Mas nos
chegavam a ser presos e julgados. Con-
mosteiros haviam hortas, pomares e cria-
forme Garcia (1996) explica, a pena apli-
ção de animais, além da produção de quei-
cada ao ocorrido, normalmente, era emba-
jos, vinho e cerveja.
sada na assinatura de uma documentação.
Esse documento funcionava como uma
espécie de contrato, onde o responsável
se comprometia em melhorar seu compor- Mosteiros, no geral, são locais
tamento. Caso houvesse reincidência do onde as pessoas convivem em comuni-
ocorrido, a pessoa poderia passar até três dade, normalmente membros de ordem
religiosa em busca de remissão dos erros.
meses em detenção.
Era praticamente o local onde monges
As tabernas eram propriedade de imi- se retiravam da vida corriqueira e consi-
grantes portugueses, e a freguesia vinha derada pecadora, para viver em estilo de
penitências e jejuns prolongados.
de todos os lados. Ela era formada por imi-
grantes portugueses, italianos, escravos,
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 31

Porém, conforme Savarin (1995), a A partir dos séc. XVII e XVIII, a cozi-
vida de isolamento dos sacerdotes e sacer- nha francesa alcançou seu apogeu, e as
dotisas os fez despertar para o desenvolvi- suas receitas foram levadas aos quatro can-
mento no campo das ciências. Isso fez com tos do mundo, por meio de filiais de gran-
que eles enriquecessem também a culiná- des restaurantes. A partir desse momento,
ria com a inclusão de receitas de confeitos, profissionais da cozinha passaram a desen-
quitutes e vinhos que passaram a ser muito volver técnicas e buscavam cada vez mais a
apreciados com o aprimoramento das técni- perfeição. Continuaremos esse assunto no
cas que hoje são consideradas tradicionais. próximo tópico.

1.4 Gastronomia na Idade 1.4.1 O caminho do aperfeiçoamento


Contemporânea A tecnologia dos alimentos sem-
pre esteve atrelada aos grandes adventos
No final do século VXIII, juntamente da humanidade, um exemplo disso foi a
com a Revolução Francesa, aconteceu o necessidade de se aperfeiçoar a conserva-
surgimento de uma nova era: A Idade Con- ção e transporte dos alimentos para suprir
temporânea. Napoleão Bonaparte, figura as tropas quando em territórios distan-
de destaque do início desse período que tes de sua produção durante guerras. Isso
governou a França por 15 anos, era adepto pôde ser observado desde o século XVIII.
de pratos simples e tradicionais, sem o
Devido ao cenário de guerra causado
requinte do período anterior.
pela Revolução Francesa, a conservação dos
Savarin (1995) destaca que nessa alimentos passou a fazer parte das preocu-
época grandes chefs de cozinha abriram pações de Napoleão Bonaparte. De acordo
seus próprios negócios, marco respon- com Mondini e Monteiro (1994), o impera-
sável por uma grande evolução na cozi- dor começou a oferecer prêmios com valo-
nha francesa. Porém, o monopólio gas- res significativos para pessoas que apresen-
tronômico deixou de pertencer somente tassem novas técnicas de conservação.
à França. Nova Iorque (Estados Unidos),
Desse ponto em diante, técnicas
neste momento, foi considerada o segundo
como pasteurização, enlatamento, dentre
maior centro gastronômico do ocidente,
outras, foram aperfeiçoadas ao máximo.
depois de Paris.
32 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

1.4.2 Surgimento de técnicas de conservação


A partir da Idade Contemporânea, a Até então, tinha-se a noção apenas
prática da agricultura passou a ser apre- de que as conservas preservavam os ali-
ciada como oportunidade para estocar mentos quando a eles se misturava mel ou
grandes quantidades de alimentos, afinal, açúcar, sal e vinagre, o que lhes conferia
quanto mais se plantava, mais alimento novas propriedades organolépticas (carac-
poderia ser armazenado. Desta forma, terísticas que compreendem, além do
a preocupação evidenciada passou a se aspecto visual do alimento, também sabor,
focar nas técnicas de preservação desses aparência e odor), mas permitia mantê-los
alimentos, para que não estragassem com em condições de consumo durante meses.
facilidade e fosse evitado o desperdício. Conforme afirma Fernandes (2005), além
Por muito tempo, a conservação de das técnicas que utilizavam vidros de con-
alimentos foi limitada a técnicas de secar serva, ao longo do tempo também sur-
ao sol, defumação, ou uso de sal e açúcar. giram os enlatados, métodos de pasteu-
Para aplicação desses métodos, era neces- rização e esterilização. A partir desse
sário cuidado para que não houvesse perda momento, a indústria de alimentos ganhou
de sabor, nem de valores nutricionais. mais espaço e a vida de prateleira dos ali-
As técnicas artesanais utilizadas durante mentos foi aumentada, contribuindo com a
os séculos XVII e XVIII baseavam-se nos economia dos países.
conhecimentos rudimentares de que os A necessidade de conversão industrial
organismos vivos se degradavam após a dos excedentes e a sua manutenção por
aplicação de frio ou de calor por determi- períodos longos de tempo, fizeram com
nados períodos de tempo. Por intermédio que as técnicas de conservação evoluís-
destas práticas elementares conseguia-se sem aliadas, também, à emergente indús-
temporariamente controlar a capacidade tria alimentar. Além disso, impunha-se na
destes seres se multiplicarem rapidamente, sociedade uma maior oferta, com recurso
inibindo ou destruindo a sua proliferação a alimentos que não fossem obrigatoria-
no alimento. mente produzidos localmente. Segundo
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 33

Bourdan (2006), esse fato permitiu que ali- Na verdade, pela falta de pessoal
mentação se tornasse mais variada e aces- doméstico qualificado, por possuírem
sível às massas populacionais que habita- menos recursos econômicos e pela incapa-
vam longe dos locais de origem das maté- cidade de igualarem a culinária das casas
rias-primas. mais ricas, as classes médias acolheram
Toda essa evolução também mudou a com satisfação as recomendações divul-
forma de como homem se alimentava, com gadas pelas classes mais favorecidas. Estas
destaque ao fato de que o que ele ingeria apelavam ao consumo moderado, à dimi-
afetava diretamente sua saúde, assunto nuição da ingestão de carne e das especia-
que discutiremos no próximo tópico. rias (usadas displicentemente nos banque-
tes burgueses), à recusa da aquisição de
alimentos exóticos e realização de refei-
1.4.3 Instalação do comodismo ções grandiosas que culminavam no grande
alimentar esbanjamento alimentar.

Na primeira década do século XIX, os Lentamente, os modelos alimentares


conhecimentos confirmavam a importân- nas classes médias e altas foram se modi-
cia que alimentação tinha sobre a saúde ficando, com tendência crescente para a
humana e verificou-se uma tendência preocupação acerca dos efeitos da alimen-
progressiva para a moderação alimentar, tação na saúde e para o abandono progres-
nomeadamente no consumo de menor sivo das refeições luxuosas. A partir desse
quantidade de alimentos, que conferia inú- momento, a industrialização dos alimentos
ganhou algumas novidades e os alimen-
meros benefícios à saúde, entre eles, maior
tos começaram a ter maior durabilidade
longevidade, bem-estar e disposição.
nas prateleiras e nas residências, fato que
Cascudo (2005) afirma que, a partir abordaremos a seguir.
dessa constatação, a classe média perce-
beu um momento oportuno para não se
sentir inferiorizada pelas refeições prodi-
giosas realizadas pelas classes mais endi-
nheiradas da sociedade.
34 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

1.4.4 A industrialização dos alimentos


A revolução industrial (1ª etapa de 1760 a 1860 e 2ª etapa de 1860 a 1900) aplicada aos
alimentos permitiu que o cenário mundial passasse da escassez à abundância de insumos,
sendo que este é um aspecto positivo da industrialização alimentar.
Em poucas décadas, a revolução industrial aumentou consideravelmente a produção
agrícola, enquanto o processo de urbanização contribuiu para a modernidade alimentar do
ser humano, levando-nos a modificar nossa relação com os alimentos.
De acordo com Arnaiz (2005), esse processo de industrialização levou a cadeia de
produção agroalimentar a quase se extinguir, pois se perdeu a noção da origem real dos
alimentos, os procedimentos e técnicas para sua produção, conservação, armazenamento e
transporte, levando-nos a consumir alimentos que são autênticos mutantes, que pouco se
parecem com suas versões originais.
Entretanto, o autor ressalta que a industrialização da alimentação permitiu que vários
aspectos positivos surgissem em relação ao acesso ao alimento dos indivíduos. A ampliação
das redes de distribuição e transporte de alimentos possibilitou que houvesse melhora no
acesso aos alimentos, sendo que se tornou praticável levar diversos tipos de produtos para
várias partes do mundo. Apesar de a população ter passado a consumir os alimentos indus-
trializados, considerando que a maior parte não é nutricionalmente balanceada, há a possibi-
lidade de uma diversificação alimentar, fato que permitiu o consumo de nutrientes variados,
o que não seria possível em uma dieta alimentar com pouca variedade.
Ao longo desse capítulo, pudemos resgatar as principais descobertas gastronômicas e
acontecimentos ocorridos ao longo dos anos, trazendo importantes considerações de cos-
tumes e práticas alimentares vivenciados pelos povos desde os tempos mais antigos, permi-
tindo assim uma compreensão geral sobre o tema.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 35

Referências
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dial. In: CYRILLO, D. C. et al. Delineamento da pesquisa na nutrição humana aplicada. São
Paulo: IPE/USP, p. 57-76, 1996.
ARNAIZ, M. G. Em direção a uma Nova Ordem Alimentar? In: CANESQUI, A. M.; GARCIA, R. W. D.
Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005.
CASCUDO, L. C. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2005.
CAVALCANTI, P. A pátria nas panelas: história e receitas da cozinha brasileira. São Paulo:
SENAC, 2007.
FERNANDES, C. Viagem gastronômica através do Brasil. 07. ed. São Paulo: SENAC, 2005.
BARRETO, R. L. P. B. Passaporte para o sabor: tecnologias para a elaboração de cardápios. São
Paulo: SENAC, 2000.
BOURDAN, A. Afinal, as receitas do Les Halles – New York: histórias e técnicas. São Paulo:
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FLANDRIN, J. L.; MONTANARI, M. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade,
1998.
GARCIA, R. W. D. Notas sobre a origem da culinária: uma abordagem evolutiva. Campinas. Rev.
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GIACOMETTI, D. C. Ervas condimentares e especiarias. São Paulo: Nobel, 1989.
MONDINI, L.; MONTEIRO, C. A. Mudanças no padrão de alimentação da população urbana bra-
sileira. Rev. Saúde Pública, 28 (6), 1994.
SAVARIN, B. Fisiologia do gosto. Tradução: P. Neves, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
RUHLMAN, M. Elementos da Culinária de A a Z: técnicas, ingredientes e utensílios. Rio de
Janeiro: Zahar, 2009.
SPITZ, B. Aprendiz de Cozinheiro: separar, viajar e... cozinhar na França e Itália. Rio de Janeiro:
Zahar, 2010.
Capítulo 2
Gastronomia pelo mundo

A gastronomia, inegavelmente, compõe e reforça a identidade de um povo e é tão impor-


tante quanto às danças, às religiões, às festas que fazem parte da cultura de uma população.
Segundo Ramos e Silva (2016), ela é considerada um bem comum imaterial eengloba o
modo de viver e tradições das comunidades. Além do fator nutricional dos alimentos, um in-
divíduo alimenta-se, também, pelo prazer e para fortalecer suas relações sociais. A partir do
momento em que passamos a avaliar os alimentos por este lado, pelo seu papel social, esta-
mos falando de gastronomia.
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38 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

A gastronomia é algo que surgiu com


o homem. Lutando por sua sobrevivência,
2.1 História da Gastronomia
nossos ancestrais tiveram de caçar, aper-
feiçoar as técnicas de preparo, de armaze-
no Brasil
namento e de conserva dos alimentos. Pas- O próprio descobrimento do Brasil re-
sando este período, aprenderam a plantar e mete à culinária, pois as caravelas portu-
a colher, fazendo da agricultura base de sua guesas que aqui desembarcaram estavam
alimentação, juntamente à criação de ani- em busca de especiarias nas Í ndias. A gas-
mais. Do excedente de sua produção, passa- tronomia brasileira resulta de vasta mis-
ram a fazer trocas, fazendo surgir, assim, o tura de sabores, ingredientes e culturas.
comércio e as primeiras cidades. Há na Me- Além da herança portuguesa, houve,
sopotâmia o primeiro registro de cozinheiro também, a combinação de alimentos dos
da história, que é datado de 2.000 a.C. indígenas nativos e de todas as correntes
(FREIXA; CHAVES, 2012). de imigração que ocorreram no período do
No contexto da gastronomia, vere- descobrimento, entre elas, cita-se também
mos agora como ela se desenvolveu em a africana (SENAC, 1998; BRASIL, 2014).
território brasileiro e quais foram suas A seguir, falaremos mais sobre a che-
maiores influências. gada dos portugueses ao Brasil e como isso
influenciou a gastronomia do país.
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2.1.1 A chegada dos portugueses:


início da construção da identidade
alimentar no país
O primeiro contato do índio nativo
com a culinária portuguesa ocorreu no des-
cobrimento. Pero Vaz de Caminha, escrivão
da expedição de Cabral, descreve em seus
relatos que foi dado aos índios pão e peixe
cozido, confeito, fartel (bolo de origem
portuguesa), mel e figos passados.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 39

No entanto, de acordo com Cascudo Em contrapartida, as mulheres portu-


(1983), os índios não quiseram comer quase guesas também passaram a utilizar vários
nada e, se provavam algo, jogavam fora. ingredientes da culinária indígena e criaram
Ofereceram-lhes, também, vinho, mas não suas próprias preparações. Como exem-
gostaram e não quiseram mais. Inclusive a plo, podemos citar o manjar doce feito com
água que lhes foi oferecida foi jogada fora. cará, além de o cozinharem com carne.
Entretanto, após alguns dias de con- Com as castanhas, faziam conservas doces
vivência entre nativos e portugueses, os ín- e preparavam o caju cozido no açúcar e co-
dios cederam e acabaram experimentando berto de canela. De acordo com Fernandes
vinho, presunto defumado e cozido, peixe , pode-se afirmar que o colonizador
cozido, pão, figos, confeitos de açúcar e português trouxe ao Brasil uma nova ma-
fartel (SENAC, 1998). neira de entender a cozinha: preparar, tem-
perar e armazenar os alimentos.
O escrivão informou, também, que os
homens da terra descoberta não tinham Na sequência, veremos que, além dos
lavoura nem criavam animais. Não havia portugueses, o início da culinária brasileira
bois, vacas, galinhas, cabras nem qualquer contou com a influência de outros povos.
outro animal criado para fins de alimenta-
ção. Os índios somente comiam inhame e 2.1.2 Gastronomia brasileira:
frutos dados pelas árvores.
originária da mistura de povos
Cascudo (1983) ressalta que o portu-
guês prestou duas contribuições supremas (portugueses, africanos e indígenas)
ao domínio do paladar: valorizou o sal e Quando o colonizador português che-
revelou o açúcar aos africanos e amera- gou ao território brasileiro, ele precisou,
bas (neologismo que tem a mesma lógica além de se adequar às novas condições, re-
de ameríndios) do Brasil. Nesse ponto, é criar o ambiente do modo que queria. Para
importante destacar que o sabor doce do isso, eles trouxeram os animais de criação,
açúcar foi apresentado aos índios nativos como vacas, touros, ovelhas, cabras, por-
e aos negros pelas mãos da mulher portu- cos, galos, pombos e gansos, e também seu
guesa, que se utilizava de açúcar, ovos (que modo de plantar. Além disto, vieram o azeite
o índio ignorou e o escravo desconhecia), de oliva, o trigo, a parreira, o figo, a romã, a
farinha de trigo, leite e manteiga. laranja, a lima, o limão, a cidra e o melão.
40 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Ademais, os portugueses trouxeram C. Além disso, recebiam cana-de-açúcar e


as festas tradicionais e religiosas (Carnaval, mastigavam para sugar seu sumo (SENAC,
Quaresma, São João, Natal, entre outras), 1998; CASCUDO, 1983).
juntamente às suas comidas típicas e novas No Brasil, o negro conheceu a farinha
formas de preparo, como a fritura, desco- de mandioca e, como sua alimentação era
nhecida, até então, por indígenas e africanos servida pelo seu dono, ou seja, não recebia
(CASCUDO, 1983; FREIXA; CHAVES, 2012). o alimento que queria e que mais agradava
Apesar de o colonizador português ter apre- ao seu paladar, aprendeu a fazer o pirão.
sentado novos alimentos ao índio nativo, Essa preparação consistia em uma receita
aconteceu uma troca de conhecimento, pois trazida pelos portugueses que utilizava ele-
os portugueses também experimentaram mentos da culinária do índio. Dessa forma,
dos alimentos locais, como os frutos das pal- o negro tornou a farinha de mandioca um
mas, conhecidos como palmitos. alimento essencial em sua dieta. O milho
Junto à vinda dos portugueses e de também marcou a alimentação do escravo
suas famílias para o Brasil, vieram também no Brasil e, com ele, surgiram pratos como
os escravos negros africanos, que trabalha- o angu, que é preparado com água e fubá
ram nos engenhos de açúcar, na mineração (CASCUDO, 1983).
e em lavouras. Conforme afirma Cascudo
(1983), os africanos apresentavam vasto
conhecimento de criação de gado, de do- O português nacionalizou a fari-
mesticação de animais e de irrigação. Na nha de mandioca, alimento legítimo bra-
viagem, os negros vieram comendo milho, sileiro. O pirão feito com a farinha só é
aipim, feijão, e, às vezes, peixe. Recebiam encontrado no Brasil (SENAC, 1998).
pouca água e, de vez em quando, davam-
-lhes aguardente.
A comida do escravo negro e o mo-
Na chegada ao Brasil, os escravos ne- mento em que ele era alimentado variavam
gros eram levados aos mercados e tratados de acordo com sua atividade. Escravos que
como mercadoria. Porém, como estavam trabalhavam em plantações de açúcar, em
debilitados e enfraquecidos devido à via- fazendas de gado, da mineração, dos ca-
gem, foram alimentados com frutas, em fezais e dos trabalhos urbanos não tinham
especial o caju por seu teor de vitamina a mesma dieta. De acordo com Cascudo
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 41

(1993), o escravo do Norte recebia farinha


de mandioca, com a qual conseguia garan-
tir o pirão; no interior da Bahia, no centro
e no sul do Brasil, o alimento recebido era
o milho. O almoço dos escravos no norte
do Rio Grande do Norte era feijão, farinha
de mandioca, carne de bode e, às vezes, de
gado e, no jantar, eram os mesmos alimen-
tos com a adição do jerimum (abóbora).

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Na alimentação do escravo, havia
muito peixe (fresco quando era o próprio
escravo que pescava), feijão e pirão. As fru-
tas eram consumidas somente quando con-
seguiam pegar de algum plantio. Outra ca-
racterística marcante é que as negras em-
Para garantir a alimentação, os índios
pregavam muito açafrão na comida, sendo
que viviam no território do Brasil caçavam,
que o arroz sem açafrão era destinado a
pescavam e coletavam alimentos. Não ti-
pessoas doentes.
nham horário fixo para as refeições, co-
O negro também inseriu elementos miam apenas quando sentiam fome. Pos-
de sua culinária na cozinha brasileira. Den- suíam amplo conhecimento de plantas e de
tre eles, Freixa e Chaves (2012) citam: coco ervas medicinais, sendo que estes conheci-
(juntamente à técnica utilizada em seu mentos são utilizados até hoje por fabri-
plantio), azeite de dendê, pimenta-mala- cantes de medicamentos. Freixa e Chaves
gueta, inhame, galinha d’ angola e varie- (2012) salientam que a base da alimenta-
dades de banana, como a nanica, a maçã, ção do indígena era a mandioca e o índio,
a prata e a ouro. Todos esses ingredientes profundo conhecedor das espécies, sabia
são largamente empregados na gastrono- muito bem diferenciar a mansa da brava,
mia do Brasil. Alguns dos pratos que retra- tendo ciência de que para consumir a brava
tam a miscigenação da cozinha negra com deveria retirar seu caldo venenoso. Da
a brasileira são: acarajé, moqueca, vatapá, mandioca mansa, até hoje, são feitos pra-
cuscuz, arroz-de-coco e mungunzá. tos como a tapioca, o beiju e o pirão.
42 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

predominavam goiabas, abacaxis, cajás, ara-


çás, maracujás, mamões, pitombas, umbus
A mandioca brava contém uma e cajus. A única variedade de banana que
substância chamada linamarina, que, existia em terras brasileiras e que era con-
no estômago, transforma-se num ácido
sumida pelos índios era a banana-da-terra,
mortal, o cianídrico. Por isso, deve-se
consumi-la na forma de fécula ou de pois, como já visto, as outras variedades vie-
farinha. A mansa também contém essa ram por meio dos escravos africanos. Outros
substância, mas em concentrações alimentos comuns ao índio eram o peixe e as
baixas, que não são capazes de causar carnes de caça (capivara, pacu, veado, ma-
intoxicação.
caco, entre outros) (FREIXA; CHAVES, 2012).
No quadro a seguir, estão demonstra-
Ainda antes da colonização, o ín- dos os principais ingredientes da culinária
dio conhecia várias frutas, entre as quais nativa, africana e portuguesa.

Heranças I ngredientes
Abacaxi, açaí, amendoim, araçá, bacuri, banana-da-terra (pacova), batata-doce, buriti (pal-
meira), cacau, cajá, caju, castanha-do-pará, cupuaçu, erva-mate, feijão-de-corda, feijão-preto,
Nativa
goiaba, graviola, guaraná, guabiroba, jenipapo, mamão, mandioca/farinha de mandioca, man-
gaba, maracujá, milho, pequi, pimenta capsicum, pitanga, pitomba, umbu, urucum.
Africana Banana, jiló, inhame, quiabo, coco, melancia, dendê, pimenta-malagueta, galinha d’ angola.
Alface, arroz, alho, azeite de oliva, azeitona, chá, carneiro, cabra, couve, coentro, cenoura,
cana-de-açúcar, cebola, cebolinha, cravo-da-índia, carambola, farinha de trigo, figo, gali-
Portuguesa nha, laranja, limão, lima, marmelo, manjericão, pimenta-do-reino, porco, pato, pepino,
salsa, tangerina, sal, uva, vaca, vinho, melão, agrião, espinafre, chicória, mostarda, hortelã,
alfavaca, gengibre.
Fonte: FREIXA; CHAVES, 2012. (Adaptado).

Fora os ingredientes nativos, os outros dizem respeito ao povo que os trouxe para cá e
não necessariamente a sua origem. Exemplos: arroz e cana-de-açúcar são de origem asiá-
tica, mas chegaram ao Brasil graças aos portugueses, bem como o coco, também asiático,
que veio pelas mãos dos africanos.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 43

Porém, dentre todos esses alimentos, O produto foi considerado indispensável em


existem dois que fazem parte da rotina de todas as mesas, consumido diariamente, e,
boa parte do povo brasileiro: o feijão e o em algumas regiões, com toucinho e farinha
arroz. Trataremos mais sobre essa prefe- de mandioca.
rência nacional a seguir.

2.1.3 A unanimidade nacional:


arroz e feijão
Devido às diferenças de solo, relevo e
clima, é difícil estabelecer um prato único
que defina o Brasil.
No entanto, muito comum nos pra-

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tos brasileiros, o arroz com feijão pode ser
considerado unanimidade nacional (BRA-
SIL, 2014). O prato básico (arroz e feijão)
começou a ganhar terreno a partir do sé-
culo XVIII, com características de que o ar-
roz deve ser branco, soltinho e seco. Jun- Outro prato famoso no Brasil e deri-
tos, constituem a base do prato do brasi- vado do feijão é a feijoada. Primeiramente
leiro, aliando o baixo custo e uma mistura ela era considerada comida de escravo e,
altamente nutritiva, sendo que o prato for- portanto, teria nascido nas senzalas. Po-
nece uma importante complementação de rém, há mais de uma linha teórica sobre
proteínas (PINHEIRO, B. da S., 2016). sua origem. Segundo Cascudo (1983), a fei-
joada deriva dos cozidos típicos europeus,
Os feijões utilizados em nossa gas-
sendo que este povo aprecia orelha, rabo,
tronomia tornaram-se o prato predileto e
língua, pé e miúdos, utilizando-os ampla-
típico dos brasileiros e ganharam maior
mente em seus pratos. No Brasil, incorpo-
prestígio a partir do século XIX, quando vi-
rou-se à feijoada, além das partes do
raram símbolo nacional (SENAC, 1998).
porco, linguiça e paio, sendo acompanhada
44 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

de couve, farofa e laranja, a chamada “fei-


joada completa”. Não se sabe a data exata
2.1.4 Influência das regiões
da elaboração da primeira feijoada com- nos cardápios brasileiros
pleta, no entanto, jornais mostram que o Assim como já comentado, a gastro-
prato apareceu entre o final do século XIX nomia brasileira não definida por um nico
e o começo do século XX no Rio de Janeiro. prato, pois cada região do país tem suas
Outra característica, que estudare- particularidades com relação à gastrono-
mos a seguir, é a influência de cada região mia. O brasileiro teve que adaptar sua culi-
do Brasil na gastronomia do país. nária de acordo com o tipo de solo, de clima
e de vegetação presentes nos locais de cul-
tivo, interferindo, dessa forma, na alimenta-
ção das comunidades (BRASIL, 2014).
A cozinha amazônica é considerada a
mais autêntica do país e é constituída, prin-
cipalmente, por elementos da culinária indí-
gena e peixes como o tambaqui, o pirarucu,
o tucunaré, entre outros, sendo que a maio-
ria dos preparos que leva peixe é feita com
leite de coco. O doce também está presente
na gastronomia amazônica, principalmente
em compotas e sorvetes preparados com
frutas típicas da região, como açaí, cupuaçu,
mangaba e murici (SENAC, 1998).
Os sabores do Nordeste destacam-se
devido ao sertanejo ser habituado a longos
períodos de seca e ter desenvolvido técni-
cas para armazenar e preparar alimentos
durante esses tempos nos quais não dispõe
de muitos recursos. Um exemplo clássico é
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HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 45

a carne de sol, em que o sal é utilizado para


conservar a carne. Segundo Senac (1998),
nessa região, também é comum o vasto Popularmente, acredita-se que
uso de peixes na cozinha, que envolvem os pratos baianos não dispensam as
baianas, aquelas mulheres de roupa
preparos como peixada, torta de camarão,
bem branca e engomada, pois, sem
casquinha e patinha de caranguejo e o ar- elas, a comida não tem a mesma sus-
roz-de-cuxá (arroz que leva molho mara- tança e nem guarda as tão faladas pro-
nhense à base de vinagreira, gengibre, ca- priedades afrodisíacas (SENAC, 1998).
marão seco e farinha de mandioca).
Ainda no Nordeste, a cozinha baiana
O Centro-Oeste brasileiro apresenta
recebeu significativa influência africana e
uma preferência pelas carnes. Isso se deve
portuguesa, sendo rica em molhos e cheiros.
ao fato de que a culinária é fortemente
Entre seus pratos típicos, podemos citar o
influenciada pela pecuária, principal ati-
acarajé, o cuscuz, o bobó, o xinxim, o abará,
vidade da região. A presença indígena
o vatapá e o caruru. A culinária da Bahia uti-
também traz o gosto pelas raízes. É im-
liza muito peixe, camarão e outros frutos do
portante ressaltar a influência latino-ame-
mar, cebolinha, salsa, leite de coco, muita pi-
ricana na região do Mato Grosso do Sul,
menta e azeite de dendê (SENAC, 1998).
que trouxe ingredientes como a batata
para a culinária local, o que pode ser visto,
principalmente, nos ensopados de peixe.
De acordo com o Portal Brasil (BRASIL,
2014), devido à diversidade do Pantanal, a
região conta com vasta variedade de pei-
xes, como o pacu, o pintado e o dourado.
Na região Sudeste, temos o povo mi-
neiro, sua famosa hospitalidade e suas me-
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sas fartas e variadas. O costume de beber


café é forte nas casas de Minas Gerais, e,
no interior do estado, a rapadura substitui
o açúcar para adoçar as bebidas. No Rio de
46 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Janeiro e em São Paulo, não se pode dizer Com a chegada dos italianos, a região
que há uma cozinha típica, pois, além da Sul também integrou ao seu cardápio o
influência portuguesa, nestes dois locais a frango e a polenta. O Paraná, apesar da in-
gastronomia também herdou traços da co- fluência italiana, conta também com traços
zinha italiana, francesa, alemã, japonesa, da cozinha indígena, com alimentos como
árabe e norte-americana (SENAC, 1998). raízes e grãos. Conforme Senac (1998), no
As preparações que merecem destaque Paraná, é comum encontrar pratos como o
nesses dois Estados são o tutu de feijão, arroz de carreteiro e guisado com charque,
virado à paulista, moqueca capixaba, fei- que também estão presentes na região
joada, picadinho paulista e pão de queijo. Centro-Oeste do Brasil.
A culinária da região Sul é marcada
pelas correntes de imigração alemã e ita-
liana. O Rio Grande do Sul ganha destaque
2.2 História da Gastronomia
devido ao famoso churrasco gaúcho e ao na Europa
indispensável chimarrão, tomado na cuia.
A culinária europeia fascina seus apre-
ciadores devido ao requinte, à simplici-
© w orldinmyeyes.pl / / Shutterstock

dade e à mistura de ingredientes fortes e


característicos, que se tornam ainda mais
especiais quando acompanhados pelos vi-
nhos fabricados na região. Assim como as
construções históricas e a infinidade de
monumentos e de museus, uma das princi-
pais atrações da Europa é a culinária. Com
uma gastronomia rica e diversificada, o
continente europeu é o lugar perfeito para
quem quer experimentar pratos saborosos
que demonstram sua cultura.
A seguir, vamos conhecer um pouco
mais sobre a história da gastronomia dessa
parte do mundo.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 47

2.2.1 Vestígios das civilizações: particularidades da França


A culinária francesa está entre as mais creme de leite, vinhos de alta qualidade, pei-
reconhecidas do mundo e influenciou, pra- xes e carnes. Essa contribuição regional é o
ticamente, todas as outras cozinhas oci- que a udar a manter a cozinha francesa fiel
dentais. Após a Revolução Francesa que às suas tradições. Com relação aos frutos do
aconteceu ao final do século 18, houve o mar, os mais comuns são: carpa, lagosta e
surgimento de grandes chefes de cozinha, ostras. As aves mais utilizadas são: galinhas,
e os vários restaurantes do país acabaram patos, gansos e perdizes (SENAC, 1998).
dando força à culinária francesa, que é ca-
racterizada por sua extrema diversidade.
Brenner (2013) afirma que, na Europa,
a culinária francesa é conhecida por seu re-
quinte e elegância. Atualmente ela é sólida
e baseada em seus princípios e técnicas re-
finadas, tornando-se modelo para todos os
países do mundo. Além da afinidade com © Manuel Alvarez / / Shutterstock

a cozinha, outro fator que contribuiu para


a gastronomia na França é o apreço que o
francê s tem pela comida.

Charles De Gaulle, um dos presi- A confeitaria francesa também tem to-


dentes da França, dizia ser muito difícil ques de requinte e elegância. Segundo Ber-
governar um país com mais de 350 espé- gamo (2009), no século XV, os chefs confei-
cies de queijos, o que mostrava a grande
teiros franceses formaram suas corporações,
diversidade do seu povo (SENAC, 1998).
separando-se dos padeiros e promovendo
grandes avanços no campo da confeitaria. Ao
Na França, todas as regiões do país pro- final do s culo , o aç car passou a ser
duzem algo para agregar na culinária. Den- empregado exclusivamente no preparo de
tre os produtos, podemos citar azeitonas, sobremesas e guloseimas e os doces
48 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

passaram a fazer parte das mesas europeias, s espanh is tamb m influenciaram


sendo produzidos com grande variedade pela a culinária italiana, principalmente pela in-
pâ tisserie (confeitaria) francesa (FREIXA; trodução de produtos vindos da América
CHAVES, 2012). como, por exemplo, o tomate, a batata,
A seguir, falaremos mais da história o feijão, o milho, o cacau, o rum e o café.
da gastronomia e das influências italianas. Com a imigração italiana para a América
(Nova York, Buenos Aires e Brasil), a partir
de 1900, a Itália tornou sua gastronomia co-
2.2.2 Influências da Itália nhecida no mundo inteiro, principalmente
Além das belezas naturais e da arte pela pizza e pelo famoso spag hetti al sug o.
italiana, outra característica que retrata o
Não há como definir um prato sím-
país é a gastronomia. A culinária italiana
bolo da Itália, pois, além das diferenças
pode ser considerada uma das mais ricas
na gastronomia do sul e do norte do país,
do mundo, devido aos ingredientes carac-
dentro da mesma região há diferenças his-
terísticos de sua cozinha típica e regional.
tóricas devido aos povos que passaram no
A variedade de ingredientes deve-se aos
local e, também, diferenças geográficas
vários povos que passaram pela península
e climáticas que determinam os tipos de
itálica através dos séculos e levaram con-
alimento mais comuns. Por exemplo, na
sigo novos elementos e alguns pratos que
gastronomia do norte da Itália, os produ-
hoje são apreciados no mundo todo.
tos são predominantemente de influência
s rabes foram os que mais influen- francesa, austríaca e húngara, utilizando
ciaram a gastronomia italiana, conhecida muitos derivados de leite. Entretanto, no
por ser a gastronomia do povo, diferen- sul do país, a predominância é da influên-
temente da francesa, que é caracterizada cia árabe, utilizando ingredientes como:
por ser mais elitizada. A partir do século IX, molho de tomate e carnes ovina, caprina,
principalmente na Sicília, os árabes introdu- suína e de coelho. Nos bosques e nas mon-
ziram à culinária italiana o açúcar, o arroz, a tanhas da Itália, predominam os famosos
canela, o açafrão, a berinjela e os doces de cogumelos fung hi e há muita caça. Já no li-
marzipã, além disso, levaram consigo os en- toral, há diversos tipos de peixe, com des-
sinamentos para a produção de figos secos taque para o atum e o peixe spada, além de
e passas (ROSENBERGER, 1998). muitos frutos do mar e bacalhau.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 49

Há também, no cenário gastronômico A seguir, veremos as contribuições


italiano, a cozinha Mediterrânea, principal- portuguesas e espanholas para a gastrono-
mente na parte meridional e nas ilhas da mia na Europa.
Sicília e Sardenha. Esse tipo de culinária é
conhecida pelos italianos como saudável, 2.2.3 Atribuições portuguesas e
rica em carboidratos, frutas, verduras, pei-
xes, utilizando pouca carne e muito azeite espanholas na gastronomia europeia
de oliva. Salames, queijos e vinhos de pri- A culinária portuguesa é muito rica e
meira linha completam a riquíssima cozi- conta com variedade de pratos regionais
nha tipicamente regional de todas as par- apesar da pequena extensão do país. De-
tes da Itália e apreciada em todo o mundo. vido ao vasto litoral, na cozinha há grande
Nesse país, existe uma tradição muito utilização de frutos do mar, sendo que o
forte das massas, por exemplo: bacalhau é o prato mais famoso, por ser
um peixe facilmente encontrado no país.
• G nocchi, servido na Itália tradicional-
mente como primeiro prato. Utiliza ba- Com relação às sobremesas, Cas-
tatas e uma mistura de farinha e água; cudo afirma que elas são delicadas
e dá destaque às elaboradas com ovos, por
• F ettuccine, típico da região central e nor-
e emplo, quindim, fios de ovos, ambrosia e
te da Itália. Esta massa deve ser prepa-
papo-de-anjo. As regiões do país que têm
rada com cuidado e paciência e precisa
como base de sustento a agricultura são fa-
ter a consistência áspera e porosa para
mosas pelas nozes, pelos melões, pelos pe-
manter o molho e realçar o sabor;
pinos, pelos tomates, pelo arroz, pelo feijão,
• T ag lioni V erdi, massa típica da região de pelas azeitonas e pela criação de galinhas.
Molise Piemonte;
No setor de bebidas, Portugal se des-
• R av ioli C aprese, primeira massa a ter regis- taca na produção de vinho, principalmente
tro escrito na história da culinária italiana, quando se trata de vinho do Porto. Esse é um
quando no final do s culo e início do dos setores mais dinâmicos da agricultura
XIII, um fazendeiro fez um almoço de pão, portuguesa, sendo que conseguiu se adaptar
carne e ravióli (ROSENBERGER, 1998).
50 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

concorrência. imões afirma que o s influências romanas e rabes tam-


vinho português ocupa posição de destaque bém introduziram o açafrão, a pimenta-do-
tanto na Europa quanto no mundo. -reino e, provavelmente, o arroz à culinária
da Espanha. Historicamente, os espanhóis
gostam da fartura, tanto nos ingredientes
de preparo quanto na quantidade de co-
mida nos pratos.
Mais tarde, com o descobrimento da
América, os espanhóis passaram a utilizar
menos tempero em seus pratos, no entanto,
ainda consumiam grandes quantidades de
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comida. Ainda neste contexto, os espanhóis


passaram a conhecer o tomate, a batata e o
cacau. O destaque da gastronomia do país
vai para a paella, risoto preparado com fru-
Vizinha de Portugal, a Espanha tam- tos do mar. Todavia, em Madri, o prato pre-
bém possui gastronomia reconhecida mun- ferido dos espanhóis é o puchero, uma espé-
dialmente. Quando os romanos dominaram cie de cozido com diferentes carnes, verdu-
a Espanha, levaram ao país conquistado ras, legumes e grão de bico (SENAC, 1998).
dois produtos que se tornaram indispensá- A seguir, falaremos sobre as contribui-
veis na culinária espanhola: o alho e o azeite ções da Alemanha para a história da gas-
de oliva. Os espanhóis acabaram gostando tronomia.
da culinária romana e a incorporaram em
suas preparações. Outro povo que os in-
fluenciou foi o rabe. om a invasão de
2.2.4 Contribuições da Alemanha
Napoleão, a culinária francesa chegou aos Na culinária alemã, os pratos desta-
espanhóis, apesar da tentativa de resistên- cam-se por serem fortes, ricos em gordu-
cia da cozinha regional, os franceses conta- ras e terem molhos fortes (temperados
vam com uma comida mais desenvolvida e com raiz forte, mostarda e outros tempe-
com mais requinte, o que favoreceu sua ins- ros típicos alemães), além de serem feitos
talação na Espanha (SENAC, 1998). com produtos de ótima qualidade. Há uma
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 51

vasta opção de pratos no país, no entanto, florestas tropicais, planícies des rticas e ge-
o que se popularizou em determinada re- ladas, inúmeras cordilheiras, além dos fér-
gião pode não ser tão requisitado em ou- teis manguezais. Esse continente contempla
tra, fazendo com que a cozinha do país também paradisíacas ilhas banhadas por um
seja bastante heterogênea. De acordo com mar cor de esmeralda e ilhas rochosas cir-
Senac (1998), a carne de porco, o repolho cundadas por mares escuros e profundos.
e a batata são alguns dos alimentos mais De acordo com Freixa e Chaves
presentes na cozinha alemã, sendo que a (2012), o resultado de tantas peculiarida-
carne do porco é bastante utilizada no pre- des é uma gastronomia diversificada que
paro de salsichas que conta com mais de tem fascinado o mundo ocidental. Para ini-
1.500 variedade s, além do famoso chu- ciarmos nossos estudos sobre a culinária
crute (conserva de repolho fermentado). asiática, a seguir falaremos sobre os costu-
Bastante apreciado pelos alemães, a mes gastronômicos do Japão e da China.
mistura do sal com o açúcar apresenta-se
em pratos como carnes acompanhadas de 2.3.1 Particularidades gastronômicas
geleias de frutas, assados recheados com
frutas e a sopa de cerveja, preparada com do Japão e da China
ovo, açúcar, creme de leite, canela, pimenta A comida para o povo nipônico é con-
e sal (SENAC, 1998). siderada uma obra de arte. Sua culinária
A seguir, conheceremos um pouco popularizou-se no resto do mundo de uns
da história da gastronomia no continente tempos para cá, e há quem diga que a cozi-
asiático. nha japonesa está no mesmo nível da fran-
cesa. No entanto, os franceses apreciam a
mistura dos sabores, já, para os japoneses,
2.3 História da Gastronomia na Ásia deve haver a valorização do sabor de cada
A Á sia é considerada um patrimônio ingrediente da preparação, além de os pra-
cultural com mais de 3 mil anos de história. tos serem muito bem apresentados. Ge-
A culinária asiática, resultante de vários fa- ralmente, a comida é servida separada em
tores, fascina o mundo com sua rica e exó- potinhos e tigelas delicadamente pintadas.
tica cozinha. O primeiro destaque é para Um dos principais utensílios é o hashi, que
a peculiar geografia do local, com densas são os “pauzinhos” utilizados para comer.
52 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Nas casas, cada membro da família tem o geralmente, os alimentos são de rápido
seu, e os hashis dos visitantes são descar- cozimento, o que pode ser explicado pela
tados após o uso (SENAC, 1998). pobreza de combustíveis no país. Esse
A partir do século X, houve a dissemi- fato levou os cozinheiros a desenvolverem
nação do budismo no Japão, proibindo que outras formas de preparo dos alimentos
os adeptos se alimentassem de animais (SENAC, 1998).
de criação. Isso fez com que a dieta japo- Assim como no Japão, a base da culi-
nesa se tornasse basicamente vegetariana, nária chinesa são os peixes e as algas, mas
sendo permitida a complementação com também incluem caramujos, aves, porco,
peixes. Logo, a carne de boi passou a ser legumes e broto de bambu. Alguns dos
excluída das mesas japonesas. pratos mais marcantes da gastronomia
Os peixes, crustáceos, mariscos e algas chinesa são os camarões com repolho chi-
são a base da culinária japonesa devido ao nês, leitão assado com molho de soja, gali-
fato de que estes alimentos são abundan- nha com amendoim e broto de bambu com
tes no país. Freixa e Chaves (2012) salientam peixe. Sobre as bebidas, há o consumo de
que o arroz faz parte da maioria dos pratos, aguardente do arroz fermentado. O leite é
desde que teve entrada no país por meio da pouco comum, pois é considerado um ali-
China. Além da comida, o arroz é utilizado mento impuro (SENAC, 1998). Hábito co-
no preparo da bebida típica do país, o saq uê , mum a japoneses e chineses, o consumo de
e, também na produção do tatame, espécie chá após as refeições foi introduzido no Ja-
de esteira feita de palha de arroz. pão pelos chineses, que há muitos milênios
conhecem os benefícios de seu consumo
Quando o assunto é a culinária na
(FREIXA; CHAVES, 2012).
China, ela é considerada uma arte tão im-
portante que foi descrita por pensadores, Além dos japoneses e chineses,
filósofos e poetas. Os chineses mostraram- os tailandeses também tiveram papel sig-
-se muito criativos para a culinária, explo- nificativo na história da gastronomia. Veja,
rando praticamente todos os recursos que na sequência, um pouco mais sobre a culi-
lhes era disponível. Na cozinha chinesa, nária tailandesa.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 53

2.3.2 Curiosidades da Gastronomia 2.3.3 Alimentação na Mongólia


na Tailândia Localizada na Á sia Oriental e Cen-
tral, a Mongólia é o segundo maior país
Assim como no Japão, um dos princi-
do mundo sem costa marítima. Com cerca
pais alimentos na Tailândia é o arroz. Ele é
de 2,9 milhões de habitantes, faz fronteira
um alimento comum nos pratos e não pode
com a Rússia ao norte e com a China ao sul,
faltar nas mesas tailandesas. Pode ser ser-
ao leste e ao oeste. A alimentação da po-
vido de diversas formas: fervido, frito ou
pulação era essencialmente carnívora. Não
na sopa. Os tailandeses não limitam a uti-
costumavam praticar a agricultura, pois o
lização de um ingrediente para fim espe-
solo era frio, sendo assim, os mongóis que
cífico, sendo um exemplo comum o molho
viviam nas florestas se alimentavam, ba-
de peixe (nam pla) que pode substituir o sal
sicamente, de alimentos provenientes da
em alguns pratos.
caça e da pesca. Já os mongóis que habi-
O almoço no país geralmente é mais tavam as cidades viviam do pastoril e cria-
rápido e composto apenas por um prato de vam rebanhos de cabras, carneiros, came-
arroz frito, massas com sanduíches e verdu- los, vacas e cavalos.
ras. Ao contrário do que acontece no Bra-
De acordo com Freixa e Chaves
sil, onde o almoço é considerado a refeição
(2012), a dieta da população é baseada em
mais importante do dia, na Tailândia, é o
carne bovina, cordeiro e camelo. Na capi-
jantar que ocupa essa posição. É nesse mo-
tal, Ulaanbaatar, a variedade de comida é
mento que os tailandeses aliam a quanti-
maior, e boa parte dos alimentos vem de
dade e a qualidade, utilizando os melhores
importações. A carne seca, chamada b orts,
ingredientes. A cozinha tailandesa é muito
é utilizada em diversas receitas, e uma espe-
cuidadosa com a apresentação dos pratos,
cialidade são os k huushuur, pastéis de massa
que sempre é feita com muita delicadeza,
de farinha de trigo recheados com carne. A
com o uso de arran os florais e frutas corta-
manteiga de leite também é um alimento
das de formas criativas (TOURISM AUTHO-
muito conhecido e apreciado na região.
RITY OF THAILAND, 2007).
Na sequência, falaremos um pouco
sobre a história da gastronomia em outro
país asiático, a Mongólia.
54 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

2.3.4 A alimentação na Coréia do Norte e Coréia do Sul


Os coreanos defendem que o verda- Especialistas em gastronomia apre-
deiro sabor da comida só é acentuado se ciam a natureza presente nos pratos corea-
ela for consumida com o k imchi, que é um nos, o que é possível observar por meio dos
acompanhamento à base de acelga fer- ingredientes das preparações. Isto pode ser
mentada e um molho apimentado. Nutri- devido ao passado, quando os coreanos ba-
tivo e com abundância de vitaminas e mi- searam sua dieta no princípio de que remé-
croelementos, o k imchi é servido em todas dios e alimentos tem a mesma origem, ou
as estações do ano – enquanto que outros seja, tanto remédios quanto alimentos são
pratos do país nem sempre podem ser ser- provenientes da natureza. Devido a isso,
vidos devido à sazonalidade (falta de ingre- muitos pratos coreanos tem o prefixo “me-
dientes). A receita é transmitida de mãe dicinal” (medicamento), salientando a rela-
para filha e representa uma arte da culiná- ção alimento-saúde.
ria coreana (K FA, 2011). Por exemplo, o arroz é chamado de
medicinal R ice, sendo preparado com arroz
glutinoso misturado com mel, jujubas, caquis
secos, castanhas e óleo de gergelim. Com
relação às bebidas, há o medicinal w ine, um
vinho utilizado para a promoção da saúde, e,
©K ongsak/ / Shutterstock

entre os temperos, há alguns que são utiliza-


dos não só pelo sabor, mas também por suas
propriedades curativas (K FA, 2011).
Pudemos compreender, neste capí-
tulo, a gastronomia pelo mundo. Passamos
pelo rasil, onde verificamos como a nossa
alimentação foi influenciada pela introdu-
ção de elementos da culinária portuguesa,
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 55

africana e indígena nativa. Aprendemos um , para finalizar, passamos pela gastro-


pouco mais da culinária local de cada região nomia da Á sia e por suas particularidades.
do rasil, as influências que receberam de Esperamos que você, aluno, tenha ab-
outras culinárias e quais seus pratos típicos. sorvido o máximo possível do material.
Em nosso passeio gastronômico, vi-
sitamos também a Europa, onde pudemos
compreender um pouco mais da gastrono-
mia francesa, italiana, espanhola, alemã e
portuguesa.
56 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

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TOURISM AUTHORITY OF THAILAND. G astronomia. 2007. Disponível em: < w w w .turismotai-
landes.org.pt/1_ sec2_ 2_ gastronomia.html> . Acesso em: 13/04/2016.
Capítulo 3
Padrões alimentares

A alimentação consiste numa necessidade básica do ser humano e, sobretudo, o ato de


se alimentar reflete muito de nossa cultura. Além do teor nutricional dos alimentos, impor-
tantes à manutenção do organismo, há também a cultura colocada em nosso prato, aspecto
social, que traz a convivência entre pessoas, expressa a identidade da região e, também,
contempla a gastronomia, fator que agrega valor ao que é servido. Os padrões alimentares
de um grupo refletem a identidade coletiva, a posição na hierarquia e na organização social
e podem definir, também, a identidade individual (PEDRAZA, 2004).
Neste capítulo, estudaremos os padrões alimentares de diferentes povos e culturas.
Bons estudos!
58 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

3.1 Padrões e hábitos alimentares da população


O ato de comer é um elemento de Estatística (IBGE), que diz respeito ao con-
forte influência na cultura de um povo, sumo alimentar das famílias brasileiras, bem
sendo que os padrões e hábitos alimenta- como aos gastos e rendimentos. Com relação
res de uma população são tidos como os alimentação, são verificadas as despesas
traços de mais difícil mudança. com refeições em casa ou fora do lar, tipos de
locais em que são feitas as refeições fora de
De acordo com Pedraza (2004), po-
casa, identificação das formas de aquisição
de-se considerar que a relação do homem/
de alimentos e avaliação quantitativa e quali-
alimento representa uma primitiva ligação
tativa dos alimentos consumidos.
com a natureza, estando a cultura alimen-
tar enraizada nos grupos sociais. Segundo o IBGE (2011), no estudo
feito nos anos de 2008/2009, foi possível
O autor destaca ainda que o padrão ali-
observar que a prática alimentar saudável
mentar pode mostrar a situação de aquisição
ainda é baixa entre os brasileiros. Isso por-
de alimentos de pessoas de diferentes níveis
que muitas pessoas ainda consomem vá-
sociais. Esse fato mostra que o padrão pode
rios alimentos que são fontes de gordura
ser diferente entre os variados grupos, o que
saturada, sal, açúcar e aditivos.
torna a generalização algo difícil, mas, o es-
Ainda em âmbito nacional, temos o
tudo desse padrão certamente reflete as pr -
Guia Alimentar para a População Brasileira
ticas alimentares de uma população.
(BRASIL, 2014), que tem como objetivo
A seguir, veremos um pouco sobre os melhorar os padrões alimentares e promo-
costumes alimentares dos brasileiros. ver a saúde da população. Para isso, a Or-
ganização Mundial da Saúde (OMS) propõe
3.1.1 A prática de hábitos que os guias sejam de linguagem clara a
fim de facilitar a adoção de escolhas ali-
saudáveis no Brasil mentares mais saudáveis e, também, que
No Brasil, há um estudo denominado considerem a cultura local. Os guias ali-
Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), mentares trazem o conceito de segurança
feito pelo nstituto rasileiro de eografia e alimentar e nutricional, que diz respeito a
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 59

assegurar o direito humano de acesso à ali-


mentação saudável e adequada, bem como
aos meios para se obter essa alimentação, O Guia Alimentar para a Popula-
sem comprometer o acesso a outros servi- ção Brasileira está disponível no site da
Biblioteca Virtual da Saúde, do Ministé-
ços básicos, como saúde e educação.
rio da Saúde. Basta acessar o site para
saber mais sobre alimentação saudável.
© Brian A Jackson / / Shutterstock

3.1.2 Classificação dos padrões


alimentares
Os alimentos representam a ligação
mais primitiva entre natureza e cultura,
fazendo parte da raiz que liga um povo, o
que caracteriza o padrão alimentar de uma
O G uia traz a relação entre os alimen- sociedade. O consumo de determinados
tos e a saúde, levando em conta os nutrien- alimentos pode representar simbologia po-
tes, as refeições e a esfera cultura e social sitiva (associações com saúde, integridade
das práticas alimentares do povo brasileiro. moral e bem-estar) ou negativa (associa-
Nele, também estão expostas informações ções com doenças e imoralidade).
sobre a forma adequada de se alimentar ao
Os alimentos são únicos e distintos de
propor o consumo de alimentos in natura
uma cultura para outra. Eles existem em
ou minimamente processados, em grande
diversas variações nas formas de como são
variedade, dando preferência aos de ori-
cultivados, colhidos, preparados, servidos
gem vegetal. Ao final, o Guia ainda mos-
e ingeridos. O seu consumo, por depender
tra situações que atrapalham as pessoas
dos gostos, muda segundo a mobilidade
de manterem uma alimentação saudável
social dos indivíduos ou conforme a com-
(BRASIL, 2014).
posição social. Os gostos das classes po-
A seguir, falaremos sobre como se pulares são basicamente de necessidade,
classificam os padrões alimentares. ou seja, eles precisam eleger os alimentos
60 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

que lhes conferem uma sensação máxima Dessa forma, chegamos à conclusão
de saciedade e ao menor custo possível. de que a alimentação atual é caracterizada
Os gostos de luxo e a seleção de alimentos pelo estilo de vida moderno, marcado pela
mais refinados são próprios dos indivíduos escassez de tempo para preparo e consumo
de classes sociais mais elevadas. de alimentos, o que leva à emergência de
Outro fator que se destaca ao com- alimentos do tipo fast food. Esse tipo de co-
preender os padrões alimentares é a explo- mida contempla alimentos mais processa-
ração dos recursos disponíveis e a adapta- dos, consequentemente, com maior uso de
ção ao meio ambiente, sendo o exemplo conservantes, podendo interferir na saúde
mais viável o consumo dos alimentos in- dos consumidores. Seguindo esse exemplo,
dustrializados. As mudanças nos hábitos daremos continuidade ao conteúdo, falando
alimentares refletem a complexidade dos um pouco mais sobre como o padrão ali-
modelos de consumo e dos fatores que os mentar influencia a sa de da população.
determinam, interferindo na qualidade dos
alimentos produzidos e industrializados. 3.1.3 Padrão alimentar x Saúde
Na tentativa de adequar a alimentação As mudanças qualitativas e quantita-
ao ritmo acelerado do dia a dia, as escolhas e tivas no padrão alimentar do brasileiro po-
os hábitos de consumo passaram a apontar dem acarretar agravos nutricionais tão gra-
para alimentos mais condizentes com o novo ves quanto os que são decorrentes da falta
estilo de vida, fazendo com que fossem in- de alimento.
corporados hábitos rápidos e práticos. Essa Segundo Pedraza (2004), enquanto
mudança pode ser observada quando nota- uma alimentação saudável e adequada pro-
mos que, há algumas décadas, a alimenta- move a saúde, os problemas ocasionados
ção era baseada, em sua essência, mais em por alimentos não adequados e contamina-
produtos in natura do que processados. Es- dos se agravam à medida que a população
tes alimentos, muitas vezes, são menos sa- depende cada vez mais de refeições produ-
tisfatórios ao paladar e possuem aporte nu- zidas fora de seu domicílio.
tritivo menor do que no padrão anterior, no
A transição no padrão alimentar do
qual se prezava por hábitos naturais e mais
brasileiro ocorreu num ritmo acelerado,
saudáveis de alimentação.
ao contrário do que aconteceu em países
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 61

europeus e na Á sia. França et al. (2012) des- ainda, antecipar doenças como hiperten-
tacam que a chamada dieta ocidental do são, hipercolesterolemia, diabetes, cân-
brasileiro, caracterizada por alimentos com cer, entre outros.
alto teor de gordura saturada, principal- Entender os fatores que interferem na
mente de origem animal, açúcares e alimen- alimentação do indivíduo, principalmente
tos refinados e bai o consumo de alimentos na infância, possibilita a formulação de ati-
fontes de carboidratos comple os e fibras, vidades educativas, que podem contribuir
comprovadamente aumenta o risco de de- nas mudanças do padrão alimentar das
senvolvimento de Doenças Crônicas Não crianças (AGUIAR et al., 2011; LLOYD-
Transmissíveis (DCNT). Como exemplos WILLIAMS et al., 2011; SHARMA et al.,
dessas doenças, podemos citar diabetes, hi- 2013; VALLE; EUCLYDES, 2007).
pertensão, obesidade e cardiopatias, além
do fato de que esse tipo de alimentação di-
minui a qualidade de vida da população.
Hipercolesterolemia é uma doença
A seguir, veremos que esses hábitos
caracterizada pelo aumento da concentra-
alimentares são formados ainda durante a ção de colesterol na corrente sanguínea.
infância, o que se torna um fator determi-
nante para o desenvolvimento de algumas
doenças na vida adulta.

3.2 Padrão alimentar na infância


e adolescência
Os hábitos alimentares, bons ou ruins,
são formados nos primeiros anos de vida e
podem perpetuar-se por toda a existência
de uma pessoa. Hábitos alimentares não
© Zurijeta / / Shuttestock

saudáveis contribuem para o desenvolvi-


mento precoce de distúrbios nutricionais,
como sobrepeso e obesidade, e podem,
62 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Valle e Euclydes (2007) ainda desta- Ocorreram, nos últimos anos, mudan-
cam que, entre os fatores fisiol gicos envol- ças no padrão alimentar dos adolescentes,
vidos na formação do hábito alimentar na que substituíram o tradicional feij ã o com
infância, está a preferência pelo sabor doce arroz por alimentos de baixo valor nutricio-
e salgado e a rejeição do azedo e amargo. nal e alta oferta calórica, como fast- foods e
Outro aspecto é a neofobia alimentar, o guloseimas. Segundo Salvatti et al. (2011),
que pode contribuir de maneira negativa à esse fato pode ser explicado pela constante
ingestão de novos alimentos por parte da busca de independência do adolescente, o
criança. Por outro lado, na adolescência, há que pode representar rompimento com os
diminuição na preferência pelo sabor doce e hábitos alimentares familiares. Outro fator
consumo de aç car, devido modificação que pode interferir na escolha alimentar do
proporcionada pelo crescimento, pela matu- adolescente a influência de seu grupo de
ração e por fatores hormonais. convivência, devido à constante necessi-
dade de identificação com os membros.
Apesar da tendência do adolescente
Neofobia alimentar é a expres-
em preferir alimentos de baixo valor nutri-
são utilizada para o ato de rejeição cional, as grandes redes de fast- food vem
da introdução de novos alimentos na perdendo adeptos. Isto pode ser obser-
dieta (VALLE; EUCLYDES, 2007). vado pelas recentes quedas nas vendas em
todo o mundo. A chamada geração Y (jo-
vens nascidos depois de 1980 até o começo
© Syda Productions / / Shutterstock

dos anos 90) está muito mais conectada a


conceitos relacionados a comidas frescas,
alimentação saudável, alimentos orgâni-
cos, entre outros, do que àqueles relacio-
nados à imagem do fast- food.
Veremos, a seguir, um pouco mais so-
bre essa mudança nos padrões alimentares
com o passar dos anos.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 63

3.2.1 Padrão alimentar e crescimento


O crescimento do ser humano é um
processo contínuo que apresenta particu-
laridades em cada etapa da vida e sofre in-
terferência de vários fatores.
Spyrides et al. afirmam que
identificar precocemente estes fatores pode
auxiliar na detecção e correção de proble-
mas com repercussões futuras para a saúde.
Os autores destacam que o cresci-
mento ocorre de maneira mais acelerada,
levando em consideração peso e compri-
mento, nos dois primeiros anos de vida e na
adolescência. Ainda nesse sentido, os fato-
res que influenciam o crescimento podem
ser endógenos (determinantes biológicos,
genéticos e étnicos) e também exógenos
© Brian A Jackson / / Shuttestock

(nutricionais, culturais, ambientais e sociais).


No primeiro ano de vida, o cresci-
mento é fortemente influenciado por fato-
res exógenos, sendo que até os dois anos
estas causas afetam o crescimento com
valor mais expressivo do que os fatores en- Por outro lado, situações de insegurança
dógenos, que interferem no crescimento a alimentar e nutricional podem interferir
partir dos dois anos de idade. negativamente no crescimento.
De acordo com Rossi, Moreira e A seguir, trataremos sobre a relação
Rauen (2008), um padrão alimentar ade- entre a alimentação e o desenvolvimento
quado apresenta influência positiva no ao longo dos anos.
crescimento da criança e do adolescente.
64 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

3.2.2 Padrão alimentar e desenvolvimento


A alimentação está intimamente li- Nesse período, algumas questões me-
gada ao desenvolvimento infantil, sendo recem atenção especial, como os riscos de
que os dois primeiros anos de vida consti- transtornos alimentares (anorexia, bulimia
tuem-se como um período de grande vul- e compulsões), o baixo-peso, o sobrepeso,
nerabilidade. Para que o desenvolvimento a obesidade, a anemia (cuja prevalência
ocorra de maneira adequada, o padrão ali- cresce significativamente) e a gravidez na
mentar deve estar de acordo e atender às adolescência, que, por sua vez, aumenta o
necessidades energéticas. Crianças e ado- risco de partos prematuros e crianças com
lescentes são mais suscetíveis a apresentar baixo peso ao nascer.
distúrbios nutricionais, em função de seu
acentuado desenvolvimento. 3.2.3 Padrão alimentar e saúde
Na infância, para que se garanta o de- Nas crianças e nos adolescentes, os
senvolvimento, é necessário que a oferta de principais problemas nutricionais são decor-
alimentos se a diversificada, de modo que rentes de excesso ou carência de determi-
todos os grupos alimentares sejam ofereci- nados nutrientes. Como excesso, podemos
dos à criança que está aprendendo a comer. citar a obesidade precoce. Por outro lado, a
Ao estimular a criança a alimentar-se na pre- carência pode se manifestar na ocorrência
sença da família (convívio social), a segurar de anemia e outras doenças, que configuram
alimentos e talheres (capacidade motora), importantes problemas de saúde pública.
seu desenvolvimento também é estimulado.
Segundo Rossi, Moreira e Rauen
Uma das principais fases da vida em (2008), diante disso, o padrão alimentar de
que o desenvolvimento pode ser percebido crianças e adolescentes, importante para o
é na adolescência. A necessidade nutricio- crescimento e desenvolvimento, é também
nal dos adolescentes é, relativamente, alta, um fator de prevenção de algumas doenças
pois esta fase é caracterizada por um cres- que podem aparecer de forma precoce e
cimento físico acelerado – acompanhado também na fase adulta, decorrentes da má
da maturação sexual e mental. alimentação nos estágios iniciais da vida.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 65

Explorando-se o padrão alimentar já visto, este padrão alimentar favorece


de crianças e adolescentes, visto que é in- o desenvolvimento das DCNT (BONOMO
fluenciado tanto pelo comportamento fa- et al. , 2003; BRASIL, 2014).
miliar quanto pelo convívio social, pode-se Com base nessas informações, de que
compreender os aspectos relacionados ao forma deve ser uma alimentação saudável?
processo saúde-doença (ROSSI; MOREIRA; É o que veremos a seguir.
RAUEN, 2008), lembrando que o desen-
volvimento de doenças antes consideradas
de pessoas de idade mais avançada ocorre,
3.3.1 Padrão alimentar saudável
hoje, com grande frequência nas crianças e De acordo com o Guia Alimentar para
nos adolescentes (BRASIL, 2014). a População Brasileira, o padrão alimentar
saudável considera para consumo quatro
Até aqui, tratamos da alimentação
categorias de alimentos:
relacionada à infância e adolescência. Nos
próximos tópicos, falaremos sobre a ali- • alimentos in natura ou minimamente pro-
mentação na idade adulta. cessados;
• óleos, gorduras, sal e açúcar em peque-

3.3 Padrão alimentar na vida nas quantidades;


• alimentos processados (limitado);
adulta • alimentos ultraprocessados (limitado)
O padrão alimentar dos adultos é for- (BRASIL, 2014).
temente influenciado pelos aspectos cul-
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turais, socioeconômicos e demográficos.


Esses padrões têm mudado de forma rá-
pida, principalmente em países de econo-
mia emergente.
Dentre as principais mudanças, po-
demos citar a substituição de alimentos
in natura (minimamente processados) por
produtos industrializados prontos ou semi-
prontos para consumo. No entanto, como
66 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Dentre esses alimentos, o Guia também traz a explicação das categorias de alimentos,
conforme está exposto no quadro a seguir:

Tipo de Alimento Definição


São, predominantemente, os alimentos de origem vegetal, sem ou com o mínimo
In natura e minima-
de alteração após retirados da natureza. Incluem: grãos, tubérculos, raízes, legu-
mente processados
mes, verduras, frutas, leite, ovos, peixes, carnes e água.
São alimentos que foram fabricados pela indústria com a adição de sal, açúcar ou
Processados outro produto de uso culinário. Por exemplo: pães, frutas em calda e cristaliza-
das, conservas, extrato de tomate, entre outros.
São alimentos nutricionalmente desbalanceados, adicionados de vários produtos
Ultraprocessados da indústria alimentícia, sem valor nutricional. Por exemplo: biscoitos, sorvetes,
salgadinhos e guloseimas.

Fonte: BRASIL, 2014. (Adaptado).

Além dos aspectos nutricionais relacio- Segundo França et al. (2012), para se
nados à alimentação, deve haver um sistema adequarem ao ritmo acelerado do dia a dia,
alimentar socialmente e ambientalmente as escolhas alimentares passaram a condi-
sustentável, onde, por exemplo, haja consi- zer com este novo estilo de vida, adotando
deração no tamanho e uso das propriedades hábitos rápidos e práticos, porém, a maio-
rurais que produzem alimentos, na autono- ria dos alimentos incorporados não conta
mia dos agricultores na escolha das semen- com alta palatabilidade (agradável ao pala-
tes, no papel dos intermediários entre agri- dar) e tem baixo teor nutricional.
cultores e consumidores, entre outros. Os autores ainda salientam que o
pouco tempo para o preparo e consumo
3.3.2 Consumo de alimentos e estilo dos alimentos na contemporaneidade pode
justificar a preferência pelos fast food, que
de vida utilizam técnicas que permitem a conser-
É possível observar várias mudanças no vação dos alimentos. No entanto, uma par-
perfil alimentar das pessoas nas ltimas d - cela das pessoas ainda opta pelo consumo
cadas. ssas mudanças se refletem na altera- do tipo slow food, priorizando a escolha
ção da qualidade dos alimentos produzidos. dos alimentos e a qualidade das refeições.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 67

3.3.3 Perfil qualitativo da alimentação


qualidade da alimentação um fator essencial ao estudar o perfil de uma população.
ma alimentação inadequada pode refletir no desenvolvimento de doenças associadas m
qualidade da alimentação. studos atuais vêm demonstrando a relação entre o perfil qualita-
tivo da alimentação da população adulta e o desenvolvimento de doenças (BONOMO et al.,
2003). A POF de 2008-2009 traz informações sobre a alimentação da população. Sobre a ali-
mentação fora do domicílio, podemos verificar quais foram os itens mais consumidos. s re-
sultados estão expostos na tabela a seguir:

Alimentação fora do domicílio


Alimento Percentual
Cerveja 63,6%
Salgados fritos e assados 53,2%
Salgadinhos industrializados 56,5%
Chocolates 36,6%
Refrigerantes diet ou lig ht 40,1%
Refrigerantes comuns 39,9%
Bebidas destiladas 44,7%
Pizzas 42,6%
Sanduíches 41,4%

Fonte: IBGE, 2011. (Adaptado).

Verifica-se, com esta tabela, que os itens que são considerados parte de uma
alimentos mais consumidos não têm teor dieta saudável. Por exemplo, o consumo de
nutricional elevado, sendo compostos, em batata doce foi observado em mais que o
sua maioria, por alta densidade calórica, dobro na classe mais baixa quando compa-
açucares e gorduras. rado com a mais alta, sendo que a mesma
Por meio do estudo, o IBGE (2011) situação ocorreu com o milho e, ligeira-
também apontou que as classes mais bai- mente, com peixe fresco, peixe salgado e
xas consomem em maior quantidade vários carne salgada. No entanto, o consumo de
68 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

alimentos “negativos” foi maior na menor 2008-2009, também foi possível perceber
faixa de renda, por exemplo, doces, refrige- que o consumo da maioria dos itens teve
rantes, pizzas e salgados fritos e assados. média maior entre os homens, sendo que
Pode-se concluir que, apesar de ali- a cerveja obteve média cinco vezes maior
mentos saudáveis como o arroz e o feijão entre os homens do que entre as mulheres.
ainda estarem presentes na alimentação do Houve, ainda, relação entre a frequência de
brasileiro, o consumo de alimentos ultrapro- consumo e valores per capita para frutas,
cessados e, principalmente, fora do domi- salada crua, leite e derivados de acordo
cílio apresenta médias elevadas, demons- com a renda. Em outras palavras, quanto
trando um padrão alimentar não saudável. maior a renda, mais alto foi o consumo e
valor per capita. Já para a farinha de man-
dioca essa associação foi negativa.
3.3.4 Perfil quantitativo da alimentação
A tabela a seguir mostra dados divul-
A quantidade de alimentos consu-
gados em 2011 da Pesquisa de Orçamentos
mida por uma população pode refletir em
Familiares (POF) de 2008-2009 realizada
seu estado nutricional, sendo que tanto o
pelo IBGE sobre os alimentos que mais são
excesso quanto a falta de alimentos pode
consumidos em domicílio e suas quantida-
trazer danos à saúde. Por meio da POF
des, respectivamente. Acompanhe:

Alimentação em domicílio
Tipo de alimento G ramas por dia
Feijão 182,9 g/dia
Arroz 160,3 g/dia
Carne bovina 63,2 g/dia
Suco 145 g/dia
Refrigerante 94,7 g/dia
Café 215,1 g/dia

Fonte: IBGE, 2011. (Adaptado).


HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 69

De acordo com a pesquisa, os partici- aos insumos (CANESQUI; GARCIA, 2005;


pantes citaram 1.121 itens alimentares que GARCIA, 2003; PROENÇ A, 2010).
consomem, sendo que as maiores médias
estão expostas na tabela. O estudo tam-
bém apontou valores de média próximos de
50 g/dia para sal, sopas e caldos. O consumo
de frutas, verduras e legumes foi menor en-
tre os homens do que entre as mulheres, o
que ocorreu também com os doces.
Assim como no domicílio, as médias de
consumo fora de casa também foram maio-
res para os homens do que para as mulheres.

3.4 A globalização alimentar


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A globalização alimentar sofre in-
fluência dos avanços na indústria de ali-
mentos (que substituiu a tradicional cozi-
nha dos lares na produção de alimentos),
Sendo assim, devido a esses no-
da agricultura e da abertura do comércio
vos métodos de conservação, é possível
entre os países.
a aquisição de alimentos mesmo fora de
Nesse cenário, a globalização e as sua época e local tradicional, sendo aces-
práticas alimentares atuais vêm sendo dis- síveis, até mesmo, para locais distantes
cutidas pelos estudiosos das áreas da eco- de sua produção habitual. Embora a prá-
nomia, sociologia e saúde. Como conse- tica de venda e consumo de alimentos
quência da globalização, não há mais a fora de época e distantes de seu local de
constante preocupação do ser humano em origem tenha um lado bom, pois possibi-
adquirir e armazenar alimentos, devido à lita que as pessoas conheçam novos ali-
possibilidade da indústria na produção em mentos, ela não é adequada pelo ponto de
larga escala e de novas técnicas de conser- vista da desvalorização da produção e do
vação que proporcionam maior vida útil consumo de alimentos locais, o que pode
70 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

interferir na soberania alimentar de um Somente os produtos industrializados re-


país (PROENÇ A, 2010; BRASIL, 2014). gistraram crescimento de 409% , principal-
A seguir, poderemos compreender mente nas preparações alimentícias diver-
como a globalização influencia as escolhas sas (1.193% ) e em preparações à base de
alimentares de uma população. cereais (538% ); leite e derivados tiveram
um aumento de 970% e bebidas, alcoólicos
e vinagre cresceram 640% . Outras carac-
3.4.1 Influência da globalização nas terísticas da globalização alimentar são a
escolhas alimentares preferência por alimentos de fácil preparo
e a diminuição da frequência de idas ao su-
Devido ao novo estilo de vida da po-
permercado (GARCIA, 2003).
pulação, houve a necessidade de adequar
os hábitos alimentares de acordo com al-
gumas condições de que dispõe, por exem-
plo, tempo, recursos financeiros, local para
se alimentar, periodicidade de compras,
entre outros fatores.
Ainda relacionado com o novo estilo de
vida, a indústria de alimentos é fortemente

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influenciada pela mídia que, por consequên-
cia, promove o consumo de alimentos ca-
lóricos, porém, saborosos e de custo baixo.
Segundo Garcia (2003), essa publicidade
se baseia na difusão da ciência para fins de
comercialização. globalização influencia
tanto a indústria de alimentos quanto o se-
tor agropecuário, a distribuição em super-
mercados, lanchonetes e restaurantes. Além do crescente consumo de ali-
mentos industrializados e de fácil preparo,
Com a abertura dos mercados, na dé-
Garcia (2003) cita outros fatores marcantes
cada de 90, houve um importante aumento
na globalização alimentar. Entre eles, po-
das importações de alimentos no Brasil.
demos citar:
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 71

• o aumento da comercialização por meio básico de alimentos em quantidade e quali-


de grandes redes de supermercados; dade adequadas para atender suas necessi-
• produtos elaborados com novas técnicas dades biológicas de energia e nutrientes.
de conservação; Simultaneamente, essa condição indi-
• individualização de rituais alimentares; vidual e coletiva considera e integra outras
• flexibilização dos horários para as refei- necessidades e direitos básicos ao cidadão,
ções; como saúde, habitação e educação, pois,
• oferta de insumos vindos de diversas considera-se que deve haver a SAN sem que
partes do mundo; esta comprometa o acesso a outros serviços.
Portanto, seria uma condição que considera
• diversidade atualmente disponível.
o presente e se projeta para o futuro. Se-
O processo de modificação de ali- gundo Garcia (2003), o acesso ao alimento
mentos ainda está longe do final, visto que na sociedade contemporânea é determi-
a indústria lança a cada passo novos “ali- nado, principalmente, pela condição socioe-
mentos”, tais como tomates que não apo- conômica, sendo que envolve as políticas
drecem, berinjelas brancas, batatas com econômicas, sociais, agrícolas e agrárias.
amido de melhor qualidade, milho com sa-
A seguir, poderemos entender um
bor manteiga, entre outros.
pouco do perfil qualitativo da alimentação
no contexto globalizado.
3.4.2 Oferta e demanda
de alimento no cotidiano 3.4.3 Perfil qualitativo
Ao iniciar a abordagem sobre oferta da alimentação globalizada
e demanda de alimentos, deve-se, primei-
Com uma ampla gama de produtos
ramente, compreender o significado de se-
disponíveis no contexto de uma alimenta-
gurança alimentar e nutricional na busca da
ção globalizada, as escolhas alimentares
qualidade de vida dos cidadãos. A Segurança
podem ser saudáveis e adequadas ou não.
Alimentar e Nutricional (SAN) é considerada
como a condição em que todas as pessoas, Sabe-se que a tendência de esco-
em todos os lugares e durante todo o tempo, lha no padrão alimentar globalizado é por
devem ter garantido o acesso a um conjunto alimentos de alta densidade energética,
72 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

ricos em gordura e em açúcar refinado e Por exemplo, a pizza é um prato que conta
com baixo teor de carboidratos comple- com sua versão original, a italiana, e tam-
xos (GARCIA, 2003). De acordo com o Es- bém com versões brasileiras, norte-ameri-
tudo Multicêntrico sobre Consumo Ali- canas e outras, gerando versões adaptadas
mentar – EMCA (1997), realizado em cinco do prato original (GARCIA, 2003).
cidades brasileiras (Campinas, Curitiba, Neste capítulo, pudemos perceber
Goiânia, Ouro Preto e Rio de Janeiro), os como a alimentação está diretamente li-
principais alimentos que constaram como gada ao desenvolvimento saudável de to-
fonte de energia dos entrevistados foram, das as pessoas. No Brasil, os órgãos fede-
por exemplo, refrigerante, bolacha doce rais disponibilizam cartilhas e guias para
e salsicha. Com o Estudo, ainda foi possí- orientar a população a se alimentar de
vel concluir que o consumo de alimentos forma correta. Entretanto, pesquisas feitas
está diretamente relacionado com a renda, por institutos especializados têm eviden-
sendo que pessoas que possuem renda in- ciado que os costumes alimentares ainda
ferior consomem, comumente, arroz, óleo, não são satisfatórios e que estão ligados
açúcar, pão francês e leite e, nas rendas ao registro de diversas doenças. Vimos
mais altas, estes alimentos ocupam posi- que uma alimentação saudável deve iniciar
ções de menor importância. ainda nos primeiros anos de vida. Porém,
A globalização atinge, também, a apesar de orientações, esse padrão alimen-
gastronomia e a cozinha local dos países, tar é influenciado por diversos fatores, que
pois a culinária dos restaurantes estran- vão desde a cultura até campanhas publi-
geiros faz sua comida típica acrescentada citárias que incentivam o consumo de ali-
de elementos de outras cozinhas, sendo mentos não saudáveis.
que isto afeta não somente o sabor da re-
feição, mas também sua origem e cultura.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 73

Referências
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Capítulo 4
Alimentação, cultura e subjetividade

A alimentação permite a um grupo se diferenciar e se identificar. Há muitos elementos


culturais no modo como uma população se alimenta.
Somos seres inteiramente influenciados pela nossa cultura, e com relação à nossa ali-
mentação não poderia ser diferente; a comida reflete o que somos e qual espaço ocupamos
em nossas relações sociais (MENEZES, 2006; MINTZ, 2001).
Neste capítulo abordaremos temas comuns a todas as culturas, como os tabus e cren-
ças alimentares, a influência da religião na alimentação e antropologia ligada à alimenta-
ção. A maioria das pessoas traz na bagagem cultural orientações e ditos que já foram leva-
dos muito a sério por várias gerações. Ademais, a religião também dita muito do que certos
povos podem ou não utilizar como alimentos. Vamos começar nossos estudos falando um
pouco sobre o que é tabu alimentar. Acompanhe.
76 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

4.1 Alimentação/Mitos e tabus


Mitos e tabus são histórias utilizadas proibição sem explicação racional, que não é
pela sociedade antiga para explicar fatos ordenada por ninguém, mas que parece ter
ou fenômenos da natureza, que na época surgido por si própria, a partir da ideia de que
não eram compreendidos. Ninguém sabe o consumo ou a mistura de determinados
como um mito começa, mas alguns se pro- alimentos poderiam fazer mal à saúde. Esta
pagam em nossa cultura até os dias atuais. restrição de ingestão de determinados ali-
Já os tabus são superstições relacionadas mentos pode ter razões religiosas, culturais
ao consumo ou à combinação de alimentos ou de saúde. Geralmente, os tabus alimen-
que podem ser prejudiciais à saúde. tares têm origem na cultura de um povo, tor-
A alimentação é um dos principais alvos nando-se, posteriormente, verdades.
dos mitos e tabus. Quem nunca sentiu medo No caso dos alimentos, os tabus são
de consumir algo que já ouviu fazer mal? instituídos por meio do medo. Quando o
A seguir, veremos qual é o conceito de indivíduo entra em contato com o alimento
tabus alimentares. ou a mistura deles é tomado por um re-
flexo de privação que o faz consumir ou
não a preparação culinária.
4.1.1 Conceito de tabus alimentares
A seguir, veremos que no Brasil mui-
A alimentação é algo que não escapa
tos desses tabus ainda são passados de ge-
dos tabus, ultrapassando gerações e de-
ração para geração.
safiando as explicações da ciência. Um ali-
mento pode se tornar símbolo da cultura
de um povo, ser sagrado para uma religião 4.1.2 Os tabus alimentares mais
ou restrito por meio de tabus alimentares. populares
A palavra tabu tem origem polinésia Em geral, os tabus alimentares são
e diz respeito a algo que não podemos defi- sustentados oralmente, passando de um
nir (CASTRO, 1938; GOMES; SILVA; SALA- para outro. Serão listados, a seguir, os
MONI, 2011). Para Nadalini (2009), o con- principais tabus alimentares no Brasil:
ceito de tabu alimentar define-se como uma
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 77

Tabu Descrição
Comer manga à Este tabu é muito comum na região Nordeste do Brasil, e, segundo o mito, para
noite faz mal evitar o mal-estar deve-se dar três goles de água após ingerir a fruta.
Manga com leite faz Os senhores de engenho espalharam este boato a fim de evitar o furto de leite
mal (por ocasião das ordenhas) e manga (safra abundante) por parte dos escravos.
Principalmente no Nordeste brasileiro, o leite é cercado de vários tabus. Os prin-
cipais mitos alimentares provenientes do Nordeste têm origem folclórica por-
tuguesa (o leite é considerado um alimento completo para os europeus da Idade
Tomar cachaça com
Média, sendo, portanto, desnecessária sua mistura com qualquer outro alimento).
leite faz mal
No entanto, acredita-se que o mito de que tomar cachaça com leite faz mal seja
proveniente de um ditado espanhol: “la leche com el v ino tornase v enino” (em tra-
dução literal: “o leite com o vinho torna-se veneno).
Esse tabu pode ter sido originado pelos judeus que residiam na capital pernambu-
Carne de porco é
cana, em Recife, durante os séculos XVI e XVII, e, segundo o que é pregado pelo
ruim para o sangue
judaísmo, é proibido o consumo de carne suína aos judeus.
Durante o Império Romano até depois da Idade Média, acreditava-se que o sangue
Consumir abacaxi da menstruação era impuro e ninguém deveria ter contato com a mulher durante
durante a este período. A restrição da alimentação durante a menstruação incluiu variados
menstruação alimentos e, em Pernambuco, por exemplo, o abacaxi era restrito às mulheres du-
rante a menstruação.
Não há relação entre o consumo de doces e açúcar com as verminoses. O desen-
Consumir muito
volvimento de verminoses diz respeito às más condições de higiene de um povo,
açúcar ou
no entanto, é possível afirmar que no quadro de verminose, a glicose é utilizada na
doces pode dar
metabolização do glicogênio, que serve de reserva para sobrevivência e reprodu-
verminoses
ção dos vermes.

Fonte: Cascudo, 2004; Fragoso; Paiva, 2013; K aufman, 2010; Nadalini, 2009; Freyre, 2006. (Adaptado).

Além dos tabus descritos na tabela, outro bastante popular é o que envolve mulheres
em fase de amamentação. Por exemplo, o pensamento popular de que existe leite fraco,
de que todos os alimentos passam para o leite materno, ou que existam alimentos que são
capazes de diminuir a produção de leite e até mesmo de “secar” a mama, além de poderem
interferir negativamente na amamentação.
78 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Por outro lado, para estimular a pro-


dução do leite, acredita-se que os refrige-
4.1.3 Tabu segmentar, tabus de méto-
rantes devem ser evitados, preferindo su- do e tabus históricos
cos naturais. De acordo com Gomes, Silva O tabu (proibição de qualquer ativi-
e Salamoni (2011), é comentado, também, dade social que seja moral, religiosa ou cul-
que as gestantes devem dar preferência turalmente reprovável como meio de pre-
ao consumo de frutas, legumes e verduras servar os bons costumes da sociedade) não
pois são ricos em vitaminas e minerais. é caracterizado por ser, simplesmente, um
dito popular (frases populares, em geral,
pequenas e com efeito moral, que fazem
parte da cultura de um povo). O estudo
dessas crenças é dividido em três tipos,
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conforme descrito a seguir:


• tabu segmentar, que é caracterizado
pela utilização do recurso natural (ali-
mento) dependendo do sexo, posição
social, doenças ou outras condições;
• tabus de método, que diz respeito ao
método que é utilizado para obtenção
do alimento e uso dos recursos naturais
(no caso como o alimento é obtido, se é
caçado, pescado, plantado, ou seja as-
O leite de vaca é um alimento contro- sunto que envolve os recursos naturais,
verso para as lactantes, sendo que algumas da natureza);
pessoas acreditam que ele é capaz de au-
• tabus históricos, que restringem o consu-
mentar sua produção de leite, e outras que
mo de determinados alimentos de acor-
pode diminuir. Outros alimentos que se
do com a faixa etária ou ciclos de vida
acredita serem capazes de aumentar a pro-
como: infância, adolescência, terceira ida-
dução de leite são: fubá, canjica e sopas.
de, grávidas, ciclo menstrual (MAUÉ S;
A seguir falaremos sobre os tipos de MAUÉ S, 1980; COLDING & FOLK E, 2000).
tabus.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 79

Exemplo: grávidas não podem consumir Apesar de ditar as regras do que co-
cebola pois o gosto passa para o leite. mer, as religiões também instituem o ato
Agora que já vimos como os tabus são do não comer. Por exemplo, os muçulma-
classificados, partiremos para o próximo nos praticam o jejum durante o Ramadã, os
assunto, que relaciona religiosidade e ali- judeus no Y om K ippur (Dia do Perdão). Em-
mentação, como veremos a seguir. bora ainda há quem jejue no cristianismo,
esta prática era, realmente, rigorosa na
Idade Média, principalmente, em datas li-
4.2 Religiosidade e alimentação túrgicas, como a Semana Santa.
A relação entre alimentação e religião A seguir veremos como as práticas re-
se apresenta de maneira intensa para as ligiosas, os rituais e as crenças interferem
mais diversas religiões. Neste contexto, há no modo de alimentar-se dos indivíduos
algumas permissões, restrições e jejuns que praticantes de alguma religião.
são pautados na prática religiosa (RONDI-
, . religião influencia o modo
de agir, sentir e pensar da sociedade nos
4.2.1 Práticas religiosas e escolhas
mais diversos contextos históricos. alimentares
A identidade religiosa se torna, mui- Quando estudamos a alimentação logo
tas vezes, uma identidade alimentar. Ser nos deparamos com as fronteiras da religião.
judeu ou muçulmano implica, por exem- Comida e religião têm uma ligação bastante
plo, em não comer carne de porco; ser hin- antiga, e as diversas religiões se utilizam do
duísta é ser vegetariano; o cristianismo alimento como base de rituais e crenças.
representa a última ceia de Cristo consu- Entre as práticas mais comuns estão
mindo o pão e o vinho como corpo e san- as restriçõ es alimentares impostas por
gue divinos. As religiões de raízes africanas cultos religiosos, como o jejum. Sobre esse
também têm suas representações alimen- tema, Carneiro (2003, p. 119) afirma que:
tares, sendo que a alimentação representa
forte ligação entre homens e deuses por
meio de oferendas de alimentos.
80 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

As regras alimentares servem como rituais sociológico ou econômico) em algum mo-


instauradores de disciplinas, de técnicas mento esbarra-se na questão alimentar dos
de autocontrole que vigiam a mais insidio- indivíduos. Diversas práticas alimentares se
sa, diuturna e permanente tentação. Domá-
desenvolvem partindo dos alimentos que
la é domar a si mesmo, daí a importância
funcionam como símbolos importantes ou
da técnica religiosa dos jejuns, cujo resulta-
do também permite a obtenção de estados tabus alimentares. Outro fato importante é
de consciência alterada propícios ao êxta- a disciplina que certas religiões impõem por
se. As regras disciplinares sobre alimenta- meio de uma alimentação específica. reli-
ção podem ser anti-hedonistas, evitando o gião ensina que não se pode comer qualquer
prazer produzido pelo alimento tornando-o coisa, em qualquer quantidade e a qualquer
o mais insípido possível, ou podem ser prag- hora (SOUZA, 2014).
máticas, ao evitar alimentos que sejam de-
masiadamente ‘ quentes’ ou ‘ passionais’ . Os Quando falamos em religião e hábitos
herbários medievais identificam em diversos alimentares, há também a ligação dos ri-
alimentos, tais como as cenouras ou alca- tuais alimentícios com a religião, como ve-
chofras, fontes de excitação sexual. As re- remos a seguir.
gras budistas eliminam até mesmo a cebola,
a cebolinha e o alho, por considerarem que
essas inflamam as paixões. 4.2.2 Rituais alimentícios e religião
Os rituais alimentares de uma religião
acabam por tornar-se parte da cultura de
todo um grupo. Nesse sentido, a comida
Veja “A festa de Babette”. O
filme retrata a hist ria de uma mulher
deixa de ser um elemento fonte de prazer
que, ao oferecer um jantar em come- para tornar-se alimento para o espírito.
moração aos 100 anos do pastor, en-
De acordo com Fiore e Fonseca
frenta a situação de que certos alimen-
tos não eram permitidos pela religião
(2014), no caso do cristianismo, que conta
predominante da época. com vários adeptos no Brasil, há a repre-
sentação da Santa Ceia do Senhor, prati-
cada nas igrejas católicas pela oferta da
Ao estudar o tema religião de diferen- hóstia e do vinho aos fiéis. Segundo Car-
tes pontos de vista (teológico, antropológico, neiro (2003, p. 118),
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 81

Os milagres de Cristo, entre outros, referem- Um dos costumes mais comuns dos
-se à multiplicação dos alimentos, seu pró- cristãos é o de não consumir carne verme-
prio corpo e sangue consubstanciados no lha durante a Quaresma (período de 40 dias
pão e no vinho da eucaristia repete o rito do
entre o fim do carnaval e o início da emana
sacrifício de uma forma sublimada. A santa
anta que finda na scoa , pois segundo a
ceia assume um papel central na representa-
ção de uma aliança da humanidade com a di- doutrina cristã, este um período de refle-
vindade fundada na comensalidade. As ão e purificação , .
refeições de Cristo na casa de Simão, nas bo- Outra religião que apresenta várias tra-
das de Caná e na mesa dos peregrinos de
dições relacionadas à comida é a hindu. Uma
Emaús são episódios em que a alimentação
vertente dessa crença, os Hare K rishna, tem
serve de parábola para a mensagem cristã.
sua alimentação baseada no vegetarianismo,
não consumindo alimentos de origem ani-
mal, baseando-se em princípios de que a
carne, tanto branca quanto vermelha, não
faz bem ao organismo. A religião prega ainda
o respeito espiritual, que acaba sendo trans-
mitido aos animais quando verificamos os
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hábitos alimentares dos hinduístas (represen-


tados pela imagem a seguir), diminuindo, as-
sim, a cadeia alimentar (pois não consomem
carnes de animais) (FIORE; FONSECA, 2014).
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No Cristianismo, o consumo de
pão e peixe também tem seu simbo-
lismo, pois, segundo a doutrina, es-
tes eram os principais alimentos dos
cristãos da época de Cristo. (FIORE;
FONSECA, 2014).
82 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Ao contrário do hinduísmo, a religião judaico são marcados com o selo kosher (re-
muçulmana permite que seus seguidores presentado pela imagem a seguir) (NADA-
consumam produtos de origem animal, LINI, 2009; FIORE; FONSECA, 2014).
desde que sejam seguidas as regras cha-
madas Halal, para o abate e fabricação
destes produtos. Como proibição de con-
sumo nesta religião, há a carne de porco,
que é terminantemente proibida. Segundo

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Fiore e Fonseca (2014), esse povo acredita
que o porco é um animal impuro e fonte de
contaminação para o humano. Ainda sobre
os muçulmanos, há o R amadã , período de
30 dias de jejum sem interrupção, consi-
derado um tempo de profunda renovação
espiritual e sacrifício, em que, além de ab-
dicar-se das refeições, reservam o tempo
somente para orações (FIORE; FONSECA,
2014; NADALINI, 2009).
Outra religião em que a carne de porco A carne consumida pelos judeus
é proibida é o judaísmo. Além dessa deter- passa por um processo denominado
k osher antes de ser preparada e consu-
minação, os judeus também não consomem
mida. Nesse processo, o sangue do ani-
nenhum animal com sangue (o sangue do mal é totalmente retirado.
animal deve ser retirado antes de a carne
ser consumida), pois, biblicamente, o san-
gue é considerado vida. As regras de ali-
Para os judeus, o animal não deve so-
mentação dos judeus são prescritas por um
frer em seu abate, pois o sofrimento gera-
livro denominado K ashrut, e, além da carne
ria adrenalina, que, ao ser consumida pelo
de porco, outros alimentos proibidos são:
ser humano, traria mal-estar. Assim como
camarão, lagosta e a mistura de leite com
os mulçumanos, eles também têm um pe-
carne. Há mercados especializados em culi-
ríodo de jejum, que dura 25 horas, cha-
nária judaica, e os alimentos para consumo
mado de Y om K ippur (Dia do Perdão).
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 83

Para os budistas, a base da alimenta- se consolidarem, já era comum a oferenda


ção é o arroz e, assim como a religião dos de alimentos aos santos. Na Bahia, estado
hindus, eles adotam os princípios vegeta- brasileiro em que a religião do candom-
rianos. No entanto, essa crença permite o blé tem muitos adeptos, o acarajé, comida
consumo de algumas espécies de peixes. A tradicional baiana, só pode ser feito pelos
base alimentar do budismo utiliza diversos filhos de santo, pois há um significado es-
brotos, algas e soja, mas, como os mostei- piritual por trás de seu preparo, sendo a
ros budistas atraem muitos turistas, há ex- comida que representaria Iansã (orixá dos
ceções para o consumo de carne. O res- ventos, dos raios e tempestades).
peito e a higiene no preparo dos alimentos Agora que já falamos sobre os rituais
também fazem parte da cultura dessa reli- alimentícios mais comuns às religiões, ve-
gião, sendo que o ato de comer em pouca remos no próximo tópico como as crenças
quantidade demonstra respeito. alimentares interferem no consumo ali-
mentar dos indivíduos.

4.2.3 Crenças alimentares


consumo de alimentos se reflete
nas condições de saúde do indivíduo e, por-
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tanto, deve-se ter atenção em relação às


crenças e práticas populares de alimenta-
ção que as pessoas apresentam. Sobretudo,
deve haver respeito às crenças de cada indi-
víduo, por m, sem dei ar que interfiram de
modo negativo em seu bem-estar.
No candomblé, religião derivada da Segundo estudo de Silva, et al., (2007,
Á frica, há a ligação entre homem e deu- p. 256), em entrevista com moradores de
ses por meio de oferendas e sacrifícios de Goiânia, as crenças alimentares mais co-
animais. De acordo com Fiore e Fonseca muns dizem respeito ao poder de cura e
(2014), antes das religiões mais tradicio- prevenção de doenças dos alimentos, con-
nais (cristianismo, islamismo e judaísmo) forme os relatos a seguir:
84 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

[ ...] para pressão alta eu sempre dava para


ela, amassava assim, uns três dentinhos de 4.3 Intervenção mística na
alho, botava no sereno, aí dava para tomar de
manhã. Tinha outra folha também que eu fa- alimentação
zia o chazinho, aí ficava normal ... o alimen- As pessoas não realizam suas refei-
to que eu uso lá em casa é o doce da rapadura
ções somente para satisfazer necessidades
com a beterraba e a marmelada branca que é
biológicas, mas também para caracterizar,
para dar sangue [ ...] eu tive anemia profunda
[ ...] eu usei fígado, tomei sumo do espinafre,
de alguma forma, um conceito pessoal re-
o picão e a água de coco verde que substi- lacionado ao que se acredita, ao conceito
tui até o plasma [ ...] Minha comida mesmo social e à energia do universo, inserida no
é verdura. E assim mesmo eu compro e dei- contexto de mundo.
xo um tempo na água com vinagre e coloco
A alimentação pode refletir o mo-
na água benta e na hora de comer eu peço a
Deus para abençoar, tirar o que é ruim, por-
mento da vida de determinado indivíduo,
que tudo que nós vamos comer hoje está com seu estado de espírito e suas angústias. Os
veneno. Se eu compro uma banana, no outro banquetes alimentares estão relacionados
dia ela está preta, tudo está com química. a diversas situações: confraternizações,
jantares, comemorações, frustrações etc.
Pode-se notar com o texto acima que
O lado espiritual está diretamente re-
há variadas crenças alimentares ligadas
lacionado com o alimento, as religiões im-
com a cura e prevenção de doenças. Para
põem proibições com determinados signifi-
aqueles que acreditam no poder curativo
cados, mas sempre com um único objetivo:
dos alimentos, é comum a utilização de fo-
manter o equilíbrio do corpo e da alma. As
lhas, ervas e raízes que contribuíram para o
práticas envolvem festas dedicadas a deu-
alívio da dor e cura de doenças, sendo ob-
ses, permissões e proibições, consumo de
servada, em sua maioria, em pacientes in-
carnes ou vegetarianismo. Todos esses fa-
ternados em hospitais que oferecem tera-
tores interferem no dia a dia e no estado
pias integrativas (SILVA, et al., 2007).
de vida das pessoas (NADALINIA, 2009).
Veremos, a seguir, qual é a relação
No próximo subtópico falaremos so-
dos temas místicos com a alimentação.
bre a ligação da antropologia com a ali-
mentação.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 85

4.3.1 Antropologia e alimentação


Desde sua origem como ciência de mas tamb m para afirmar que vive em
observação, a antropologia teve amplo in- sociedade, pois o comer envolve seleção,
teresse na alimentação humana. O ato de escolha, ocasião e ritual. Segundo Canes-
alimentar-se é intimamente ligado à so- qui e Garcia (2005), para comer, os alimen-
brevivência, e nossas atitudes relaciona- tos precisam ser escolhidos e preparados, e
das a esse ato, geralmente, são aprendidas tudo isto está intimamente ligado à cultura
desde cedo, de acordo com as regras que de um povo.
regem nossa cultura. Veremos a seguir como alguns alimen-
Conforme afirma Mintz (2001), nos- tos podem ser tratados como algo sagrado.
sas escolhas alimentares são moldadas
pela nossa cultura. Não escolhemos um ali- 4.3.2 Alimentos sagrados
mento somente pelo seu valor nutricional,
A maioria das culturas tem alimentos
mas também pelo seu valor cultural. Es-
que são consumidos para nos manter em
ses hábitos alimentares podem até mudar
contato com deuses e espíritos, por outro
quando envelhecemos, porém, permanece
lado, há também a comida que pode nos
a memória dos primeiros aprendizados.
distanciar do divino. Os alimentos conside-
Os antropólogos se interessam pe- rados básicos são aqueles que precisamos
las crenças e costumes alimentares de um para sobreviver, e passam a ter um papel
povo, pelos aspectos religiosos que condi- de alimento sagrado.
cionam as escolhas alimentares, preferên-
Como exemplo, Fernándes-Armesto
cias e repulsas alimentares, rituais sagrados
(2004) cita o consumo de pão de trigo pe-
e profanos que acompanham a escolha ali-
los cristãos, pois é considerado que so-
mentar, simbolismo da comida, além de ou-
mente o pão de trigo serve para a refeição
tros aspectos (CANESQUI; GARCIA, 2005).
sacramental. Para os americanos, o milho
A antropologia reforça que o ser hu- também é considerado alimento sagrado,
mano não se alimenta somente para suprir visto que ele é tido como fundamental para
suas necessidades calóricas e de nutrientes, a sobrevivência deste povo.
86 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

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Apesar de as comidas mais apreciadas Pudemos compreender neste capítulo


serem consideradas sagradas e as comidas qual a relação dos tabus com as práticas
santificadas serem consumidas na maioria alimentares dos indivíduos e quais são os
das culturas conhecidas, não podemos tabus alimentares mais populares. Vimos,
acreditar que haverá o consumo de deter- também, a influência das religiões nas prá-
minado alimento se ele for julgado sa- ticas alimentares de seus adeptos, assim
grado. A exemplo disto temos os hindus, como as proibições e prática mais comuns.
que acham a vaca um animal sagrado e, Passamos pelas crenças e estudamos
portanto, não ingerem sua carne (FER- sua influência nas práticas alimentares dos
NÁ NDEZ-ARMESTO, 2004). indivíduos.
Vimos a relação de alimentos sagra-
dos e consumo e compreendemos que o
fato de um alimento ser sagrado, não signi-
fica que necessariamente será consumido,
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pois pode haver a opção de se preservar


o que é considerado sagrado. Em nossa
prática profissional, devemos sempre nos
atentar às questões ligadas à religião e a
alimentação dos indivíduos.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 87

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Capítulo 5
A gastronomia no tempo:
algumas referências

Durante o passar do tempo, a história presenciou diversos acontecimentos que marca-


ram a nossa formação cultural e, nessa perspectiva, a gastronômica. Alguns exemplos são
o rompimento da ostentação no Renascimento, a falta de boas maneiras na Idade Média,
as mudanças suscitadas com a Revolução Francesa, que libertou a gastronomia dos chefs
de cozinha para seus futuros restaurantes. A inserção de talheres, de boas maneiras ao se
portar à mesa e a acessibilidade dos serviços de alimentação para outras classes sociais
ocorreram após esses eventos, que estudaremos neste capítulo. De forma paralela, também
exploraremos a importância da gastronomia asiática, com ênfase na gastronomia japonesa,
que incorporou conceitos importantes para a gastronomia moderna, como o equilíbrio de
sabores e o uso de alimentos naturais, com fortes influências chinesas. Neste capítulo, estu-
daremos essa inter-relação dos temas propostos.
90 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

5.1 Gastronomia Italiana fragmentada no poder de vários senhores


feudais, em diferentes níveis, exercendo
Na história da gastronomia, devemos funções e direitos. Dessa forma, a socie-
atribuir destaque à Itália. Além ser o local dade era organizada em nobreza (susera-
onde os romanos e seu grande Império nos), aqueles que possuíam as terras; os
habitaram, foi pioneiro de um movimento servos (vassalos), os que prestavam seus
que modificou a forma de se portar ao serviços aos senhores feudais; e o clero,
mundo, dentro de todas as esferas da vida representantes da Igreja, os quais eram os
humana, incluindo a gastronomia. Este poucos alfabetizados na época.
período foi chamado de Renascimento.
A Idade Média foi caracterizada por
possuir uma sociedade predominante-
5.1.1 A Renascença e Catarina de Médici mente agrária, isolada nos feudos. Os ban-
O Renascimento, ou Renascença, quetes medievais apresentavam ostenta-
como também é chamado, foi o período ção de comida, excesso de temperos (mui-
que marcou o fim da Idade Média, por tas vezes, sobrepondo-se ao sabor dos
volta do século XIV. A Idade Média foi bas- alimentos), ausência do uso de talheres
tante marcada pela presença do Feuda- e de preocupações com a higiene e boas
lismo, que era um sistema marcado pela maneiras à mesa. Com o passar dos anos,
autarquia das unidades rurais, com pouco o início das atividades comerciais fez com
intercâmbio comercial e desaparecimento que as cidades se desenvolvessem, com
quase completo da moeda. novas profissões e outras oportunidades
de habitação fora dos feudos, o que modi-
Nesse modo de organização, os
ficou a estrutura básica da sociedade.
servos encontravam-se presos à terra e
à pessoa de um senhor. Esses vassalos Por volta do século XIV, os produtos
deviam prestações em trabalho ou espé- de luxo circulavam cada vez mais e o estilo
cie e, em troca, recebiam o mínimo para de vida da sociedade, por consequência,
sobrevivência, como alimentos e prote- se remodelou. Assim surgiu o Renasci-
ção. Muitas vezes, o mesmo senhor devia mento, movimento conhecido como uma
prestações a um outro senhor, numa espé- renovação cultural frente às tradições do
cie de hierarquia entre donos de terra. feudalismo, com novas visões políticas,
Assim, a noção de Estado era dissolvida, filosóficas, sociais, científicas e, também,
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 91

alimentares. O Renascimento começou a mercadores italianos se aproveitaram da


se difundir na Itália, e trouxe a retomada posição geogr fica privilegiada da t lia e
dos interesses humanísticos em contrapar- viajavam regularmente à península Ibérica,
tida à Idade Média, que colocava Deus e ao Império Bizantino, à antiga região de
os aspectos religiosos em primeiro plano. Flandres (atual Bélgica) e ao Oriente Médio,
Cientistas e gênios artísticos, como Leo- aumentando a variedade de produtos e
nardo da Vinci, Michelangelo, Nicolau costumes. Como consequência, as ideias
Copérnico, Nicolau Maquiavel e Galileu renascentistas na gastronomia surgiram:
Galilei são nomes que se tornaram conheci- desprezo às ostentações exageradas nos
dos nesta época. Além disso, a Itália incor- banquetes, valorização à qualidade dos ali-
porou influências bizantinas, que continua- mentos servidos e a concepção de hábitos
ram a se utilizar dos preceitos greco-roma- mais refinados mesa , .
nos clássicos. O Renascimento representou a reto-
mada dos banquetes da Antiguidade Clás-
Dia do Julgamento Final, pintado por sica. Muitos dos textos que estavam rela-
Michelangelo, no Renascimento cionados à culinária e que descreviam as
refeições foram recuperados, o que faci-
litou o processo. Essa releitura de textos
clássicos influenciou diretamente a gas-
tronomia, até então fortemente marcada
pelos costumes feudais, tornando-a mais
eclética. É válido lembrar que a alimenta-
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ção da Idade Média, conhecida como bas-


tante condimentada e aromatizada, não
deixou de existir: a inserção de uma nova
visão trazida pelo Renascimento coexistiu
Comparada ao restante da Europa, a unto mais antiga T , .
Itália desenvolveu seus aspectos urbanos A influência da Itália sobre a França
e econômicos mais rapidamente. O foco contribuiu para a expansão deste movi-
era voltado para as cidades e não às áreas mento. Catarina de Médici, até então noiva
rurais, como no Feudalismo. Banqueiros e de Henrique II, ao viajar para o território
92 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

francês, contava com uma comitiva de ser- suas dependências. O conceito de separar
viçais e amigos italianos, dentre eles cozi- doces e salgados também foi atribuído a
nheiros e cozinheiras que haviam traba- ela, da mesma forma que a introdução do
lhado para os Médici. Catarina morou na uso de outros talheres à mesa, como facas e
França por cinco décadas e se tornou uma colheres , .
das rainhas mais poderosas do país. Exis- A influência da Renascença e de Cata-
tem algumas controvérsias a respeito de rina de Médici na gastronomia foram con-
sua influência na gastronomia francesa por sideradas de extrema importância para
conta da carência de registros contemporâ- a maneira como a alimentação era enca-
neos , . rada. O surgimento da imprensa facilitou
Por outro lado, evidências compro- a transcrição e divulgação de informações
vam os feitos de Catarina, como a implan- gastronômicas, fazendo com que os trata-
tação de seus costumes e utensílios vindos dos culinários fossem registrados e leva-
da t lia. la ficou conhecida por promover dos a mais lugares. A difusão de informa-
banquetes magníficos. s florentinos que ções e as trocas culturais continuaram a se
vieram com Catarina auxiliaram na inserção consolidar, cada vez mais, fortaleceram o
de diversos produtos, como vegetais (alca- fechamento da Idade Média e a abertura
chofras, feijões, bróco- para uma nova idade histórica e gastronô-
lis, ervilhas e tomates, mica: a Idade Moderna.
visto que as grandes
navegações já haviam 5.1.2 Pós-Renascença: rupturas
iniciado), sorbets, sor-
vetes, compotas de da gastronomia medieval para a
frutas e tortas. Além
dos produtos, Cata-
modernidade
rina foi responsável A Renascença trouxe inúmeras
mudanças que impulsionaram a quebra dos
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por insistir para que


as mulheres frequen- padrões medievais até então seguidos por
tassem os banquetes grande parte da sociedade. Trouxe sofisti-
das cortes ao invés de cação à mesa, principalmente da nobreza.
ficarem confinadas em De acordo com a literatura da época, a
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 93

inserção de ingredientes, surgimento de No século XV, podemos observar um


cozinheiros e de novos costumes passou a acontecimento histórico decisivo para a
ser cada vez maior. evolução gastronômica: as grandes nave-
Diversos marcos na gastronomia gações. Por meio dessas explorações, ini-
podem ser atribuídos à época do Renas- cialmente protagonizadas por portugue-
cimento, como o requinte nas refeições. ses e espanhóis, foi possível o intercâmbio
Entre eles, os utensílios de serviços utili- cultural de produtos nunca antes utilizados
zados, como aparelhos de antar refina- na Europa. Foram os primeiros passos para
dos, feitos de ouro e pedras preciosas (por a globalização alimentar que, já no fim
influência bizantina a modificação da do Renascimento, foi representada pela
quantidade e qualidade dos pratos servi- inserção de produtos levados pelos italia-
dos; e as regras de comportamento à mesa nos à França (como leguminosas e vege-
(como: não limpar a boca na toalha e sim no tais), além de proporcionar o comércio, na
guardanapo, lavar as mãos antes de comer Europa, de produtos trazidos pelos nave-
e não lamber os dedos . nfim, o enasci- gantes, com a descoberta das terras ame-
mento caracterizou-se como um período de ricanas e territórios africanos: milho, man-
mudança de hábitos e comportamentos à dioca, batatas, tomate, café, chocolate,
mesa , . peru e cacau.
Nesse período, o interesse dos textos
da Antiguidade Clássica permitiu o desen-
A criação do guardanapo é atri-
volvimento de mais fazendas leiteiras e a
buída ao famoso Leonardo Da Vinci consequente produção de queijos, tanto
- . le foi considerado um na França como na Itália, inserindo esse
grande pintor, inventor, cientista e importante produto em suas culinárias
gourmet vegetariano, que alcançou
- T, .
o mérito de fazer com que os nobres
melhorassem seus hábitos higiênicos
, .
94 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Comparativo entre os hábitos gastronômicos da Idade Média e do Renascimento


I dade M édia Renascimento
Valorizavam a ostentação e a abundância de pra- Desprezo à ostentação e valorização ao equilíbrio e
tos, ingredientes e especiarias qualidade dos ingredientes
Consumo de alimentos com as mãos Utilização de talheres
Faziam as refeições sobre pães, que posterior-
Uso de pratos e de toalhas brancas na mesa
mente eram dados aos pobres
Falta de higiene e boas maneiras, e frequência de Maior preocupação com a higiene, uso de guarda-
maus hábitos à mesa napos e regras à mesa
onte , .

As especiarias e temperos começaram as civilizações impulsionaram o desenvol-


a ser utilizados com parcimônia, de modo vimento de suas gastronomias, resultando
a valorizar o sabor dos alimentos ao invés na implantação e valorização das tradições
de disfarçá-los. O açúcar, considerado pro- locais, o que podemos chamar de evolução
duto de luxo em séculos anteriores, passou das cozinhas regionais.
a ser mais utilizado que o mel na gastrono-
mia, principalmente a partir do século XV, 5.1.3 As cozinhas regionais
quando as plantações sicilianas se desen-
Com o passar dos anos, as diferenças
volveram (e que posteriormente também
entre as gastronomias dos países europeus
se desenvolveriam nas ilhas atlânticas).
começaram a se acentuar cada vez mais. Era
Esta novidade foi notada com bas- a vez da valorização de suas tradições nacio-
tante intensidade em todos os países, nais. As diferenças chegaram a ser profun-
como o desenvolvimento do gosto por das, alguns preferiam manteiga, outros,
um consumo maior de alimentos de ori- azeite como opção de gordura; alguns con-
gem vegetal, laticínios e carnes frescas. sumiam açúcar em quase todos os pratos,
Muitas das transformações nos hábitos enquanto outros apenas nas sobremesas.
alimentares, como o uso de utensílios, Assim, as mudanças trouxeram certas sepa-
mudanças nos horários das refeições e rações. Mas, ao mesmo tempo, auxiliaram
inserção de outros insumos começaram na na gastronomia de identidade própria, que,
França, para, logo em seguida, atingirem posteriormente, voltaria a intensificar o
o restante da Europa. A partir de então, intercâmbio cultural.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 95

Um perfil de preferências começou manteiga e cereais na base de sua alimen-


a ser delimitado em regiões geográficas tação. O risoto, apreciado desde o Renas-
diferentes. Países da costa do Mediterrâ- cimento, e a polenta à a base do milho
neo, por exemplo, optavam pelo uso do americano, trazido pelos navegantes,
azeite, do trigo e de laticínios derivados são bastante apreciados. Isso não evitou,
de ovelha e cabra, além do vinho. Ao norte entretanto, as semelhanças com países
da Europa, na chamada região nórdica, vizinhos. A França, que da mesma forma
era comum a utilização de manteiga, bem possui diversas regiões gastronômicas deli-
como o consumo de alimentos como casta- mitadas, serve de exemplo. A Alsácia, com
nhas, maçãs e cerveja. Mesmo com as con- sua gastronomia francesa local, possui
quistas de territórios do “Novo Mundo”, os mais produtos semelhantes com a Alema-
países começaram a solidificar seus valores nha e a Suíça que a região francesa Aqui-
regionais , . tânia, que possui mais semelhanças com a
A regionalização das cozinhas se esta- spanha , .
beleceu entre países diferentes e dentro De forma objetiva, podemos explicar
dos próprios territórios nacionais. A Itália, que as cozinhas regionais são representa-
por exemplo, é considerada uma cozinha das pelos pratos definidos como identifica-
de regiões. Antes da unificação do país dores de uma região; pelos modos de fazer,
atual que conhecemos, a Itália era formada de usar a cozinha e seus utensílios, e pela
por diversos estados independentes que
possuíam relações hostis, compartilhando
poucas tradições culturais, dentre as quais
nem mesmo a linguagem era unificada.
Assim como na Itália, os outros paí-
ses da Europa, ao se voltarem para suas
próprias tradições culturais e alimentares,
se utilizaram de recursos locais e natu-
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rais disponíveis para tipos específicos


de alimentos. Na Itália, por exemplo, as
regiões montanhosas (na região norte) são
caracterizadas como leiteiras, utilizando
96 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

forma de consumo dos alimentos, isto é, de tradições que compõem as regiões, ou


por todos os aspectos que caracterizam uma identidade regional. A comida típica
uma sociedade específica: uma região. Pre- de um local representa experiências vivi-
cisamos também lembrar dos processos das, representa o passado e relaciona
anteriores, dos antecessores dessa cozi- esse tempo que já passou com o presente.
nha, que foram importantes, entrando na Essas memórias fazem parte da cultura
dinâmica histórico-cultural para a constru- de uma sociedade, logo, de um patrimô-
ção dessa identidade , . nio, que pode ser definido como o que um
grupo considera como próprio e específico,
Com a globalização, as cozinhas típi-
como algo que o identifica e o destaca dos
cas regionais revelam outros aspectos que demais , .
levam à reflexão em relação às fronteiras
Dessa forma, com a regionalização
dessas identidades e como estas podem
dos costumes e as tradições gastronômi-
se utilizadas do ponto de vista patrimo-
cas unidas aos intercâmbios culturais e aos
nial. A sobrevivência da culinária regional
novos produtos inseridos pelas navegações,
depende da adequação aos padrões que
a Idade Moderna consolidou o desenvolvi-
são impostos. A discussão sobre as cozi-
mento de novas cozinhas, como foi o caso da
nhas regionais ganhou mais espaço frente
gastronomia Francesa, que passou a ganhar
à homogeneização instaurada pela globa-
cada vez mais destaque nessa época.
lização. Como resultado, a valorização do
regional gerou um movimento de busca
pela qualidade de vida, com o consumo 5.2 Gastronomia francesa
de alimentos mais saudáveis e tidos como Após o boom causado pelo Renasci-
mais autênticos. Estabelecimentos ligados mento na sociedade europeia, iniciou-se
à cozinha regional ou que reinterpretam uma nova era: o apogeu da gastronomia
sua proposta são cada vez mais encontra- francesa, que se deu a partir do final do
dos nos centros urbanos (BAHL; GIMENES; século XVIII, seguido do século XIX e con-
T , . solidando-se como grande referência no
Uma das muitas formas de se com- início do século XX. Os reis e nobres do
preender a dinâmica das sociedades é por período incentivavam o trabalho de seus
meio do alimento e da gastronomia. Estes chefs de cozinha. Este espaço deixa de
transmitem a valorização e o consumo ser limitado a apenas produzir alimentos
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 97

e torna-se um local de experimentações sociedade. A falta de atenção dada à popu-


de novas ideias. O comércio, em cons- lação mais pobre, que sofria com os proble-
tante expansão, fez com que o acúmulo de mas econômicos e de abastecimento, con-
riquezas o aumentasse e criasse uma nova tribuiu para a instabilidade na monarquia
classe social: a burguesia. Com a Revolução T , .
Francesa, vemos as mudanças ocorridas na O dito Terceiro Estado, principal-
França e uma nova realidade se desdobrar, mente a burguesia, foram os principais res-
com a saída dos cozinheiros dos castelos ponsáveis pelo início da Revolução Fran-
para as cidades. Eles abrem restaurantes e cesa, pois eram contra o abuso e a soberba
revolucionam a gastronomia. dos monarcas ociosos da época. Inspirados
pelas ideias iluministas do racionalismo e
5.2.1 Revolução Francesa e os padrões da liberdade, puseram fim a uma realidade
hipócrita e injusta. As extravagâncias dos
burgueses soberanos influenciaram diretamente as
O Antigo Regime da França, anterior atitudes dos revoltosos : aos burgueses,
à Revolução Francesa (fim do século XVIII), que desejavam o acesso às regalias limita-
era marcado por uma sociedade organi- das apenas à nobreza (como festas e ban-
zada e dividida em classes: nobreza, clero quetes extravagantes), e aos pobres, que
e o terceiro estado, o qual incluía campo- passavam por situação de fome e escas-
neses, artesãos e burgueses. A monarquia sez (crise de abastecimento). Além disso,
era absoluta: tudo era do rei e este pres- a burguesia desejava sobretudo, poder ter
tava contas apenas a Deus; a lei advinha da uma atuação política mais efetiva – repre-
“vontade divina” e a justiça era executada sentatividade na Assembleia.
em seu nome pelo soberano.
a poca, por volta de , as pri-
Apesar do “direito divino”, que os reis meiras cafeterias já haviam surgido e eram
herdavam conforme as tradições, estes eram os principais locais frequentados por inte-
auxiliados por ministros e outros cargos que lectuais para discutirem seus ideais revo-
formavam o chamado conselho. A diversi- lucionários. Inserido em Paris, o café era
dade de interesses dos nobres da adminis- um estimulante do espírito de empreen-
tração do reino e toda a burocracia existente dimento que, mais tarde, inspiraria a bur-
geraram uma crise nas altas camadas da guesia. Ele possuía o papel cultural de
98 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

promotor da vigília e da atenção e símbolo esse modo, os plebeus, influencia-


da cultura racionalista da época, represen- dos pela burguesia, executaram um dos
tando a liberdade de pensamento, um dos grandes acontecimentos da Revolução
pilares da Revolução Francesa, a qual pre- Francesa, a Queda da Bastilha. Diversos
gava “liberdade, igualdade e fraternidade” presos políticos foram libertados e houve
, . o fim da monarquia na rança. segunda
fase da evolução rancesa ficou marcada
Devemos lembrar que a grande massa por diversos acontecimentos, dentre eles,
participou da Revolução Francesa. Porém, a morte do Rei Luís XVI e de sua esposa
o sentido ideológico a ela atribuído corres- Maria Antonieta. Foram adotadas medidas
pondia basicamente à burguesia. Os campo- favoráveis aos cidadãos mais pobres: parte
neses estavam bastante atingidos pela crise das grandes terras dos nobres decaden-
econômica, com limitações alimentares e tes foi distribuída, tabelaram-se os preços
foram facilmente convencidos a se estabele- do trigo e de produtos de primeira neces-
cerem contra os senhores da nobreza. sidade, ficando, assim, mais acessíveis s
camadas mais pobres. Apesar de Napoleão
A queda da Bastilha na Revolução Francesa contribuir de forma decisiva para a consoli-
dação dos interesses burgueses, houve um
retrocesso, como o envolvimento da França
em muitas guerras contra outros países.
Com a alta burguesia ganhando força,
ocorreram grandes corrupções, subornos e
nepotismos (AZEVEDO et al., .
Com o fim da monarquia, os cozinhei-
ros que habitavam os castelos se viram
obrigados a buscarem outras formas de
sobrevivência. Por conta das alterações
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sofridas pela sociedade, a Revolução Fran-


cesa serviu de forte motivação para os pri-
meiros restaurantes surgirem na França, o
que modificou a forma de preparar, servir e
executar as refeições na época.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 99

servidas em locais com pouca decora-


5.2.2 O surgimento e a consolidação ção. Os alimentos eram os mesmos que os
dos restaurantes donos do local comiam, assim como os pra-
tos e talheres utilizados , .
Podemos definir restaurante como
local em que, mediante pagamento, temos Os primeiros estabelecimentos com
acesso à refeição fora de casa. Essa con- proposta de servir refeições se diferem do
cepção teve origem na rança, em , chamado “restaurante moderno”, que sur-
por Boulanger, um dos mais conhecidos giu na França como consequência da Revo-
lução Francesa. Eram comuns as tabernas,
precursores de restaurantes. As primeiras
muitas vezes, situadas em subúrbios, que
feiras que comercializavam alimentos, pre-
serviam alimentos ao estilo popular (sim-
sentes tanto no Ocidente como no Oriente,
ples e sem muita elaboração), acompanha-
também tinham um fim semelhante: pagar
dos de uma convivência barulhenta e do
para se alimentar. consumo excessivo de álcool (FLANDRIN;
T , .
A Revolução Francesa foi um estímulo
O termo restaurant foi registrado para a abertura de restaurantes no país.
por Boulanger, conhecido por comercia- Desempregados com o fim da monarquia,
lizar sopas quentes chamadas de restau-
os chefs abriram seus estabelecimentos. O
rantes ou restauradoras. Uma das carac-
terísticas dos restaurantes modernos
requinte gastronômico, antes encontrado
é a limpeza, a tranquilidade, o espaço somente nas cozinhas da nobreza, agora
e a decoração, além da possibilidade estavam à disposição de quem pudesse
de escolha de pratos de forma pontual pagar. Nessa época, os chefs de cozinha
, . também estavam presentes em casas de
famílias da alta burguesia.
No começo, a França contava com É importante salientar que, segundo
tavernas e hospedarias, as quais ganharam ranco , a atribuição feminina ao
destaque na Idade Média até cerca de mea- profissional de cozinha possuía signifi-
dos do século XVIII. Primariamente, foram cado social. As famílias menos abastadas,
administradas pelos clérigos locais ao rece- que não eram ricas o bastante para pagar
berem peregrinos e viajantes e, posterior- o salário de um cozinheiro, contratavam
mente, foram gerenciadas por burgueses. mulheres (chamadas de cordon bleus) para
As refeições, sem muitas variedades, eram trabalhar em suas cozinhas.
100 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Surgimentos dos primeiros restaurantes na França


Abertura dos
I dade M édia: Revolução Francesa
Renascimento: primeiros
desenvolvimento e queda da
início da sofisticação restaurantes:
de pratos para a monarquia:
dos pratos e serviços menus mais curtos
nobreza pelos chefs chefs de cozinha
à nobreza. e serviços mais

© DTCOM
de cozinha. saem dos castelos.
práticos.

onte , .

Aos poucos, a boa mesa tornou-se tempo, as disparidades entre a alta gastro-
acessível a outras classes sociais. Os burgue- nomia e a gastronomia burguesa se dissipa-
ses da época se inspiravam nos costumes ram , .
da nobreza, mas também deixaram suas Outros livros da época podem ser
marcas na gastronomia. A acessibilidade elencados, como o Le Cuisinier Royal et
é uma delas, com a disposição de livros de Bourgois (O cozinheiro real e burguês),
receitas. Cuisinière Bougouise, publicado em publicado em por assialot. om for-
, por enon pseud nimo de um autor mato de dicionário, ilustrava e explicava
de identidade desconhecida), foi um exem- verbetes específicos da gastronomia. Além
plo inspirado em livros mais antigos e nos disso, propunha um modelo para a gastro-
banquetes reais, mas com menus mais cur- nomia francesa e estruturava receitas.
tos e mais simples ao inv s de servirem
Também importante, o Le Cuisinier
pratos, serviam . ssim, com o passar do
Moderne (O cozinheiro moderno), de Vicent
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de a hapelle, lançado em , possuía


três volumes, em inglês e francês. Nessa
obra, buscou-se acrescentar influências
estrangeiras à realidade da gastronomia
francesa, graças às experiências de La Cha-
pelle em Portugal, Alemanha e Holanda
, , .
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 101

Temos no restaurante, então, uma refeições. Havia a diferença entre os que


das instituições alimentares mais difundi- moravam na área urbana e rural. Quem
das no mundo, que teve como origem des- trabalhava no interior, acordava mais cedo
pretensiosa o comércio de alimentos de para o trabalho, tomava o café da manhã,
forma popular. Com o tempo e as modifi- jantava ao meio-dia e, ao escurecer, con-
cações que a sociedade passou, principal- sumia sopa com pão para dormir. Nas
mente as advindas da Revolução Francesa cidades, era diferente. Ao acordar, o cida-
– que resultou na saída dos chefs para tra- dão tomava o café da manhã (ou pequeno
balhar fora dos castelos, assim como no almoço como era chamado), que incluía
aumento da autonomia destes –,o desen- uma xícara de café, chá, leite ou chocolate
volvimento da gastronomia francesa e suas (herança das grandes navegações) e pão
características foram enriquecidas, a partir ou torrada. O almoço, ou segundo almoço,
do século XVIII. era constituído de entradas e embutidos,
carnes e sobremesas. O jantar foi a refei-
ção que mais possuiu variantes. Inicial-
5.2.3 Séculos XVIII a XX: característi- mente se realizava das h s h e, pos-
cas da gastronomia francesa teriormente, no século XIX, por volta das
h , .
Após a eclosão da Revolução Fran-
cesa e a abertura de diversos restauran- O alto nível de profissionalização
na cozinha era inegável. O valor do sabor
tes, a gastronomia francesa passava por
do alimento estava em evidência. As car-
um momento de evolução. Os grandes
nes eram assadas e servidas em seu pró-
chefs construíam suas carreiras baseadas
prio suco. A alta gastronomia da França
em suas descobertas gastronômicas, que
fundamentou os padrões a serem segui-
resultaram em um olhar mais cuidadoso
dos. As técnicas de preparo, a partir desse
ao preparo de alimentos. Os registros da
momento, se tornavam tão importantes
época demonstram o amadurecimento
quanto à qualidade da matéria-prima. O
dessa visão, ao se preocuparem com fun-
fogão a lenha e braseiros em carvão foram
ções na cozinha, combinações de temperos
substituídos por fogões de várias bocas de
e serviço oferecido no salão. ferro fundido, um novo equipamento que
Uma das mudanças na gastronomia permitia o controle de intensidade da brasa
francesa do século XVIII foi os horários das , .
102 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

específicos (facas de filetar, para descas-


car, entre outros). Toda essa revolução na
este período, diversos profis- chamada bateria de cozinha, foi conse-
sionais se destacaram no campo da gas- quência da evolução da alta cozinha euro-
tronomia. Podemos citar os famosos
peia , .
ntoine arême e uguste sco er,
ambos reconhecidos por contribuições
registradas em livros, como A arte da
cozinha francesa, do século XIX, e O guia
culinário, publicado em , respectiva-
mente T , .

A bateria de utensílios da cozinha foi


uma das principais mudanças observadas

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no século XVIII. A noção de se utilizar o
utensílio correto se formou. A alta gastro-
nomia pregava que cada técnica aplicada
para a preparação e cocção de um alimento
devia possuir um utensílio específico para Ao fim do século XVIII, o serviço e as
se trabalhar. O entusiasmo com as pane- formas de alimentação podiam ser dividi-
las de metal foi extremamente motivado dos em três segmentos:
e, com o ressurgimento da indústria de
cobre na Inglaterra, o custo de produção • restaurantes com o serviço à russa – pe-
diminuiu e a quantidade aumentou. Somou ças inteiras apresentadas primeiro e de-
a habilidade artesanal e a disposição de pois porcionadas e empratadas;
adequar o equipamento às exigências dos • serviço à francesa – pratos colocados no
chefs na cozinha, além de ser um material centro para que os convidados se servis-
de grande qualidade. sem em casas aristocráticas, muitas ve-
Um outro exemplo de incentivo ao zes, intercalados com o serviço à russa;
uso do metal foram as facas fabricadas • alimentação das pessoas mais humildes –
em aço carbono. A cutelaria se desenvol- basicamente não se alterou com o passar
veu também em uma série de produtos dos anos.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 103

or m, por volta de , a monar- A gastronomia francesa continuou a


quia retomou seu lugar, quando o Rei Luís evoluir. Depois de consolidada em restau-
XVIII assumiu o trono e reestabeleceu rantes, ganhou outras esferas de atuação:
alguns padrões, evidenciando o serviço à alguns restaurantes migraram para den-
francesa - T, . en- tro de hotéis, o que impulsionou a hos-
tro dessa evolução da gastronomia fran- pitalidade. Ao passo que ganhava novos
cesa, descobertas importantes também terrenos, a gastronomia continuou a reno-
foram notadas na época, como a fabri- var-se. Tanto que na d cada de , ins-
cação do açúcar a partir da beterraba, pirada pela gastronomia japonesa, surgiu
além da esterilização (graças ao trabalho um movimento chamado Nouvelle Cuisine,
de Nicolas Appert), que resultou em um criado por chefs franceses, dentre eles,
método de conservação duradouro. Paul Bocuse, Jean e Pierre Troigros, Michel
Com o passar do tempo, o luxo e a Gérard, Raymond Olivier e Roger Vergé.
estética perderam espaço para a técnica. Inspirado por Fernand Point (pre-
O espetáculo da apresentação deu lugar cursor da Nouvelle Cuisine), o chef Paul
ao sabor. A ordem dos pratos passa a ser Bocuse, que trabalhou no lendário res-
dos mais leves aos mais elaborados. Os taurante La Pyramide de Vienne (de pro-
assados, em sua maioria, se toram o cen- priedade de Point), é considerado um dos
tro das atenções (prato principal) das refei- maiores representantes do movimento. Ao
ções. Técnicas que incluem a umidade aos destacar-se na gastronomia, exportou-a
alimentos estão presentes em pratos que para outras cidades do mundo. Bocuse foi
antecedem ao principal. Fora da cozinha, considerado o papa da Nouvelle Cuisine
observamos a figura do maître d’hôtel, con- e formou chefs franceses e estrangeiros.
siderado um moderador dos movimentos Entre seus mandamentos estavam: respei-
dos comensais, desde a localização das tar o tempo de cozimento dos alimentos,
melhores mesas até o conhecimento dos usar produtos de boa qualidade, ser inven-
pratos de forma a sanar dúvidas de clien- tivo, utilizar molhos e preparações mais
tes. As técnicas de flambagem e trinchar leves e evitar procedimentos demorados,
passam a ser dominadas por pessoas que como marinadas, maturações e fermenta-
trabalham no salão , . ções - T, .
104 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

É importante frisar que a Nouvelle terra com a entrada do arroz. Este chegou
Cuisine representou uma renovação nas por migrações, que passaram pelo território
bases da gastronomia francesa. Incentivou coreano, e, seguiram para o japonês.
estudos e experiências que permitiram um A gastronomia japonesa é conhecida
uso diferente de ingredientes e técnicas pelo uso de poucos insumos em sua cozi-
francesas, com a inspiração do frescor e nha, sendo compensada pelos inúmeros
pureza da gastronomia japonesa.
métodos de cocção. Tem como uma de
suas principais características o uso de ali-
5.3 Gastronomia japonesa e a mentos frescos e, caso precisem conservar
por mais tempo, preferem a desidratação
cozinha oriental ao congelamento. Dessa forma, dão prefe-
A gastronomia japonesa é uma das rência aos produtos de cada estação, pois
principais representantes da gastronomia acreditam que o congelamento compro-
asiática, mas conta com suas peculiaridades. mete a textura e o sabor final dos alimen-
Como nos outros países, há a presença do tos. Como o país possui baixo percentual
arroz, motivada pelas ex tensas plantaçõ es de seu território arável, os japoneses consi-
no continente. Porém, consegue se diferen- deram de bom tom nunca deixar alimentos
ciar ao valorizar o sabor natural e orgânico, no prato – os restos não comestíveis são
utilizando temperos de forma equilibrada e organizados antes de serem descartados
poucos alimentos processados. , .
Historicamente, o Japão absorveu
5.3.1 A cozinha japonesa e suas bases diversos aspectos de outras cozinhas,
principalmente da chinesa. A inserção do
conceituais budismo, uma das representativas heran-
O Japão possui a história de sua gas- ças chinesas, interferiu em diversos hábi-
tronomia fundamentada na inserção do tos alimentares, bem como em restrições,
arroz em sua cultura. É a base da alimenta- como o não consumo de carnes de boi,
ção e também é utilizado para fabricação de cavalos, cães, macacos e galinhas – lei
papel, saquê (vinho) e ração para animais. A imposta pelo imperador Temmu d. ,
civilização japonesa, anteriormente nôma- quem a desobedecesse era digno de pena
des vindos do norte da sia, fi ou-se na de morte.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 105

budismo influenciou não apenas a tecnologia. Um dos marcos dessa época é


aversão à carne vermelha, mas também o retorno do consumo de carne, ainda que
popularizou o consumo do chá e reforçou o de maneira mais moderada que o de peixe
apreço aos vegetais. Além disso, a gastro- , .
nomia japonesa apresenta pratos com ali-
mentos cortados em tamanhos suficientes Principais características da
para serem pegos com o hashi (talheres de
bambu e para caberem na boca , .
gastronomia japonesa

Pouco uso
de temperos
Peixes como e alimentos
© Ostancov Vladislav / / Shutterstock

principal fonte de processados


proteína (influência (valorização do
budista) sabor natural
dos alimentos)

© DTCOM
Vegetais e
Alto senso produtos
Por volta do século XVI, o Japão rece- estético derivados de
soja (shoyu,
beu diversos visitantes de outros países,
tofu e missô)
como os portugueses, que vieram com
produtos diferentes, inclusive da América.
Após um tempo e diversas tentativas de
onte , .
interferência europeia nos assuntos polí-
ticos e religiosos do país, os japoneses os Entre os principais ingredientes japo-
expulsaram. Iniciou-se um período de iso- neses estão os vegetais, as frutas, as car-
lamento que permitiu o desenvolvimento nes vermelhas (após o século IX d. C) e os
de costumes alimentares sem influências peixes, além da presença marcante da soja.
externas até meados do século XIX. Ao Esta é considerada um produto de impor-
voltar para o contato com o mundo exte- tância no Japão por conta de seus deriva-
rior e com o passar do tempo, o Japão assi- dos, como o shoyu (molho de soja), o tofu
milou os costumes do Ocidente em todas (leite de soja coagulado/queijo) e o missô
as áreas, inclusive gastronomia, ciência e (pasta fermentada).
106 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

O shoyu é um dos principais tempe- que ocorreu na França. Essa reação da


ros utilizados, juntamente com o saquê alta cozinha aos novos tempos consis-
(vinho de arroz), o gengibre e as sementes tiu na busca dos principais chefs da época
de gergelim. O peixe bonito (uma espécie d cada de , como aul ocuse, pela
de atum) é chamado de katsuoboshi, que, cozinha japonesa.
quando desidratado e esfarelado, é utili-
zado no preparo e na finalização de diver-
sos pratos. Também é muito utilizado o
Paul Bocuse foi um dos principais
dashi, feito a partir de caldo de peixe seco
difusores da Nouvelle Cuisine, além de
e algas secas , . propagar a gastronomia francesa de
Observamos o consumo de alimentos forma mundial. Difundiu seu trabalho
abrindo restaurantes nos EUA e Japão,
na forma grelhada, frita e principalmente
além de ter publicado livros e fundado
crua, como exemplo o sashimi, lâminas um Instituto o qual dava aulas (FREIXA;
de peixe ou frutos do mar. A gastrono- , .
mia do Japão é considerada vasta e mini-
malista, com pratos únicos (como macar-
rão e sopas), condimentos moderados e A Nouvelle Cuisine foi um movimento
doces em algumas ocasiões. Ainda que de propagado na França que pregava funda-
maneira simples, a cozinha japonesa conti- mentos baseados na gastronomia japo-
nua a se expandir pelo mundo. nesa, como a utilização de produtos fres-
cos e o uso de técnicas mais simples de
Além de prezar pelo equilíbrio dos
preparação. Tinha como preceito evitar o
métodos de cocção, a gastronomia japo-
uso desmedido e extravagante de tempe-
nesa valoriza outros aspectos, como a
ros e especiarias para evidenciar o sabor
decoração, observada pelo uso de orna-
dos alimentos. Assim, a gastronomia japo-
mentos florais e nos tipos de tigelas uti-
nesa influenciou na evolução de outras
lizadas na apresentação dos pratos – que
gastronomias, como a francesa, ao preco-
são cuidadosamente escolhidas conforme
nizar princípios mais simples e relacionar a
cores e tamanhos. Por meio do intercâm-
alimentação ao bom gosto e à promoção e
bio, o Japão foi uma grande inspiração para
manutenção da saúde.
o desenvolvimento da N ouvelle Cuisine,
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 107

A dieta do japonês é baseada em c a r-


5.3.2 A relação comida e saúde na boidratos, vegetais, frutas e proteínas deri-
cozinha oriental vadas de peixes frescos; ao contrário do
consumo de laticínios, carnes e gorduras,
A mesa japonesa é bastante dife-
comuns no Ocidente. O hábito alimentar
rente da ocidental. No Japão, uma refei-
dos japoneses possui uma reputação forte,
ção básica consiste em um prato de arroz,
pois os mantém com aparência jovem,
sopa, proteínas (quase sempre peixe),
além de influenciar em maior expectativa
vegetais e saquê. O Japão desenvolveu
de vida quando comparada a de outros paí-
uma culinária simples, porém bastante
ses. Com as combinações de sabores mais
sofisticada e fundamentada no equilíbrio.
leves e com o estilo de dieta saudável, os
Por enfatizar o natural, a filosofia japo- japoneses acreditam que o ato de se ali-
nesa luta para reter o sabor primário dos mentar é semelhante ao de se medicar: a
alimentos, com o mínimo de condimentos comida deve promover saúde, ou seja, pre-
e processamentos. A sazonalidade permite venir doenças , .
o preparo de uma refeição que prioriza o
Dar importância à sazonalidade, à
uso de alimentos frescos, de forma a ajudar
qualidade e ao frescor dos alimentos tam-
o corpo dos japoneses a adaptarem a tem-
bém contribui para dar o título de gastro-
peratura corporal às mudanças de estação
nomia saudável à cozinha japonesa. A lon-
, .
gevidade de quem consome essa dieta
Como exemplo desses alimentos, ocorre pela absorção de nutrientes bené-
podemos citar o rabanete e o nabo, dois ficos presentes em alimentos, como o sal-
vegetais do inverno que crescem embaixo mão, que conta com mega o gengibre,
da terra e armazenam carboidratos e vita- este com ação termogênica e anti-infla-
minas, considerados essenciais para a esta- matória; a soja, a qual auxilia à redução de
ção. Assim, quando se está mais frio, esses colesterol; a fibra das algas e o chá verde,
vegetais, utilizados em ensopados ou algum que ajudam no bom funcionamento do
outro prato, aquecem o corpo. Ao contrário, intestino; e o cogumelo, responsável pela
a abóbora d’ água, típica do verão, auxilia no melhora da imunidade. Além desses, pode-
processo de eliminação do calor do corpo, mos acrescentar o wasabi, com seu sabor
sendo base de um caldo refrescante que picante, que é rico em sais minerais e vita-
acalma o est mago TT , . mina , .
108 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

5.3.3 A cozinha chinesa

© Sompong K antotong / / Shutterstock


A China possui uma das gastronomias
mais conhecidas e tradicionais do mundo.
Tem como característica a homogenei-
dade, unindo diversos tipos de insumos em
um mesmo prato, como carnes e vegetais,
com texturas diferentes. Pode associar a
extravagância dos palácios dos impera-
dores e a simplicidade dos preparos mais
populares. Com o desenvolvimento da agri-
cultura, a partir do século II a. C., a China
reuniu diversos ingredientes, sobretudo
de origem vegetal, como soja, arroz, trigo,
amendoins e frutas cítricas , .
O país possui regiões geográficas
diferenciadas, dos campos de arroz, na
região sudeste; desertos ao noroeste; a
campos de trigo ao nordeste. Na questão
cultural, há pontos em comum. Podemos
Apesar de existirem exageros no con- citar o conceito de yin (princípio feminino,
sumo de preparações que possam inter- frio, noite, Lua e absorção) e yang (princí-
ferir na saúde do consumidor, como o uso pio masculino, quente, dia, Sol, luz e ativi-
desmedido de molho shoyu (rico em sódio), dade) da filosofia taoísta, a qual prega o
as versões fritas dos sushis e a incorpo- equilíbrio dessas forças opostas entre si.
ração de ingredientes não típicos dessa Desse modo, observamos na gastronomia
culinária (como o cream cheese), tanto pratos que combinam sabores amargos
no Japão como em outros países, a gas- e azedos, doces e salgados, molhos for-
tronomia japonesa, ainda é considerada tes com fundos neutros. Assim, com suas
uma das mais saudáveis do mundo. Ela é semelhanças filosóficas e diferenças geo-
reconhecida mundialmente como uma das gráficas, a China pode dividir sua gastrono-
mais importantes da Á sia, inspirada na mia em quatro regiões: norte, sul, oriental
cozinha milenar clássica chinesa. e ocidental , .
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 109

de alimentos, favoreceram o surgimento de


cozinhas regionais. A cozinha do norte pos-
ara a filosofia taoística, preciso sui a presença do trigo, carneiro e cordeiro,
viver conforme o ciclo das estações para milho e soja; a do sul é simples e suculenta,
garantir harmonia com as forças que
com arroz, peixes de água doce e azeito-
regem o universo, assim como para se
obter saúde e longevidade. Logo, a ali- nas; a oriental conta simultaneamente com
mentação precisa ser baseada no ciclo trigo e arroz; a ocidental possui pratos bas-
sazonal , . tante condimentados, com sabores opostos
e muito leo , .

A cozinha chinesa se pauta em princí-


pios que refletem a estética e as caracte-
rísticas organolépticas (sensoriais: sabor,
odor, textura e cor) de seu povo. Também
é influenciada pelos elementos cultu-
rais, como o recebimento de convidados
à mesa, a forma de se portar e as filoso-
fias do país (taoísmo, confucionismo e
© hlphoto / / Shutterstock

budismo). Os peixes, tanto de água doce


quanto de salgada, são as principais fon-
tes de proteína consumidas, sejam frescos
ou secos e salgados. Os temperos mais uti-
lizados são o sal, o molho de soja, o vina- As refeições familiares são valoriza-
gre e o gengibre. Nos banquetes que os das e todas as iguarias costumam estar dis-
soberanos ofereciam, não havia a presença postas no centro da mesa em uma bandeja
do arroz (alimento básico) , o que demons- , . l m disso, os chine-
trava o capricho do anfitrião com a varie- ses valorizam bastante sua gastronomia
dade de pratos , . nacional. Eles promovem diversos banque-
A extensão territorial da China, bem tes e festas particulares. Possuem grande
como sua diversidade geogr fica e de pro- variedade de matérias-primas, sendo
dutos e a falta de meios para conservação que ingredientes específicos possuem
110 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

significados particulares: amendoins e cas- O continente asiático possui ingre-


tanhas trazem sorte na noite de núpcias, dientes considerados comuns aos vários
talharins representam longevidade e apa- países, que, com suas culturas e peculiari-
recem em aniversários. Na China, a alimen- dades gastronômicas, nos oferecem uma
tação é rodeada de tradições que são prati- variedade de técnicas de preparações.
cadas e levadas a sério pela população. Não podemos negar que a cultura mais
Podemos observar que o amor dos importante da Á sia é o arroz. Presente
chineses pela comida transcendeu e aper- em basicamente todos os países, é sím-
feiçoou-se com o passar dos milênios. A bolo de abundância e coisas boas para a
gastronomia chinesa se moldou em deta- vida. Outros ingredientes encontrados são
lhes e técnicas minuciosas e, juntamente derivados de uma mesma matéria-prima:
com a indiana, serviu de base e inspiração a soja. Ela está presente na forma de missô
para as outras cozinhas asiáticas. Estas, (pasta), tofu (queijo) e shoyu (molho) e de
com as trocas culturais potencializadas outras formas de fermentação e proces-
pela globalização, ganharam reconheci- samento. Os peixes também estão forte-
mento em todo o mundo. mente presentes, graças à imensa costa
disponível. Estão basicamente em toda a
5.3.4 As cozinhas asiáticas mais gastronomia asiática, consumido de forma
fresca, como no sashimi japonês, ou fer-
populares no ocidente mentados, no caso de molhos vietnamitas.
A gastronomia asiática se desenvol-
veu com alguns intercâmbios culturais de
países da Europa e América, mas foi reco-
nhecida por ter uma boa evolução interna.
Alimentos externos foram adotados,
porém utilizados de maneira característica
por cada um dos países da Á sia. Esta cozi-
nha possui frescor, diversidade de cores e
sabores intensos. Dá ênfase aos cereais e
hutterstoc
legumes, com insumos acessíveis e saudá-
veis, que resultam em pratos de preparo
nutcd

r pido e simples , .
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 111

A interação entre essas cozinhas foi Tão tradicional quanto à China, a


motivo suficiente para a globalização difun- Í ndia também possui suas peculiarida-
di-las em outros países. Dentre as gas- des, como a religião hinduísta, a qual tem
tronomias mais procuradas no Ocidente, a vaca como animal sagrado, e conta com
podemos destacar as chinesa, japonesa, outros tabus, ainda que consuma os deri-
tailandesa, vietnamita, indiana e coreana. vados do animal – como manteiga ghee,
No mundo ocidental, está em alta os sabo- panir (queijo coalhado) e laban (coalhada
res simples e naturais, o que é vantajoso seca). O vegetarianismo, apesar de não
para a divulgação e apreciação da gastro- ser unânime, é predominante. As masalas,
nomia japonesa, por proporcionar o con- misturas de especiarias, estão presentes
sumo de ingredientes frescos, como vege- na mesa de quase todos os indianos, assim
tais e peixes. Apesar de seu minimalismo como os chutneys, condimentos espessos
e refinamento, com o apelo de cozinha agridoces ou picantes , .
saudável, a gastronomia japonesa come- A cozinha tailandesa é conhecida por
çou a ser apreciada de forma mais recente, ser exótica a muitos paladares, mas extre-
quando comparada com outras cozinhas mamente simples ao conhecer alguns prin-
ocidentais e asi ticas , . cípios. Pelo clima tropical, o país possui
A gastronomia chinesa, considerada facilidade de estar abastecido de legumes,
a principal influenciadora da maioria das hortaliças e frutas. A gastronomia tem
civilizações vizinhas, é considerada uma heranças chinesas, entre elas a adapta-
das mais antigas. Também é criadora da ção do cozimento a vapor para uma forma
maioria dos métodos de cocção utilizados mais simples; e indianas, com o uso de
na Á sia. Esta cozinha utiliza com harmo- pastas de curry misturadas a ervas frescas
nia o sabor, a textura e as cores dos ingre- e temperos moídos juntos a ingredientes
dientes, que são extremamente varia- como pimentas, tamarindo, gengibre e
dos. O principal corte utilizado é o fatiado, leite de coco. Os tailandeses são amantes
que acompanha as fibras naturais dos ali- da variedade de pratos, e sua cozinha
mentos. A soja, além de derivar diversos é conhecida pelas experimentações e
subprodutos, ocupa lugar de principal for- improvisos T , .
necedora de proteínas de origem vegetal
T , .
112 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Com a globalização e a facilidade de acesso a informações: observamos essas influên-


cias culturais da Á sia nos restaurantes espalhados em diversos locais do mundo, seja pelo
conceito dos cardápios oferecidos, pelas propostas de decoração ou pelo serviço que é exe-
cutado. A globalização permitiu a divulgação de técnicas que acompanharam a evolução
gastronômica. O processo de preparação e execução do que se come e como se come desde
o período da Antiguidade até os dias atuais extrapolou o simples ato de saciar a fome bio-
lógica. Dessa maneira, a comensalidade permitiu o compartilhamento de experiências em
frente a uma mesa, o desenvolvimento de regras de comportamento e o esmero dos chefs
ao elaborarem a produção dos pratos, das técnicas de cocção e tempero ao ato de servir.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 113

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Capítulo 6
Gastronomia e a literatura gastronômica

A literatura gastronômica começou antes mesmo da invenção da imprensa. Os textos


antigos, muitas vezes escritos em paredes, permitiam o conhecimento de civilizações ante-
riores. Com a crescente importância dada ao papel dos cozinheiros, estes registravam seus
achados. A partir dos primeiros livros de receitas, foram acrescidas outras instruções, como
execução dos serviços, combinação de sabores e críticas. Junto à literatura, outras áreas im-
portantes à gastronômica também evoluíram. As atividades hoteleiras, como consequência
do desenvolvimento do turismo, permitiram que a hospitalidade se expandisse. Para aten-
der a nova demanda, escolas surgiram para capacitar pessoas dispostas a trabalhar tanto
na cozinha como no salão. O “receber bem” se estendeu das estalagens e albergues para
hotéis luxuosos, que dispunham do necessário para receber a clientela, com quartos e ba-
nheiros privativos e restaurantes disponíveis no mesmo estabelecimento. O lazer, atrelado
ao aparecimento das primeiras leis trabalhistas, que possibilitou aos trabalhadores gozarem
períodos de férias e finais de semana impulsionou as atividades hoteleiras e gastronômicas.
Dessa forma, a evolução da gastronomia transcendeu às atividades dentro da cozinha, atin-
gindo outras formas de atuação e conhecimento.
116 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

6.1 Regras à mesa


Os hábitos alimentares são objetos de Mas suas bases e fundamentos se molda-
estudos de diversas esferas, desde o que se ram em civilizações pré-históricas. Podemos
come, porque se come a como se come em analisar como os seres humanos faziam suas
um contexto social, político, econômico e refeições no período Paleolítico, a desco-
até mesmo religioso. Mais do que o ato de berta do fogo trouxe, além do simples ato
saciar a fome, estar à mesa simboliza a con- de cozinhar e de espantar animais selva-
vivência com outros seres humanos, um gens, uma forma primitiva de comensali-
laço formado no momento em que todos se dade (compartilhamento de alimentos).
sentam juntos para compartilhar o tempo e
a mesma refeição. Com essa concepção, es-
tar mesa tamb m significa seguir padrões
impostos pelo contexto inserido da refei-
ção, desde a forma de se portar, de quais re-
feições iniciarem os banquetes até os talhe-
res que serão utilizados. Observamos que
as regras à mesa estão presentes desde os
primeiros registros da história da alimenta-

© Siberian Art / / Shutterstock.


ção, e que, com o desenvolvimento das civi-
lizações, passaram por transformações que
influenciaram os serviços e a etiqueta apli-
cados à gastronomia até os dias de hoje.

6.1.1 História das regras de Os hábitos alimentares dos seres hu-


manos estão associados ao contexto em
comportamento à mesa que estes estão inseridos, desde o país ou
As regras de comportamento à mesa nação o qual pertencem, a região geográ-
possuem registros da época de civilizações fica, os alimentos disposição, as regras
antigas (Egito e Mesopotâmia, por exemplo) da sociedade e religião até os gostos pes-
e da Antiguidade Clássica (Grécia e Roma). soais. Esses são fatores que constroem a
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 117

identidade sociocultural dos indivíduos, e a


forma de se alimentar também está nesse
e istência do simp sio oficializou
rol. Todavia, o homem possui o hábito de o consumo de vinho pelos gregos, o que
associar o ato de comer a um ritual, uma ce- fez desses eventos ocasiões especiais.
rimônia. Isso vai além de saciar a fome. Pos- Na Grécia, os vinhos eram representados
sui um valor simbólico e deve ser celebrado. pelo deus Dionísio e, em Roma, pelo deus
Baco (VALDUGA, 2011).
Na Antiguidade Clássica, as guerras
entre Grécia e Roma contribuíram para
o desenvolvimento da gastronomia, in-
cluindo as maneiras de comportamento à Na época dos banquetes greco-roma-
mesa. Roma, após conquistar a Grécia em nos, apesar do consumo exagerado de vi-
meados do século II a.C., foi influenciada nho levar os convidados a excessos e liber-
pelos hábitos à mesa dos gregos. tinagens, as regras de convívio à mesa se
moldavam. Entre as regras, havia o posicio-
Em grande parte dos banquetes, mu-
namento dos anfitriões (à esquerda do con-
lheres (que não podiam comer de forma
vidado de honra), a ordem e a separação
reclinada) e crianças se alimentavam em
das refeições (gustativo: entradas/ mensai
locais separados. Havia uma separação de
primai: pratos principais/ mensai secundae:
consumo. Na primeira fase, se comia e,
doces, bolos e frutas), a pontualidade ao
na segunda, se bebia vinho. Nessa última
chegar no banquete, o uso do único talher
etapa, chamada de simpósio, os convida-
da época (colher) e a hospitalidade aos co-
dos discutiam sobre questões dialéticas e
mensais – quando necessário. Dentre os
morais, além de ouvirem música e poesia.
costumes, podemos citar o fato de que os
Assim, as mesas maiores eram substituí-
romanos costumavam promover banque-
das por menores com nozes, azeitonas e
tes de forma frequente, os quais os convi-
frutas secas para estimular a vontade de
dados costumavam se alimentar deitados
beber. Os comensais lavavam as mãos, se
ao redor das mesas. O banquete era um
ornamentavam com guirlandas e coroas, e
dos principais acontecimentos da vida so-
eram orientados pelo simposiarca quanto
cial romana (FREIXA; CHAVES, 2014).
ao tema da conversação (FRANCO, 2010).
118 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Com base nesses registros históricos


de hábitos de comportamento, rituais e
significados relacionados aos banquetes
e refeições, as regras à mesa desenvol-
veram-se durante a gastronomia. Hoje,
vemos diversos manuais que explicam e
esclarecem os principais pontos a serem
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observados durante as refeições, com


regras de etiqueta e detalhes essenciais
para as boas maneiras à mesa.

Na Idade Média, os banquetes tam-


6.1.2 Os manuais de boas maneiras
bém eram grandes acontecimentos sociais. O se portar bem à mesa, ou as boas
Neles, festejavam-se casamentos, fecha- maneiras à mesa, é observado em basica-
vam-se negócios, discutiam-se assuntos mente todas as civilizações, algumas com
mais sérios e ostentavam-se riquezas. Essas mais intensidade que outras. Cada socie-
ocasiões exigiam exposição das relações e dade desenvolveu suas regras de etiqueta
comportamento adequado, marcado pela de acordo com estilo estético e momento
refeição compartilhada à mesa. O ritual sim- histórico.
bolizava o reconhecimento de um laço so- Os nobres de civilizações anteriores
cial (FLANDRIN, MONTANARI, 1998). à renovação cultura do Renascimento pos-
suíam suas próprias regras, de forma dife-
renciada dos pobres e camponeses. Logo,
essas boas maneiras significavam valoriza-
ção e distinção perante outros. Além disso,
comunicavam, de forma contínua, manei-
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ras de como se portar diante da sociedade,


de modo a criar valores de sociabilidade e
convivê nc ia. Na Idade Média, as boas ma-
neiras significavam cortesia ou civilidade
(CASTELLI, 2010).
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 119

Os primeiros manuais de boas manei- com três dedos. Entre os preceitos encon-
ras datam da época da Renascença. Com a trados também haviam: não usar a faca de
modificação da forma de se alimentar e da forma indevida e lavar as mãos antes de
ideia de se acrescentar classe e compostura jantar. Essa passagem foi um sinal de mu-
à mesa no período de transição entre o exa- dança de comportamento de uma socie-
gero e ostentação da Idade Média para o re- dade glutona (de excessos) para uma mais
quinte do Renascimento e Idade Moderna, polida e comedida, ainda que não tivesse
as boas maneiras ganharam distinção. Esses ocorrido de forma abrupta (ELIAS, 2011).
manuais ou cartilhas continham regras de Os manuais de boas práticas torna-
comportamento à mesa, orientavam quanto ram-se cada vez mais comuns, principal-
à quantidade e à qualidade das preparações mente após o Renascimento e a invenção
e beleza dos utensílios. da imprensa, o que ampliou seu acesso ao
Com a invenção da imprensa na Itália, público. As regras de comportamento pas-
a impressão desses manuais foi expandida. saram a ser institucionalizadas dentro da
Bartolomeo Sacchi, em 1474, publicou a gastronomia e, desse modo, aumentou o
obra Da honesta volúpia e do bem-estar. O nível de refinamento. Assim, o processo ci-
livro apresentou os prazeres da mesa, pro- vilizatório à mesa se desenvolveu, e resul-
priedades nutritivas importantes e, sem tou na padronização de comportamentos
contrariar as regras morais e estéticas da básicos no compartilhamento da refeição,
época, enfatizou a importância da eti- considerado os primeiros passos para o de-
queta. Nele, realçou-se o bom tom e a so- senvolvimento da comensalidade.
briedade à mesa (FREIXA; CHAVES, 2014).
O holandês Erasmo de Roterdam pu- 6.1.3 Shou-plate e sousplat:
blicou códigos de boas maneiras diferen-
ciando hábitos rudes dos refinados, com
O processo civilizatório à mesa
sua obra Civilidade Pueril (De civilitate mo- A atitude do homem perante o ato da
rum puerilium, em latim), publicada em alimentação distingue-se dos animais por
1530. Esta é marcada pela transição entre dois fatores: a existência do conceito de
os costumes medievais para a Renascença. cozinha (que engloba técnicas dietéticas
Roterdam relata, por exemplo, que a carne e prescrições religiosas dentro de um con-
ainda era comida com a mão, mas apenas texto cultural) e a comensalidade – função
120 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

social atribuída às refeições. O homem ci- As raízes da comensalidade foram for-


vilizado não come apenas para saciar a madas na Pré-História, nas primeiras re-
fome, mas também para transformar essa uniões entre homens em volta do fogo. A
ocasião em um momento de sociabilidade, partir de então, o homem compartilhou re-
o que está ligado a questões sociológicas e feições em volta do fogo para, em seguida,
de comunicação. fazer isso ao redor da mesa. No esquema a
seguir, podemos observar essa evolução da
comensalidade.

A comensalidade pode ser enten-


dida como uma fonte de sociabilidade,
Evolução cronológica da comensalidade
comunicação e prazer de comer em um
ritual de partilha de alimentos. Desde Reunião ao redor do fogo na pré-h istória:
troca de experiências enquanto se comia e se aquecia.
o início da civilização, a comensalidade
exerceu papel importante no aprendi-
zado da socialização entre humanos
(FREITAS; FONTES; OLIVEIRA, 2008).
B anquetes gregos e romanos: orgias, vinhos, discussões
filos ficas e comensais deitados ao redor da mesa

Ao definirmos o significado de civi-


lização, é preciso entendermos que ela é B anquetes medievais: ostentação da alimentação,
estabelecida por um conjunto de caracte- maus h bitos, fechamento de neg cios.
rísticas comuns às sociedades, ou seja, isso
engloba aspectos morais, religiosos, es-
téticos, científicos e técnicos. O processo B anquetes renascentistas: boas maneiras à mesa,
que criou e cria uma civilização relaciona requinte, equilíbrio de sabores.

elementos culturais de forma coletiva e in-


dividual. Esse conceito permite a minimiza-
ção de diferenças dentro de uma nação e, Ab ertura dos restaurantes: locais de

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comensalidade e tra domiciliar.
assim, enfatiza o comum a todos os seres
humanos (MOURTHÉ , 2014). Fonte: FLANDRIN, MONTANARI, 1998.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 121

Notamos que a comensalidade per- ser comemorada; o ato de compartilhar o


mitiu a evolução dos significados do ato mesmo espaço e a mesma refeição, item
de compartilhar refeições. De sentados no primordial de sobrevivência biológica, ga-
chão em volta do fogo, compartilhando nha sua importância dentro da gastrono-
experiências de caçadas, seguido pela ali- mia. Logo, os tipos de banquetes a serem
mentação sentados em torno da mesa, fir- realizados, quais os melhores serviços a
mando acordos ou celebrando datas festi- serem utilizados, entre outros detalhes es-
vas como casamentos e batismos. senciais passaram a ser objeto de estudo
Deste modo, a comensalidade, isto é, dentro da área de gastronomia.
o ato de comer junto, de conviver em so-
ciedade, se tornou a fundadora da civiliza- 6.1.4 A gastronomia diplomática, o
ção humana. Conviver é a imagem da vida
de forma coletiva. O banquete se torna o
banquete e os tipos de serviços
símbolo de identidade de um grupo. Mesas Na Antiguidade Clássica, os gregos pa-
juntas representam um agente de agrega- dronizaram a estrutura dos banquetes, com
ção e unidade, já mesas separadas, ao con- uma estrutura fi a para os pratos e para a
trário, correspondem à diferença dessas maneira pela qual estes eram servidos. Essas
identidades. Ser aceito à mesa, ou excluído cerimônias ocorriam em residências particu-
dela, possui significados que vão desde lares, uma vez que possuíam poucos lugares
motivos políticos a religiosos. O banquete públicos para onde se pudesse comer. Os ro-
pode ser considerado um espaço de ex- manos, herdeiros diretos dos gregos, utiliza-
pressão e de mudanças sociais, representa ram esses costumes como ponto de partida,
hierarquias e estabelece relações de po- mas acrescentaram receitas e apresentações
der, e traz o conceito de cidadão civilizado mais elaboradas. Os convidados sentavam-
em oposição ao bárbaro selvagem (FLAN- -se em posições à mesa conforme seu status.
DRIN; MONTANARI, 1998). A hierarquia continuou a se estabelecer na
Idade Média e no Renascimento, quando os
Dessa maneira, sentar-se à mesa em
anfitriões e convidados de honra ficavam em
grupo e compartilhar o tempo e a refeição
lugares mais elevados que os demais (CIA,
ganharam cada vez mais significados. Co-
2004). Desde esse período, a concepção
mer junto pode retratar que um negócio
do banquete como refeição que as pessoas
foi fechado ou que há uma celebração para
122 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

compartilhavam com outros propósitos, alimentos por prazer e a importância da


além da alimentação em si, já era observado. hospitalidade do anfitrião para com os con-
vidados (CIA, 2004).
Qualquer que seja a origem da palavra, ban-
Desde a Idade Média, quando os meios
quete significa uma refeição suntuosa, far-
ta e solene, oferecida a um número elevado de comunicação eram não verbais, o ban-
de convidados. O banquete é realizado em quete era um dos principais aportes de co-
ocasiões festivas ou cerimoniosas, com a fi- nhecimento de mudanças, inovações e no-
nalidade de juntar pessoas com as mesmas tícias. Quem deixava clara a tomada de al-
crenças religiosas ou políticas, as mesmas guma decisão, comprometia-se a pôr em
afinidades literárias, artísticas ou gastronô- prática, de fato, sua proposição. Essas refei-
micas, pessoas do mesmo status social ou
ções eram organizadas em vários momen-
profissional, mesma área geográfica ou da
tos: indivíduos ou coletividades para se se-
mesma etnia (PACHECO, 2004, p. 15).
lar a paz ou fechar alianças; celebrações de
Os banquetes foram os eventos que datas fi as continuidade dos laços aconte-
atraíram a atenção pra a importância da cimentos familiares, como batismos e casa-
execução dos serviços realizados à mesa. mentos (FLANDRIN, MONTANARI, 1998).
Essas práticas, desde os gregos e romanos, O que se pode notar é que o ato de
durante a Antiguidade Clássica, se desen- compartilhar refeições, incluindo todo o ri-
volveram conforme as mudanças na estru- tual elaborado ou não, criava confiança en-
tura social e arquitetônica e por meio dos tre seus comensais. O tempo gasto nesse ri-
tipos de alimentos que eram servidos. tual, a hospitalidade do anfitrião ao receber
A partir dos hábitos dos nossos ances- seus convidados, o tipo de assunto discutido
trais, especialmente no que se refere aos e as longas viagens que muitas vezes convi-
banquetes, até a preocupação com a eti- dados estrangeiros faziam para chegar aos
queta e comportamento à mesa nos dias banquetes foram fatores que aumentaram
atuais, possibilita-nos compreender a ori- a importância da realização desses even-
gem dos significados atribuídos a certos tos. Até hoje observamos a atenção dada
aspectos relacionamos às refeições. Entre aos banquetes, intensificando seu estudo e
eles a importância da reunião de comen- caprichando em sua elaboração, tomando
sais à mesa por motivos de comemoração como base o que foi descrito na literatura
ou fechamento de acordos, o consumo de gastronômica clássica da gastronomia.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 123

6.2 A literatura gastronômica 6.2.1 Os primeiros livros de cozinha:


na história Antiguidade e Idade Média
As primeiras descrições sobre cenas
A alimentação sempre foi considerada
de jantares no Ocidente foram encontra-
uma necessidade básica dos seres humanos
das no Antigo Testamento e nas obras de
e, como consequência, a gastronomia ins-
Homero (Odisseia e Ilíada). Como aponta-
taurou-se a ponto de se tornar um hábito.
vam os textos, os banquetes e ocasiões es-
Hoje temos acesso a diversas informações
peciais eram frequentados por pessoas de
que nos permitem conhecer como a alimen-
alto status social.
tação era tratada em praticamente todas
as épocas da existência da humanidade. A Grécia da Antiguidade Clássica pos-
Antes da invenção da escrita, os registros suía diversos escritores dedicados à arte
pré-históricos disponíveis eram as gravuras da cozinha. Arkhestratus foi um dos mais
em cavernas, identificadas nos achados ar- conhecidos, contemporâneo de Aristóte-
queológicos. Com o passar do tempo, o ser les (384–322 a.C). Escreveu o tratado dos
humano criou sistemas de códigos que pos- prazeres, chamado Hedyhpatheia, o qual
sibilitaram o registro de suas atividades im- foi também chamado de gastronomia de
portantes, entre elas a alimentação. Arkhestratus. A palavra gastronomia é de-
rivada de dois vocábulos gregos: gaster (es-
Os registros foram essenciais para a
tômago), nomo (lei) e ia, formando o subs-
confecção dos primeiros livros de gastro-
tantivo. Pela etimologia da palavra, ela seria
nomia. Assim, possibilitaram os grandes
o estudo das leis do estômago. Na obra de
chefs e cientistas das cozinhas a publica-
r hestratus, ficaram registradas as e pe-
rem seus conhecimentos e receitas, o que
riências e descobertas gastronômicas de sua
tornou a literatura gastronômica cada vez
época (FLANDRIN; MONTANARI, 1998).
mais robusta. Conheceremos a seguir as
principais obras ao longo da evolução gas- Outro escritor conhecido, e que con-
tronômica, separadas pelos períodos histó- siderava Arkhestratus o fundador da gas-
ricos e seus autores mais relevantes. tronomia, foi Athenaeus, que compilou
diversos livros de cozinha publicados por
124 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

volta do século IV a.C, na Grécia. Sua obra, Romano pelos bárbaros e a instauração do
Deipnosophistai, foi escrita por volta do ano sistema feudal, a sociedade se modificou: o
200 d.C. e reuniu observações de maneiras índice de analfabetismo era alto. Logo, os
e costumes antigos. A maior parte era de- monges copistas foram responsáveis pela
dicada aos insumos de alimentos e bebidas, conservação e propagação do conheci-
bem como à arte de se comportar à mesa. mento para gerações posteriores.
Para se ter uma noção da amplitude, cons- Apenas no século XIV surgiu o primeiro
tavam nela 72 tipos de pão (FRANCO, 2010). e mais importante livro de gastronomia da
Em Roma, o livro De agricultura de Ca- Idade Média: Le Viander. Na época, a im-
tão, escrito cerca de 160 a.C. foi uma das prensa não havia sido inventada. Portanto,
principais fontes de informação gastronômi- o livro possuiu diversas versões manuscri-
cas da Antiguidade Clássica. Constavam os tas. Consistia em um compêndio de 144 re-
registros da evolução da alimentação, e das ceitas e pratos temperados com diversas
modificações que sofreu desde a conquista ervas aromáticas. Uma das principais carac-
da Grécia, a absorção de alguns costumes e terísticas é que as receitas não forneciam
a abolição de outros – como o simpósio. quantidades de ingredientes, tempo de co-
Outra obra importante do período foi zimento ou medidas. Portanto, servia mais
o compêndio De re coquinaria, com mais de para cozinheiros experientes.
400 receitas. Sua autoria é incerta, embora Sobre o legado dos cozinheiros da Anti-
seja atribuída a Apicius, conselheiro do im- guidade e da Idade Média, é importante fri-
perador Nero. Apicius costumava empregar sar que eles forneceram suas contribuições
vários cozinheiros e oferecia recepções ca- para a gastronomia de forma bastante ex-
ras. A coletânea dispunha de diversas maté- perimental, com registros pouco objetivos e,
rias-primas, efeitos medicinais dos alimen- muitas vezes, difíceis de entender. Em con-
tos, emprego de especiarias e ervas aromá- trapartida, foram os pioneiros nas primeiras
ticas e indicações de molhos com a presença experiências gastronômicas, descreveram
de vinho (FLANDRIN; MONTANARI, 1998). princípios de combinações de ingredientes
Esses registros foram importantes e procedimentos culinários que serviram de
e, conservados, serviram de base para a inspiração para os chefs dos séculos XVII e
consolidação da alimentação das próxi- XVIII, que começaram a lidar com a gastro-
mas civilizações. Com a queda do Império nomia de forma mais profissional.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 125

6.2.2 A literatura gastronômica dos séculos XVII-XVIII


O fim da Idade Média foi marcado o aroma verdadeiro dos alimentos. Entre
pela renovação cultural de várias esferas suas principais divulgações está o molho
da sociedade. Entrava em cena o Renasci- bechamel (leite, farinha, manteiga e noz
mento. Com esse movimento, houve mu- moscada), popular até hoje (GRAND- CLÉ -
danças de atitude, principalmente às rela- MENT; BULMAN, 2014).
cionadas com a alimentação. Os italianos, Com a Revolução Francesa, outro
por meio da família Médici, influenciaram a marco foi o acesso da burguesia à alta gas-
França, com hábitos voltados às boas ma- tronomia e a abertura dos primeiros res-
neiras à mesa, à valorização da qualidade taurantes, fator decisivo para a criação de
frente à quantidade, o uso de talheres e diversas obras, como o Cozinheiro real e bur-
o equilíbrio de sabores. Nesse período, a guês, de François Massialot de 1691. Este foi
imprensa foi inventada, o que estimulou a considerado o primeiro livro em forma de di-
impressão de manuais de boas maneiras cionário a mostrar imagens de mesas cober-
e livros de receitas. Mais tarde, com a Re- tas com toalha e seus pratos e talheres. No
volução Francesa, padrões da alta cozinha mesmo período, foi publicado O cozinheiro
disponível apenas nos castelos foram rom- moderno, de Vincent la Chapelle, com três
pidos, fato que auxiliou à divulgação dos volumes ilustrados em 1733. No ano de 1746,
conhecimentos dos chefs. a obra Cozinheira burguesa, de Isoard Menon,
Os chefs de cozinha da época, já foi lançada e revolucionou aspectos da cozi-
atuantes em suas funções, compilavam nha tradicionalista até então. Os principais
suas receitas. Um dos livros mais conhe- pontos eram: a redução dos longos menus
cidos foi O cozinheiro francês, de François dos palácios para mais simples, com duas
Pierre La Varenne, publicado em 1650. Na ou três refeições; e a separação em cozinha,
obra, instruções são mencionadas, como confeitaria e copa. Foi considerado um best
o uso da manteiga e farinha em molhos, seller (FREIXAS; CHAVES, 2014).
além de técnicas e regras de sequências Com essas publicações, as mudan-
em pratos. Uma das normas estabeleci- ças sofridas pela gastronomia ficaram re-
das por esse escritor é o comedimento no gistradas, o que possibilita-nos visualizar
uso de especiarias e temperos, para aflorar sua evolução conforme o tempo, como as
126 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

tendências após a Revolução Francesa. Com o Grande dicionário de culinária, que unia re-
a importância dada aos livros de culinária, a ceitas e literatura, com histórias a respeito
literatura que seria desenvolvida do século de ingredientes utilizados na gastronomia
em diante ficaria cada vez mais popular. (FLANDRIN; MONTANARI, 1998).
Marc-Antoine Carême, com fama já
6.2.3 A literatura gastronômica do estabelecida, também deixou seu legado.
Registrou cinco livros, entre eles A arte da
século XIX aos dias atuais cozinha no século XIX, com três volumes
A partir do século XIX, diversas obras publicados em 1817. Considerado o cozi-
de chefs foram publicadas e são utilizadas nheiro dos reis, o chef tinha hábito de es-
até hoje como referência aos seus traba- crever sempre que pudesse, e as viagens
lhos em gastronomia. Podemos citar Gri- costumavam inspirá-lo. Outras obras de
mod de La Reyniè re, pioneiro na crítica Carême são O confeiteiro real e o O confei-
gastronômica, com o Almanaque dos gour- teiro pitoresco, uma amostra de sua afeição
mands, que funcionava como um manual por doces (GRANDIAL-CLEMÉ NT; BUL-
com instruções (FREIXAS; CHAVES, 2014). MAN, 2014). Auguste Escoffier, o gene-
Em 1825, Brillat Savarin conquistou ral da cozinha, também ganhou fama na
fama ao publicar Fisiologia do gosto. Com- época. Em 1912, lançou o Guia Culinário,
posto por refle ões acerca da alimentação que apresentou inovações gastronômicas.
em seus aspectos filos ficos e científicos, Este é considerado uma síntese da gastro-
abordava o apetite, as especialidades gastro- nomia ocidental, com aproximadamente
nômicas, a sede e as bebidas, entre outros. O 5.000 receitas da cozinha clássica, com
próprio Savarin foi inspiração para a obra, a descrições de princípios em cerca de 950
partir de sua experiência: frequentava bons páginas (FREIXAS; CHAVES, 2014).
restaurantes, costumava ser anfitrião de an- Os chefs que surgiram no século XIX
tares memoráveis e, com isso, trazia como deixaram sua marca na literatura e na gas-
refle ão que o bem estar, o conforto e a boa tronomia, com suas contribuições. Carême
companhia eram tão importantes quanto e sco er são, at ho e, um dos e emplos
à qualidade do que se era servido (GRAN- mais importantes da gastronomia fran-
D-CLEMÉ NT; BULMAN, 2014). Mais tarde, cesa e mundial. Seus livros, com suas ins-
em 1870, o escritor Alexandre Dumas lançou truções e observações, foram e ainda são
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 127

considerados referências e são de extrema Em 1900, o primeiro guia gastronô-


importância pelos estudiosos da gastrono- mico foi lançado pela fabricante de pneus
mia, seja na história ou na utilização de téc- Michelin, de propriedade dos irmãos Andre
nicas. Dentre as diversas publicações volta- e Edouard Michelin. A ideia foi inspirada
das à gastronomia, algumas ganharam des- no crescimento da indústria automobilís-
taque pelas análises realizadas aos menus tica francesa. Logo, as famílias que costu-
servidos, às combinações de ingredientes, mavam viajar, principalmente de carro, se
bem como indicações sobre o que e quando utilizavam dessas informações durante as
comer: surgia, assim, a crítica gastronômica. férias e finais de semana de lazer. Nessa
perspectiva, quanto mais viagens fossem
6.2.4 A crítica e os guias gastronômicos realizadas, maiores as chances de se trocar
pneus, o que era de interesse da empresa.
Atribui-se a Grimod de la Reyniè re
a invenção da crítica de restaurante. Ele O guia Michelin tinha como principal
também foi um dos fundadores do mo- objetivo fornecer endereços dos melhores
derno discurso gastronômico. Com o Al- hotéis, restaurantes, postos de gasolina e
manaque dos gourmands, Grimod ampliou outros serviços essenciais em uma época
a forma estabelecida da crítica do drama de crescimento do turismo. Os primeiros
teatral para torna-la um gênero aplicável guias não possuíam separações qualitativas
a outra arte efêmera, a gastronomia, mas dos restaurantes, apenas as indicações e
decididamente mais comestível. Grimod localizações (FREIXAS; CHAVES, 2014).
combinava a crítica gastronômica com pa-
ródias do discurso estético. Assim, fazia
associações para a terra do gourmandismo
(apreciação da alta culinária). Descrevia
pratos requintados, invenções elogiadas e

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oferecia conselhos médicos e domésticos
avulsos. Em todo o almanaque, a mesa in-
terpretativa oferecia um diagrama o qual
permitia que o leitor conhecesse o mundo
inteiro (SPANG, 2004).
128 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

O Guia Michelin encorajou o desenvol- gastron mica e especialização dos profis-


vimento contínuo da indústria turística e ho- sionais de gastronomia, a profissão de crí-
teleira. A partir de 1920, as primeiras reco- tico gastronômico passou a tomar moldes,
mendações gastronômicas foram publicadas, por meio de relatos escritos. Personagens
com indicações de restaurantes por tipo de ficaram marcados por suas an lises e contri-
comida. Em 1933, houve a adoção de estre- buições. Assim, entraram para a história da
las para os níveis de qualidade dos restauran- gastronomia ao longo do tempo.
tes na França. As posições seguem de uma a
três estrelas, sendo que a última representa a
classificação mais alta. osteriormente, ou-
6.3 Personagens e profissionais
tros países adotaram o mesmo estilo de guia
(FLANDRIN; MONTANARI, 1998).
da cozinha ao longo do tempo
A história da gastronomia foi cons-
O Guia Michelin conta com inspetores
truída a partir de vivências, experiência e
que, em sua grande maioria, são formados
descobertas de personagens considerados
nas melhores escolas de hotelaria do mundo,
célebres por seus feitos. Seus registros e
os quais visitam os estabelecimentos de
observações foram cruciais para o conhe-
forma anônima. A avaliação segue os seguin-
cimento gastronômico contemporâneo e
tes critérios: qualidade dos produtos, domí-
permitiram a reflexão dos significados e
nio do sabor e das técnicas culinárias, perso-
porquês incorporados à alimentação hu-
nalidade do chef em sua própria cozinha, re-
mana. Esses profissionais, por meio de
lação entre preço e qualidade, e consistência
suas descobertas e testes na cozinha, au-
entre as visitas (MICHELIN GUIDE, [ s.d.] ).
xiliaram no processo de construção da gas-
O Guia Michelin é um exemplo de crí- tronomia com o passar dos séculos.
tica gastronômica importante na contem-
poraneidade. Observa-se que, em cada
época, existe uma espécie de crítica pre-
6.3.1 Os cozinheiros gregos e romanos
sente na descrição de preparações. A noção Nas principais civilizações da Antigui-
de que um ingrediente combina com ou- dade Clássica, Grécia e Roma, as personalida-
tro melhor que um terceiro foi experimen- des envolvidas com a gastronomia possuíam
tada na prática e passada adiante por meio relação direta com a produção literária da
de registros. Com a evolução da literatura época. Os registros históricos encontrados,
com as descrições de receitas, representam
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 129

informações extraídas a partir da observação


e da e perimentação dessas figuras.
6.3.2 Os grandes personagens da
Entre os autores, temos Arkhestratus, gastronomia até o século XIX
que, por meio de seus escritos inspirados O primeiro chef estrela foi o famoso
por suas frequentes viagens, era conside- Guillaume Tirel Taillevent, cozinheiro do rei
rado um gourmet. Ele difundiu os princípios Carlos V. O soberano, ao perceber o poten-
da cozinha grega, relatou formas de servir à cial de Taillevent, solicitou que este regis-
mesa, de apresentar os convidados e elogiou trasse suas receitas e maneiras de preparar
alimentos como o pão. Em sua época, tanto comidas. Isso resultou no livro Le Viander
gregos como romanos conheciam como téc- (1490), publicado em versões manuscritas
nicas de cozimento o assado, o caldo e os até a invenção imprensa no século XV. Co-
ensopados. A diversidade de produtos ainda nhecido pela grande variedade no uso dos
era escassa. Os legumes e as frutas podiam temperos, o chef recebeu status de nobre
ser e emplificados como laran as, amên- e o direito de carregar uma espada, am-
doas, figos e uvas. a poca da ep blica, bos concedidos pelo monarca. Taillevant
os romanos aumentaram essa variedade e, foi considerado o precursor da história da
assim, aprimoraram a sofisticação e o lu o cozinha francesa, expressou em sua obra
dos banquetes. A partir desse momento, a renovação da cozinha, como a importân-
outro nome ficou conhecido ucullus, que cia da preparação dos molhos, o uso de es-
aliava a extravagância e a excelência na cozi- peciarias e a limpeza dos peixes (GRAND-
nha (BRAUNE; FRANCO, 2017). -CLEMÉ NT; BULMAN, 2014).
Os registros dos cozinheiros gregos No século XVII, François Pierre de La
e romanos são escassos, mas servem para Varenne, com sua obra Cozinheiro francês,
esclarecer a forma como a alimentação era de 1651, foi considerado uma das perso-
tratada, quais ingredientes eram disponíveis nalidades gastronômicas mais importan-
na época das civilizações (Grécia e Roma) e tes do período. Um dos chefs de Luís XIV
quais os principais hábitos alimentares. Es- (o Rei Sol), La Varenne ficou conhecido por
ses textos foram o fundamento utilizado pe- romper a influência italiana. Ele organizava
los grandes personagens gastronômicos dos os alimentos pelo tipo de preparação (so-
séculos seguintes, da Idade Média, Moderna pas, entradas, pratos principais). Este chef
e Contemporânea. defendia o uso de especiarias e temperos
130 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

para enfatizar o sabor natural dos alimen- Em 1665, Vatel serviu ao príncipe de
tos, e não para disfarçá-los. Além disso, Condé, no castelo de Chantilly. Possuía di-
trazia as receitas em linguagem de fácil versas funções, como a controladoria ge-
acesso, com instruções sobre a maneira ral. Mais tarde, foi intendente das proprie-
adequada de cozinhar legumes, dicas entre dades e dos negócios do príncipe. Além de
as quais a adição de trufas e cogumelos nas ser responsável pela organização e gestão
carnes e recomendava servir os assados em das refeições e das festas, era o encarre-
seu próprio suco para conservar o sabor gado de lidar diretamente com os fornece-
(BRAUNE; FRANCO, 2017). dores. Possuía bastante senso de organiza-
Apesar de não ter escrito obras, F ritz ção, autoridade, gestão e estética (GRAN-
K arl V atel também foi uma personalidade D-CLEMÉ NT; BULMAN, 2014).
marcante da mesma época de La Varenne. sses profissionais deram suas grandes
Não era cozinheiro, mas era considerado contribuições para a gastronomia até os dias
maître d’hotel. Era responsável por organizar de ho e. om ou sem livros, foram influências
os banquetes, com diversos empregados a para o funcionamento da arte da preparação
seus cuidados, cuidava desde a despensa a de pratos e organização de eventos, experi-
mesa e até mesmo monitorava a manuten- mentaram novas receitas e auxiliaram no de-
ção de jardins. Proporcionava festas memo- senvolvimento gastronômico da época (até o
ráveis e luxuosas (FREIXAS; CHAVES, 2014). fim do s culo . or m, dentre essas per-
sonalidades, devemos destacar duas que re-
volucionaram a gastronomia francesa e mun-
Vatel era extremamente talen-
dial ntoine arême e uguste sco er.
toso, organizado e ambicioso. Certa
vez, foi responsável por organizar um
banquete para o rei Luís XIV, que du-
6.3.3 Antoine Carême e Auguste
raria três dias e três noites, para cerca Escoffier: os grandes nomes
de 2 mil convidados. Ao checar que a
grande encomenda de peixes que ele Marc-Antoine Carême, nascido em
havia solicitado estava incompleta, 1783, é um dos nomes mais conhecidos da
suicidou-se com um punhal no dia 24 gastronomia e era considerado um chef
de abril de 1671 (GRAND-CLEMÉ NT;
minucioso e criativo. Costumava registrar
BULMAN, 2014).
suas criações para que não se perdessem.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 131

Adaptou-se às modernidades de sua época criada por Carême, foi material de partida
e agradou paladares variados. Uniu sua pai- para Escoffier lançar uma visão repaginada
xão por arquitetura e gastronomia, expres- da gastronomia do século XIX. Com o ob-
sas em suas obras (K ELLY, 2005). jetivo de simplificar e requintar a cozinha,
Uma das principais marcas deixadas Escoffier aprimorou o profissionalismo dos
por Carême foi a reunião dos molhos de que trabalham com cozinha (GRAND-CLE-
base: bechamel, velouté (manteiga, farinha MÉ NT; BULMAN, 2014).
e caldo de vitela), alemão (manteiga, trigo,
ovo, vinagre de vinho) e espanhol (man-
teiga, trigo, caldo de carne, purê de to-
mate). A partir destes, outros poderiam ser
produzidos. Uma característica observada
em sua gastronomia era o esmero na pro-
dução e apresentação dos pratos, traços in-
fluenciados por seu gosto pela confeitaria.
© AS Food studio / / Shutterstock.
(FREIXAS; CHAVES, 2014; VINES, 2013).
Por sua vez, Auguste Escoffier, nas-
cido em 1846, foi conhecido como o maior
chef de todos os tempos, tendo contato
com a cozinha desde cedo. A grande cuisine

Características dos chefs Antoine Carême e Auguste Escoffier


Antoine Carê me Auguste Escoffier
Molhos base: bechamel, velouté, holandês e molho
Molhos base: bechamel, velouté, alemão e espanhol.
de tomate.
Nasceu pobre e posteriormente adotado por um
Trabalhou com o tio em um restaurante. Desenvolveu
chef confeiteiro. Cozinhava para aristocracia e alta
grande parte de seu trabalho nos grandes hotéis.
burguesia.
Banquetes elegantes e menus sofisticados. implificação dos pratos e harmonização de sabores.
Publicou A arte da Cozinha no século XIX (L’art de la
Publicou o Guia Culinário (Le Guide Culinaire)
Cuisine au XIXe Siècle)
132 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Antoine Carê me Auguste Escoffier


Sistema de organização em brigadas: dividiu as es-
Aplicava a junção de arquitetura e gastronomia; fa-
tações de trabalho na cozinha (praças) e os cargos
zia sobremesas de açúcar com formato de templos
par cada função (chef, sous chef, saucier, entreme-
gregos.
tier e entre outros).
Aperfeiçoamento da massa folhada: criou o vol-au-
Conhecido pelas receitas simples, como a salada ser-
-vent (cestinha de massa folhada com espaço cen-
vida no Waldorf Hotel (aipo, maçã, maionese e nozes)
tral para recheios), e inovou nas produções de me-
e pêches melba (pêssegos cozidos com favas de bau-
rengues (clara com açúcar) e nougats (torrones de
nilha e servidos com bolas de sorvete de creme).
açúcar, mel e castanhas).
Fonte: FREIXA; CHAVES, 2014.

Entre as peculiaridades da atividade espécie de atualização da obra de Carême,


de Escoffier na gastronomia está a siste- facilitou o trabalho dos profissionais de co-
matização do trabalho. Para serem bem zinha ao sistematizar as funções, na delega-
executadas, as funções dentro da cozinha ção de tarefas a cada profissional e aplicou
deveriam ser divididas: garde manger (co- o mesmo princípio às preparações. Para ele,
zinha fria), entremettier (legumes, sopas e simplificar o card pio não significava re-
sobremesas), rôtisseur (assados, grelhados gressão e sim revolução em busca de utili-
e fritos), saucier (molhos e fundos) e pâtis- zar poucos ingredientes e focar nos sabores
sier (confeitaria). O principal objetivo era mais puros dos alimentos. Foram considera-
simplificar o trabalho de quem cozinhava. dos dois dos chefs mais importantes de toda
Com o passar do tempo, a cozinha preci- a França e seus ensinamentos são transmiti-
sou atender às necessidades tecnológicas e dos até hoje nas mais respeitadas escolas de
a agitação que vislumbravam o século XX. gastronomia do mundo.
(FREIXAS; CHAVES, 2014; VINES, 2013).
Carême, com o rigor e detalhamento 6.3.4 As escolas de cozinha
arquitetônico na confeitaria e em outras Uma das escolas de gastronomia mais
áreas da gastronomia, auxiliou a construção conhecidas no mundo é a clássica Le Cor-
de uma culinária rebuscada, com molhos a don leu. nome, que significa cordão azul,
base de diversas variações e com registros possui origem no século XVI. Segundo a his-
gastron micos e tensos. sco er, em uma tória, o rei Henrique III promoveu a criação
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 133

da Ordem do Espírito Santo, que oferecia Outra escola conhecida mundialmente


banquetes suntuosos com festas, os quais é o Instituto de Culinária da América (Culi-
os membros utilizavam fitas largas azuis. nary Institute of America – CIA, em inglês),
Assim, o nome cordon bleu se tornou si- idealizada por Frances Roth e K atharine An-
nônimo de excelência na gastronomia. gell. Juntas, elas foram pioneiras em educa-
ção culinária das Américas. Considerado o
Apesar de fundada em Paris, a Le Cordon Bleu é uma projeto da proposta inicial da CIA, em 1946,
escola de culinária e hospitalidade, presente em mais o Instituto de Restaurante de New Haven
de 20 países (New Haven Restaurant Institute, em inglês)
abriu suas portas para treinar veteranos
após a Segunda Guerra Mundial. Foram ma-
triculados 50 estudantes, e estes contavam
com as orientações e aulas de um chef, um
padeiro e um nutricionista. O instituto pos-
sui alto padrão de excelência em educação
© Mahathir Mohd Yasin / / Shutterstock.

profissional das m ricas e segue o modelo


dos cursos europeus (CIA, 2018).
Percebemos que a paixão e admira-
ção da gastronomia resultaram em uma
necessidade de se passar o conhecimento
adiante. Os franceses foram grandes contri-
buintes para o ensino dessas escolas. Cria-
Com o lançamento da revista La
ram vocabulários baseados nos livros pu-
Cuisinière Cordon Bleu, em 1895, a Acade-
blicados por seus grandes chefs e compila-
mia de Paris de Gastronomia foi fundada
ram esses conhecimentos para ministrarem
e a primeira demonstração de aula prática
cursos. Após um tempo, com o aumento
foi organizada para o ano seguinte. Desse
da demanda de profissionais de gastrono-
modo, a Le Cordon Bleu aperfeiçoou seu
mia, as instituições de ensino ganharam um
sistema de treinamento, o qual os chefs
incentivo ainda maior para prosperarem,
trabalhavam em horário integral e trans-
com sedes espalhadas por todo o mundo.
mitiam padrão de excelência (WRIGHT;
Com a propagação do conhecimento, as
TREUILLE, 1996).
134 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

gastronomias de diversos países também


receberam incentivo para desenvolverem
6.4.1 O surgimento do lazer
suas culinárias locais e, consequentemente, Ao tratarmos de forma histórica, o
suas atividades turísticas. surgimento do termo lazer é diferente do
que se conhece nos dias atuais. Na Grécia,
este era um tempo utilizado para o apren-
6.4 A gastronomia e o turismo dizado ou o cultivo pessoal (corporal e es-
Com a incorporação do turismo à rea- piritual). Os filósofos Platão e Aristóteles
lidade de uma sociedade trabalhadora oci- diziam que o lazer não poderia vir asso-
dental – que passou a ter a necessidade de ciado a uma ocupação. O divertimento e a
conhecer lugares e vivenciar experiências ocupação eram importantes para melho-
novas –, aumentou a visibilidade da gas- rar o estado de espírito para o trabalho, e
tronomia. A boa cozinha de outros países, também não eram considerados lazer. Para
principalmente europeus, estava disponível eles, a contemplação e a música eram as
apenas para a elite. A popularização des- únicas associações possíveis ao conceito de
sas atividades turísticas aconteceu bem lazer (LARIZZATTI, 2014). O conceito de
mais tarde, principalmente após o cres- lazer moderno surgiu após a Revolução In-
cimento do transporte rodoviário, que se dustrial, quando esta trouxe uma produção
tornou mais acessível a um maior número de bens de consumo em larga escala.
de pessoas em mais camadas da popula-
ção. Com a criação das leis trabalhistas,
O lazer e as férias foram proporcionados para o
principalmente nos Estados Unidos e na
descanso das jornadas de trabalho
Europa, e a redução da jornada de traba-
lho, as garantias de descanso semanal e de
férias anuais, fez com que o turismo sur-
gisse como uma atividade a ser realizada

© Everett Historical / / Shutterstock.


durante esse período livre, possibilitando o
contato com a cultura de outro local e, as-
sim, resultando em um intercâmbio de no-
vos costumes alimentares.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 135

Para possuir um mercado consumidor dos bens de consumo, após a Revolução Indus-
trial, era necessário que as pessoas tivessem tempo para gastar seus salários. Enquanto não
houvesse uma separação, ou uma divisão justa entre o tempo passado em casa para des-
canso e o de trabalho, o desejo de um período para lazer não se manifestaria. Assim, o lazer
foi considerado uma necessidade para repor as forças, e, com o passar do tempo, também
seria visto como um bem de consumo, pois equipamentos e atividades específicas foram
desenvolvidos para este fim, a exemplo do turismo (BARRETO, 2003).

Atividades de lazer e turismo foram incentivadas após a Revolução Industrial


Descanso da
Revolução Lazer Incentivo à
Jornada de

© DTCOM
Industrial Turismo Gastronomia
Trabalho

Fonte: FREIXAS; CHAVES, 2014.

O tempo livre para o lazer foi uma conquista alcançada próximo ao século XX. O ato de
repousar foi substituído por outras atividades que não tivessem relação com o trabalho ou as
atividades domésticas. Entre os fatores que contribuíram para essa mudança estão a redução
do horário de trabalho, o aumento da escolaridade obrigatória, o crescimento do período pós-
-aposentadoria, o desenvolvimento de tecnologia, a qualidade de vida, o aumento na renda
familiar e a entrada da mulher no mercado de trabalho (SANTOS; GAMA, 2008).
Com a implantação de leis trabalhistas, os trabalhadores tiveram mais tempo livre para
viver momentos de lazer. A partir dessa necessidade, o turismo encontrou uma oportunidade
de desenvolvimento, juntamente com incentivo a viagens (principalmente de carro) para co-
nhecer outros lugares e a consequente abertura de hotéis para atender essa demanda. Dessa
forma, a gastronomia, que acompanhou esse desenvolvimento de incentivo ao turismo, en-
controu novas chances de evolução e expansão.
136 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

6.4.2 O turismo e a hospitalidade encontram a gastronomia


Com tempo livre, a sociedade, que co- por ser essencial aos anfitriões e visitantes.
meçou a ter direitos a f rias e finais de se- Nessa perspectiva, a hospitalidade está in-
mana longe do trabalho, pode vislumbrar trinsecamente ligada à alimentação. Este
uma vida com um pouco mais de lazer, e, as- conjunto, o ato de acolher, hospedar e ali-
sim, viajar para conhecer lugares diferentes mentar, é regulado de acordo com códigos
se tornou vi vel. v lido afirmar que as pri- e valores de uma cultura. Portanto, a hos-
meiras leis trabalhistas surgiram na primeira pitalidade permite que pessoas vindas de
fase da Revolução Industrial, inicialmente na lugares diferentes possuam espaço para
Inglaterra, por volta de 1802, para, a partir interagir, se alojarem e prestarem serviços
de então, iniciativas serem tomadas em ou- reciprocamente (FERREIRA, 2016).
tros países. Os empresários do turismo logo
perceberam o interesse do público por esse
tipo de atividade, e passaram a investir em
hotéis, que aproveitavam a história cultural
e gastronômica dos lugares como atrativos
(FREIXAS; CHAVES, 2014).

hutterstoc .
Com o surgimento do turismo no
fim do século XIX e da indústria hoteleira,

fiz es
houve a valorização regional da cozinha.
A alta gastronomia buscou inspiração nas
cozinhas populares, burguesas e em alber- É importante frisar que o impulso tu-
gues de família (BRAUNE; FRANCO, 2017). rístico a uma determinada região se volta a
necessidades consideradas primárias, entre
Atualmente, o turismo é uma indús-
elas a alimentação e a hospedagem, que
tria forte por todo o mundo, com participa-
representam a identidade cultural do local.
ção no crescimento econômico, balança de
Esses elementos configuram o patrimônio
pagamentos e geração de empregos. Atre-
turístico. Por conseguinte, o turismo gas-
lada a essa atividade, temos a gastrono-
tronômico pode ser considerado uma ver-
mia: a alimentação sempre estará na prá-
tente a qual motiva os visitantes a experi-
tica turística, mesmo de forma secundária,
mentarem as práticas e costumes ligados à
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 137

gastronomia do lugar. O alimento, que em primeira instalação em Paris, chamando-o


seu sentido biológico sacia a fome, tem seu de apartamento. Os restaurantes das gran-
significado expandido sob a perspectiva do des cidades, que serviam jantares sofisti-
turismo de maneira a proporcionar refle- cados, não tardaram a se transferirem para
xões culturais (POSSAMAI; PECCINI, 2011). dentro dos melhores hotéis (ANDRADE;
BRITO; JORGE 1999).
6.4.3 As grandes redes de hotéis e O Ritz foi um dos primeiros hotéis a oferecer quarto
com banheiro privativo
seus personagens
Abrigar e alimentar o visitante sempre
foram conceitos explorados pela hospitali-
dade, desde a época da Antiguidade. Den-
tre as formas de recepção, os ambientes de
quarto e cozinha são pontos centrais. Com
a inserção do turismo entre os ramos de
atividades econ micas significativas houve
um aumento considerável em viagens na-
cionais e internacionais por todo o mundo.
© EQRoy / / Shutterstock.

Na Europa, por volta do século XIX, as fer-


rovias já ligavam as principais cidades, o que
permitiu as pessoas viajarem com mais fre-
quência. O termo turista foi designado para
aquele que fazia o tour pela Europa e se hos- Ritz inaugurou seu hotel luxuoso den-
pedava no Grand Hotel (CIRILO, 2006). tro de um palacete no centro de Paris. Com
A hotelaria pode ser definida como o o conceito de hotel ideal, focou principal-
conjunto de estabelecimentos abertos a mente em dois aspectos: quartos com ba-
estrangeiros ou à população local que, por nheiros e cozinha chefiada por Auguste
meio de pagamento, se hospedam e se ali- Escoffier. A mobília era da época de Luís
mentam por um período de tempo. O suíço XV e XVI, com áreas comuns – como sala
César Ritz, em 1870, distinguiu o conceito de estar, de música, de leitura, salão de re-
de quarto com banheiro privativo em sua feições e espaço para fumar. Ritz levou a
138 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

hotelaria à perfeição e estabeleceu o mo- decidiram construir o Novotel em uma es-


delo para os melhores empreendimentos trada a caminho do aeroporto, em Lille,
da Europa e América, e representou du- uma cidade no norte da França, perto da
rante muitos anos o que existia de melhor fronteira com a Bélgica (em um terreno
em termos de hospedagem (CIRILO, 2006). mais barato que na capital). Os aparta-
Nos Estados Unidos, o americano Jay mentos eram espaçosos, bem iluminados e
Pritzker inaugurou em 1967 o Hyatt Regency isolados acusticamente, podiam funcionar
Atlanta, com cerca de 800 apartamentos como escritórios e possuíam banheiros pri-
em um conjunto arquitetônico no centro da vativos. Os ambientes para reuniões e lazer
cidade de Atlanta. A forma como foi cons- também estavam presentes no projeto.
truído o hotel modificou o cen rio hoteleiro
p s- egunda uerra undial. intensifica-
ção do uso de aviões a jato e transatlânticos
como meios de transporte para viagens in-
crementou o turismo internacional.
Espaços com equipamentos de ilumi-
nação, som e climatização foram construí-
dos dentro dos estabelecimentos na época,

© Galley Joelle / / Shutterstock.


o que permitia a execução de grandes even-
tos nos EUA. Convenções dos partidos De-
mocratas e Republicanos ocorriam frequen-
temente dentro dos hot is. nfim, os pr -
dios de aço e vidro começaram a expressar
a nova era do desenvolvimento econômico e A proposta da Novotel revolucionou
hoteleiro no mundo (CIRILO, 2006). a hotelaria europeia e fez com que hotéis
Nessa mesma época, na França, Paul de faixas intermediárias fossem estabele-
Dubrule e Gerard Pélisson fundaram a em- cidos. Esse conceito atendeu às novas de-
presa Novotel, com um conceito simples e mandas da realidade da época: a massifica-
diferenciado do que se conhecia até então ção do uso do automóvel e do turismo, que
na Europa (que só possuía hotéis de luxo abriu a oportunidade de consumo desses
e pousadas antiquadas). Os empresários serviços pela classe média (CIRILO, 2006).
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 139

A evolução da hotelaria, atividade lembrar que dentro da gastronomia é de


central e necessária para o turismo, levou grande importância a valorização do pro-
o sistema hoteleiro a trabalhar a demanda cesso de construção das regras à mesa, en-
de forma a moldá-la gradualmente a seus globando a história de seu surgimento, dos
interesses. Assim, do ponto de vista de manuais de etiqueta e dos significados da
mercado, a demanda passou a ser traba- comensalidade ao compartilhar uma refei-
lhada por segmentos, que orientam o cres- ção com outras pessoas.
cimento do ramo hoteleiro (ANDRADE; Devemos observar também que a li-
BRITO; JORGE 1999). teratura nos permitiu conhecer os registros
A indústria hoteleira possui grande di- gastronômicos, acompanhando a evolução
versidade e exige muita habilidade na exe- da área desde os primeiros livros de recei-
cução de seus serviços. Nos países que não tas, mais simples, aos mais técnicos, com
possuíam escolas de ensino especializado detalhes de quantidades e ordem de ingre-
para essa formação, o conhecimento foi dientes. A partir disso, surgiram os primei-
adquirido ao longo da experiência de cada ros livros de críticas, guias gastronômicos
hoteleiro em tentativas de acerto. Atual- e escolas de gastronomia para transmissão
mente, não existe desenvolvimento turís- desses conhecimentos.
tico e econômico sem uma forte hotelaria, Outro aspecto bastante importante
em aspectos de conforto e qualidade de para a gastronomia, que transcende a co-
serviço a partir de mão de obra especiali- zinha, é sua relação com as modificações
zada (CASTELLI, 2003). que a sociedade passou. Entre elas, des-
Por fim, podemos concluir que a gas- tacamos a Revolução industrial e as con-
tronomia é complexa em todos os aspectos sequências dela para o turismo, o que per-
que a envolvem. Não se limitando apenas à mitiu a criação de hospedagens, auxiliou
cozinha e à preparação de pratos elabora- o desenvolvimento e a evolução da hospi-
dos. Os preparos possuem uma história e talidade, com a migração dos restaurantes
têm fundamentos na combinação e dispo- para os hotéis e o conhecimento de outras
nibilidade de ingredientes, muitas vezes, gastronomias por meio de viagens.
resgatados de civilizações passadas. Vale
140 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

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Capítulo 7
Globalização alimentar

A globalização é um processo social que modifica estruturas políticas e econômicas


das sociedades. Ela expandiu seus horizontes com o desenvolvimento da comunicação, a
intensa troca de informações e o aumento dos mercados. A alimentação, como parte essen-
cial da sociedade, acompanhou essa evolução.
O processo de produção e consumo foi afetado e acarretou no aumento significativo
de produtividade. A disponibilidade de produtos industrializados se multiplicou, impac-
tando de forma direta nos hábitos e padrões alimentares.
Além disso, a globalização foi propulsora de mudanças de rotina da população, como
a redução do tempo para se alimentar por conta da jornada de trabalho. A nova comensali-
dade se adaptou a esses princípios para reduzir o tempo de convivência à mesa. Da mesma
forma, o perfil dos consumidores se moldou ao consumo de produtos padronizados, refei-
ções rápidas, entre elas o fast- food.
144 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

7.1 A globalização e seu impacto na alimentação


A globalização abrange diversas áreas: econômicas, sociais, políticas e tecnológicas.
Incialmente, foi uma consequência de fatores econômicos que integrou todas as sociedades
em um sistema único e, dessa forma, abrangeu a variedade de produção e distribuição de
alimentos. Assim, esse processo foi fruto de um desenvolvimento social que se expandiu de
forma mundial, conforme o contexto abordado no quadro a seguir.

Contexto histórico do processo de formação da globalização

Meados do século XX aos


Século XV: início das Século XIX e XX: primeiras dias atuais: consolidação
Guerra Fria: dualismo do
Grandes Navegações, fases de industrialização do sistema capitalista,

© DTCOM
mundo entre União
fomentando a integração na Europa, implantação do avanços na tecnologia
Soviética e EUA, capitalis-
entre nações diferentes e capitalismo e avanços nos e informática, como a
mo x socialismo, corrida
quebrando o isolamento sistemas de transporte e internet, acelerando a
bélica e espacial.
de sociedades. comunicação. velocidade de transmissão
das informações.

Fonte: FILHO, 2010. (Adaptado).

De acordo com o quadro apresentado, é possível compreender a evolução histórica da


globalização, que ocorreu graças a eventos desencadeados pela sociedade. Assim, a alimen-
tação também sofreu influências desse processo. Mas antes de tratarmos do impacto sobre
esta, precisamos estudar algumas características e conceitos relacionados à globalização.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 145

7.1.1 Características da globalização um mercado fortemente interconectado.


Logo, a soma dos fenômenos internacio-
Podemos definir a globalização de nais, regionais e mundiais é organizada pela
diversas maneiras, pela sua abrangência globalização, o que amplia o intercâmbio de
nas mais diferentes áreas aplicadas. De informações, de culturas e de novos merca-
forma genérica, conceituamos globalização dos para os capitais. Dessa forma, as dinâmi-
como a relação entre os sistemas nacionais cas envolvendo esses aspectos (econômicos,
do mundo por meio de tecnologia, comuni- políticos e culturais) integram os sistemas
cação e transporte. interdependentes, que influenciam uns aos
Historicamente, esse termo começou outros. Consequentemente, os Estados cria-
a ser utilizado por volta da década de 1980, ram subsistemas legais para regularem esses
associado à internacionalização, à mundia- intercâmbios e ordenarem as relações em
lização e à transnacionalização. Isso ocor- âmbito mundial (AMODIO, 2006). No quadro
reu graças ao dimensionamento econô- a seguir, podemos conhecer melhor os prin-
mico de transformações significativas no cipais conceitos dos termos utilizados para o
período, como o impacto das tecnologias estudo da globalização.
de informação e a evolução da comunica-
ção e dos sistemas de transporte. A glo-
balização acompanha a tendência ao pro-
cesso de interdependência das nações em Um exemplo para o conceito de
mundialização é quando ocorre uma
nível mundial. Ela atinge diversas esferas:
ampliação das relações regionais, com
política, social, econômica, tecnológica e o aumento das influências mundiais.
cultural (MOURA, 2009). Criam-se organizações internacionais
que procuram regulamentar os inter-
Com a inter-relação e interdependência
câmbios e se unem na solução de pro-
entre países, o sistema começa a agir como blemas, como os de escassez de água ou
um organismo, um todo em diversas esferas, de crise energética (AMODIO, 2006).
no qual o campo econômico é central, com
146 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Conceitos essenciais para estudo da globalização


Tipo de relação que um Estado ou uma comunidade regional estabelece com outros Esta-
I nternacionalização
dos ou comunidades. Pode ser econômica, populacional, tecnológica ou cultural.
Relacionamento que a população de um Estado tem com vizinhos de fronteiras. Cons-
Regionalização
titui um intercâmbio de vários níveis, com regras próprias.
quando as relações regionais se ampliam a ponto de possuírem resson ncia e influên-
M undialização cias mundiais. Organizações internacionais são criadas para regularizar esses intercâm-
bios e tomadas de decisões, como soluções para a escassez da água, por exemplo.
É quando, após alcançar a mundialização, ocorre uma articulação dos sistemas para
G lobalização funcionarem como um todo nos campos envolvidos, entre eles economia e cultura.
Funciona como um organismo unificado.
Fonte: AMODIO, 2006.

Conforme o quadro apresentado, veri- de hierarquias que de fato prevalecem den-


ficamos que a globalização um conceito tre os organizadores do espaço econômico,
complexo que envolve diversas dimen- político e social. Apesar disso, a globaliza-
sões. É importante ressaltar que ela deve ção contribuiu para o progresso mundial,
ser entendida, além da sua dimensão eco- nos aspectos relativos ao comércio e maio-
nômica, em todas as esferas da vida social. res possibilidades de viagens (com a evo-
Nessa perspectiva, devemos observar a ten- lução dos sistemas de transporte), o que
dência padronização cultural, influenciada difundiu e influenciou culturas, logo, propa-
pela massificação da integração dos mer- gou cada vez mais conhecimento. Salienta-
cados, por meio do contexto industrial. O mos que os agentes da globalização não são
sistema industrializado resulta na produção necessariamente ocidentais. Ao contrário,
e circulação de informações e mercadorias sem as contribuições da matemática, ciên-
padronizadas. Isso acarreta, a curto e longo cia e tecnologia de povos de outros conti-
prazo, na desvalorização das particularida- nentes, a Europa não seria a mesma que
des locais, que seriam sobrepostas pela cul- conhecemos. Movimentos como Renasci-
tura mundial hegemônica (MOURA, 2009). mento, Iluminismo e Revolução Industrial
Entre as principais mudanças desen- foram historicamente reconhecidos por
cadeadas pela globalização estão o enfra- todo o planeta, mas grande parte foi possí-
quecimento de hierarquias territoriais tra- vel pela abertura ao que acontecia ao redor
dicionais e o crescimento da complexidade do mundo (SEN; K LIK SBERG, 2010).
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 147

o quadro a seguir, e emplificamos algumas das muitas consequências geradas pela glo-
balização, nas mais diversas áreas, como tecnologia e população.

Consequências e motivações da globalização


População
Aumento da população do planeta e dificuldade dos países para
fornecerem educação, saúde, transporte, moradia, alimentação e emprego.

Produtos e Novos produtos e serviços surgem todos os dias para os consumidores ávidos.
serviços A produção desses bens pode ter consequências preocupantes ao meio
ambiente. A dúvida é até que ponto causarão essas destruições e o quanto irão
impactar as gerações futuras

Países Em geral, possuem territórios e certos recursos naturais. Com populaçao grande
pobres e tecnologia escassa, a presença de certos produtos globais pode comprometer
a economia local fragilizada.

Economia Os países com mais força na globalização, com as maiores empresas e tecnolo-
gia, são os que comandam as operações. Apesar dos benefícios, a globalização
pode resultar em concentração de poder e dinheiro, o que acirra desigualdades e

© DTCOM
conflitos.

Fonte: RIBEIRO, 2016.

Conforme Hall (2014), a cultura globalizada está baseada na conformação de poder


das relações culturais. Mas estas possuem brechas capazes de se diferenciarem. Portanto,
a luta pela hegemonia não deve ser considerada de dominação total, pois precisamos consi-
derar a tentativa de se estabelecer um equilíbrio. Esse combate é contraditório, com altos e
baixos, resistência e associação, autenticidade e inautenticidade, oposição e homogeneiza-
ção. Nesse sentido, não existem formas purificadas de culturas populares, pois estas sofrem
adaptações e sincronizações, que compõem as identidades culturais.
148 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Percebemos, assim, que a globalização


está presente em nossa sociedade desde
muito antes de seu termo ser aderido. A
interdependência dentre as nações gerou
uma série de consequências que interferi-

© Paula Cobleigh / / Shutterstock.


ram na construção da cultura global. Dessa
forma, podemos observar que as mudanças
ocorridas na alimentação, desde sua produ-
ção até sua distribuição, também possuem
suas raízes nesse fenômeno.

A alimentação, dentro de seus múlti-


7.1.2 Mudanças do processo de plos significados, aparece como um dos ele-
produção, circulação e consumo de mentos fundadores da economia. A capa-
cidade das forças produtivas em gerar ali-
alimentos no mundo globalizado mentos (além da necessidade do consumo
O processo de produção de alimentos imediato) fez com que estes servissem de
envolve intercâmbios complexos e naturais suporte para o desenvolvimento econô-
da humanidade, resultando no desenvolvi- mico, inserindo-os no comércio e auxiliando
mento de relações de poder e desigualda- no sustento de várias sociedades. Esses ali-
des, além de consequências para o meio mentos fizeram e fazem parte dos signifi-
ambiente, a sociedade e a saúde dos con- cados que compõem o mundo; são partes
sumidores. A produção de alimentos de essenciais que caracterizam as identida-
forma tradicional e local foi a primeira a des construídas nas casas, nos países, nas
ser experimentada, servia apenas ao con- regiões, variedades de preços, demandas
sumo da comunidade, a partir da conserva- e índices de produção, distribuição e con-
ção e manejo da diversidade agrícola local. sumo. A alimentação atual está relacionada
Com a evolução, a manufatura passou a ser intensificação do com rcio e adoção de
explorada com objetivos econômicos. novas tecnologias que auxiliam a produção,
a distribuição e o consumo, que expandem
hábitos padronizados (CARNEIRO, 2003).
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 149

istoricamente, as opções sociais, políticas e econ micas refletiram em mudanças no


modo de produção alimentar, especialmente a partir da década de 1990. A industrialização,
a globalização dos mercados alimentares e o impacto das questões nutricionais e dietéticas
desarticularam a coesão entre produção e consumo. A manufatura de alimentos em nível
industrial se sobrepôs à escala tradicional/artesanal (CRUZ; MATTE; SCHNEIDER, 2016). No
esquema a seguir, confira os refle os da globalização dentro da rea alimentícia.

Reflexos da globalização na produção de alimentos


Aumento da
produção mundial
de alimentos

Globalização da
alimentação

Redução de Aumento do
variedades de consumo de alimentos

© DTCOM
vegetais e animais processados

No quadro apresentado, notamos que modelo econômico marcado pela globaliza-


a globalização alimentar gerou mais conse- ção, que, em grande parte, concentra e
quências do que o aumento da oferta de ali- seleciona o mercado em nome da especiali-
mentos processados. Atualmente, a moder- zação, eficiência, produtividade e lucro.
nização da agricultura está de acordo com o Essa linha de raciocínio inclui produtores
150 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

mais eficientes as grandes ind strias que como benefício a variedade de produtos.
conseguem uma alta produtividade em (PRADO et al, 2016).
pouco tempo), que agem por meio da pro- Os benefícios gerados pela globa-
dução em larga escala e oferecem preços lização podem ser pontuados, como por
mais competitivos no mercado. Essa moder- exemplo, auxiliar a redução da pobreza e
nização pode ter como resultado a margina- fome na Á sia. Mas esse processo possibi-
lização de comerciantes e produtores em lita o aumento do controle dessas empre-
pequena escala, considerados ineficientes e, sas agrícolas sobre os mercados mundiais
muitas vezes, incapazes de competir com os e, com cada vez mais recursos tecnológi-
grandes produtores (MARAFON, SEABRA, cos empregados, produzem consequências
SILVA, 2012). de diversas tipologias, como os ecológi-
No entanto, devemos levar em conta cos (uso de adubos e agrotóxicos, desma-
que a produção industrial também tem tamento), além de alimentos produzidos
seus aspectos positivos, como disponibili- com maior produtividade a um custo mais
zar o alimento a um custo mais baixo que baixo causando prejuízo a economias locais
a artesanal aos consumidores. A tecnologia (pequeno agricultor) pelo comércio mais
de produção e organização também trouxe barato das grandes indústrias.

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HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 151

evolução erde ustificou suas ações


pela necessidade de novas tecnologias para
erradicar a fome. Mas notamos que não foi o
que aconteceu. A fome está mais atrelada à
pobreza, à falta de acesso de uma camada da
© Rvlsoft / / Shutterstock.

população aos alimentos do que ao volume


de produção. Um outro aspecto é que esse
movimento resultou na perda da identidade
cultural, na uniformização dos modos de
vida rural e urbana e na desvalorização do
A Revolução Verde, iniciada por volta
conhecimento em agricultura local. É impor-
de 1960, com a promessa de aumentar a
tante também frisar que os alimentos deste
eficiência da produção com o uso de tecno-
tipo de produção, quando não controlados,
logia, resultou na crítica por parte da socie-
são de baixa qualidade, com níveis perigosos
dade sobre o uso de fertilizantes e técnicas
de agrotóxicos e fertilizantes prejudiciais à
prejudiciais ao meio ambiente. Esse movi-
saúde e à economia local. (CORTESE, 2017).
mento trouxe o manejo de plantas geneti-
camente melhoradas, o que possibilitou o Porém, não devemos afirmar que
aumento da produção de cereais em diver- a globalização alimentar possui apenas
sos países (BERTHA, 2016). aspectos negativos. Ela, ao auxiliar a inter-
dependência dos Estados e a produção em
massa dos alimentos no mundo, pode ser
vista sob o aspecto evolutivo: com redução
A Revolução Verde foi uma tenta-
da pobreza e da fome em países emergen-
tiva de se resolver o problema da fome
nos países pobres, onde foram intro- ciais, pela facilidade de produção.
duzidas técnicas de produção e de tra- Dessa forma, o processo de globaliza-
balhos dominantes em nações ricas. O
ção alimentar alterou de forma significativa
objetivo era alcançar resultados melho-
res de produtividade agrícola. O lema o modo de produção, circulação e distribui-
seguido era: não existe remédio melhor ção de alimentos em todo o mundo. Grandes
para a fome, miséria e atraso que o pro- empresas agrícolas responsáveis pela pro-
gresso (ABRAMOVAY, 2017). dução de alimentos enxergam várias possi-
bilidades de expansão de suas atividades,
152 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

o que motiva o desenvolvimento de novas Esses hábitos sempre estiveram inte-


técnicas que interferem na produtividade grados à cultura das sociedades. Com as
de alimentos, tanto em aspectos positivos contínuas trocas entre povos, absorvidas de
quanto negativos. Se houve interferência no forma lenta, mas constante, alguns padrões
modo de produção e circulação de alimentos foram impostos sobre outros. As viagens,
ao longo do tempo, podemos admitir que as descobertas, colonizações e intercâmbios
escolhas e padrões alimentares dos consu- culturais entre as civilizações foram motivos
midores contemporâneos também sofreram suficientes para a diversificação, isto , os
alterações consideráveis. conhecimentos ultrapassavam os costumes
locais. Nesse contexto, as especiarias – obje-
7.1.3 Escolhas, hábitos e padrões tos de desejo em várias civilizações –busca-
das na Á sia, os insumos exóticos da Á frica e
alimentares na contemporaneidade as técnicas de cocção são exemplos dessas
O hábito alimentar, composto por trocas e das imposições sobre as culturas que
escolhas e padrões de cada civilização, é as absorveram para construção de sua pró-
investigado por diversas áreas do conheci- pria gastronomia (COSTA; LAGO, 2017).
mento, como a Antropologia, a História e a Hoje, a comida é considerada uma mer-
Sociologia. Desde a Pré-História, o homem cadoria de valor econômico, em escala glo-
adaptou-se ao meio ambiente e fez esco- bal, resultado do movimento do capitalismo,
lhas que construíram esses costumes. desde as questões relacionadas à fusão entre

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HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 153

empresas, à expansão do mercado, à amplia-


ção da capacidade de distribuição e à padro-
nização dos produtos. A alimentação acom-
panha a intensa transformação da indústria
de bens, o uso de tecnologia – que sempre
está avançando –, e participa de forma ativa
do comércio mundial, com auxílio dos meios
de comunicação.
Destacamos que essas mudanças nas
práticas alimentares nem sempre são assi-
miladas à multiplicidade dos alimentos.
A comida nova será aceita na forma de se

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alimentar de um indivíduo, grupo ou comu-
nidade quando assimilada por estes. Logo,
o processo de incorporação torna-se uma
ressignificação das práticas alimentares
tradicionais (PRADO et al., 2016).
Sobre as opções alimentares, é pre-
ciso levar em consideração que as diferen- As preferências alimentares constroem a
ças encontradas no espaço social resultam identidade dos padrões e escolhas alimen-
em diferentes estéticas e estilos de vidas. tares de consumidores de uma sociedade, e
Essas escolhas, feitas com base no hábito de sofreram alterações com o passar dos anos
determinada sociedade, marcam e impõem em todas as áreas relacionadas: produção,
distâncias. Por meio disso, os sujeitos sociais processamento e comercialização. Atual-
constituem para si mesmos sua estrutura mente, os impactos sociais são inúmeros:
social. A partir disso, podemos deduzir que uso intensivo do solo e de fertilizantes,
as preferências alimentares não são algo escolha de alimentação industrializada,
individual. Questões relacionadas à etnia, ao por se prática e rápidas em substituição de
status, ao prestígio e à economia são levados compras de produtos frescos e in natura
em consideração: o ato alimentar é rodeado em feiras e mercados locais por embalados
por questões biológicas, ecológicas e socio- processados em larga escala, o que interfe-
lógicas (PEIXOTO, 2015). re na saúde da população.
154 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Logo, o consumidor final, responsá- porar os novos perfis de consumidores.


vel por moldar as escolhas e preferências Estes também passaram por modificações
alimentares, também sofre interferência (hábitos alimentares e tipos de produtos
da globalização em suas decisões. Diversos alimentícios), já que a cultura alimentar foi
produtos produzidos, distribuídos e comer- fortemente influenciada, criando uma nova
cializados de diversas formas estão dispo- demanda a ser atendida.
níveis para que a clientela possa escolher.
O que conseguimos visualizar é que exis- 7.2.1 Demandas para uma nova
tem fatores que levam a uma maior prefe-
rência por praticidade na alimentação, em comensalidade
termos de preparo e consumo, delineada Podemos encontrar a comensalidade
por uma sociedade que precisa se alimen- em todas as relações sociais, em diferen-
tar cada vez mais rápido. Assim, os refle- tes classes e de diferentes formas: de fes-
xos da globalização impactam a mesa dos tas mais pomposas, como as de casamento;
cidadãos, pelas alterações da forma de ali- ao mais simples ato, como o de sentar-
mentação conforme o passar do tempo. -se à mesa para uma refeição cotidiana. A
comensalidade é experimentada desde os
7.2 Reflexos da globalização primeiros registros da humanidade. Diferen-
cia o comer biológico para saciar a fome do
A globalização atinge a todos em uma comer reunido, o que possibilita comparti-
sociedade, alguns de forma mais super- lhar a comida, o tempo e a companhia, isto
ficial e outros mais intensa. Por um lado, , gera novos significados alimentação.
ela serve para aproximar insumos e pes-
A palavra comensalidade deriva do
soas geograficamente distantes, facilita o
latim mensa, que quer dizer ato de conv iv er
acesso à tecnologia e à comunicação. Por
à mesa. Nesse sentido, importa a ela não
outro, a homogeneização de valores, prá-
apenas o que se come, mas como se come.
ticas, gostos e hábitos comprometem as
A partir desse termo, podemos observar
manifestações culturais locais.
que a alimentação passou a se estruturar
Dentro desse cenário, impulsionado na vida cotidiana, com a sociabilidade
pelo processo de globalização, novos mer- manifestada na comida compartilhada.
cados surgiram da necessidade de incor- Progressivamente, a comensalidade deixou
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 155

de ser puramente biológica para ser um mesmo que de forma indireta, uma necessi-
dos principais fatores que moldam a orga- dade individual), consumo individual em si,
nização da sociedade: a partilha de alimen- novo ritmo de trabalho (cada vez mais ace-
tos dentro de casa – necessidade primitiva lerado, com necessidade de produtividade
de segurança do homem. O ritual de sen- cada vez maior) e maior diversidade de pro-
tar-se à mesa tomou-se necessidade social dutos (CANESQUI; GARCIA, 2005).
(MOREIRA, 2010). A globalização impôs um estilo de
Com a evolução da sociedade, a comen- vida com novas expectativas de consumo,
salidade sofreu transformações. Houve inclusive nas orientações para as escolhas
mudança no processo de trabalho, principal- de alimentos. Na virada do milênio, o indi-
mente durante a Revolução Industrial. Entre víduo se sobrepôs à sociedade. Nesse
as consequências estão a especialização das cenário, as características joviais se sobres-
funções no preparo de alimentos e a meca- saem, com valorização de marcas mun-
nização das práticas. Uma das maiores con- diais. O j eans, o rock and roll, a Coca-Cola e
sequências foi a migração do campo para a o hambúrguer são os símbolos marcantes
cidade. Assim, surgiram novas necessida- dessa transição. Os jovens e adolescentes
des: aquisição (poder de escolha na compra, ganharam autonomia de escolha e as
consumismo de forma coletiva (incentivado indústrias visualizaram oportunidades
por grupos que podem interferir influenciar, nesse público-alvo.

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156 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Dessa forma, a sociedade de consumo o processo, a comensalidade tradicional


em massa desestruturou os sistemas tradi- (comer pausadamente em volta da mesa)
cionais, dentre eles os de controles sociais, cedeu espaço para o descartável e o fast- food
que regiam à vida, incluindo a alimenta- – consequência do modo de vida urbano
ção (SANTOS, 2005). Esta, como aspecto (FREITAS; FONTES; OLIVEIRA, 2008).
social importante para os indivíduos, Assim, a comensalidade contempo-
sofreu desestruturações dos padrões tradi- rânea se desenvolveu a partir de modi-
cionais até então. Dentro das modificações ficações em aspectos significativos que
que a sociedade passou nessa transição, o a sociedade vivenciou no decorrer dos
fast- food se destacou. anos. A atitude de rebeldia influenciou na
mudança do padrão de funcionamento
da sociedade, de modo que a alimenta-
ção também incorporou essas alterações
(como o ato de comer fora de casa, com
a reunião de amigos em lanchonetes). Os
comensais da contemporaneidade começa-
vam a experimentar cada vez mais os refle-
xos da globalização nos alimentos.
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7.2.2 Reflexos da globalização na


cultura alimentar
Os indivíduos tendem a adotar os
hábitos alimentares dos grupos sociais aos
quais estão inseridos. O gosto diferen-
Atualmente, diante da agitação da vida ciado, segundo Carneiro (2003), é o que
contemporânea, a comensalidade é caracte- caracteriza cada povo e a época de uma
rizada pela escassez de tempo para a elabo- mesma cultura; registros da Antiguidade
ração e consumo dos alimentos, atenuada já descreviam os aspectos estéticos da ali-
pelo uso de produtos inovadores no preparo mentação. Em âmbito geral, as principais
e na conservação da comida. Para acelerar influências vêm da família, o que resultam
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 157

em hábitos mais difíceis de serem altera-


dos. Os gostos alimentares, que são frutos
da construção cultural, histórica e social
dos indivíduos, mudaram após os séculos

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XVII e XVIII, juntamente com a evolução
das maneiras à mesa.
Grande parte da diversidade alimen-
tar é determinada pelas diferenças socioe-
conômicas. Apesar disso, devemos ter cui-
dado com generalizações interpretadas a
No entanto, a globalização alimentar
partir de dados econômicos, que, em alguns
também tem seus pontos positivos. A gastro-
casos, podem não contemplar característi-
nomia do mundo contemporâneo, embora
cas locais de adaptação, o modelo de con-
voltada ao consumismo, ainda se expressa
sumo dominante na região e os hábitos
no campo cultural. Como resposta à padro-
próprios dos indivíduos. As escolhas de ali-
nização do fast-food (que surgiu como con-
mentos também são culturais. No mais, é
sequência da globalização), as cozinhas
preciso frisas que esses fatores circundam
passaram a serem mais valorizadas, unindo
a alimentação no contexto da globalização
características globais e locais. Quanto maior
(FREITAS; FONTES; OLIVEIRA, 2008).
a originalidade e mais singular essa mistura,
A globalização provoca, de forma con- maior o reconhecimento (BUENO, 2016).
tínua, a soberania das culturas alimentares
e, como consequência, gera a individuali-
zação do comportamento de consumo. Na
O documentário Food Inc, indi-
contemporaneidade, os serviços e a indús- cado ao scar, critica a influência da
tria alimentícia fornecem infraestruturas indústria americana na alimentação. O
voltadas à otimização do tempo, item valo- filme nos leva a uma refle ão sobre a
rizado pelas pessoas (MOREIRA, 2010). cadeia de produção alimentar do fast-
- food, que busca produtividade e lucro,
Desse modo, comer é basicamente um
sem dar atenção às consequências à
ato de reabastecimento. Na alimentação saúde de quem consome esses alimen-
fora de casa, é alta a demanda de produtos tos (FOOD..., 2008).
semi-prontos e de entrega rápida.
158 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

A globalização contribuiu para a des- viável economicamente (produção em larga


centralização da gastronomia, antes vol- escala). Essas questões atreladas às etapas
tada à Europa, para o reconhecimento de de produção, distribuição e consumo acar-
outros países, como os asiáticos (entre eles: retam consequências, como a necessidade
China, Í ndia e Japão) e os americanos (Bra- de mais mão de obra qualificada em proces-
sil, México e Estados Unidos). Devemos lem- sos de compra, controle de estoque e outros
brar que descentralizar a gastronomia não processos típicos de grandes indústrias
significa romper o reconhecimento cultural (BECK ER; REIFSCHNEIDER; HENZ, 2014).
de cada região em prol do desenvolvimento Dessa forma, com o mercado da ali-
econômico, até porque um está ligado ao mentação aberto a novas possibilidades,
outro. As constantes inovações na gastrono- as economias e culturas de diversas partes
mia asiática e latino-americana são alimenta- do mundo se aproximam, o que resulta na
das por chefs que viajam para lugares escon- entrada de produtos importados e no esti-
didos por todo o mundo, em busca de ingre- mulo ao aumento dos níveis de exigência
dientes e técnicas esquecidas, para torná-las do mercado nacional. Assim, ser competi-
conhecidas do público (BUENO, 2016). tivo é requisito fundamental para a perma-
Além da descentralização da gastro- nência nesse segmento econômico. Com
nomia, a globalização alimentar fomenta a incidência desses fatores que interferem
oportunidades e dificuldades na economia, na escolha final do consumidor, observa-
atreladas s questões ambientais, influen- mos que o perfil deste também passou por
ciam diversas etapas, desde a produção de modificações em suas escolhas e hábitos
alimentos (como aspectos relacionados ao relacionados à alimentação.
gasto de água, uso de fertilizantes e agro-
tóxicos) até sua distribuição e consumo 7.2.3 As mudanças no perfil do
(distância entre os centros de produção,
gerando a necessidade de uso de transpor- consumidor em relação à comida
tes). Com todos esses fatores interferindo A sociedade contemporânea, quando
na disponibilidade e no preço final dos ali- comparada com períodos anteriores, pos-
mentos, a escolha do consumidor transita sui mais acesso a informações e cada vez
entre o que está mais disponível e mais pró- mais percebe o alimento como compo-
ximo (agricultura familiar) e o que é mais nente de bem-estar, saúde e qualidade de
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 159

vida. Apesar disso, observamos de forma as pessoas comem fora de casa, de forma
mais intensa as mudanças do consumi- rápida e possuir dietas ricas em gordura e
dor atual, que adotou a refeição rápida, o açúcar (JUNIOR; PINTO; LEDA, 2016).
ato de comer em pé ou enquanto realiza
alguma outra atividade.
Com essa motivação, a demanda de
produtos alimentícios que atendam às
necessidades de uma nova rotina aumenta
a cada dia, o que é influenciada por diver-
sos fatores, entre eles a taxa de cresci-
mento e o nível de escolaridade da popula-
ção, a estrutura e o tamanho das famílias,
a distribuição de renda e os aspectos étni-

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cos, religiosos e políticos. Devemos ressal-
var as questões geopolíticas relacionadas
à alimentação, as quais vislumbram tem-
pos de crise, com o aumento da escassez
A inserção cada vez mais acentuada
de água e terras para plantação de muitos
da mulher no mercado de trabalho, tam-
países, assim, os alimentos passam a valer
bém contribuiu para a renovação no per-
cada vez mais.
fil de consumo da comida, o que também
Frente a esses fatores que interferem motivou a produção de alimentos pré-pre-
na produção de alimentos, o novo consumi- parados como suporte a uma nova reali-
dor est su eito a mudanças em seu perfil dade. Essa inserção foi um dos principais
e vê-se diante de um mercado que foca no acontecimentos que modificaram a estru-
consumo alimentar de um conjunto redu- tura tradicional da presença feminina de
zido de alimentos industrializados, que se forma exclusiva nos lares. A inserção da
convertem em diversos itens de consumo mulher no mercado de trabalho veio de
relacionados a uma dieta inadequada. A ideais originadas no contexto da Revolução
sociedade atualmente é alertada sobre os Francesa e do Iluminismo, com a conscien-
riscos à saúde originados por essas altera- tização de que a mulher deveria possuir
ções de padrões alimentares: cada dia mais direitos semelhantes aos dos homens.
160 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

A consolidação dessa entrada feminina A refeição em família passou a ser


no mercado ocorreu na eclosão da Revo- mais rara, realizada de forma semanal ou
lução Industrial, iniciada no século XVII, mensal. O aumento da escolaridade e do
com as invenções das primeiras máquinas. nível econômico; o acesso a carros, lazer e
A Revolução Industrial, em todas as suas turismo também foram fatores decisivos
fases, foi de extrema importância nesse para a popularização das refeições práti-
aspecto de inserção, pois precisou contar cas e fora de casa. Essa mudança de hábito
com grandes contingentes de trabalhado- estimulou o consumo de alimentos hiper-
res, utilizando-se, assim, de mão de obra calórico, principalmente pelos jovens. Para
feminina, além de crianças. Mais tarde, com essa faixa etária, ainda hoje, comer fora
a ida dos maridos para a Primeira e Segunda representa independência na escolha do
Guerra Mundial, as mulheres tomaram a que se come e com quem se come.
frente dos trabalhos e das responsabilidades Nesse contexto, a refeição em grupo,
antes não atribuídas a elas. como forma de interagir de uma comuni-
Essas mudanças de papeis, colocando dade, passa a dividir espaço com o isola-
as mulheres dentro do mercado de traba- mento do ato de comer, o que é induzido
lho, ocorreram no mundo inteiro, e com o pelo próprio mercado. Este apresenta faci-
processo contínuo de globalização e aca- lidades, como embalagens que esquentam
bou gerando consequências importantes no micro-ondas, porções individuais e prá-
no funcionamento da família tradicional. ticas para que possam ser consumidas de
Dentre elas, podemos citar a contribui- forma rápida (MOREIRA, 2010).
ção financeira e o poder de barganha da
mulher no ambiente doméstico. Antes, o
homem possuía papel de provedor do lar,
enquanto a mulher se ocupava de afazeres
domésticos e cuidados com os filhos. Com

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as longas jornadas de trabalho, a dedica-
ção das mulheres em tempo integral ao lar
foi impossibilitada, como o cuidado dos
filhos e do marido, da casa e, consequente-
mente, da alimentação.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 161

ssa situação de maior acesso e fle i- seu comportamento na sociedade. A indus-


bilização nas refeições caracteriza o consu- trialização, o modo de produção e consumo
midor das sociedades industrializadas. Esse em massa, a disponibilidade de alimentos
comensal contemporâneo tem mais liber- pré-prontos e os novos hábitos (sociais e
dade para escolher sua alimentação e sofre alimentares) que a sociedade aderiu na con-
a influência de informações tanto publicit - temporaneidade foram os principais fato-
rias quanto médicas. Nos lares, as refeições res que influenciaram nessa modificação do
familiares, em horários irregulares e com comportamento do consumidor.
tempo reduzido, são cada vez mais indivi- A globalização foi algo inevitável em
dualizadas. É comum o marido e a esposa todo o mundo, com seus aspectos positi-
comerem alimentos diferentes. Os gostos vos e negativos. O aumento da produção
particulares se sobrepuseram ao coletivo, de alimentos, a modificação do modo do
como o argumento da diversidade alimentar. que e de como se alimentar, assim como
De outra forma, surgem os novos con- a ressignificação do ato de compartilhar
sumidores. Estes têm seus hábitos susten- uma refeição sofreram interferências da
tados por refle ões relacionadas solidarie- interdependência entre as nações. Conse-
dade, ao pacto familiar, ao consumo verde, à quências foram inevitáveis, tanto positivas,
sustentabilidade e ao equilíbrio do multicul- entre elas o aumento do acesso cultural de
turalismo; que vão de encontro ao consumo outras nações, como a presença de restau-
de massa (CANESQUI; GARCIA, 2005). rantes internacionais; e outras negativas,
Diante dessa realidade, o consumidor em que podemos citar a desvalorização
se vê como tomador de decisões que repre- da gastronomia local em prol do consumo
sentam o contexto social em que está inse- de uma alimentação produzida em massa,
rido, utilizando-se de valores que se inte- como o caso de grandes indústrias alimen-
gram em diversas esferas relacionadas ao tícias e fast- foods.
162 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

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Capítulo 8
Gastronomia e saúde

A história da alimentação humana é marcada pela necessidade de aumentar a produ-


ção de alimentos, assim como sua disponibilidade. Atualmente, temos mais opções de ali-
mentos e em maior volume do que nunca. Diante disso, para se ter acesso a esse bem (ou
não), surgem os desafios de escolha, gerenciamento da diversidade e do conhecimento dis-
ponível do que é saudável ou não. Essa pluralidade pode ser notada em supermercados e
restaurantes, com lançamentos, marcas diferentes e diversos produtos e serviços que aca-
bam por criar certas dificuldades aos consumidores quanto à escolha destes.
Dentro dessa perspectiva, novas ofertas surgiram, como os fast- foods, inseridos, ini-
cialmente, por uma demanda crescente de alimentação fora de casa e, posteriormente, dis-
seminados pela mídia. Por outro lado, observamos a reflexão sobre a refeição rápida a par-
tir de alimentos pouco nutritivos, que resultaram em reações culturais à alimentação, como
o slow food (alimentos regionais preparados para serem consumidos de forma mais cons-
ciente e proveitosa) e comfort food (comidas que resgatam memórias ou sensações de con-
forto durante seu consumo).
Assim, a introdução de conceitos que reagiram ao fast- food abriu espaço para outras
formas de consumo, aumentando a variedade de estabelecimentos e novas maneiras de va-
lorizar a alimentação. Desse modo, ao coexistirem em nossa realidade, vamos procurar co-
nhecer um pouco mais sobre esses movimentos.
166 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

8.1 O padrão alimentar americano: os fast-foods


O hábito de comer fora de casa é algo da alimentação envolve diversos fatores,
mais antigo do que se pode imaginar, visto que englobam aspectos de como o alimento
que a criação dos restaurantes remonta o foi adquirido, como foi preparado, servido
século XVIII. Porém, esse costume ganhou e consumido. Estas particularidades juntas
forças ao longo do século XX, assimilado formam as expressões culturais e sociais
por várias camadas sociais, o que contri- de um povo. Elas são características funda-
buiu para a difusão gastronômica em uma mentais de uma identidade social. Já o con-
era de intensa globalização. ceito de saúde atrelado à alimentação, esta-
Dessa forma, a inserção do estilo ria relacionado às disposições corporais, ou
fast- food no mundo contemporâneo é alvo seja, condições que o corpo pode vivenciar
de estudos que relacionam sua necessidade de acordo com propriedades atribuídas a
a uma crescente demanda social de comida certos alimentos e situações cotidianas liga-
rápida. Contudo, há consequências atre- das direta ou indiretamente aos alimentos.
ladas a essa modalidade, principalmente Nessa perspectiva, o alimento tem
com relação aos produtos e técnicas utili- a função primordial fisiol gica de nutrir o
zados para que possua características prá- corpo, mas adquire novas significações.
ticas, como o uso de conservantes e conge- noção de cuidado por meio da alimenta-
lamento de alimentos semiprontos. Nesse ção, de forma a promover a saúde e o bem-
sentido, a saúde do consumidor é posta em -estar é cada vez mais valorizada. Uma das
jogo e as discussões que envolvem esta te- grandes preocupações do comensal é saber
mática ganham cada vez mais destaque. o que comer assim como a quantidade ne-
cessária a ser consumida. Essa questão com
8.1.1 Alimentação e saúde x proporções de consumo, vivenciada com
mais ênfase em períodos de guerra no ge-
comida e cultura ral, está presente na contemporaneidade.
O alimento é um dos símbolos básicos Porém, ela refere-se agora aos excessos e
da sociedade. A comida faz parte da vida de à necessidade de restrições de consumo de
todos os seres vivos e este ato transcende a certos tipos de alimentos, em busca de um
satisfação biológica, que é a fome. A cultura equilíbrio (FONSECA et al., 2011).
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 167

ou substâncias sedantes que podem cau-


sar alucinações ou interferir no compor-
tamento normal do consumidor. Dessa
forma, o uso desse tipo de produto pode
gerar reflexões sobre o comportamento
moral ou aquisição de autocontrole sobre
© Pathdoc / / Shutterstock.

esse consumo (CARNEIRO, 2005). A inges-


tão destes também desperta questiona-
mentos quanto às consequências à saúde
do consumidor.
Quando abordamos as questões re-
Podemos observar em quase todas as
lacionadas à saúde, a ciência nutricional
culturas que o alimento está relacionado a
possui grande importância no estudo da
questões de saúde. O tipo de dieta e as ex-
composição dos alimentos. Com cada vez
plicações médicas para sua utilização sempre
mais espaço dentro da medicina, tem como
foram grandes influências para as atitudes
princípio que se alimentar bem é uma
tomadas diante da comida. Nesse sentido
forma de prevenção. A partir desse racio-
são levados em conta o que mais se adequa a
cínio, os alimentos passaram a ser conside-
certas idades, gêneros, compleições físicas e
rados agentes estruturantes das escolhas
doenças que acometem o indivíduo.
alimentares contemporâneas. Porém, essa
Nesse sentido, também é importante visão contraria interesses de grandes em-
destacar os alimentos que possuem pro- presas agrícolas, indústrias alimentares na-
priedades que “alimentam o espírito”, com cionais e internacionais e agentes da mídia,
efeitos psicoativos e alucinógenos, muitas que lucram com a propagação e a venda de
vezes, considerados sagrados por algumas produtos (processados) que, nem sempre,
religiões. Chamados de alimentos-droga, são saudáveis aos consumidores. Sendo as-
temos como exemplos vários fermenta- sim, percebemos que a correlação corpo e
dos, entre eles a cerveja, o vinho e o saquê, comida transcende o sentido básico e está
além de outras bebidas do tipo destilada ligada a questões políticas, econômicas
(como w hisk y e vodca). Esses “alimentos” e científicas (PORTILHO; CASTAÑ EDA;
são excitantes, com presença de cafeína, CASTRO, 2011).
168 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

8.1.2 A relação das escolhas da


alimentação e os novos estilos de vida
A alimentação e o ato de se alimentar
são desenvolvidos a partir de regras impos-
tas pela sociedade, meio ambiente, história
particular e valores do grupo social o qual
o indivíduo detentor de escolhas está inse-

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rido. Assim, a alimentação humana, muito
além de satisfazer necessidades puramente
biológicas, está relacionada a desejos so-
ciais e culturais.
O consumo alimentar é caracterizado
Dentro dos aspectos que envolvem a pelas opções escolhidas pelos seres huma-
saúde e a cultura alimentar, a divulgação da nos. Isso constitui um processo complexo
ciência pelos meios de comunicação e pu- que engloba aspectos socioculturais e psi-
blicidade também gerou consequências. A cológicos: as decisões são baseadas em
cultura contemporânea está marcada pelo reflexões conscientes e também de forma
surgimento acelerado e desorganizado de automática e subconscientes (ESTIMA;
informações, fazendo com que diversos fa- PHILIPPI; ALVARENGA, 2009).
tores contribuíssem para desorientação do Em alguns aspectos da vida, como o ca-
comensal. Podemos listar diversos exem- samento e a educação de crianças, a socie-
plos, como a mídia, o governo, os discursos dade já pré-determinava as escolhas. Certos
dietéticos contraditórios, os livros de dietas modelos utilizados para esse tipo de opção
e regimes e os livros de receitas, manuais já vinham moldados por religião ou tradições
gastronômicos e manuais de nutrição, pres- familiares. Na contemporaneidade, essa de-
crições médicas, nutricionais, proibições e limitação diminuiu significativamente nas
permissões e entre outros fatores que, jun- mais diversas áreas e de forma bem mar-
tos e sem uma análise mais aprofundada, cante na alimentação. Nesta, os indivíduos
contribuem para aumentar as incertezas se veem cada vez mais de frente à necessi-
dos consumidores (FONSECA et al., 2011). dade de fazerem suas próprias escolhas, se
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 169

distanciando do âmbito coletivo e se aproxi- alimentar atual. A partir disso, o consumidor


mando do exercício de sua autonomia. se vê rodeado de diversas opções. Logo, as
As práticas alimentares sofreram diver- escolhas são guiadas pela mídia. Podemos
sas influências desse e ercício de indepen- perceber, por exemplo, que a possibilidade
dência. Quando ocorre de forma crescente, de comprar produtos e consumir novidades
esta tende a ficar ausente de regras e nor- disponíveis em grandes redes de supermer-
mas, como critérios necessários para a to- cados deslumbram a mente do consumidor
mada de decisões (morais, econômicas, entre (ALMEID; NASCIMENTO; QUAIOTI, 2002).
outros). Uma das principais características Muitas escolhas e hábitos alimentares
derivadas dessa autonomia de escolha ali- são adquiridos como refle o da publicidade
mentar da contemporaneidade é o excesso e mark eting existentes. A evolução dos meios
de consumo de determinados tipos de pro- de comunicação auxiliou nessa difusão, o que
dutos, por conta da diversidade de opções hoje gera mensagens publicitárias que che-
alimentares, divulgados pelo mark eting e gam ao consumidor em tempo real. Diante
pela mídia (FONSECA et al., 2011). disso, o consumidor tem se afastado da dieta
tradicional e adota, cada vez mais, hábitos da
nova dieta ocidental, com menor consumo
de frutas e verduras, fibras e produtos l c-
teos saudáveis. Por outro lado, aumenta o
© Abscent / / Shutterstock.

consumo de lanches com alto valor calórico,


baixo valor nutritivo e bebidas açucaradas
(CRAVEIRO; CUNHA, 2007).

Vivemos em uma sociedade a qual di- Essas escolhas atuais geraram novos
versas ofertas, dietas e comportamentos padrões alimentares, novos hábitos e costu-
são veiculados todos os dias para o con- mes que aos poucos incorporaram novas for-
sumidor. A indústria dos alimentos utiliza mas de consumo alimentar, motivadas pela
diversos canais para difundir essas men- globalização e modernização da alimenta-
sagens (rádio, TV, internet, jornais e revis- ção. Com essas alterações, observamos es-
tas). Assim, a publicidade alimentar, com o tabelecimentos com movimentos gastronô-
papel de promover a compra e consumo de micos inovadores surgirem para atender às
alimentos, influencia diretamente a cultura necessidades dos novos comensais.
170 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

8.1.3 Os novos movimentos gastronômicos (Fast-Food, Slow Food, Comfort Food)


A alimentação contemporânea é cercada por novos produtos alimentares, bem como
novas regras à disposição do comensal, o qual se adapta conforme seu padrão de consumo.
Diversos são os caminhos que levam às escolhas alimentares, e estas são regidas por princí-
pios baseados em necessidades, mas que tamb m podem ser influenciadas por crit rios eco-
lógicos, vegetarianismo, dietas da moda, consumo de alimentos orgânicos, ou simplesmente
praticidade – oferecida pelos restaurantes fast- foods.
O termo fast- food possui in meros significados como apresentado no quadro a seguir
e tem como criadores os irmãos Richard e Maurice Mc Donald, fundadores da marca McDon-
ald’ s. Ao abrirem um driv e in em rcadia, na alif rnia, no fim da d cada de , eles dispo-
nibilizavam aos clientes serem servidos dentro dos carros, o que auxiliou na propagação de
um estilo de alimentação industrializada. Richard e Maurice incorporaram o conceito de rapi-
dez ao servir uma refeição completa em 15 segundos (FLANDRIN; MONTANARI, 1998).

Definições para o termo fast-food

Alimentação industrializada à base de sanduíches cárneos, embutidos, queijos ama-


relos e molhos cremosos, protagonizado pelo hambúrguer, batata frita e refrigerante.
Calórica, rica em açúcar, gordura, sal e pobre em vitaminas e minerais.

Sentido literal da " comida


Modelo de lanchonete, Sistema alimentar que se
rápida" ou todo tipo de
restaurante, estabeleci- configura como moderno e
comida que é servida no
mento ou loja, onde é marcado pelo consumo
menor tempo possível.
servida a refeição rápida. preferencial de alimentos
Buffets e comidas por
Caracterizado pela industrializados, pelo comer
peso também podem se
comida, serviço eficiente, fora de casa e pelo uso de
enquadrar nessa
muitos eletrodomésticos.
© DTCOM
padronizado e impessoal. classificação.

onte T T , ,p - . daptado .
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 171

Assim, podemos observar que o fast- produtos rápidos. É importante frisar que
-food não se resume a apenas uma lancho- a imagem do fast- food está cada vez mais
nete, ou a marca McDonald’ s. No caso dos atrelada ao estilo de vida pós-industrial e
serviços, a velocidade em que as prepa- globalizado, adequada ao novo comporta-
rações são realizadas é compatível com o mento alimentar do mundo contemporâneo
ritmo de vida das pessoas nas grandes cida- (FREITAS; FONTES; OLIVEIRA, 2008).
des. É justamente por suas facilidades que o
sucesso dos fast- foods é garantido. Poten-
cializado pela globalização, está presente
em todo o mundo (LEAL, 2010).

© Pogorelova Olga / / Shutterstock.


Você sabia que, por mais fa-
moso que fosse, o McDonald’ s não
foi a primeira marca de lanchonete
fast- food no Brasil? A primeira brasi-
leira foi o Bob’ s, inaugurado em 1952.
O estabelecimento era considerado
Os fast foods podem ser considerados
o ponto de encontro de jovens da ci-
dade do Rio de Janeiro, que servia
como restaurantes não convencionais, com
sorvetes e sanduíches “diferentes” alguns métodos reduzidos. Como exemplo,
(NASCIMENTO, 2007). podemos citar a economia em atendimento,
pois não se utilizam de garçons: os pedi-
dos são realizados diretamente no caixa.
O fast- food pode ser considerado uma Durante o preparo dos alimentos, o tempo
vertente da modernidade alimentar, mar- também é reduzido, pois os insumos já es-
cado por um conjunto de práticas que en- tão pré-preparados e o trabalho é segmen-
volvem escolhas e rompem com os modelos tado e dividido pelos funcionários. Desta
tradicionais de alimentação dos comensais. forma, o cliente recebe seu pedido em mi-
Está relacionado ao abandono das refeições nutos e servido em uma bandeja. Assim, o
em família no ambiente domiciliar, à pressa serviço de fast food possui praticidade, atra-
para comer, à informalidade, à receitas e vés de sua agilidade e alta rotatividade de
172 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

clientes (pois após o consumo, os clientes Nesse sentido, em oposição à ascen-


saem do estabelecimento, disponibilizando são da cultura Fast-Food, surgiu o Slow
novos lugares a serem ocupados (FREIXA; Food. Esse movimento surgiu na Itália, em
CHAVES, 2009). 1986. Fundado por Carlo Petrini, um jorna-
Em contrapartida, há os aspectos ne- lista que defendia a resistência ao fast- food,
gativos de tanta praticidade, a começar tem como bandeira a valorização de se co-
pela padronização da alimentação, se con- mer devagar, com tranquilidade, e apela
siderarmos o acesso à diversidade alimen- para a educação do comensal em aproveitar
tar um fator positivo da globalização. Além o gosto dos alimentos e o apreço pela bio-
disso, também são levantadas questões diversidade alimentar. O slow food reúne di-
entre o consumo de fast- food e a saúde do versas áreas que envolvem a produção e o
consumidor. Alimentos com alto teor de consumo de alimentos; aproxima consumi-
sódio, açúcar e gordura estão presentes dores, produtores, jornalistas, pesquisado-
nesse tipo de alimentação, e estão direta- res, entre outros (SANTOS, 2005).
mente associados a doenças como hiper-
tensão, hiperlipidemia, diabetes e obesi-
dade , , .

© Tinxi / / Shutterstock.
O slow food tem como objetivo unir o
prazer da boa alimentação com a conscienti-
© Nnattalli / / Shutterstock.

zação sobre a responsabilidade de consumo


e produção de alimentos. Assim, o consumi-
dor, ao estar bem informado, torna-se copro-
dutor. Com a oposição direta à padronização
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 173

alimentar, incentiva o consumo de produtos boas lembranças. Por essa característica,


artesanais e de qualidade superior, logo, esti- podemos dizer de forma mais objetiva que
mula a agricultura familiar e local, o que pres- o comfort food evoca conforto psicológico
tigia a gastronomia regional. egundo a filo- em quem o consome e, assim, gera prazer
sofia do slow food, o alimento apreciado deve durante o ato de se alimentar (MINASSE,
ser bom, limpo e justo, isto é, precisa ser cul- 2016). Vejamos a seguir as categorias desta
tivado de maneira limpa, sem prejuízo à modalidade.
saúde, meio ambiente e aos animais, além de
resultar ao produtor em um valor justo pelo
seu trabalho (SLOW FOOD BRASIL, 2007a). No Brasil, o slow food possui os
Atrelado à apreciação dos alimentos “convívios”, que são reuniões de gru-
pos locais desse movimento. Nesses
de forma contrária ao F ast- F ood, outro mo-
encontros, os produtores organizam
vimento desponta na alimentação contem- campanhas de proteção dos alimen-
porânea: o C omfort F ood. Como o próprio tos tradicionais e palestras, além de
nome indica, este é baseado em comida degustações e encorajamento dos
que gera sensação de conforto, alívio emo- chefs de utilizar esses alimentos locais
(SLOW FOOD BRASIL, 2007b).
cional e é resultante de escolhas voltadas a

Categorias de comfort food e seus significados


Categoria Significados
Identificadas a um período e/ou lugar expressivos na história individual do
Comidas nostálgicas
sujeito.
Comidas de indulgê ncia Despertam sentimento de perdão no sujeito.
Comidas de conveniê ncia Comidas fáceis de serem obtidas ou preparadas.
Comidas de conforto físico Alimentos cujas composições físico-químicas geram sensação de bem-estar.

Fonte: MINASSE, 2016, p. 97. (Adaptado).


174 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

O quadro apresentado elenca os diver- Note que o se alimentar na contem-


sos tipos de comida que podem ser conside- poraneidade tornou-se um dos reflexos
rados comfort food. Este termo, como ali- das mudanças da sociedade. Estas altera-
mento que traz conforto psicológico por ram a rotina do ser humano e fez com que
meio de refeições que produzem consolo o tempo gasto com as atividades fosse re-
(geralmente associados à infância e comida definido. Com a inserção do fast- food, em
caseira), foi conceituado no século XXI. O grande parte como uma resposta a neces-
preparo dos alimentos dessa forma se eleva a sidade de praticidade, algumas consequên-
uma dimensão nostálgica, uma espécie de cias foram levadas em conta, como a saúde
apelo sentimental despertado no comensal. do consumidor e a desvalorização gastro-
De uma maneira paralela, o comfort food nômica regional. Foi por meio de movi-
também pode ser interpretado como alimen- mentos de contrapropostas, como Slow
tos que são consumidos em momentos de Food e Comfort Food, que se buscou ou-
estresse e que evocam emoções mais positi- tros olhares sobre o ato de comer.
vas, e também associados a relações sociais
importantes (SANTOS 2008). 8.1.4 A reação aos fast-foods
Entre um de seus significados, o
termo fast- food é conceituado como lo-
cal de venda de comida pronta e lanche
de consumo imediato. Esses restaurantes
são julgados inferiores na gastronomia,
por serem locais estereotipados, insípi-
dos e assépticos, causando desvalorização
das culinárias regionais e padronizando as
refeições. Apesar disso, atendem a uma
crescente demanda de consumidores que
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vivem em uma era de falta de tempo para


realizarem suas refeições.
Uma das associações mais recorrentes
à comida fast- food é o seu risco à saúde,
com prevalência de doenças relacionadas
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 175

ao consumo intenso desse tipo de alimen- Efeitos positivos foram atribuídos a esse
tação. Embora a publicidade trabalhe a tipo de consumo, pois eram ressaltadas as
favor do consumo dessa modalidade, pa- influências positivas na fisiologia gastroin-
trocinada pelas grandes indústrias agríco- testinal, na imunidade, na prevenção de
las e alimentícias, uma outra abordagem doenças cardiovasculares e outras crônicas,
vem sendo construída. O risco à saúde como diabetes e obesidade (FREITAS; FON-
está cada vez mais presente e divulgado. TES; OLIVEIRA, 2008).
Um novo perfil de consumidor, mais cons- Outra medida referente ao consumo
ciente, se delineia para uma realidade de de fast- food consiste na necessidade de
reflexão sobre o que se consome. se controlar a publicidade voltada a esse
tipo de produto. Isso porque um dos fato-
res que estão relacionados ao aumento da
obesidade, por exemplo, é a exposição de
alimentos ultraprocessados em propagan-
das, o que interfere no processo de escolha
dos produtos pelos indivíduos. Logo, é pre-
ciso que haja regulamentações a serem ins-
tauradas, com ações específicas para con-
trolar a publicidade de alimentos.
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No entanto, as associações represen-


tantes de indústrias de alimentos e bebidas
tendem a reagir contra esse tipo de mo-
nitoramento, por considerarem que a re-
gulação da publicidade de alimentos pode
A reação ao fast- food se manifesta interferir no livre direito de escolha do ci-
desde a d cada de e intensificou-se por dadão. Porém, é dever do Estado zelar pela
volta dos anos 1990 na própria sociedade saúde dos cidadãos e protegê-los de possí-
americana. Uma das contraposições mais veis manipulações e enganos que estejam
conhecidas foi a ingestão de alimentos fun- relacionados ao consumo desse tipo de
cionais (como azeite de oliva, vegetais ricos produtos (MAIA et al., 2017). A seguir, con-
em fibras e laticínios ricos em probi ticos . fira o quadro sobre a história do fast- food.
176 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Evolução da alimentação a partir do movimento fast-food


Surgimento de movimentos
Expansão dos fast- foods por
em contraposição à
Criação da marca de todo o mundo,
alimentação rápida e
fast- food mais conhecida do principalmente após 1960.
padronizada dos fast- foods:
mundo, McDonald' s, pelos Caracterização da
o Slow Food, que defende a
Richard e Maurice McDonald alimentação prática pela
gastronomia regional, e o
(década de 1940) e a ausência de tempo, refle o
Comfort Food, o qual
primeira utilização do termo das mudanças ocorridas no
valoriza refeições que
fast- food. mundo após a Revolução
despertam boas memórias

© DTCOM
Industrial.
e causam bem estar .

Fonte: FREITAS, FONTES, OLIVEIRA (2008) Adaptado.

O quadro acima mostrou a evolução da alimentação a partir da inserção do fast- food


e sua modificação com o passar do tempo. O Slow Food e o Comfort Food foram exemplos
de movimentos que possibilitaram diversificar o olhar para a refeição. Estes resultaram em
mais opções para o consumidor e, provou, dessa forma, que a alimentação é mais do que
comprar e consumir de forma rápida. Assim, com todas essas opções alimentares à disposi-
ção, observamos novas tendências na contemporaneidade.

8.2 As tendências alimentares da contemporaneidade


Os hábitos alimentares são formados a partir de fatores como grupos em que o indi-
víduo está inserido – a família e a escola, por exemplo –, e outros atrelados à religião, ou
alguma especificidade – como vegetarianismo e veganismo. Além dessas influências, os há-
bitos também são moldados com base em questões socioeconômicas, culturais e políticas.
Com as mudanças sofridas pela sociedade, os costumes alimentares também se alteraram,
adequando-se a uma nova realidade.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 177

A maior parte das refeições, antes A demanda atual é gerada pelo modo
feita em casa, passou a ser realizada fora de vida contemporâneo, em que o comen-
dos domicílios. Desde o século XVIII, os sal necessita readequar o ritmo de vida,
restaurantes constituem espaços privile- incluindo em quais locais se alimentará, o
giados, em que podemos observar as mu- tempo que gastará e os recursos financei-
danças na forma de comer. Com o passar ros que estarão disponíveis. O surgimento
do tempo, modificações no padrão de con- dessas necessidades gerou mudanças dos
sumo alimentar ocorreram, em todos os padrões de consumo alimentar. Assim, in-
níveis da sociedade, influenciadas por cada fluenciadas pelo poder aquisitivo de com-
período histórico, variáveis biológicas, en- pra e pela mídia, delineou-se um novo per-
tre outros aspectos (FONSECA et al., 2011). fil de consumidor: o que prefere consumir
A partir dessas variáveis, que interfe- alimentos práticos e rápidos, atraídos pelos
riram nos padrões de consumo alimentar, novos lançamentos e variedades de produ-
podemos explanar as mudanças experi- tos alimentícios.
mentadas na contemporaneidade. O ritmo A industrialização exerceu papel signi-
acelerado passou a ditar novas regras ali- ficativo nessas mudanças, com produções
mentares, de modo que a sociedade sentiu em larga escala, sendo distribuídas a todos
a necessidade de se adaptar. os lugares e potencializadas pelas propa-
gandas. Dessa forma, o comensal urbano
8.2.1 A mudança nos padrões de se vê cercado por diversas opções, gera-
das por: novas técnicas de conservação de
consumo alimentar alimentos; preparo fácil e rápido; imensa
Atualmente, modalidades de con- variedade de itens alimentares; crescente
sumo envolvendo cadeias de produção oferta de alimentos que podem ser con-
complexas, montadas por grandes empre- sumidos durante deslocamentos (a pé e
sas agrícolas, redes de supermercados e transportes); extenso número de delive-
comida fast- food existem em muitos paí- ries; diversidade de estabelecimentos de
ses. A tecnologia implantada à produção e alimentação, como lanchonetes, padarias e
aos serviços de alimentação serve de su- vendedores ambulantes , .
porte a essa nova realidade.
178 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Observamos que as mudanças na ali- de alimentos processados, embalados e


mentação vieram de uma transição alimen- acrescentados de aditivos e conservantes
tar que ocorreram de forma simultânea a (CORTESE et al., 2017).
outros acontecimentos sociais no decorrer É importante considerar que essas mu-
da história. Entre eles, podemos citar: ta- danças alimentares ocorreram progressiva-
xas de natalidade e mortalidade; padrões mente, a partir do século XIX, com a Revo-
de saúde e doença; aumento da desnutri- lução Industrial. O aumento da comerciali-
ção e doenças crônico-degenerativas. To- zação, a entrada da mulher no mercado de
dos esses fatores estão atrelados ao es- trabalho e a forma que o indivíduo passou
tilo de vida considerado urbano-industrial, a interagir com a coletividade ficando mais
cujos consumidores não possuem tempo tempo fora de casa, comendo em pouco
para realizarem refeições mais demoradas tempo e, muitas vezes, de forma isolada,
e que necessitam de praticidade. Nesse ao invés de compartilhar refeições) foram
sentido, a alimentação se modificou desde grandes influenciadores da modificação das
o modo de preparo aos sabores, o que, relações entre comensais e alimentação da
consequentemente, resultou no aumento era contemporânea. Além disso, observa-
da variação de preparações, com maior di- mos que, também ocorreram mudanças po-
versidade de ofertas, ricas em gorduras sitivas geradas por essas alterações, como a
saturadas e açúcar refinado, e pobres em conscientização das pessoas quanto ao que
nutrientes necessários à saúde (FREITAS, consomem, preocupando-se com a ingestão
FONTES, OLIVEIRA, 2008). de alimentação saudável. A sociedade que
Devemos dar atenção aos locais onde focava em medicamentos para tratamento
os alimentos são comercializados. Os su- de doenças, passou a refletir sobre o quanto
permercados também são responsáveis a alimentação está atrelada à saúde (FON-
pela padronização da alimentação, e incen- SECA et al., 2011).
tivam as mudanças nas práticas alimenta- Desse modo, o consumo alimentar se
res e produtivas. A realidade é observada modificou na sociedade com o passar dos
pela oferta nessas redes: uma menor dis- tempos, acompanhado das variações de ro-
ponibilidade de produtos frescos e in na- tinas e se adaptando a novas realidades. Da
tura (que em sua maioria, hoje, são vendi- mesma forma que esse deslocamento tem-
dos em feiras), e uma maior disponibilidade poral culminou na contemporaneidade com
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 179

o caráter prático de se alimentar, também


houve o movimento oposto. Este, em con-
traponto ao consumo de alimentos indus-
trializados, requer que o comensal reflita
sobre o que consome, e até que ponto a au-
sência de uma alimentação saudável irá se
sobrepor ao consumo de comida prática.

8.2.2 Os movimentos e as tendências


da contemporaneidade

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Com a imposição do novo ritmo de
vida acelerado, principalmente nos grandes
centros urbanos, os indivíduos passam mui-
tas horas do dia ocupados com uma rotina
exaustiva, que envolve trabalho, desloca-
mento no trânsito, entre outras responsa- Outro aspecto contemporâneo é a re-
bilidades. Além disso, observamos o cons- dução da sociabilidade relacionada à
tante apelo às novidades sempre à espreita, alimentação. É comum o ato de comer
em todas as áreas, incluindo a alimentação. sozinho em casa ou no trabalho, visto que
Historicamente, se reservava um o ritmo atual estabelece horários diferen-
tempo para exercer a atividade de cozinhar ciados para diversos membros de uma
e apreciar uma boa refeição, de forma indi- mesma família ou grupo de amigos. Dessa
vidual ou em grupo, exercendo a comensa- forma, cada indivíduo prepara suas porções
lidade. Atualmente, percebemos que essa individualmente, afastando, assim, a socia-
atividade foi, em grande parte, transferida bilização gerada pelo ato de compartilhar
aos estabelecimentos de serviços, como as refeições (FISCHLER, 2011).
lanchonetes, restaurantes e food park s. Se Embora a contemporaneidade seja
a alimentação ainda é realizada em casa, as marcada pela mudança dos padrões ali-
chances de consumo de alimentos prontos e mentares, com uma valorização maior para
congelados também são altas. a produção de alimentos em massa e o
180 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

curto tempo para realização de refeições,


é importante observar: as diferenças cultu-
8.2.3 A ética da alimentação
rais e regionais gastronômicas não desapa- Quando abordamos a temática da
receram. Essas práticas tradicionais consti- ética, refletimos a respeito da construção
tuem a realidade e as formas de resistência racional e do desdobramento de conceitos
de um local, elevando a alimentação regio- e argumentos que possam compreender
nal a patrimônio cultural. a moral da pessoa humana, reduzindo-a
a seus componentes (aspectos psicológi-
Em tempos de forte homogeneização
cos, biológicos, econômicos e sociológicos,
alimentar, vários movimentos focam no
por exemplo). Desde sua origem na Grécia
resgate do modo de alimentação tradicio-
Antiga, a ética é considerada um conheci-
nal, com produtos regionais e o retorno das
mento que orienta as ações dos seres hu-
refeições em domicílio, por exemplo. Dessa
manos, nos fazendo refletir sobre os argu-
maneira, a comida de uma região auxilia na
mentos que podem justificar de forma ra-
construção da identidade e faz frente à in-
cional a vida moral.
dustrialização e monotonia gastronômica
(ALTOÉ ; AZEVEDO, 2018). Dentro dessas orientações das ações
humanas, está a ética da alimentação. A
Logo, podemos considerar que as
necessidade de pensarmos e nos conscien-
tendências da alimentação da contempo-
tizarmos sobre nossas escolhas alimenta-
raneidade passaram por modificações em
res resulta em diversas consequências para
suas estruturas tradicionais, gerando novos
a sociedade. Escolher o que se come vai
comportamentos relacionados às refeições.
além da simples ingestão de alimento: per-
A individualização se tornou cada vez mais
passa o funcionamento das indústrias ali-
presente, potencializada pelo consumo de
mentares, grandes ou pequenos produto-
alimentos pré-prontos e em porções indivi-
res, o modo como a comida foi produzida e
duais, afastando as pessoas das convivên-
os impactos ambientais que foram gerados
cias habituais de compartilhamento de re-
a partir da grande cadeia produtora.
feições. Mas, em contrapartida, há também
a valorização da comida tradicional e da reu-
nião de grupos em volta da mesa.
HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 181

Essas informações são levadas em


conta durante os questionamentos realiza-
O filósofo australiano Peter Sin- dos na tomada de decisão das escolhas ali-
ger esteve presente no programa Café mentares. As indagações éticas permitem
Filosófico, da TV Cultura, e abordou
um julgamento do que seria certo ou er-
sobre a ética aplicada na alimentação.
Ele defendeu que o modo como os se- rado, tanto pelo comensal enquanto toma-
res humanos se alimentam deve ser dor de decisões, quanto pelos indivíduos
questionado, tanto do ponto de vista que estão direta ou indiretamente ligados
do sofrimento animal como de saúde ao funcionamento da cadeia de produção
(É TICA, 2016).
alimentar. É a conscientização entre quem
consome o produto final, com preocupa-
ções de cunho ambiental, por exemplo, e
Se alimentar é essencial e imprescindí-
quem está na frente da produção desses
vel para qualquer ser vivo. Os humanos, en-
alimentos, trabalhando com a agricultura.
quanto únicos seres racionais, também são
os únicos a possuírem consciência sobre os
próprios atos e possíveis consequências de-
correntes deles. Assim,a ética nos fornece
uma perspectiva refle iva quanto ao ato de
se alimentar, a fim de orientar sobre quais
fundamentos as decisões que envolvem a
alimentação devem ser tomadas.
Nesse sentido, escolher o que se vai
comer é uma questão de identidade pes-
soal, que sempre está no centro de debates
atuais. Essa seleção é embasada em aspec-
tos que surgem a partir das informações
que circundam a alimentação, desde as de
cunho nutricional, as relacionadas à ciência
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e tecnologia envolvidas na produção dos


alimentos até as voltadas ao meio am-
biente – incluindo os animais.
182 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

Porém, a relação que a agricultura e a bem-estar destes; produção, processa-


natureza possuem dificilmente corres- mento e comercialização dos alimentos
ponde à realidade conhecida pelo consumi- com efeitos nocivos para os consumidores
dor. Entre os problemas existentes, temos em termos nutricionais (MEPHAM, 1996).
os desmatamentos em prol de produtivi- Porém, ainda assim, não importa o
dade, geração de lucros a grandes empre- quão estejam disponíveis informações rela-
sas agrícolas enquanto ocorre a desvalori- cionadas ao meio ambiente, como desma-
zação de pequenos produtores locais e pro- tamento e maus tratos aos animais, estes
dução em larga escala de monoculturas, não são fatores decisivos para a escolha da
com altos teores de pesticidas ou conser- maioria dos consumidores. O que os leva a
vantes sobre produtos frescos. escolher são julgamentos sobre as obriga-
A agricultura moderna traz efeitos ções enfrentadas no dia a dia, que deman-
nocivos ao meio ambiente. Há casos de dam tempo, expectativas geradas para ser-
erosão de solos, poluição de rios e lagoas, viços e produtos mais práticos de consumo,
e morte de diversas espécies; a explora- opções de preço e variedade de produtos à
ção de animais para alimentação (inacei- disposição. As considerações éticas estão
tável sob qualquer condição para algumas ligadas inseparavelmente às escolhas ali-
pessoas) que, por vezes, são criados para mentares, no entanto, algumas indagações
abate sem nenhuma preocupação com o se sobrepõem sobre outras. Os indivíduos

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HISTÓRIA DA GASTRONOMIA 183

se atentam mais para as questões parti- de forma ética sobre suas escolhas em to-
culares que geram facilidades ao seu coti- das as etapas da cadeia de abastecimento
diano, como a praticidade; do que para as dos alimentos, desde a produção até a dis-
mais abrangentes, como os problemas am- tribuição (COSTA; PITTIA, 2018).
bientais T , . Em resumo, as questões éticas fazem
Outro problema que temos é a fome, parte de análises realizadas pelos consu-
que ainda mata por falta de acesso à ali- midores quando tomam suas decisões ali-
mentação básica (SINGER; MANSON, mentares. A falta de conscientização de
2007). Milhões de pessoas no mundo estão nossas escolhas pode impactar a sociedade
em grave estado de desnutrição, enquanto e o meio ambiente. Por isso, vale indagar-
outras dedicam tempo e esforço para per- mos a produção alimentícia, bem como a
der peso por dietas. Porém, além desse forma de selecionamos o que colocamos
paradoxo, podemos citar diversos outros em nossos pratos.
questionamentos éticos envolvendo a ali- Ao abordarmos a relação que a gas-
mentação. tronomia possui com a saúde de maneira
Dentre eles, temos os interesses vol- global, podemos concluir que esse elo vai
tados para os aspectos nutricionais: o pú- além de simplesmente medir o valor nutri-
blico consumidor passou a se preocupar cional dos alimentos. Inclui fatores, como
mais com aspectos éticos de produção dos as mudanças sofridas pela sociedade, a
alimentos, como comércio justo, bem-es- evolução do processo industrial e, conse-
tar animal, mudanças climáticas e susten- quentemente, o modo de produção ali-
tabilidade. Nessa perspectiva, as escolhas mentar. A oferta de produtos alimentícios
alimentares influenciam também os grupos modificou-se junto com a rotina da socie-
aos quais o indivíduo pertence, principal- dade ao longo do tempo. Isso gerou conse-
mente se tratando de profissionais da área quências, como a troca dos hábitos alimen-
de alimentos, que tem um maior respaldo. tares tradicionais por refeições mais indi-
Assim, estes devem estar embasados em vidualizadas, até questionamentos éticos
leis – assegurando a defesa da saúde do sobre as melhores escolhas para os alimen-
consumidor – e capacitados para refletirem tos que ingerimos.
184 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA

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