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Entre a razão e a ilusão 121
O conceito atual de saúde é muito mais amplo que a mera ausência de doença, pois
envolve um estado completo de bem-estar físico, mental e social. O bem-estar físico
envolve as questões ligadas ao corpo e à parte biológica; o bem-estar mental significa
estar bem com as questões psicológicas; e o bem-estar social está ligado à satisfação das
necessidades ligadas às relações sociais.
Para que todas essas necessidades sejam satisfeitas, precisamos ampliar o cuidado
no campo da saúde. Na área da saúde mental, as discussões relacionadas a esse tema
estão cada vez mais presentes, principalmente pelo fato de os portadores de doença
mental apresentarem a saúde física mais comprometida que a população em geral. Es-
tudos mostram alta incidência de tabagismo nesses pacientes, o que aumenta as chan-
ces de doenças cardiovasculares, pulmonares e alguns tipos de neoplasias. Além disso,
sabemos que os portadores de esquizofrenia podem ser até quatro vezes mais obesos
comparados à população em geral, o que pode estar relacionado ao sedentarismo, aos
sintomas da própria doença, como o isolamento, além do uso contínuo de medicações.
A obesidade está relacionada a aumento de doenças cardiovasculares e diabetes e com-
plicações decorrentes dessas doenças, daí a importância de estarmos atentos também
a esses aspectos.
As ações de prevenção e promoção de saúde são muito importantes para todas as
pessoas, mas precisamos ter um cuidado especial com os portadores de transtornos
mentais pelos riscos já citados.
É importante que os portadores de transtornos mentais sejam orientados e estimu-
lados para a realização de mudanças no estilo de vida, principalmente em relação ao
hábito alimentar e à prática de atividade física. Com essa preocupação, a equipe do
Pró-Saúde, PROESQ, vem desenvolvendo atividades para orientações de profissionais,
portadores de esquizofrenia e familiares sobre os cuidados com a saúde em geral. Temos
como objetivo estimular a autonomia do paciente, orientar seus familiares e incenti-
var ações multidisciplinares. Como resultado dessa iniciativa, pudemos perceber que,
quanto mais as pessoas se sentem cuidadas e orientadas, mais se motivam para realizar
mudanças necessárias em seu estilo de vida, o que é fundamental para o aumento da
autoestima e da qualidade de vida.
conlinua ...
126 • Assis, Villares & Bressan
. . • co11/i111ta,;iio
Na fase aguda, é recomendada uma dose mais baixa para um primeiro episódio
psicótico ou a dose que o paciente está habituado a uti lizar.
A resposta ocorre em duas a quatro semanas, e a avaliação da eficácia do antipsicó-
tico deve ser feita somente após esse período.
Na fase de manutenção após a remissão dos sintomas agudos, a dose de antipsicó-
ticos pode ser reduzida lentamente para se identificar a melhor dose de manutenção,
tendo como parâmetro os sintomas do paciente. Muitos têm dificuldade em seguir o
tratamento, e há medidas necessárias para que este ocorra e o paciente se conscientize
de sua importância.
A tomada correta da medicação é fundamental para que se obtenha melhora dos sin-
tomas de forma eficaz. Para pacientes que têm dificuldade em tomar seus medicamentos
regularmente, as medicações de depósito (também chamadas "de ação prolongada") são
uma alternativa muito importante (Tab. 4.3). Hoje em dia, temos dois anti psicóticos de
longa duração de segunda geração. Essas medicações devem ser utilizadas de forma pre-
coce principalmente em pacientes no início da doença, em vez de esperar vários episódios
psicóticos para que os portadores aprendam a necessidade do uso da medicação regular.
Todos os medicamentos trazem (ou causam) efeitos colaterais, e é assim também
com aqueles para esquizofrenia. Isso, entretanto, não deve ser motivo de alarme ou de
desistência do tratamento, pois efeitos colaterais não acontecem em todas as pessoas
que tomam o medicamento. É importante conhecê-los para avisar o méd ico, caso ocor-
ram (Tab. 4.4). Quando ocorre algum efeito indesejável, a indicação é diminuir as doses
ou trocar o medicamento por outro que não cause tanto desconforto. Alguns pacientes
têm dificuldade em tomar as doses com regularidade, em virtude do impacto dos efeitos;
portanto, estabelecer uma relação de confiança entre médico e paciente é fundamental
para a escolha certa do medicamento, e assim aumentar a chance de sucesso do trata-
mento.
No passado, acreditava-se que altas doses de antipsicóticos eram necessárias para
conter os sintomas. Atualmente, não se justifica mais o uso de altas doses desses me-
dicamentos, pois os efeitos colaterais são bastante desagradáveis e comprometem a
adesão do paciente ao tratamento.
Hoje, os antipsicóticos de segunda geração são os medicamentos de escolha para o
tratamento da esquizofrenia, porque induzem menos sintomas extrapiramidais {distonia,
parkinsonismo, acatisia). Em razão do custo elevado dessas medicações, o sistema de
saúde pública do Brasil preconiza o uso de antipsicóticos de primeira geração como
primeira escolha para o tratamento da esqu izofrenia; em caso de efeitos colaterais ou
resposta insatisfatória, indicam-se os de segunda geração. É muito importante saber que
os antipsicóticos de primeira geração:
• devem ser utilizados em doses baixas, para evitar sintomas extrapiramidais;
• devem ser usados na mlnima dose necessária, em monoterapia antipsicótica (um
ún ico medicamento).
No início da doença, doses mais baixas são, em geral, suficientes para atingir eficá-
cia com menor chance de desencadear os efeitos indesejados.
c<•11li1111u .••
Entre a razão e a ilusão • 127
. . . co11linuacão
,
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fiares e círculos sociais é restrito por sentirem insegurança no reconhecimento das ati-
tudes e intenções de outras pessoas. Assim, acumula-se tensão, o que é percebido com
desconforto tanto no físico quanto no emocional. O acúmulo de tensão deixa o paciente
vulnerável a recaídas e reagudizações. Acredita-se que o uso contínuo da medicação
antipsicótica exerça um fator protetor contrário a esse circulo vicioso, o que estabilizaria
a progressividade da evolução clínica.
Porém, como ocorre em todos os tratamentos de longo prazo, há tendência para o
abandono da med icação, ainda mais quando são percebidos efeitos colaterais descon-
fortáveis, como ocorre em relação à motricidade - os anti psicóticos, principalmente da
primeira geração, quando usados em dose elevada - , ao ganho de peso e em relação à
"perda no brilho e relevo" na percepção dos acontecimentos. No entanto, mesmo assim,
o balanço é amplamente favorável para aqueles que fazem uso da medicação, pois o
custo da recaída é incomensurável.
Para um tratamento eficaz, há a necessidade de um vínculo de confiança entre o
paciente e sua equipe clínica. Deve ser constituída uma base segura que suportará a
ação terapêutica . Esta, evidentemente, irá além da medicação - compatível com o bem-
-estar - , desenvolvendo estratégias, alternativas e recursos para o restabelecimento de
uma vida normalizada.
No mundo todo, existe um grande investimento por parte das agências governamentais
de pesquisa e da indústria farmacêutica para desenvolver novos medicamentos. Até o
momento, todos os medicamentos antipsicótícos disponíveis comercialmente agem no
sistema de um neurotransmissor chamado dopamina (um dos elementos da transmissão
de informação no cérebro). Esses med icamentos funcionam bem para a redução de sin-
tomas chamados positivos, tais como alucinações e delírios, e para evitar novos episódios
agudos da doença. No entanto, eles são menos eficazes em sintomas chamados nega-
tivos, como o isolamento e a dificu ldade de sociabi lização. Existem muitas pesqu isas
buscando medicamentos que atuem em outros sistemas de transmissão cerebral (como
o glutamato), que possam ser mais eficazes nos sintomas negativos.
Alguns pacientes apresentam dificuldades cognitivas, tais corno problemas para concen-
trar a atenção, manter informações na memória e coordenar o planejamento de uma tarefa.
Essas alterações dificultam o dia a dia, atrapalhando até mesmo a medicação e o acompa-
nhamento nas terapias. Existe urna série de medicamentos sendo desenvolvidos exatamente
com o propósito de melhorar o desempenho cognitivo das pessoas com esquizofrenia.
Outras pesqu isas concentram-se em testar medicamentos desenvolvidos para evitar
processos cerebrais que resultam na cronicidade da doença, chamados medicamentos
neuroprotetores. Caso essa nova classe de medicamentos venha a funcionar, imagina-se
que serão especialmente úteis nos estágios iniciais da doença ou até mesmo no período
que antecede os primeiros sinais, antes que todos os sintomas da doença se manifestem.
c<•11li1111u .••
Entre a razão e a ilusão 129
... conÍinuaciiu
•
Hoje, o psiquiatra lança mão dos medicamentos que estão disponíveis, aos quais a
pessoa tem acesso, sobretudo aqueles que ela pode retirar gratuitamente nas farmácias
do Estado. Muitos avanços estão ocorrendo e devem contribuir para o tratamento em
um futuro próximo, mas lembramos que os medicamentos disponíveis hoje em dia para
tratar esquizofrenia já são uma grande conquista, infelizmente não acessível a todos. É
fundamental que os portadores e as famílias conheçam seus efeitos para que possam
ajudar o méd ico e os terapeutas a encontrar a melhor opção para cada caso.
Reabilitação
A reabilitação na esquizofrenia é um processo que deve ser pensado
desde a primeira intervenção pelos profissionais da saúde, no sentido
de preparar o caminho para que a pessoa tenha condições para resta-
belecer uma vida com qualidade e com o mínimo possível de interfe-
rência dos sintomas. Esse foi o procedimento adotado com Gabriel
Entre a razão e a ilusão 131
Tabela 4.4
Os principais efeitõs1
co latera is·i sã11:· O que é?
,
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o o
Entre a razão e a ilusão 135
Recuperação
A esquizofrenia é t1ma doença qt1e apresenta graus diferentes de
comprometimento, e essa condição varia conforme o caso. Neste capí-
tulo, procuramos apresentar alguns aspectos do tratamento da doença.
Os profissionais da saúde sempre buscam trabalhar com o que é
possível para a pessoa, estabelecendo um plano terapêutico que visa
evitar perdas e promover a melhora na linha do tempo.
,
E fundamental manter a esperança mesmo nos momentos mais difí-
ceis, pois é pelo esforço continuado da pessoa e da família que as
melhoras podem ser construídas. Esse processo se dá em aspectos do
relacionamento cotidiano, como procurar manter relações com base
em respeito e em aceitação da pessoa, oferecendo condições para que
ela melhore.
,
E importante compreender que a pessoa com esquizofrenia mantém
suas qualidades humanas, e são estas que permitem estabelecer
relacionamentos, por meio dos qt1ais o crescimento se torna possível.
Muitas pessoas com esquizofrenia e familiares desanimam diante das
dificuldades imediatas, mas é preciso ter em mente que os resultados
são construídos com o tempo, como dissemos anteriormente. Sempre
é possível melhorar, independe11temente do número de crises agudas
que se tenha vivido ou do grau de comprometimento que elas
causaram.
Daremos, aqui, três exemplos:
Rótulos
A esquizofrenia e a forma como ela se manifesta são desconhecidas
para a grande maioria das pessoas. Corno consequência, elas rotulam
q11em tem a doença por seu comportamento diferente, sem perceber
que essa atitude gera sofrimento e isolamento. Nossa intenção em
abordar o estigma é apresentar uma série de questões pouco conver-
sadas, vividas pelas pessoas com esquizofrenia e seus familiares.
~
es uizofrênico
138 • Assis, Villares & Bressan
R. V. L. - Portador
É muito triste ver as pessoas rotulando as outras de esquizofrênicas; estas podem ser
ótimas pessoas, simpáticas, compreensivas, dóceis. A expressão do rótulo é uma coisa re-
almente impressionante, as pessoas gostam de rotular. Eu li em um livro que o ser humano
é considerado um universo em miniatura, então, como você pode chegar a um universo e
ficar rotulando isso ou aquilo, e as outras coisas não contam? Por que não arrancar o rótu-
lo? Não precisa de mais nada, basta olhar para dentro do frasco para ver o que tem dentro.
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..• co11/i111ta,;iio
Coitado, ele
é louco!!
- Que problema
ele tem?
Entre a razão e a ilusão 147
Não existem soluções prontas, mas acreditamos que elas podem ser
encontradas sempre com base no diálogo entre os envolvidos. O
diálogo nos fortalece até mesmo para lidar com o estigma em nossa
vida e contribuir para uma sociedade sem rótulos. Isso se dá na medida
em que existe a aceitação da presença da esquizofrenia, sem se enver-
gonhar ou ficar no lugar de vítima. Alguém já disse que é o oprimido
qt1em tem nas mãos o poder de libertar tanto a si mesmo quanto o
opressor. Vento a nosso favo r quem faz somos nós.
dentro dele. Gabriel gostaria de ter uma vida como a de todas as outras
pessoas, mas não consegue. Não há medicamento para esse senti-
mento negativo em relação a si mesmo. Muitas pessoas com esquizo-
frenia vivem com ele pela vida toda, como se todos os dias fossem
nt1blados e cinzas.
Gabriel conversa sempre com Sônia, a psicóloga. Ela sabe que não
adianta fazer interpretações e proct1ra ajudá-lo a conhecer esses
sentimentos, pois vê nesse processo o caminho concreto para ele
mudá-los.
Júlia, sua irmã, sempre o convida para passear, mesmo sabendo qt1e
ele quase sempre recusa. Renato, seu irmão, todos os sábados, o
convida para jogar futebol, mesmo que ele frequentemente não aceite.
Seu pai deixott de trazer trabalho para casa e passot1 a assistir à tele-
visão com a família à noite e participar das conversas. Sua mãe sempre
puxa conversa com o filho durante o dia, mesmo com ele falando
pouco. Os familiares de Gabriel foram aprendendo com o tempo que
esse apoio cotidiano é mais efetivo do que dar conselhos ou obrigar a
pessoa a fazer o que não quer. O ambiente é fundamental para que as
mudanças ocorram em seu tempo certo.
As mudanças em nossa vida levam tempo, e as grandes são mais demo-
radas. Gabriel está construindo a base para seu crescimento interior.
Quem olha de longe uma pessoa com esquizofrenia falando de suas
questões normalmente não se dá conta de que ela está aprendendo e
mudando em seu próprio tempo. Na vivência com a esquizofrenia, é
necessário ter paciência, pois as transformações positivas vão insta-
lando-se aos poucos.
,
E preciso entender qt1e a pessoa com esquizofrenia enfrenta dificul-
dades e procura lidar com elas. Qualquer indivíduo que se encontrasse
na mesma situação iria se desestruturar e não saberia o que fazer.
Quando vemos t1ma pessoa com esquizofrenia, normalmente repa-
ramos nas limitações ou no comportamento diferente; o que não
conseguimos perceber é a força interior que ela precisa ter para se
manter estável e conviver em um mundo mttitas vezes hostil. Quando
deixamos nossos preconceitos e nossas expectativas pré-construídas
Entre a razão e a ilusão 149
Eu nunca serei
Autoestigma igual a eles!!
OR""\..._..,....,
Discriminação e ocultação
Existem várias formas de discriminação em relação aos portadores de
esquizofrenia com base em preconceitos (ou julgamentos prévios), ou
seja, mesmo que a pessoa não dê nenhum motivo para isso - por
exemplo, considerar que ela é incapaz ou não tem inteligência; jttlgar
que ela é perigosa ou não é confiável; achar que ela não percebe
qt1ando está sendo manipulada Oll que é lícito direcionar suas ações;
fazer piadas de mau gosto ou menosprezar o que a pessoa diz; entre
outras. Diante dessas situações, é válido ocultar que se tem esquizo-
frenia? Quando revelar e quando ocultar? Essas são questões difíceis,
pois não há t1ma resposta certa ou melhor postura a priori. A melhor
atitude varia de acordo com as circunstâncias e as pessoas para quem
se conta sobre a doença.
Alguns portadores de esquizofrenia contam para todas as pessoas que
os conhecem sobre sua condição, e quem os aceita para qualquer ativi-
150 • Assis, Villares & Bressan
Olá!
prazer em conhecê-lo,
MM's
NOSSA,
l ~omo você é
' bom nisso!!
E= mcl
J .A.O.
Ser portador de uma doença mental é um fardo dos mais pesados, pois envolve, além
dos sintomas e problemas inerentes a esse transtorno, o preconceito, também chamado
de estigma. A esquizofrenia é, de certa forma, uma doença invisível, pois não pode ser
detectada por meio de exames, e o diagnóstico se faz pela sintomatologia relacionada
a perda cognitiva e sintomas negativos (depressão) e positi vos (dellrios e alucinações).
Pessoalmente, posso dizer que sou testemunha do problema que é ter esqu izofrenia,
pois percebi que muitos amigos se afastaram e, na minha família, percebo, sinto que
existe algo não dito, algo "escondido". Sei que falam às mi nhas costas, que se comenta
isso ou aquilo, mesmo porque eu engordei 35 kg com a medicação, e mu itos me pergun-
tam e até duvidam se eu estou realmente trabalhando. O mais incrível, para mim, é a
não aceitação da doença por parte de minha irmã, que, aliás, me ajudou muito quando
tive meus dois surtos nos Estados Unidos. Entretanto, quando voltei ao Brasil, em janeiro
de 2000, ela " lavou as mãos" e literalmente me abandonou para que minha mãe fosse
minha cuidadora exclusiva.
Tenho muita mágoa da atitude incompreensiva e egoísta das pessoas e não sei ex-
plicar esse comportamento, pois me pergunto o porquê das doenças mentais serem mais
condenáveis que as doenças físicas. Na luta contra o estigma, acredito na informação e
na educação do público, que pode pouco a pouco entender o universo lúdico da doença.
Filmes como Uma mente brilhante, Estamira, A prova e Spider, entre outros, podem, de
uma maneira ética , mostrar o lado humano e digno de pessoas que têm a doença.
Em minha maneira de pensar em relação ao estigma, sou otimista, pois acredito
que, no futuro, os transtornos mentais serão mais bem entendidos e encarados com mais
naturalidade. Nesse sentido, eu porto a bandeira de peito aberto, nunca escondendo das
pessoas que eu conheço que tenho esquizofrenia. Pode não ser a melhor ati tude, e mui-
tos colegas não fazem isso, mantendo-se no "anon imato", mas essa é a melhor maneira,
para mim, de combater o estigma da esquizofren ia.
Isolamento
As pessoas com esquizofrenia são, em geral, mais isoladas, em parte
por fatores da própria doença, mas também , pelas dificuldades que o
transtorno traz para a vivência cotidiana. E difícil separar essas duas
coisas; entretanto, é possível avaliar como acontecem e, assim,
entender melhor a situação de muitas pessoas que têm esquizofrenia.
Vejamos como se dá o isolamento na vida de Carlos.
Entre a razão e a ilusão 155
Oportunidades perdidas
A aceitação de que se tem esquizofrenia é um processo difícil, marcado
por perdas e desilusões. Muitas pessoas não aceitam e não seguem os
tratamentos. Esse processo é marcado por situações e experiências que
acabam por constituir o autoestigma, e a pessoa, muitas vezes, perde
boas oportunidades na vida por receio ou medo de q11e experiências
ruins do passado se repitam. Vejamos como isso se dá com Gabriel.
Se11 Paulo, pai de Gabriel, trabalha com contabilidade e tem muitas
empresas como clientes. Em uma conversa com um cliente antigo, ele
contou tanto as dificuldades quanto as qualidades do filho, entre elas
que ele lê m11ito e escreve muito bem. Em consideração a Seu Pa11lo, o
cliente ofereceu uma vaga de estágio para o jovem em sua empresa,
com a possibilidade de futura contratação como empregado.
O pai de Gabriel chego11 em casa e foi contar a novidade para o filho.
Disse: "O Dr. Elísio, um cliente antigo lá do escritório, tem uma vaga
de estágio para você. Gabriel, você vai poder ter um salário enquanto
aprende uma profissão. Essa é a oport11nidade de dar um novo passo
em sua vida!".
Gabriel, na verdade, se sentiu triste. Explicou para Seu Paulo o que ele
achava: "Pai, e11 não sou o mesmo de anos atrás, meu raciocínio é
lento, eu tenho vergonha de falar de minha vida para as pessoas. O
senhor já percebeu que eu não tenho amigos, eu não consigo fazer
amizades. Como é que eu vou trabalhar em uma firma grande desse
jeito que eu sou?".
Seu Paulo pediu a Gabriel que pensasse no assunto, mas foi para o
quarto muito entristecido com o que ouviu do filho. Dona Márcia, mãe
do javem, foi conversar com ele. Seu Paulo disse não saber mais o que
fazer para ajudar o filho. Ela, percebendo a decepção do marido, falou:
"Vamos ter fé, nosso filho vai encontrar o caminho dele, talvez não seja
o momento de ele começar a trabalhar''.
Muitos portadores de esquizofrenia perdem boas oportunidades na
vida, principalmente por se sentirem diminuídos ou incapazes. As
158 • Assis, Villares & Bressan
Eu não vou
conseguir... ,.__,,,
o
ºo......_,.. . . . .__,,
Entre a razão e a ilusão 159
MM.,
Entre a razão e a ilusão 161
Enfrentando oestigma
O convívio com a esquizofrenia na própria vida, como vimos, é uma
mudança muito grande e que deixa marcas profundas. O estigma existe.
Ele exclui, magoa e diminui as chances de uma vida digna. Diante dessa
realidade, as pessoas que têm esquizofrenia e seus familiares, para viver
bem, têm de procurar em seu cotidiano e na comunidade espaços onde
1 o.L • Assis, v111ares & 1:1ressan
Dois aspectos do e_
stigma
Neste capítulo do livro, procuramos abordar as dificuldades que o
estigma traz para a vida das pessoas com esquizofrenia e de seus fami-
liares, mas também procuramos mostrar que é diante dos desafios
práticos do cotidiano que as soluções são possíveis para uma vida com
qt1alidade.
164 • Assis, Villares & Bressan
.....
Entre a razão e a ilusão 165
Família
Abordaremos, neste capítulo, o tema do convívio familiar. Sem a
intenção de esgotar esse assunto, procuramos tratar de temas que
contribuam para que a pessoa com esquizofrenia e seus familiares
possam pensar sobre como construir formas boas de convivência.
Nosso propósito é que a leitura deste capítulo contribua para a reflexão
e o diálogo entre os membros da família, com a intenção de promover
168 • Assis, Villares & Bressan
As questões de cada um
Quando um familiar adoece com a esquizofrenia, os demais se deso-
rientam, pois têm de lidar com dificuldades e exigências completa-
mente novas, que são marcadas por muito estresse e confusão,
,
e por
não saberem o que fazer para lidar com o problema. E importante
entender tanto o problema da pessoa com esquizofrenia quanto o de
cada familiar, porque as dificuldades e o sofrimento enfrentados pelos
familiares influem no bem-estar de cada um e afetam a vida do
portador de esquizofrenia. Vejamos alguns exemplos dessas questões
na família de Gabriel, que conseguiu tlm caminho de superação.
Quando Gabriel adoeceu, seu pai passou a trabalhar mais e a trazer
trabalho para casa; estar ocupado o tempo todo foi a melhor forma
que encontrou para lidar com sentimentos novos, confusos e contradi-
tórios, tais como culpa, impressão de que o problema não existe
(negação), desesperança e tristeza. Ele demorou um bom tempo para
perceber que o melhor para o filho e sua família era sua companhia e,
então, passou a estar mais presente na rotina da família.
A mãe de Gabriel se apegou à religião e ao cuidado do filho, tratando-o
como se ele fosse ainda um menino. Nos grupos da igreja, ela aprendeu
que a fé é importante, desde que edificante, por meio das ações do dia
a dia. Sua sensibilidade materna lhe permitiu perceber, com o tempo,
que o filho tem uma doença, e seu papel como mãe é incentivá-lo a
seguir sua vida olhando também para suas qualidades.
Os pais lidam com sentimentos difíceis, como o de serem responsáveis
e às vezes culpados pela situação, procurando ver "onde erraram" na
criação do filho. A esquizofrenia tem tun fator biológico mtúto forte;
procurar erros no passado não ajuda e só aumenta a tensão nos rela-
cionamentos.
170 • Assis, Villares & Bressan
Renato, o irmão mais velho de Gabriel, achava que o irmão era "proble-
mático" e responsável pelas frequentes discussões entre os dois. Ele
precisou de um bom tempo para entender o que Gabriel vivia com a
doença e perceber seu sofrimento. Demorou um tempo, mas conse-
guiu se colocar no lugar do irmão e perceber que ele mesmo poderia
passar por aquilo. Essa percepção trouxe receios e dúvidas a respeito
da própria saúde mental, mas também o ajudou a evitar discutir com
Gabriel e facilitou a aproximação de ambos, que se deu, por exemplo,
por convites para fazerem coisas agradáveis juntos, como ir a jogos de
futebol no estádio e jogar bola nos fins de semana.
Entre a razão e a ilusão 171
Júlia sempre aceitou o irmão, mesmo sabendo que suas ideias não
correspondiam à realidade e que seu comportamento era muito dife-
rente. Ela procurou ter uma postura de ajudá-lo, ainda que apenas
conversando com ele. Essa postura lhe deu tranquilidade interior para
estudar e ter amigos, para manter t1ma vida saudável.
Gabriel passou por situações muito duras, que marcaram profunda-
mente sua vida. Foram precisos tratamentos e cuidados constantes dos
profissionais da saúde para que, ao longo dos anos, ele conseguisse
redesenhar um cotidiano em que sua vida voltasse a fazer sentido.
Nesse processo, foi muito importante o aprendizado de sua farru1ia de
que juntos poderiam se fortalecer para superar as adversidades.
A superação das questões que a esquizofrenia coloca para a pessoa e
set1s familiares é fruto de um processo de mudança no modo de
entender e viver o cotidiano. Não se deve ficar voltado para o passado,
para o que poderia ter sido diferente; a postura mais produtiva é
procurar identificar as dificuldades atuais e procurar ajuda para
superá-las. Isso vale tanto para a pessoa com esquizofrenia quanto
para os familiares. Entendemos que as mudanças ocorrem com base
em posturas que visam um bom convívio e ttma boa qualidade de vida.
A superação é um aprendizado vivenciado ao longo do tempo, com
base no entendimento das experiências e das mudanças. Esse processo
pode ser iniciado pelo desejo de viver melhor, pois sempre é um bom
momento para empreendê-lo.
Vejamos, nas páginas seguintes, algumas dificuldades presentes no
caminho de superação da esquizofrenia e como transpô-las.
MM'<
Prevenindo recaídas
A esquizofrenia é uma doença qt1e precisa de cttidados constantes.
Mesmo quando os sintomas melhoram ou parecem ter desaparecido,
há sempre o risco de uma recaída e do reaparecimento dos sintomas.
A família tem um papel mt1ito importante nesse cuidado e na prevenção
de recaídas. Apresentaremos alguns exemplos desse papel.
Muitas pessoas com esquizofrenia, quando se sentem melhor; param
de tornar os medicamentos, e essa é urna das principais causas de
recaídas. Os familiares têm um papel importante no monitoramento
da tomada de medicação.
Gabriel toma sozinho os medicamentos todas as noites; entretanto,
eles ficam em um móvel da sala, e sempre que ele esquece, alguém o
lembra; às vezes, os familiares lhe levam os medicamentos, mesmo
que ele já esteja dormindo. No caso de Carlos, sua mãe dá a medicação
Entre a razão e a ilusão 181
Incentivando a autonomia
Uma maneira de contribuir para que a pessoa com esquizofrenia se
sinta integrada no ambiente familiar é incentivando sua autonomia
nas tarefas cotidianas em que ela tem capacidade para mostrar sua
eficiência. Isso pode contribuir muito para que ela se sinta capaz de
enfrentar novas situações. Vejamos um exemplo vivido por Gabriel.
O pai de Gabriel pedi11 a ele que fosse ao banco e pagasse uma conta,
deixando com ele o cartão do banco e a senha de acesso. O jovem
nunca tinha utilizado o caixa eletrônico do banco para pagar contas e
passo11 o dia ang11stiado, com a certeza de que iria cometer 11m erro na
tarefa que seu pai lhe incumbiu, sentindo-se um incompetente.
Quando o pai chegou do trabalho, perguntou se Gabriel tinha pagado
a conta. Ele se justificou dizendo que não havia feito por receio de
cometer um erro. Seu pai não ficou bravo, mas conversou sério com
ele, dizendo: "Filho, pagar essa conta era responsabilidade sua, não dá
para fugir de nossas responsabilidades. Amanhã s11a mãe vai ao banco
com você e o ensinará a pagar a conta".
No dia seguinte, Gabriel e s11a mãe foram ao banco. Ele prestou
bastante atenção nos procedimentos para pagar a conta. Além disso,
pôde observar que várias pessoas pedem ajuda à funcionária do banco
para utilizar os caixas eletrônicos. Percebeu que seu medo de errar era
exagerado. Quando o pai chegou, à noite, Gabriel contou satisfeito
que agora era capaz de pagar as contas no banco.
A partir desse dia, Gabriel passou a pagar todas as contas da casa no
banco, até mesmo fazer depósitos, retirar extratos bancários e retirar
dinheiro quando s11a mãe lhe pede. Ele gosta de realizar essas tarefas,
principalmente porque elas representam a confiança que o pai tem
nele para cuidar de uma atividade importante da vida familiar.
Incentivar a autonomia da pessoa com esquizofrenia é muito impor-
tante para a man11tenção da autoestima. Algumas atividades podem
exigir um acompanhamento por determinado tempo, sendo gradual-
mente delegadas à pessoa como reconhecimento de sua capacidade.
As atividades escolhidas dependem muito das condições e aptidões de
Entre a razão e a ilusão 189
o o
190 • Assis, Villares & Bressan
.. . conÍinuaciiu
'
computação, dando um suporte precioso para meu trabalho como consultora que se
iniciava. Em seguida, foi ajudante de cozinha, trabalhou em fábrica de papel reciclado,
também como auxi liar de escritóri o, com a primeira pessoa que acreditou em sua capa-
cidade. Desenvolveu-se e, hoje, dedica seus dias ao estudo, pois conseguiu , aos 44 anos,
ser aprovado no vestibular, além de levar a vida de trabalhador a sério, como qualquer
um de nós. E é respeitado por isso.
A música, a leitura, o cinema e a famíl ia serão sempre sua companhia e sua f elicida-
de, e essa fe licidade se completa agora com a sobrinhada que aos poucos passa a conhe-
cer o grande homem que é o tio Bruno. Com ele, aprenderão que a vida pode ser si mples
e completa, mas sempre uma vida a se viver com dignidade. Esse é seu destino ...
Caminhos de superação
A esquizofrenia traz para a vida dos portadores e suas famílias ques-
tões e situações novas e difíceis, q11e não têm solução imediata. Em
boa parte dos casos, a esquizofrenia causa uma sensação de que não
existem saídas para as enormes dificuldades enfrentadas. Buscar a
superação é uma escolha, e pode ser feita independentemente do
estágio ou do tempo em que a doença apareceu. Confiar que ela é
possível e procurar constantemente caminhos de melhora é a postura
mais adequada em relação aos desafios práticos que a esquizofrenia
coloca. As soluções serão construídas pelo aprendizado e pelas
mudanças ao longo do tempo.
Quando a esquizofrenia apareceu na vida de Gabriel, os familiares
esperavam que ele superasse a situação "naturalmente", como uma
crise da adolescência. Mesmo depois de passar por um psiquiatra,
ainda ficaram com dúvidas e não sustentaram o tratamento. Foi neces-
sário vencer essas dúvidas para que os tratamentos fossem efetiva-
mente implementados. Muitas famílias não superam essa etapa, e, em
consequência, a pessoa com esquizofrenia fica muito tempo sem trata-
mento, o que contribui para deteriorar as relações familiares e deter-
minar pior evol11ção da doença.
Depois da doença estabilizada, Gabriel resolveu parar os tratamentos,
e a família aceitou essa decisão. Como consequência, ele teve uma
192 • Assis, Villares & Bressan
recaída e precisou ser internado. Esse fato ensinou para para ele e para
sua família que não se pode descuidar dos tratamentos ou parar de
tomar os medicamentos. Todos sofreram com essa experiência, mas
cresceram ao encontrar soluções para as questões práticas que
passaram. Muitas pessoas com esquizofrenia têm várias recaídas
porque param de tornar os medicamentos e não conseguem encontrar
soluções do tipo que a família de Gabriel encontrou.
Depois da internação, nosso personagem passou mais de um ano
fazendo um grande esforço para superar as dificuldades. Foi muito
difícil para todos manter a esperança e aprender a aceitar as limitações
que a esquizofrenia trouxe para vida dele. De toda forma, ao longo
desse tempo, ele pôde contar com grande apoio da família e, aos
poucos, foi conseguindo reencontrar um caminho em sua vida. Muitas
pessoas com esquizofrenia e suas famílias desistem de tentar superar
as dificuldades práticas quando não veem melhora para a doença.
A superação é um processo que cada pessoa e cada família constrói
com base na confiança de que há maneiras melhores de lidar com as
situações e aprender com elas. Isso exige a aceitação das limitações
Entre a razão e a ilusão 193
Rec11peração
A esquizofrenia é uma doença que modifica a vida da pessoa e de seus
familiares. Entendemos que a recuperação não significa voltar a um
estado anterior ao aparecimento da doença, mas aprender a conviver
com o transtorno e viver com qualidade, individualmente e em famI1ia.
Com base nessa visão, apresentamos como se deu esse processo para
os personagens Gabriel, Carlos e Francisca.
Recuperação de Carlos
A esquizofrenia apareceu na vida de Carlos de forma grave, pois,
mesmo com os medicamentos, os sintomas continuaram a dificultar
suas relações familiares e sociais, causando desentendimentos e isola-
mento. Essa situação só pôde ser contornada com um tratamento espe-
cífico para esquizofrenia refratária. Entretanto, no caso de Carlos, a
doença acarretou perdas em áreas importantes de seu funcionamento.
Para ele, a recuperação consistiu em um processo de aprendizado com
base nas condições de estabilização que os tratamentos proporcio-
naram, com o controle dos sintomas.
198 • Assis, Villares & Bressan
Recuperação de Francisca
Francisca foi afetada pela esquizofrenia de maneira que as experiên-
cias que ela teve sempre foram percebidas como reais. Ela nunca viveu
o estranhamento que permite pôr em dúvida se as coisas realmente
estão acontecendo ou não. Sua recuperação foi dando-se com base em
mudanças que foram possíveis a partir do controle dos sintomas, à
medida que ela, depois de várias crises, passou a confiar e concordar
com seu pai e seguir os tratamentos propostos.
O fato de Francisca nunca ter aceitado portar uma doença mental
levou-a a tentar sempre impor suas certezas aos familiares. Uma vez
200 • Assis, Villares & Bressan
que tais certezas eram fruto de seus sintomas, esse processo dificultou
o relacionamento familiar e social e exigiu muita paciência dos pais e
da irmã, por quase dois anos, até Francisca aceitar o tratamento com
medicação de depósito ministrada nas consultas com o psiquiatra. Ela
só aceitou se tratar quando percebe11 a dedicação sincera da família e
confiou que o tratamento que estavam propondo seria bom para ela e
para todos.
Os demais profissionais do serviço onde Francisca se tratava, perce-
bendo sua dificuldade para aderir ao plano terapêutico, incentivaram-
-na a seguir o acompanhamento com o psiquiatra e recomendaram um
curso de mosaico em um centro cultural. Com a medicação sendo
administrada mensalmente, foi garantida sua tomada, o que fez os
conflitos com a família diminuírem muito. A medicação de longa ação
permite níveis estáveis do tratamento, o que possibilitou um ótimo
controle da doença e quase remissão dos sintomas. O apoio da família
e o curso de mosaico proporcionaram a ela fazer novas amizades; com
isso, Francisca foi reencontrando caminhos para viver melhor.
No centro cultural, ela conheceu um rapaz, Alexandre, e logo se criou
grande afinidade entre eles. Depois de alguns meses de amizade
Entre a razão e a ilusão 201
Recuperação de Gabriel
Gabriel teve seu caminho de vida mudado pela esqLtizofrenia, que o
levou a urna experiência interior muito sofrida e deixou marcas
profundas em sua maneira de ver o mundo. Seu caminho de recupe-
ração, além dos tratamentos e controle dos sintomas, passou também
por um processo de achar seu lugar na vida e se desfazer do sofri-
mento de saber-se diferente das outras pessoas por causa de seu trans-
torno mental. A consciência da doença pode ser um fardo muito pesado
para alguns portadores. Esse foi o caso de Gabriel.
202 • Assis, Villares & Bressan
-
MM';
Entre a razão e a ilusão 203
F. P.
Tenho 32 anos e faço tratamento da esquizofrenia há 10 anos. O quadro que eviden-
ciou a necessidade do tratamento ocorreu no fim de 1997. Até então, tinha uma vida
relati vamente normal, e a sensibilidade que tinha já me acompanhava desde pequeno.
Em 1994, fui admitido em uma multinacional e desenhava meu futuro. Conseguia ter
meus relacionamentos e desenvolvia minhas habilidades de forma absolutamente nor-
mal. Em 1996, comecei a me sentir observado e, por estar trabalhando de forma correta,
imaginava-me sendo promovido de alguma forma. A princípio, esse contexto me motivou
durante algum tempo. Nessa mesma época, tive uma história amorosa intensa e cheia de
benefícios que foi interrompida por mim, talvez por medo de crescer.
Sentir-se observado e a expectativa de promoção tornaram-se momentos desgastan-
tes. Em todo esse tempo, morava sozinho desde os 18 anos (1994) e longe da famíl ia.
Sentia pressão de meu pai para que cursasse uma universidade para dar sequência aos
estudos iniciados com o curso técn ico integral concluído em 1993. Nesse momento,
tudo ficou muito Intenso. Os jornais começaram a noticiar uma enorme corrupção de
polít icos brasi leiros - Os Anões do Orçamento. Esse caso me deixou indignado, a tal
conlinua ...
204 • Assis, Villares & Bressan
. . • co11/i111ta,;iio
ponto que conversava com os amigos de forma muito intensa e talvez até os assustasse,
pois até então sempre fora muito tranquilo e esperançoso. Juros nacionais exorbitantes
também me tiravam a tranquilidade. Eram assuntos que não sinalizavam bons desfe.
chos; eram e ainda são fatos que dificilmente punem culpados ou promovem uma meta
para resolução dos problemas. Então, iniciei mudanças para que conseguisse resgatar a
calma e resolvi pedir demissão da empresa, porém, visando dar sequência aos estudos
e reaproximar-me da família.
Sempre senti admiração enorme por meu pai, não só por ser ótimo pai, mas também
em virtude de seu caráter humanitário, social e profissional. Ele foi contra meu pedido
de demissão. Os sentidos de audição e a sensação de ser observado e de ser especial não
terminaram com a demissão. Nesse momento, a apresentadora de televisão Xuxa estava
grávida, e as associações que eu fazia trouxeram-me a possibilidade de ser o pai da
criança. Confuso e resolvendo essas questões ind ividualmente, resolvi pegar um avião,
só com documentos, e ir para o Rio de Janeiro. Toda a minha família é desse Estado,
mas o que eu procurava era a Xuxa. Caminhei muitos quilômetros pela cidade dormindo
na rua à procura da apresentadora. Durante a caminhada, via muita semelhança entre as
pessoas da rua e meus fami liares.
Era Natal de 1997, e dia 28 de dezembro resolvi procurar minha familia. Fui até a
casa de minha avó materna, cheguei maltrapi lho. Ela, assustada, cuidou de mim. Na pri-
meira noite, sonhei com meus avós paternos que já haviam falecido e, quando acordei,
resolvi ligar para meu pai, que morava no interior de São Paulo. Então, fui ao encontro
dele na cidade de ltu . Meu pai fazia psicoterapia com um médico da cidade e resolveu
me levar para ser atendido. Em todo esse tempo, a sensação de ser especial e estar sen-
do observado era impressionantemente intensa. Dr. Ney, então, me medicou, e iniciei o
tratamento. Morando com meu pai, escutava muita música e tentava fazer as atividades
que ele pedia, mas era muito difícil. Gostava muito de escutar Beatles e John Lennon, e
com a música vinham mensagens associadas a rneu pensamento. Meditava a todo tempo
sobre a vida, e um simples inseto morto levava-me a um momento de reflexão. Estava sob
tratamento psiquiátrico com Dr. Ney e psicológico com Dra. Miriam, indicada por ele.
Infelizmente, meu pai adoeceu em maio e veio a falecer em junho de 1998, na
data de seu aniversário. Interrompi o tratamento por seis meses. No fina l de 1998, sob
tratamento, prestei vestibular e, em 1999, iniciei a faculdade. A audição muito intensa
e as associações tornaram as atividades dificultadas, e a psicóloga me orientou a trancar
a matrícu la no fim de 1999. Com a experiência de técn ico e quase um ano de faculdade,
verifiquei a possibilidade de dar aulas particulares para alunos do Ensino Méd io, e foi o
que fiz até 2002. Em maio de 2001 , minha avó materna veio a falecer. No firn de 2002,
resolvi prestar o vestibular novamente e iniciei o curso em 2003.
Em momentos de sintomas mais e menos intensos, dizia para mim mesmo que desta
vez não desistiria, e foi o que fiz. O último ano da graduação (2006) foi muito diflci 1. O
laço de amizades na faculdade ia terminar, e isso me incomodava. Em janeiro de 2007 ,
colei grau e já pensava em novas amizades que poderia formar. Iniciei a pós-graduação
em março de 2007 e já conquistei novos e bons amigos. Hoje, continuo sob tratamento,
convivendo com os sintomas; quando estes se tornam mais intensos, o acompanhamento
psiquiátrico e o psicológico fazem prevalecer uma interpretação mais positiva deles.
Entre a razão e a ilusão 205
1
....
208 • Assis, Villares & Bressan
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Entre a razão e a ilusão 209
Perspectivas
Os avanços da ciência no conhecimento da esquizofrenia e as alterna-
tivas possíveis para a recuperação fornecem novas perspectivas para a
compreensão mais aprofundada e o tratamento da doença. Procuramos
apresentar, em linguagem acessível, alguns achados-chave, científicos,
para o entendimento da esquizofrenia. Acreditamos que esses novos
conhecimentos podem contribuir para melhorar os tratamentos e
212 • Assis, Villares & Bressan
Esperança realista
Neste livro, proc11ramos abordar vários aspectos da esq11izofrenia,
escolhendo apresentar,
atitudes e entendimentos que sejam. í1teis para
você, nosso leitor. E preciso dizer que escrever o livro exigiu muito
diálogo entre os autores, negociação entre nossos diferentes pontos de
vista e, às vezes, superação das divergências para construir acordos,
semelhante ao que ocorre no percurso de negociação com a doença, na
vivência do portador e entre ele e as outras pessoas envolvidas. Esse
processo também nos proporcionou crescimento. Esperamos que este
livro contribua para esclarecer os aspectos vivenciais da esquizofrenia
e para melhorar a qualidade de vida tanto sua, nosso leitor, como a de
seus familiares.
Um dos nossos objetivos foi apresentar temas e situações em que os
nossos leitores pudessem se reconhecer, enxergando o lado humano
do convívio com a esquizofrenia, pois sabemos que esta é uma grande
dificuldade. Outro objetivo foi convidar
,
nossos leitores a procurar
conhecer suas questões particulares. E importante o reconhecimento
Entre a razão e a ilusão • 213
Alucinação
Urna alteração da percepção. Ver, ouvir, cheirar, sentir o gosto ou sentir
o toque de coisas que não estão presentes.
Antipsicóticos
Também chamados de neurolépticos ou tranquilizantes maiores, são
medicamentos específicos utilizados no tratamento de transtornos
mentais e agem controlando sintomas psicóticos corno delírios e aluei-
~
naçoes.
Delírio
Urna crença fixa que não tem base na realidade. Pessoas que sofrem de
delírios geralmente estão convencidas de que são famosas, estão
sofrendo perseguição ou são capazes de feitos notáveis.
21 6 • Glossário
Diagnóstico
Diagnóstico médico: é conhecimento ou juízo ao momento, feito pelo
médico, com relação às características de uma doença ou de um quadro
clínico que comumente suscita um prognóstico médico, com base nas
possibilidades terapêuticas, segundo o estado da arte, acerca da
dt1ração, da evolução e do eventual termo da doença ou do quadro
clínico sob seu cuidado ou orientação. Os diagnósticos são categori-
zados de acordo com a Classificação internacional de doenças (CID), e
a esquizofrenia é uma das possíveis categorias diagnósticas utilizadas
em psiquiatria.
Discinesia tardia
Este efeito colateral afeta o sistema motor extrapiramidal e é caracte-
rizado por movimentos anormais involuntários, súbitos e rápidos, tais
como piscar irregular dos olhos, caretas, movimentos da língua e
colocar a língua para fora, além de movimentos vermiformes dos
dedos dos pés e das mãos.
Distonia aguda
,
E um efeito colateral das medicações antipsicóticas que acomete o
sistema motor voluntário (trato extrapiramidal) . A distonia é a
contração dolorosa, persistente e involuntária de alguns músculos do
corpo. Os mais acometidos são músculos do pescoço, dos olhos e
aqueles responsáveis pela postura. Além dos sintomas motores, a
pessoa pode também ter um desconforto mental e incapacidade de
pensar. A distonia aguda ocorre geralmente nas primeiras horas após
a ingestão do medicamento antipsicótico.
Glossário • 217
Efeitos colaterais
Efeitos colaterais ocorrem quando há uma reação medicamentosa que
vai além ou não está relacionada ao efeito terapêutico da medicação.
Alguns efeitos colaterais são toleráveis, mas algtms são tão fortes que
a medicação deve ser suspensa. Efeitos colaterais menos graves
incluem boca seca, i11quietação, rigidez muscular e co11stipação. Efeitos
colaterais mais graves incluem visão turva, salivação excessiva,
tremores no corpo, nervosismo, insônia, discinesia tardia e alterações
,
sangu1neas.
Algumas
,
medicações estão disponíveis para controlar os efeitos colate-
rais. E importante aprender a reconhecer esses efeitos porque, às
vezes, eles são confundidos com sintomas da enfermidade. Um médico,
farmacêutico ou agente de saúde mental pode explicar a diferença
entre os sintomas da doença e os efeitos colaterais devidos à medi-
~
caçao.
Eletroconvulsoterapia (ECT)
Utilizada principalmente em pessoas que vivenciam depressão extrema
por longos períodos, com tendências suicidas e que não respondem à
medicação ou a mudanças ambientais.
21 8 • Glossário
Equipe de tratamento
(ou equipe de atendimento)
Refere-se a profissionais da saúde mental, assistentes sociais, entre
outros profissionais, que trabalham para oferecer serviços à pessoa
doente, de acordo com o plano de tratamento.
Esquizofrenia
A esquizofrenia é 11m diagnóstico médico para um transtorno mental
que cursa com sintomas psicóticos e que, em geral, tem curso crônico.
São sintomas comuns desse transtorno: alucinações, delírios, distúrbios
do pensamento e da fala e alterações de comportamento, inclttindo o
retraimento social.
Internação involuntária
O processo de ingressar no hospital chama-se internação. Internação
voluntária significa que as pessoas doentes solicitam tratamento e são
livres para deixar o hospital quando quiserem.
Pessoas q11e estão muito doentes podem ser internadas em ttma insti-
tuição de saúde contra sua vontade ou compulsoriamente. Há duas
formas em que isso pode ocorrer:
Medicamentos
Em psiquiatria, a medicação é geralmente prescrita em comprimidos
ou na forma injetável. Vários tipos diferentes de medicamentos podem
ser utilizados, dependendo do diagnóstico. Você deve pedir para o
médico explicar os nomes, as dosagens e as funções de todas as medi-
cações e separar os nomes genéricos dos nomes de marca, a fim de
diminuir a conft1são.
Paranoia
Tendência a desconfiança não justificada de pessoas e situações.
As pessoas com paranoia podem pensar que os outros estão ridiculari-
zando-as ou armando algum complô contra elas. A paranoia é classifi-
cada como um transtorno delirante.
Parkinson ismo
Outro efeito colateral que acomete o sistema motor extrapiramidal, o
parkinsonismo é dividido em dt1as categorias: hipocinético e hiperci-
nético. Os sintomas hipocinéticos incluem movimento muscular dimi-
nuído, rigidez, movimentos faciais desajeitados e rígidos e possivel-
mente depressão e apatia. Os sintomas hipercinéticos consistem em
agitação das extremidades inferiores, inquietação, tensão, tremores,
movimentos rítmicos rápidos das extremidades superiores. Esses
sintomas ocorrem geralmente entre poucos dias e algumas semanas
após o início do tratamento de uma fase aguda.
Glossário • 221
Plano de tratamento
Refere-se à terapia ou à medicação destinadas a curar o transtorno ou
aliviar os sintomas. Em psiquiatria, o tratamento geralmente consiste
em urna combinação de medicação, orientação (conselhos) e ativi-
dades recomendadas, que, em conjunto, compõem o plano de trata-
mento da pessoa.
Pródromos
Período de tempo que antecede urna crise aguda com a esquizofrenia
no qual há alterações sutis de comportamento, pensamentos e emoções.
Pode durar meses ou anos.
Psicose
Grupo de transtornos mentais caracterizados por alt1cinações, delírios
e perda de contato com a realidade.
Psicoterapeuta
Profissional especializado em psicoterapia para conflitos emocionais
e/ou tratamento de transtornos mentais.
Psiquiatra
Médico que se especializa no tratamento de transtornos mentais e
. .
emoc1ona1s.
222 • Glossário
Reabilitação
Programas desenhados para auxiliar as pessoas a retomar o funciona-
mento normal após ttma enfermidade incapacitante, ttm ferimento ou
dependência de drogas. São desenhados para ajudar as pessoas com
enfermidade mental a viver da forma mais independente possível.
Receptores
Lugares especiais nos neurônios que respondem a mensagens químicas
específicas entre as células.
Saúde mental
Descreve um equilíbrio apropriado entre o indivíduo, seu grupo social
e o meio ambiente mais amplo. Esses três componentes se combinam
para promover a h.a rmonia psicológica e social, um sentimento de
bem-estar, autorrealização e controle do ambiente circundante.
Terapeuta ocupacional
Profissional da área da saúde; trabalha com atividades humanas,
planeja e organiza o cotidiano (dia a dia), possibilitando melhor quali-
dade de vida.
Transtornos afetivos
ou transtornos do humor
Transtorno mental caracterizado por polarização afetiva exagerada e
oscilações do humor. No transtorno bipolar (conhecido anteriormente
como transtorno maníaco-depressivo), pode ocorrer a mudança de
uma grande euforia para uma depressão profunda ao longo de dias ou
semanas. Algumas pessoas apresentam somente mania, e outras,
somente depressão. Essas polarizações do humor são reações a estí-
mulos positivos ou negativos do a.mbiente.
Apêndice
Associações nacionais
ABRE - www.abrebrasil.org.br
ABRATA -. www.abrata.org.br
Projeto Fênix - www.fenix.org.br
GREEN, H. Nunca lhe prometi um jardim de rosas. 3. ed. Rio de Janeiro: In1ago, 1987.
LAMB, W. Eu conheço a verdade. [S. I.]: Record, 2002.
LIMBERTE, M. S. Cadê a minha sorte? São Paulo: Scortecci, 2009.
LOPEZ, S. O solista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
NASAR, S. Urna 1nente brilhante. [S. l.] : Best Seller, 2008.
NORTH, C. Bem vindo, silêncio. Rio de Janeiro: In1ago, 1988.
O'BRIEN, B. A vida íntima de urna esquizofrênica: operadores e coisas. Rio de Janeiro: Imago,
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WAGNER, P. S.; SPIRO, C. S. Vidas divididas: a batalha de duas irmãs para vencer a esquizofre-
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Livros técnicos
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Porto Alegre: Artined, 2005.
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DEL NERO, H. S. O sítio da mente: pensatnento, emoção e vontade no cérebro hun1ano. São
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