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A pergunta que intitula o presente texto padece de uma ambiguidade típica de outras
análogas, como, por exemplo, “O que é um juiz?” e “O que é um deputado?”. É que ‘Ministério
Público’ (doravante MP), assim como ‘juiz’, ‘deputado’, ‘delegado’, e outras expressões
similares, são palavras irremediavelmente ambíguas, na medida em que tanto designam um
órgão, isto é, um papel ou função jurídica, assim como também designa, talvez
parasiticamente, as pessoas ocupante de cargo ou órgão (para uma discussão mais
aprofundada sobre a ontologia de órgãos e instituições jurídicas, em geral, remeto o leitor ao
meu texto “O que é um juiz?”i, no qual indico farta bibliografia sobre o assunto). Em grande
número de situações, essa ambiguidade não incomoda e as pessoas sabem bem a diferença
entre dizer “No Brasil, o Juiz tem poderes para conceder tutela antecipada diante de tais e tais
circunstâncias” e “Oba, o Juiz me concedeu a tutela antecipada que pedi!”. Há, no entanto,
algumas situações em que a ambiguidade mencionada turva a identificação de problemas
jurídicos, o que, inevitavelmente, impede uma solução racional de tais problemas. Esse é,
precisamente, o caso da questão que dá título ao presente texto.
Essa distinção é crucial, nessas agitadas vésperas da votação da famigerada PEC 37.
Como se pode perceber, de imediato, as duas questões são radicalmente distintas, ainda que
relacionadas. Uma coisa é perguntar quem tem medo de que um órgão jurídico tenha o seu
design institucional, o seu conceito jurídico, definido pelos poderes A e/ou B. Outra coisa é
perguntar quem tem medo de pessoas humanas ocupando tal órgão e, portanto, com a
possibilidade de converter suas vontades pessoais em atos (sempre impessoais) de exercício do
poder deste órgão.
Contudo, respostas que poderiam ser razoavelmente dadas apenas para uma delas,
são oferecidas indiscriminadamente como se dirigidas à outra. Com efeito, um dos argumentos
de quem defende a PEC 37 é o de que ela “ evita abusos, excessos, casuísmos e desvios de
finalidade, permitindo apenas investigações legais, com o controle externo do MP e do Poder
Judiciário, e acesso à defesa” (extraído de http://saraiva13.blogspot.com.br/2013/06/a-pec-37-
e-o-ativismo-do-mp-tukano.html). Este argumento nem sempre aparece formulado
explicitamente em textos acadêmicos, mas é recorrente em manifestações puramente
“autobiográficas” sobre o assunto, desprovidas de maiores justificativas, como é o caso do
blog de onde foi retirada a frase transcrita.
Ora, o tratamento dado à ambiguidade do termo ‘Ministério Público’ permite ver, com
clareza solar, o grave equívoco deste argumento. É que órgão não é sequer logicamente capaz
de cometer qualquer abuso. Todo abuso é praticado por ocupante de cargo junto a órgão.
Portanto, o MP enquanto órgão não comete abusos, mas tão somente os eventuais ocupantes
de posição junto ao MP enquanto órgão é que podem cometê-los.
Quanto à resposta à que são (b) eu diria: eu tenho! E até acho que todos os brasileiros
sensatos devem ter e saber o que fazer, inclusive o que exigir, com relação a esse medo. Mas é
importante que eu esclareça minha resposta, com uma ressalva fundamental a ser feita: eu
tenho medo de qualquer ser humano equipado com poder institucional (num sentido amplo de
“institucional”, que aqui não pode ser esclarecido, por questões de espaço, mas que se
encontra devidamente exposto no meu texto acima referido “O que é um juiz?”), seja ele um
guarda de trânsito, um servidor, um delegado, um juiz, um governador etc. Isso não é mais do
que levar a sério um dado sobre a natureza humana que todos conhecemos bem. Agora, o que
é lícito e racional exigir que se faça com relação a este medo (bastante legítimo, por sinal)?
Para o cometimento do abuso, exigir a aplicação das normas já existentes para coibir e punir o
abuso de autoridade, nomeadamente a lei específica sobre o assunto (Lei nº 4.898/65), sem
excluir eventuais sanções administrativas e civis, igualmente já disponibilizadas na ordem
jurídica brasileira. No entanto, para diminuir os riscos de que abusos sejam permitidos, apenas
formação resolve (tanto a do profissional, como a de uma cultura de racionalidade e ética).
Volto, agora, à questão da PEC 37, para mostrar a completa inadequação, quanto à sua
defesa, do “argumento do medo de abuso”. Em primeiro lugar, a referida PEC 37 não se dirige
aos representantes do MP (que aqui denominei com o termo “pessoa-ocupante-de-posição-no-
MP-enquanto-órgão”, mas ao MP-enquanto-órgão, na medida em que define este órgão,
restringindo, explicitamente, um poder que, implicitamente, se tem considerado existente. Em
segundo lugar, o problema do abuso no exercício do poder se coíbe com leis que já existem.
Em terceiro lugar, o risco de abuso não se reduz com leis, mas com educação ou formação
adequada. Em quarto e último lugar, a aceitar-se o “argumento do medo”, então deveriam ser,
sistematicamente, eliminados todos os poderes normativos que dessem espaço para exercício
abusivo. Ora, mesmo que o exercício abusivo seja qualificado (com uma vagueza cruel) como
“perigoso”, a coerência com o “argumento do medo” conduz à eliminação de, praticamente,
todos os poderes normativos relevantes: de delegados, do MP (não eliminados pela PEC 37),
dos juízes, dos administradores públicos etc. etc. Com este último (que para mim bastava
desde o começo), considero irremediavelmente refutado este “argumento do medo” para
defender a PEC 37, pela poderosa reductio ad absurdum.