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AULA 6

O ENSINO DA GRAMÁTICA
NO CONTEXTO ATUAL

Prof. Eugênio Vinci de Moraes


CONVERSA INICIAL

Cara aluna, caro aluno, seja bem-vinda, seja bem-vindo!


Dando continuidade à discussão sobre métodos e práticas de ensino de
gramática do português brasileiro popular e padrão, nesta aula apresentaremos
quatro propostas diferentes, pensadas por importantes linguistas brasileiros.
Vamos acompanhar a atividade criada pelo professor da UnB Marcos Bagno
para o ensino da crase; a proposta de ensino de gramática pelo viés da pesquisa,
sugerida pelas professoras da UFSC Roberta Pires de Oliveira e Sandra
Quarezemim, passando por uma atividade criada por mim, baseada na distinção
entre PB e PE, formulada pelo professor da USP Ataliba Teixeira de Castilho;
terminando com a proposta de retextualização do texto falado em escrito, idealizada
pelo ex-professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Luiz Antônio
Marcuschi. Toda elas buscam articular as modalidades populares e cultas do
português brasileiro, a fim de colaborar com o estreitamento entre elas, buscando
o ideal proposto pelo gramático Evanildo Bechara, o de sermos poliglotas na
mesma língua. A ordem desta aula, então, será esta:

1 – Ensinar a norma-padrão com textos reais – Marcos Bagno.


2 – Ensinar por meio da pesquisa – Roberta Pires Oliveira.
3 – Texto e variedade sociocomunicativa – Ataliba de Castilho.
4 – Reescrita a partir do texto falado.
5 – Retextualização: eliminação, inserção, substituição e síntese.

CONTEXUALIZANDO

Cara aluna, caro aluno, observe os textos a seguir:


Texto 01

F – eh... eu vou falar sobre a minha família... sobre os meus pais..


o que eu acho deles... como eles me trata... bem... eu tenho uma
família... pequena... ela é composta pelo meu pai... pela minha
mãe... pelo meu irmão... eu tenho um irmão pequeno de... dez
anos... eh... o meu irmão não influencia em nada... a minha mãe é
uma pessoa superlegal... sabe? Ela... é uma pessoa que conversa
comigo... é minha amiga... ela... me amostra sempre a realidade
da vida... ela nunca... ela nunca... esconde nada de mim... né? tenta
ver o melhor pra mim... me amostra a vida como ela é... entendeu?
o meu pai não... o meu pai já é uma pessoa... ah... ele... já... é uma
pessoa muito fechada.... e... triste... porque a juventude dele... a
criação dele... foi uma coisa... foi uma coisa/ como é que vou dizer?

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eh... ele foi criado/os pai dele por um clima de autoritarismo... [...].”
(Marcuschi, 2007, p. 113)

Texto 02

Tinha dois conto em cima da mesa, que minha coroa deixou pro
pão. Arrumasse mais um e oitenta, já garantia pelo menos uma
passagem, só precisava meter o calote na ida, que é mais tranquilo.
Foda é que já tinha revirado a casa toda antes de dormir, catando
moeda pra comprar um varejo. Bagulho era investir os dois conto
no pão, divulgar um café e partir pra praia de barriga forrada. O que
não dava era pra ficar fritando dentro de casa. Calote pra nós é lixo,
tu tá ligado, o desenrolo é forte (Martins, 2018, p. 9).

O que achou? Estranhos? Mal escritos? Bem-escritos? Uma coisa é certa:


não são textos que obedecem à norma-padrão. Um deles, inclusive, nem foi escrito
na verdade. O Texto 1 é uma transcrição de fala de uma jovem de 17 anos,
moradora do Rio de Janeiro. Como você deve ter percebido, o texto é repleto de
hesitações, repetições, e não obedece à prosódia da escrita, tampouco emprega
os sinais de pontuação da forma canônica.
O Texto 2, por sua vez, já tem “jeito” de texto escrito, pois está organizado à
base de sinas de pontuação, como estamos habituados a ver. O que aparece fora
da ordem é a norma, ou seja, ora aparecem trechos escritos na norma popular ora
há trechos vazados na norma-padrão ou culta. Isso acontece porque é um texto
literário – é um conto do livro O sol na cabeça (2018) – em que se alternam registros
dessas duas variantes. Veja: “Tinha dois conto em cima da mesa, que minha coroa
deixou pro pão. Arrumasse mais um e oitenta, já garantia pelo menos uma
passagem [...]” Nesse trecho, há passagens em que a concordância nominal só
está marcada pelo primeiro termo (doiS contoØ), fora da norma-padrão, ao passo
que, mais à frente, lemos “minha coroa deixou”, em que se respeita a concordância
verbal e a grafia do verbo deixar (deixou) que, em geral, na fala é pronunciada
“deixô”.
O que temos, na verdade, são dois exemplos de textos em que ocorrem
formas típicas do português brasileiro. Na transcrição de fala, ocorrem as
repetições, boa parte delas dos pronomes “ele” e “eu” que caracterizam a fala do
PB, que se impõem graças à redução morfológica da flexão verbal, que tende a se
reduzir a duas formas, dada a marcação de plural acontecer apenas no sujeito ou
pronome, como na passagem “eles me trata”. Essas ocorrências podem ser
abordadas pelo professor e pela professora de português de várias formas. É
possível discutir a gramática da fala, a gramática do PB e a gramática padrão por

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meio de textos desse tipo. Ou seja, é possível conhecer e aprofundar o
conhecimento sobre a língua que falamos no dia a dia, ou seja, o PB, ou conhecê-
lo em contraste com a variante padrão. Deste contraste é possível produzirem-se
aulas de retextualização, ou seja, exercícios de escrita por meio de passagens de
uma variante a outra: por exemplo, do PB para a variante padrão ou culta.
Vamos ver como isso é possível? Você já tentou usar essas formas em
suas aulas?

TEMA 1 – ENSINAR A NORMA-PADRÃO COM TEXTOS REAIS – MARCOS


BAGNO

Na Aula 03, falamos da Gramática Pedagógica do Português Brasileiro


(2011), escrita pelo professor da Universidade de Brasília – UnB – Marcos Bagno.
Dois anos depois, Bagno lança a Gramática de Bolso do Português Brasileiro
(2013), uma versão sintetizada da primeira com a intenção de servir para aplicar,
de forma mais “rápida e prática”, os conteúdos da Gramática Pedagógica.
Concentra-se em orientar o professor naquilo que “se deve ou não se deve ensinar
nas aulas de português do Brasil neste início do século XXI” (Bagno, 2013, p. 346).
Nesse volume, o professor da UnB apresenta 4 propostas de aula voltadas
para o ensino de regras da norma de prestígio (ou norma culta):

1. uso do pronome relativo cujo;


2. uso do acento indicador de crase: à;
3. distinção entre verbo no infinitivo(dar) e verbo conjugado (dá);
4. formação do modo imperativo.

Mas, antes, o professor da UnB expõe os princípios e metodologia para


isso. Em primeiro lugar, segundo ele, ensinar a norma culta é refrear o uso da
língua materna. Não é natural nem está em harmonia com o que o usuário
costuma empregar na comunicação do dia a dia. Para não dificultar mais ainda as
coisas, Bagno propõe que se trabalhe com textos autênticos, ou seja, que se
evitem usar frases, sentenças artificiais criadas para “ensinar” a crase: “[...] só
podemos imaginar um ensino de língua relevante e honesto se ele trouxer para
dentro da sala de aula a realidade viva e dinâmica da língua” (2013, p. 312).
O professor sugere, então, que se utilizem os próprios textos que vêm
sendo trabalhados na disciplina ou nas de outros professores, caso haja
entendimento entre as disciplinas num programa multidisciplinar. Bagno sugere

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também que se usem materiais jornalísticos disponíveis em impresso ou em
formato digital. Se houver disponibilidade de os alunos usarem o computador, o
professor não deve se furtar a isso: “Na aula que vamos sugerir abaixo, a coleta
de dados de textos falados/ escritos pode ser feita é claro em livros, jornais e
revistas impressos, em programas de rádio e televisão [...]. Mas pode ser feita de
maneira muito mais rápida, simples e prática graças a um computador” (Bagno,
2013, p. 311).
Vamos acompanhar mais de perto, então, a proposta de Bagno para o
ensino da crase.

1.1 Acento indicador de crase no “à”

O primeiro passo é evitar exemplos artificiais, afirma Bagno. Formas como


“Fui à casa de Maria” e “Antônia vai às compras” são muito artificias, uma vez que
usamos preferencialmente “Fui na casa de Maria” e “Antônia foi fazer compras”. A
coleta em textos reais ajudará a minimizar esse problema. Outra orientação dada
por Bagno é não se basear em “teorias gramaticais ultrapassadas”. Teorias essas
que ele não explicita, contudo.
Dado isso, ele sugere que se faça o trabalho em três etapas:

1. Leitura livre ou voltada para leitura oral ou compreensão e interpretação de


texto.
2. Coleta de ocorrências do à craseado em suas formas no singular e no plural
(à/ às).
3. Exame da preposição a.

A primeira etapa deve seguir a objetivos voltados para o ensino da leitura,


sobre os quais Bagno não comenta. Mas, entende-se que o exame do texto em sua
totalidade – seja por meio de leitura, seja pela compreensão e interpretação –
obedece à uma premissa de que a experiência do discurso deve preceder o da
pesquisa.
A segunda etapa segue uma orientação-chave: “Assinale ao longo do texto
todas as ocorrências de à e às” (Bagno, 2013, p. 321). A coleta, então, pode ser
registrada em caderno ou no computador, a depender das circunstâncias de aula.
Esses registros devem conter toda a sentença em que ocorre a crase. Ele sugere
que o aluno registre o trecho entre dois pontos finais, assim: “Em abril de 2014, foi

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julgada procedente em parte pela Justiça Federal do Mato Grosso, que determinou
às rés (Funai e União) a conclusão imediata do processo em 30 dias” (Anjos, 2018).
Depois da coleta, Bagno propõe acrescentar outra pergunta: “Observem na
lista todas as palavras que vêm logo depois do à/ às. O que elas têm em comum?”
(2013, p. 322). Espera-se uma resposta desta: “são palavras femininas”. Com isso,
chega-se à primeira regra básica: “Só se usa à ou às diante de palavras femininas”.
Aqui, Bagno não menciona, mas o aluno poderá encontrar crases em
expressões circunstanciais como “à bala”, “às vezes”, “à mão” etc., fenômeno
linguístico que muitos teóricos não entendem como crase. Mesmo assim, a regra
vai ser a mesma, só deverá aparecer o acento grave no à dessas expressões
quando o núcleo delas for ocupado por uma palavra do gênero feminino, nunca
antes de masculinas ou verbos: à bala, a serviço, a partir, por exemplo.
Chega-se, então, à segunda etapa: explicar por que as preposições
ocorrem nas amostras, já que o artigo a é explicado pela presença da palavra
feminina. Esse processo, se bem conduzido, deve levar o aluno e a aluna a deduzir
a regra central da crase, ou seja, o “à resulta da crase (‘fusão’) da preposição a
com o artigo feminino a”. A questão é responder por que a preposição aparece
nessas construções, enfatiza Bagno.
Entra-se, portanto, nos domínios das regências verbal e nominal. Neste
caso, as preposições aparecem como introduzindo os complementos de verbos,
substantivos, adjetivos. Aparecem acompanhadas de determinados verbos e
nomes (substantivos e adjetivos). Então, Bagno sugere que se listem essas
palavras que antecedem as ocorrências de à e às e depois peça-se aos alunos e
alunas que procurem mais ocorrências destas palavras nos textos pesquisados.
Devem aparecer palavras de outros gêneros ou classes depois delas. Peça
então que se separem apenas as do gênero masculino. Em seguida, discuta com
eles essa coincidência de ocorrências da preposição, de modo a chegar à resposta
da pergunta proposta. Assim, se pode evidenciar a presença da preposição e seu
papel na formação da crase.
Aqui, Bagno sugere fazer um exercício de transformação no caso das
palavras masculinas, assim:

• Dirigiu-se ao público – dirigiu-se à plateia


• Deu presente ao pai – deu presente à mãe
• Habitado ao clima – habituado à temperatura

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Isso serve, segundo Bagno, para “evidenciar a necessidade da escrita do
acento” (2013, p. 324).
Por fim, no caso de haver palavras femininas no plural e apenas a preposição
a, como em “Ela nos obrigou a atitudes desagradáveis”, “Não estou me referindo a
essas questões”, a professora ou o professor pode partir para outra discussão:
quando não se usa o acento indicador de crase?
Evidentemente, essa sugestão de Bagno não contempla todos os casos de
crase, mas busca fazer o aluno e aluna entenderem a regra geral. Isso já será um
grande feito.

TEMA 2 – ENSINAR POR MEIO DA PESQUISA – ROBERTA PIRES OLIVEIRA

Empregar métodos de pesquisa é mais uma das propostas para o ensino de


gramática. As professoras Roberta Pires de Oliveira e Sandra Quarezemin, da
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, defendem práticas didáticas que
estimulem alunos e alunas a elaborarem gramáticas do Português Brasileiro. Ou
melhor, que façam atividades em que se busquem compreender fenômenos
gramaticais do Português Brasileiro.
O objetivo das professoras da UFSC, apresentado em Gramáticas na
escola (2016), “é restaurar [o] fascínio pela língua que falamos” (2016, p. 166).
Para isso, propõem distanciar o aluno e aluna do objeto de pesquisa – a língua –
, para depois examiná-lo, como faz um biólogo, por exemplo, com seres vivos; ou
um físico, com os fenômenos mecânicos ou óticos observáveis no planeta. A
língua que as professoras sugerem trabalhar é o Português Brasileiro. Nesse
caso, trata-se de ensinar a gramática dessa variante da língua, no seu sentido
linguístico; e não ensinar as regras da norma culta ou padrão. A relação que
sugerem estabelecer é, quando possível, comparar os resultados com os dados
da gramática do Português Europeu.

2.1 Cientistas de Marte investigando o Português Brasileiro

Oliveira e Quarezemin propõem uma atividade inicial que leve os alunos e


alunos a entrarem no espírito da pesquisa científica. Sugerem ações que lhes
mostrem como abordar a língua pelo método usado pelos cientistas.
Uma das sugestões é colocá-los para ouvir uma língua estrangeira e
perguntar a eles como fariam para descrever essa língua se fossem cientistas que

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acabaram de chegar de Marte. Na sequência, as professoras sugerem que se
mostrem a eles diferentes tipos de gramática: gramática de língua estrangeira,
gramática do português para estrangeiros, gramática de línguas indígenas,
gramáticas do Português Brasileiro.
Esses suportes servem para o marciano cientista reconhecer que há vários
tipos de gramática, ou seja, servem para desmistificar a existência de uma só
gramática. Por fim, leva-se a discutir o que é gramática. Ou melhor, o que é uma
gramática. O próximo passo é aplicar a ideia de uma gramática para a língua
falada pelos alunos e alunas, o Português Brasileiro.

2.2 Da hipótese à descrição/ regra

Continuando com a narrativa do cientista de Marte, o professor mostra que


esse pesquisador ficou intrigado com o emprego da palavra num, que ele
encontrou em vários blogs da internet. Ele suspeita que essa palavra, na verdade,
sejam duas. Então, passa a mostrar aos alunos as amostras que encontrou. Dada
a hipótese, o cientista (aluno/ aluna ou professor) apresenta a amostra.
Roberta Oliveira e Sandra Quarezemin não especificam de onde tirar as
amostras, mas como são usos do PB é preciso coletá-las de meios em que se fale
essa modalidade do português. A internet é um bom lugar para isso, assim como
gravações dos próprios alunos, posteriormente transcritas ou os corpora de língua
falada disponíveis em nossas universidades.
Em Gramáticas na escola, as professoras apresentam estas ocorrências:

(1) Num é só vê.


(2) Num é verdade que a Maria saiu.
(3) Ele está num lugar diferente.
(4) Num tenho tempo pra explicá.
(5) Não ele ainda num veio.
(6) Ela num veio.
(7) Ele tem um restaurante num bairro distante. (2016, p.170)

O passo seguinte é estabelecer uma hipótese: “nessa língua há dois num:


num indica um lugar; num é uma negação” (2016, p. 170). Ainda que possa
parecer óbvio aos alunos essa primeira etapa, a ideia é desautomatizar a relação
com a língua materna e se colocar como um estrangeiro em relação à língua
materna.

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A seguir, é possível trabalhar tanto com o locativo num quanto com o num
de negação. Uma primeira verificação é perceber a posição em que num aparece
na sentença com o sentido de negação e de locativo. Deixem o aluno e a aluna
perceberem que o num de negação sempre ocorre antes do verbo.
Essa dedução pode ser verificada nesta sentença: (1) Ele num está num
lugar diferente; em que o primeiro é forma de negação (pré-verbal) e o segundo é
locativo (pós-verbal).
Outro exercício é comparar as formas negativas num e não para constatar
se num é uma redução fonética de não. Se for, ambas as formas devem se
comportar de modo igual na sentença. Para isso, examinam-se novas sentenças:

(8) O João veio? Não/ Num.


(9) A Maria não/ num saiu.
(10) A Maria não/ num é bonita, é linda.
(11) Num/ Não necessariamente, o João é esperto.
(12) Essa embalagem é num/ não reciclável.
(13) Esse abridor não/ num é prático.
(14) Eu num/ não falei isso num/ não.
(15) Essa medida é num/ não constitucional.
(16) Esse quadro é não/ num representativo da verdadeira situação.
(17) O dia tem apenas 16 horas e não/ num mais 24 horas. (Oliveira;
Quarezemin, 2016, p. 172)

Pergunta-se, então, aos alunos e às alunas se todas as sentenças lhes


parecem bem-formadas ou, ao contrário, se perceberam algo estranho em
algumas delas. Para as autoras, nas sentenças (8), (11), (12), (14), (15), (16) e
(17) o num soa estranho. Examinando novamente, percebe-se que ele funciona
bem apenas antes de verbos, como nas sentenças (9), (10) e (13). Essa diferença
deve levar os alunos a perceber que há dois tipos de negação: uma que nega toda
a sentença – Maria num/ não saiu – e outra que nega só um dos elementos da
sentença (só o predicado) – Essa embalagem é não reciclável. Neste segundo
caso, viu-se que a forma num não funciona. Teremos esta regra do PB: a forma
num é usada na negação apenas antes dos verbos, em sentenças em que se
nega totalmente a proposição. Não é usada para negar só parte da sentença, ou
seja, os predicados.
Por fim, o professor pode comparar as formas de negação com o PE, em
que o não faz as duas negações, e pode propor exercícios para fixar essa lição.
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Pode, por exemplo, pedir para o aluno substituir a forma num por não em
sentenças selecionadas e pedir para que identifique se é uma negação geral
(externa) ou parcial (predicado/ interna): (18) Esse vinho é num alcoólico; (19)
Esse alicate num aperta nada.
Desse modo, segundo Roberta Pires de Oliveira e Sandra Quarazemin,

As aulas de português terão um ganho acentuado quando


gramática não for compreendida como um rótulo que não serve
para nada. Gramáticas são análises sofisticadas de um fenômeno
muito complexo, as línguas humanas. Um sistema inconsciente
que nos constitui enquanto constitui o nosso mundo. Explicar
como elas funcionam é entender como somos. Com certeza,
poeira estrelar, mas poeira estrelar falante! (2016, p. 173)

TEMA 3 – PORTUGUÊS BRASILEIRO E NORMA-PADRÃO: COMPARAÇÃO E


REESCRITA

O ensino de gramática por meio do português brasileiro pode se dar


também por meio do contraste com a variante descrita pela norma-padrão. Na
Aula 03 vimos as características do PB e agora é possível lidar com elas para
ensinar a norma-padrão, ao mesmo tempo que se discutem as gramáticas do PB
e do PE.
Pode-se fazer isso usando textos literários e transcrições de fala. Tratemos
agora dos textos literários; no tema seguinte, do texto falado.
Lima Barreto, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Jorge Amado, Plínio
Marcos, João Antônio são escritores brasileiros conhecidos por incorporarem a
seus textos formas linguísticas do português brasileiro: variantes lexicais usadas
nas ruas, becos, bares e presídios; emprego do pronome ele na posição de
complemento verbal; uso do pronome átono no início de frase. Eis um exemplo:

[...] Neste instante, a Madalena abriu a janela, se assustou de ver


ele ali. Fez dengo antes de abrir a porta. [...] Os primeiros raios de
sol iluminavam a favela, quando a gronga se deu. No meio do seu
sono satisfeito, o Alvinho foi despertado por um berro:
– É cana, Alvinho! Tu tá cercado. Se sair legal, ninguém vai te
esculachar. Se aprontar, a gente te dança. Tu tem um tempo pra
escolher” (Marcos, 197?, p. 27, 28).

Neste curto trecho de “O fim de um cagueta”, de Plínio Marcos, vemos


formas linguísticas do PB em “ver ele”, “Tu tá”, “tu tem”, além da gíria gronga (hoje
usaríamos treta). Repare que não aparecem só na fala de uma das personagens,
mas também no trecho enunciado pelo narrador. O recurso empregado reproduz

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a fala real do brasileiro a fim de criar verossimilhança, mas também, no caso do
trecho do narrador, de aceitar e adotar, como uma variante legítima, a forma não-
padrão do ele em posição de complemento verbal.
Na literatura contemporânea, começaram aparecer autores nascidos nas
periferias das cidades brasileiras, falantes da variedade popular do Português
Brasileiro que conseguiram inserir-se e formar-se no meio literário nacional, como
Ferrez, autor de Capão Pecado (2000), e Giovani Martins, autor de O sol na
Cabeça (2018). Jovens pobres das periferias de São Paulo e Rio,
respectivamente, ambos se impuseram por meio de contatos e participações em
grupos literários formados nos seus próprios bairros de origem ou participando de
eventos como a Festa Literária das Periferias – FLUP. Nos textos deles, o PB flui
com mais desembaraço que nos autores das gerações anteriores, como neste
trecho de Rolézim, conto de Giovani Martins:

Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, não era nem nove
da manhã e a minha caxanga parecia que tava derretendo. Não
dava nem mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo seco. Só
ficou as manchas: a santa, a pistola e o dinossauro. Já tava dado
que o dia ia ser daqueles que tu anda na rua e vê o céu todo
embaçado, tudo se mexendo que nem alucinação. Pra tu ter uma
ideia, até o vento que vinha do ventilador era quente, que nem o
bafo do capeta (Martins, 2018, p. 9).

Marca forte da presença do PB no texto é a ausência do /s/ marcador de


plural, entre outras, como a concordância de tu com verbo na terceira pessoa (“tu
anda”, “tu ter”), e a ausência de concordância com sujeito posposto (não era nem
nove da manhã). O conto todo é um verdadeiro arcabouço das formas do PB, com
as quais o professor pode trabalhar, seja discutindo sua gramática interna, como
fizeram as professoras Roberta Oliveira e Sandra Quarezemim no tema anterior
com a forma num, seja comparando essa gramática com a da norma-padrão ou
culta. Veremos como trabalhar com este segundo aspecto.

3.1 Reescrita: do PB literário à norma-padrão literária

Retome as características do PB apresentadas na Aula 03 e consulte


também o quadro comparativo feito pelo professor Ataliba T. de Castilho em sua
Gramática do Português Brasileiro, nas páginas 192 e 193 (Biblioteca Virtual).
Esse exame serve para identificar com segurança as formas típicas do PB que
podem ser encontradas no texto Rolézim, de Giovani Martins, que será usado
como sugestão para essa atividade.
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Em primeiro lugar, leia o conto “Rolézim” com os alunos. A sugestão é que
o texto seja trabalhado no Ensino Médio ou mesmo no Ensino Superior por causa
de seu conteúdo. Discuta o texto com os alunos e alunas do ponto de vista que
for mais interessante para o contexto da disciplina. O conto pode ser usado para
debates interdisciplinares nos quais se discutam problemas ligados à
desigualdade social, criminalização/ legalização das drogas, violência, juventude
etc.
No contexto da gramática, a discussão pode começar pela questão da
legitimidade do emprego da variante popular num texto literário. Pode-se debater
também sua eficácia estilística, compará-la a textos literários mais formais
trabalhados na disciplina, entre outras possibilidades. Por fim, entra-se na
atividade propriamente dita.

3.1.2 Identificação e reescrita

Organize a sala em grupos. Divida o texto em parágrafos. Dependendo do


número de alunos, você pode selecionar dois parágrafos por turma. Se não
contemplar o texto todo, não tem problema, pois os alunos já leram o conto antes.
Organizados e divididos os parágrafos pelos grupos, apresente as instruções e o
quadro a seguir com o qual eles deverão trabalhar:

Instruções gerais. A análise deve seguir estes passos:

I. Leiam os trechos selecionados do conto “Rolézim”, de Geovani Martins.


II. Identifiquem os trechos escritos em PB (ou em desacordo com a norma-
padrão).
III. Anotem também os termos que consideram escritos em registro informal.
IV. Transformem os trechos escritos em PB em trechos escritos em norma-
padrão. Façam isso como no quadro a seguir.
V. Por fim, apresentem os resultados para a turma:

Trechos ou Fora da norma Termos


palavras informais

Parágrafo 1 “Acordei tava ligado o Maçarico” Caxanga [casa]

[Quando acordei estava ligado o ligado o


Maçarico] Maçarico
[muito quente]

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Parágrafo 1 “Não dava nem mais pra ver as
infiltração na sala”

[Não dava mais para ver as infiltrações


na sala]

Parágrafo 2

A apresentação é a oportunidade para se discutir todas as questões da


norma popular e da norma culta. Inclusive as soluções dadas pelos alunos. Nessa
hora, o professor ou a professora pode dar menos ou mais liberdade para a
reescrita. Pode-se optar primeiro pela simples readequação à norma, para depois
pedir aos alunos e às alunas que escrevam um conto com o tema do “rolê”. Ou
pede-se que os alunos identifiquem a forma do PB e a recriem de forma mais livre,
mas respeitando as regras da norma-padrão. Nesse ponto, é possível pensar na
situação comunicativa e nas opções estilísticas. Ou seja, a adequação da variante
popular do PB para a culta não promove a adequação estilística, já que são
situações de comunicação diferentes.
No caso de pedir a redação de conto, esse gênero já deve ter sido estudado
pelos alunos, ou estudado paralelamente ao estudo do PB. Pode-se fazer isso
tranquilamente em aulas alternadas de Língua Portuguesa durante a semana.
Uma aula para a discussão do discurso e da gramática do texto; outra aula, para
o estudo do gênero conto.

TEMA 4 – REESCRITA A PARTIR DO TEXTO FALADO

Outra forma de lidar com o contraste entre PB e a variante culta ou padrão


é incentivar a transformação de textos falados em textos escritos. Luiz Antônio
Marcuschi (1946-2016), ex-professor da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), no livro Da fala para a Escrita – Atividades de Retextualização (2007),
apresenta esta atividade e a discute em pormenor, sempre enfatizando a
horizontalidade entre as duas modalidades, ou seja, nenhuma das duas é superior
à outra.
Marcuschi observa que a passagem da fala para a escrita “vai receber
interferências mais ou menos acentuadas a depender do que se tem em vista, mas
não por ser a fala insuficientemente organizada. Portanto, a passagem da fala para
a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é a passagem de uma ordem
para outra ordem” (Marcuschi, 2017, p. 47).

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O ex-professor da UFPE observa ainda que a retextualização se dá em
meio a processos complexos ligados à transformação de uma modalidade textual
para outra. Várias operações são necessárias para se chegar a um texto escrito
a partir de um texto falado. Lembrando que as diferenças entre essas duas
modalidades são maiores nos seus polos mais típicos ou extremos (conversa
informal [fala] – texto acadêmico ou jurídico [escrita]). Em outras posições, fala e
escrita podem se aproximar bastante; por exemplo, num editorial de telejornal, em
que o texto falado é tão formal quanto um texto escrito; ou num post de Facebook
ou mensagem de WhatsApp, em que, apesar de escritos, ocorrem diversas
marcas de conversa informal.

4.1 Modelo de operações de retextualização

Marcuschi propõe um modelo de representação das operações que levam


um texto falado até um texto escrito. Alertando que não se trata de um modelo
mágico nem último e ideal, o professor da UFPE divide essas operações em dois
grandes blocos: A – atividades de idealização; B – atividades de reformulação. As
primeiras dizem respeito a processos de eliminação, completude e regularização;
as segundas operam com ações de acréscimo, substituição e reordenação.
Do início do bloco A ao término do B, Marcuschi identifica 9 operações, das
quais 4 pertencem ao bloco A; e 5, ao bloco B. As quatro primeiras operações
tratam de eliminar as marcas típicas de fala (hesitação, marcas interacionais,
trechos truncados), inserir pontuação com base na prosódia da fala, suprimir
repetições, paráfrases, redundâncias, e inserir parágrafos e pontuação mais
minuciosa. Repare, então, que se alternam dois processos baseados na visão
idealizada da língua escrita: eliminação e inserção. Eliminam-se formas que não
se veem na escrita; inserem-se formas que se consideram típicas da escrita.
As operações do Bloco B já são mais substanciais, pois buscam a
transformação do texto falado em texto escrito. Agora são estratégias de
“substituição, seleção, acréscimo, reordenação e condensação. São propriamente
as que caracterizam o processo de retextualização e envolvem mudanças mais
acentuadas no texto-base” (Marcuschi, 2007, p. 74, 76). Nessa hora, reformulam-
se passagens inserindo marcadores metalinguísticos, dêiticos; reordenam-se
estruturas sintáticas, concordâncias verbal e nominal. Selecionam-se novas
estruturas sintáticas para substituir as produzidas pelo texto original, assim como
novas opções lexicais, resultando numa operação tanto estilística quanto

14
sociolinguística (de uma variante a outra). Por fim, operam-se sínteses,
condensações de argumentos, de modo a reestruturar e sintetizar o texto falado.
O interessante dessa proposta é que a partir das duas primeiras operações
pode-se chegar já a uma modalidade de texto escrito a depender do nível de
ensino em que se está, das habilidades do aluno ou aluna envolvidos na atividade.
Ou seja, num primeiro nível, a simples eliminação de marcas de oralidade e
inserção de pontuação já é um processo de retextualização. Tudo vai depender
dos objetivos de aula pensados pelo professor ou pela professora.

TEMA 5 – RETEXTUALIZAÇÃO: ELIMINAÇÃO, INSERÇÃO, SUBSTITUIÇÃO E


SÍNTESE

Marcuschi traz vários exemplos de retextualização em seu livro. Ele os


analisa um a um, detalhando os processos envolvidos até a redação final. Antes
de mostrar um dos trabalhos do professor da UFPE, sugerimos que você prepare
esta aula com os alunos e alunas utilizando um texto importante para seu curso
ou disciplina. Uma proposta é ler o texto com eles, discuti-lo do ponto de vista
discursivo. Também é possível e produtivo usar um texto que já tenha sido usado
na disciplina com outros objetivos e reutilizá-lo para essa atividade. Ou então usar
um texto que esteja sendo usado em alguma atividade interdisciplinar.
Depois da leitura do texto, peça aos alunos que preparem um resumo oral
deste texto. Claro que para isso você deve abordar ou já ter abordado esse gênero
textual. O trabalho pode ser feito em grupo ou em duplas. Depois de preparado o
resumo, os alunos e as alunas devem apresentá-lo para sala. A apresentação
deverá ser gravada e depois transcrita pelos alunos. A forma de transcrição deve
ser passada aos alunos e explicada a eles.
Importante é limitar a exposição a, no máximo, dois minutos. Um minuto é
um tempo bom, pois não produzirá uma transcrição muito longa. A exposição oral
pode ser feita por um aluno ou por todos, a critério do professor ou da professora.
O ideal é que todos o façam, mas isso vai depender do tamanho da equipe.
Depois, os alunos produzem um texto escrito a partir da transcrição. É
importante, durante esse processo, mostrar a eles alguns exemplos, além de
sugerir os dois movimentos gerais propostos no modelo de Marcuschi: as
atividades de idealização e de transformação. Adapte a nomenclatura da proposta
do professor da UFPE à série com a qual você estiver trabalhando. Dependendo

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da série, pode-se trabalhar apenas com os processos de idealização. Mas não é
o ideal.

5.1 Da fala à escrita

Marcuschi apresenta uma retextualização de um texto falado realizada por


duas alunas do ensino fundamental: uma aluna da terceira e outra da oitava série
do ensino fundamental.
O texto original falado e transcrito é este:

Exemplo 14
“...quando ingressei nos Estados Unidos... por Miami uma das
vezes eu levava a minha mãe que era uma senhora de setenta e::
dois anos de idade... e: coitada... ela foi fazer companhia a minha
esposa que tava grávida... e foi interessante que: como ela sabia
que ia passar oito meses... lá nos Estados Unidos... então levou
todas as ferramentas de fazer flores de papel:: aquele negócio todo
só vendo o que ela levou.. como bagagem... e o funcionário da
alfândega americana... realmente ficou preocupadíssimo que
significava aquilo tudo né? ... aqueles ferrinhos e ferros em bola e:
e: a impressão que dava é que ela levava um... um... verdadeiro
arsenal de espionagem ((ri)) internacional... e: no meio dessa
história toda ela levava também um pó... éh::...ocre né? ... é uma
espécie de uma tinta... de/que se em geral se pintava eu não sei se
pinta hoje rodapé... de casas... ela levava porque ela utilizava esse
ocre... para pintura... ou:: modificação da das cores dos panos...
né? Ou a pintura dos panos que faz/com os quais ela fazia as flores
de papel e de pano... e o rapaz implicou com o ocre... entende?
Implicou e puxou o ocre pra cá e puxou o ocre pra lá e terminou
quebrando o:: o... o vidro de ocre... no meio da da das coisas
espalhadas dentro do:: do... do balcão e coitada de minha mãe... e
ela foi apanhar porque não sabia se nos Estados Unidos ia
encontrar ocre... né?” (Marcuschi, 2007, p. 106)

Agora a retextualização da aluna da 3ª série:

1 – Quando fui nos Estados Unidos por Miami uma das vezes eu
levei minha mãe uma
2 senhora de 72 anos.
3 — E coitada, ela foi fazer a companhia a minha esposa que estava
grávida e foi interessante
4 — Como ela sabia que ia passar oito lá nos Estados Unidos, levou
as
5 ferramentas para fazer flores de papel.
6 — Só vendo aquele negócio todo que ela levou como bagagem.
7 — E o funcionário da Alfândega americana ficou muito
preocupado.
8 — Ficou muito preocupado com o que significava aquilo tudo?
9 — Aquelas ferramentas em bolas...
10 — E a impressão que dava que ela levava ferramenta de
espionagem.

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11 — No meio dessa história toda ela levava 4 sacos de ocre. É
uma espécie de tinta
12 – E o rapaz implicou com o ocre.
13 — E puxou o ocre pra cá e pra lá e terminou quebrando o vidro
do ocre.
14 — No meio das coisas espalhadas no balcão a coitada apanhar
porque não sabia
15 se ia encontrar nos Estados Unidos. (Marcuschi, 2007, p. 107)

Marcuschi chama a atenção que a aluna coloca um travessão em cada novo


período, mostrando, ao mesmo tempo, que conhece essa marcação de fala na
escrita – o uso do travessão – mas que desconhece a mudança de turnos entre os
falantes (que na verdade não ocorre no original). Outro aspecto importante foi a
supressão de todas as marcações conversacionais e de hesitação, demonstrando
consciência dessa diferença entre as duas modalidades. De resto, Marcuschi
observa que praticamente não há mudanças na ordem das frases nem mudanças
lexicais, além de manter repetições do original, mostrando que não houve
tratamento de estilo. Aqui seria o caso de o professor trabalhar uma nova redação
do texto, apontando para esses problemas.
E agora a retextualização de uma aluna da 8ª série:

Quando ingressei nos Estados Unidos por Miami, uma das vezes
eu levava a minha mãe que era uma senhora de setenta e dois anos
de idade, coitada! Ela foi fazer companhia para minha esposa que
estava grávida, e foi interessante que, como ela sabia que íamos
passar oito meses nos Estados Unidos, levou todas as ferramentas
de fazer flores de papel, aquele negócio todo como bagagem, e o
funcionário da alfândega realmente ficou preocupadíssimo com o
que significava aquilo tudo. Aqueles ferrinhos e ferros em forma
redonda, a impressão que dava era que ela levava um verdadeiro
arsenal de espionagem internacional, e no meio dessa história toda
ela levava também um pó chamado "ocre ". É uma espécie de tinta,
que em geral se pintava rodapé de casas. Ela levava porque
utilizava-o para a modificação das cores, da pintura dos panos e o
rapaz implicou com o ocre. Puxou-o para um lado e para o outro e
terminou quebrando o vidro de ocre no meio das coisas espalhadas
dentro do balcão, e coitada da minha mãe, foi apanhar porque não
sabia se nos Estados Unidos ia encontrá-lo. (Marcuschi, 2007, p.
107-108)

Em comparação ao texto anterior, há evoluções significativas. Uso de formas


típicas da escrita para substituir formas usuais da fala, como se lê no trecho “Puxou-
o para um lado e para o outro”. Colocado no lugar do trecho “puxou o ocre pra cá
e puxou o ocre pra lá [...]”, vê-se, inclusive, o uso do clítico ou pronome átono em
vez de uma forma mais coloquial como “puxou ele”. Há a mesma operação no final,
quando a aluna usa “encontrá-lo”, que evita a repetição da palavra ocre, o que

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ocorre no texto falado, em um típico processo de texto escrito, mais marcado ainda
pelo uso do clítico.
Por outro lado, a aluna não insere parágrafos, o que deixa o texto com ar de
fala, ou seja, de um contínuo textual sem separação temática. Marcuschi ainda
aponta que há poucas transformações e condensações, operações que
produziriam uma mudança mais sensível ao texto falado, de modo a quase eliminar
suas marcas de oralidade.
Em uma experiência no ensino superior, no curso de Comunicação Social,
do Centro Universitário Uninter, chegou-se a um texto em que os últimos processos
de transformação, condensação e síntese foram realizados com razoável êxito:

Em uma das vezes que fui aos Estados Unidos, aconteceu um


incidente na alfândega de Miami. Nessa ocasião eu levava minha
mãe, para acompanhar minha esposa, que acabara de ficar
grávida. Como ficaria por lá cerca de 8 meses, mamãe levou os
seus apetrechos de artesanato, que usava para fazer flores de
papel.
Na alfândega, o encarregado de verificar nossa bagagem implicou
com a toda aquela parafernália que minha mãe levava. Em
especial, com um pote de vidro contendo pó de ocre, usado para
fazer tinta. De tanto mexer nele, o funcionário derrubou o frasco no
balcão, quebrando-o. Como minha mãe não sabia se ia encontrá-
lo nos Estados Unidos, começou a recolher o que pôde do pó que
se espalhara à sua frente.

Houve aqui, em primeiro lugar, a inserção de parágrafos, que separou a


introdução (primeiro parágrafo) da história do seu conflito e (má) resolução (2º
parágrafo). Observe que, no primeiro parágrafo, empregou-se o recurso de síntese
ao dar a informação mais geral logo de início (‘...aconteceu um incidente na
alfândega de Miami”). Ainda no primeiro parágrafo, suprimiram-se os comentários
(modulações) do narrador/ falante como “coitada”, “interessante”, além do uso do
dêitico “ali” para evitar a repetição de “Estados Unidos”.
No segundo parágrafo, o uso da palavra “parafernália” possibilitou a
condensação de toda a descrição redundante dos aparatos levados pela mãe na
viagem. Uma transformação mais forte foi a inserção da informação que o pó de
ocre foi levado dentro de um pote de vidro, algo que fica no ar na fala, e que aparece
de surpresa (sic) no final, quando se informa que o pote se quebra. Com essa
inserção, esse vazio semântico é resolvido. Outra forma de condensação foi o uso
da expressão “De tanto mexer nele...” que resolve bem o trecho “puxou o ocre pra
cá e puxou o ocre pra lá [...]”.

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Como se vê, essa é uma atividade que pode ser aplicada em todos os
níveis escolares em que as crianças já sejam alfabetizadas, pode ser desdobrado
em várias etapas, e pode ser articulado a atividades que trabalhem com outros
conteúdos de língua portuguesa ou de outras disciplinas. Além disso, pode ajudar
a consolidar o conhecimento sobre as modalidades de língua falada e escrita do
português e aprimorar as habilidades de escrita nas variantes informais e padrão.

FINALIZANDO

Nesta aula, vimos como são ricas as possibilidades de se trabalhar com


textos escritos ou falados em Português Brasileiro para ensinar a gramática de suas
variantes popular e culta. Em vez de repetir a tradição de estudos gramaticais
fundamentados no eixo certo/ errado, vimos propostas que colocam lado a lado
duas variantes do português para justamente aprimorar os conhecimentos do aluno
em relação a essa língua.
Escolher formas que usamos no PB correntemente para discutir fenômenos
importantes da língua, como a negação, é um exemplo de como se estudar a
gramática dessa variante sem cair em seu rebaixamento e sem perder o rigor dos
estudos gramaticais. Outra forma é produzir reflexão sobre as duas normas –
popular e culta – e incentivar a produção escrita na norma-padrão. Mais que isso,
é possível produzir textos escritos na norma-padrão a partir de uma modalidade de
língua diferente, a fala, em seu registro mais informal.
E também é possível ensinar gramática só com textos da variante culta sem
se prender a frases feitas, inventadas e descontextualizadas, como vimos na
proposta de ensino da crase, em que a base são textos reais, escritos na norma-
padrão. Em suma, esperamos que essas propostas lhe sirvam de ponto de partida
para desenvolver aulas de gramática inovadoras e produtivas.

LEITURA OBRIGATÓRIA

Texto de abordagem teórica

Tema 01:

BAGNO, M. O acento indicador de crase no À. In: _____. Gramática de Bolso do


Português Brasileiro. São Paulo: Parábola, 2013, p. 320-325.

Tema 02:

19
OLIVEIRA, R. P.; QUAREZEMIM, S. Falando no concreto. Gramáticas na sala de
aula. In: _____. Gramáticas na escola. Petrópolis: Vozes, 2016 (Coleção
Linguística), p. 165-174.

Tema 03:

CASTILHO, A. T. Principais diferenças entre o português brasileiro e o português


europeu. In: _____. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto,
2010, p. 192-194,

Temas 04 e 05:

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: processos de retextualização. In:


_____. Da Fala para a escrita. Atividades de retextualização. 8. ed. São Paulo:
Cortez, 2007, p. 45-99.

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REFERÊNCIAS

ANJOS, A. B. Índios Manoki lutam por território invadido por fazendas. Agência
Pública, 21/08/2018. Disponível em: <https://apublica.org/2018/03/indios-manoki-
lutam-por-territorio-invadido-por-fazendas/>. Acesso em: 21 out. 2022.

BAGNO, M. Gramática de Bolso do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola,


2013.

CASTILHO, A. T. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto,


2010.

MARCOS, P. Histórias das quebradas do mundaréu. Rio de Janeiro: Nórdica,


197?.

MARCUSCHI, L. A. Da Fala para a escrita. Atividades de retextualização. 8. ed.


São Paulo: Cortez, 2007

MARTINS, G. O sol na cabeça. São Paulo: Cia. das Letras, 2018.

OLIVEIRA, R. P.; QUAREZEMIM, S. Gramáticas na escola. Petrópolis: Vozes,


2016 (Coleção Linguística).

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