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O relojoeiro imaginário

DAVID HUME
Dê uma olhada em um dos seus olhos no espelho. Ele tem uma lente que focaliza a
imagem, uma íris que se adapta à mudança de luz e pálpebras e cílios que o protegem. Se você
olhar para um dos dois lados, o globo ocular gira na própria órbita. É também muito bonito. Como
pôde acontecer uma coisa assim? O olho é uma bela peça de engenharia. Como pôde um olho se
tornar algo desse tipo simplesmente pelo acaso?
Imagine-se caminhando aos tropeções na selva de uma ilha deserta quando, de repente,
chega a uma grande clareira. Você sobe sobre as ruínas amontoadas de um palácio com muros,
escadas, trilhas e jardins e percebe que aquilo não estaria ali por acaso. Alguém deve tê-lo
projetado, talvez uma espécie de arquiteto. Se encontramos um relógio quando saímos para um
passeio, é razoável supor que ele foi feito por um relojoeiro e que foi criado com um propósito:
informar as horas. Aquelas engrenagens minúsculas não aparecem sozinhas em seus lugares.
Alguém deve ter concebido o processo inteiro. Esses exemplos parecem dizer a mesma coisa: é
praticamente certo que objetos que parecem ter sido criados tenham mesmo sido criados.
Pense então na natureza: árvores, flores, mamíferos, pássaros, répteis, insetos e até
amebas. Esses seres também dão a sensação de que foram criados. Organismos vivos são muito
mais complexos do que qualquer relógio. Mamíferos têm sistemas nervosos complexos, sangue
circulando pelo corpo e geralmente se adaptam muito bem aos lugares que habitam. Desse modo,
com certeza um Criador incrivelmente poderoso e inteligente deve tê-los feito. Esse Criador – um
relojoeiro divino ou um arquiteto divino – tem de ter sido Deus. Ou pelo menos era isso que muitas
pessoas pensavam no século XVIII quando David Hume escrevia – e algumas ainda hoje. Esse
argumento para a existência de Deus é conhecido, de modo geral, como argumento do desígnio.
Novas descobertas científicas feitas nos séculos XVII e XVIII pareciam dar suporte a ele.
Microscópios revelaram a complexidade de animais aquáticos minúsculos; telescópios mostraram a
beleza e a regularidade do sistema solar e da Via Láctea. Esses elementos também pareciam ter
sido formados com grande precisão.
O filósofo escocês David Hume (1711-1776) não estava convencido disso. Influenciado por
Locke, propôs-se a explicar a natureza da humanidade e nosso lugar no universo considerando
como adquirimos conhecimento e os limites do que podemos aprender usando a razão. Assim
como Locke, ele acreditava que nosso conhecimento vem da observação e da experiência;
portanto, estava particularmente interessado em um argumento para a existência de Deus que
começasse com a observação de alguns aspectos do mundo. Ele acreditava que o argumento do
desígnio era baseado na lógica. Seu Investigação sobre o entendimento humano (1748) incluiu um
capítulo que atacava a ideia de que podemos provar a existência de Deus dessa maneira. Esse
capítulo e mais outro argumentando que nunca era razoável acreditar nos relatos de testemunhas a
respeito de milagres foram extremamente controversos. Na época, era difícil ser abertamente
contrário a crenças religiosas na Grã-Bretanha. Isso quer dizer que Hume nunca conseguiu
emprego em uma universidade, embora fosse um dos grandes pensadores da época. Seus amigos
o aconselharam a não permitir a publicação de seu mais poderoso ataque aos argumentos comuns
para a existência de Deus, o Diálogos sobre a religião natural (1779), enquanto estivesse vivo.
O argumento do desígnio prova a existência de Deus? Hume pensava que não. O
argumento não fornece evidência suficiente para concluir que um ser onipotente, onisciente e
onipresente deva existir. Grande parte da filosofia de Hume foi concentrada no tipo de evidência
que podemos dar para apoiar nossas crenças. O argumento do desígnio baseia-se no fato de que o
mundo parece ter sido projetado. Contudo, argumentava Hume, só porque parece projetado não
quer dizer necessariamente que foi projetado; tampouco se segue que Deus tenha sido o projetista.
Como ele chegou a essa conclusão?
Imagine uma balança antiga coberta parcialmente por uma divisória, de modo que só
podemos ver um dos pratos. Se virmos o prato subir, concluiremos que o que está no outro prato é
mais pesado do que o prato que vemos. Não podemos dizer se o objeto que está no outro prato
tem a forma de um cubo ou esfera, qual sua cor, se há palavras escritas nele, se é coberto de pelos
ou qualquer outro detalhe.
Nesse exemplo, estamos pensando em causas e efeitos. Em resposta à questão “O que
causou o movimento de subida do prato?”, tudo o que podemos responder é “A causa foi algo mais
pesado no outro prato”. Nós vemos o efeito – o prato subindo – e tentamos descobrir a causa a
partir dele. Mas, sem mais evidências, não há muito mais o que dizer. Tudo o que dissermos será
mera suposição, e não há como sabermos se é verdade ou não se não olharmos por trás da
divisória. Hume pensava que estamos em uma situação semelhante em relação ao mundo que nos
cerca. Nós vemos os efeitos de várias causas e tentamos descobrir a explicação mais provável
desses efeitos. Vemos um olho humano, uma árvore, uma montanha, e tudo parece ter sido
projetado. Mas o que dizer sobre o provável projetista? O olho parece ter sido criado por alguém
que pensou na melhor maneira de fazê-lo dar certo. Disso não se segue, no entanto, que quem
criou o olho tenha sido Deus. Por que não?
Geralmente se pensa que Deus tem três poderes especiais já mencionados: ele é
onipotente, onisciente e onipresente. Ainda que cheguemos à conclusão de que algo muito
poderoso tenha criado o olho humano, não temos evidência para dizer que seja onisciente. O olho
tem algumas imperfeições. As coisas dão errado: muitas pessoas precisam de óculos para ver
corretamente, por exemplo. Um Deus onipotente, onisciente e onipresente criaria o olho dessa
maneira? Possivelmente. Mas as evidências que temos ao observarmos o olho não mostram isso.
Na melhor das hipóteses, elas mostram que algo altamente inteligente, muito poderoso e habilidoso
o criou.
Mas as evidências mostram isso sempre? Há outras explicações possíveis. Como
sabemos que o olho não foi criado por uma equipe de deuses inferiores que trabalham juntos? Os
mecanismos mais complexos são feitos por uma equipe de pessoas; por que o mesmo não vale
para o olho e outros objetos naturais, supondo que todos tenham sido criados? A maioria dos
prédios é erguida por uma equipe de construtores; por que um olho seria diferente? Ou talvez o
olho tenha sido feito por um deus bem velho que já tenha morrido. Ou por um deus muito jovem que
ainda estava aprendendo a criar olhos perfeitos. Como não temos evidências para decidir entre
essas diferentes histórias, não podemos ter certeza apenas observando o olho – um objeto
aparentemente projetado – de que ele tenha definitivamente sido criado por um único Deus vivo
com os poderes tradicionais. Hume acreditava que, se começarmos a pensar seriamente nesse
tema, chegaremos a conclusões bastante limitadas.
Outro argumento que Hume atacou foi o dos milagres. A maioria das religiões afirma que
milagres acontecem. Pessoas são ressuscitadas dos mortos, andam sobre a água ou curam
doenças de forma repentina; imagens começam a chorar, e a lista continua. Mas deveríamos
acreditar que milagres acontecem só porque nos disseram que acontecem? Hume pensava que
não. Ele era profundamente cético quanto a essa ideia. Se alguém nos diz que um homem se
recuperou por milagre de uma doença, o que isso significa? Para que algo fosse um milagre,
pensava Hume, era preciso desafiar uma lei da natureza. Uma lei da natureza era algo do tipo
“Ninguém morre e depois retoma à vida”, “Estátuas jamais conversam” ou “Ninguém pode andar
sobre a água”. Há uma quantidade enorme de evidências de que essas leis da natureza são
válidas. Contudo, se alguém testemunha um milagre, por que motivo deveríamos acreditar nele?
Pense no que você diria se um amigo entrasse correndo agora pela sala e dissesse que viu alguém
caminhando sobre a água. Hume acreditava que sempre havia explicações mais plausíveis sobre o
que acontecia. Se seu amigo disse que viu alguém caminhando sobre a água, é sempre mais
provável que ele esteja sendo enganado ou que tenha se equivocado do que ter testemunhado um
milagre genuíno. Sabemos que algumas pessoas adoram ser o centro das atenções e mentem para
isso. Esta é uma possível explicação. Mas também sabemos que todos nós podemos entender mal
as coisas. Cometemos erros o tempo todo em relação ao que vemos e ouvimos. É comum
querermos acreditar que vimos algo diferente do usual e assim evitamos a explicação mais óbvia.
Até hoje há muitas pessoas que pulam direto para a conclusão de que todo som sem explicação
durante a madrugada é o resultado de atividades sobrenaturais – fantasmas perambulando por aí –,
e não devido a causas mais ordinárias como um rato ou o vento. Embora tenha criticado
sistematicamente os argumentos usados pelos crentes religiosos, Hume nunca declarou
abertamente que era ateu. Talvez não tenha sido. Suas obras publicadas podem ser lidas como se
afirmassem a existência de uma inteligência divina por trás de cada coisa no universo, só que
jamais podemos dizer muito sobre as qualidades dessa inteligência divina. Os poderes da razão,
quando usados logicamente, de fato não dizem muito sobre as qualidades que esse “Deus” deve
ter. Baseados nisso, alguns filósofos pensam que ele era agnóstico. Mas é provável que tenha sido
ateu no final da vida, embora tivesse desistido de sê-lo bem antes disso. Quando estava morrendo
e um amigo foi visitá-lo em Edimburgo no verão de 1776, Hume deixou claro que não teriam uma
conversa de leito de morte. Longe disso. James Boswell, cristão, perguntou a Hume se ele estava
preocupado com o que aconteceria depois que morresse. Hume disse que não tinha nenhuma
esperança de sobreviver à morte. Ele respondeu o que Epicuro deveria ter respondido: disse que se
preocupava com o que ocorreria depois da morte tanto quanto se preocupava com o que
acontecera antes de ter nascido. Hume teve contemporâneos brilhantes, muitos dos quais ele
conheceu pessoalmente. Um deles, Jean-Jacques Rousseau, teve um impacto significativo na
filosofia política.
Uma breve introdução à Filosofia – Nigel Warburton

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