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LEUCEMIAS AGUDAS NA INFÂNCIA

CHILDHOOD ACUTE LEUKEMIAS

BENIGNA MARIA DE OLIVEIRA*, MICHELLE DOS SANTOS DINIZ**, MARCOS BORATO VIANA***

RESUMO à maior incidência na faixa etária pediátrica, será feita


As leucemias constituem a neoplasia mais freqüente na infância.
uma abordagem das formas agudas das leucemias.
São responsáveis por cerca de um terço dos cânceres pediátri-
cos. A leucemia linfocítica aguda (LLA) representa cerca de 75% Quadro 1 - Fatores de risco para o desenvolvimento de leucemia
dos casos de leucemias infantis. As leucemias mielóides agudas
Ambientais Genético/Familiares
(LMA) representam 15% a 20% das leucemias em pacientes com
idade inferior a 15 anos. As manifestações clínicas das leucemias Radioterapia Gêmeo de paciente com LLA
agudas são decorrentes da inibição da hematopoiese pelas célu- Exposições nucleares Síndrome de Down
las leucêmicas e dos efeitos da infiltração leucêmica em diversos
Exposição intrauterina à irradiação Irmão de paciente com LLA
órgãos e sistemas. Observa-se anemia devido à diminuição dos
eritrócitos, sangramentos decorrentes da trombocitopenia e Uso de drogas inibidoras da Anemia de Fanconi
topoisomerase II
infecções conseqüentes à neutropenia. A infiltração dos diferen-
Consumo de álcool durante a Ataxia-telangiectasia
tes tecidos resulta em hepatomegalia, esplenomegalia e linfade- gestação
nomegalia. O diagnóstico das leucemias é firmado pela presença
Neurofibromatose
de mais de 25% de células leucêmicas na punção aspirativa de
medula óssea (mielograma). O tratamento da LLA é feito com Síndrome de Bloom
regimes quimioterápicos de longa duração. A indicação do trans- Síndrome de Schwachman
plante de medula óssea durante uma primeira remissão permane-
Síndrome de Noonan
ce controversa. A probabilidade de cura da LLA pode chegar a
80%. Na LMA, com o uso exclusivo de quimioterapia, a probabi-
Fonte: Adaptado das referências 1 e 3
lidade de sobrevida livre de doença (SLD) por períodos prolonga-
dos é de 30% a 40%. Quando se emprega o transplante de
medula óssea alogênico, a probabilidade estimada de SLD a
longo prazo é de 50% a 60%. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
As manifestações clínicas das leucemias agudas são
Palavras-chave leucemias, leucemia linfocítica aguda, explicadas pela fisiopatologia da doença. Elas decorrem
leucemia mielóide aguda basicamente de dois processos: a inibição da hematopoie-
se pelas células leucêmicas e os efeitos da infiltração leucê-
INTRODUÇÃO mica de diversos órgãos e sistemas.2 Os sinais e sintomas
são geralmente inespecíficos, mas, quando associados,
As leucemias são a neoplasia mais comum na criança, indicam a necessidade de se suspeitar da doença. É impor-
correspondendo a cerca de 30% de todas as doenças tante salientar que, em geral, não é possível distinguir a
malignas em pacientes com menos de 15 anos de idade.1 LLA da LMA com base nas manifestações clínicas iniciais.3
A etiologia das leucemias permanece obscura. Na sua A inibição do crescimento e diferenciação das células
patogênese, parecem estar envolvidos mecanismos genéti- hematopoiéticas normais não ocorre tão somente pela
cos e ambientais. A origem clonal, decorrente da prolife- ocupação física da medula óssea e competição nutricional
ração desordenada de uma única célula progenitora, é fato por parte das células neoplásicas. Existem várias evidên-
inconteste na maioria, senão em todas as formas de leuce- cias experimentais de que estas secretariam substâncias
mias humanas.2 No quadro 1 estão relacionados alguns inibidoras da mielopoiese.2
fatores associados com um risco aumentado para o desen- De qualquer forma, o efeito final é a diminuição da
volvimento de leucemia. produção de hemácias, granulócitos e plaquetas, causan-
As leucemias agudas são muito mais comuns que as do quadro de anemia, neutropenia e plaquetopenia no
crônicas em toda a faixa pediátrica.2
A leucemia linfocítica aguda (LLA) representa cerca * Professora Adjunta, Doutora – Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG
** Acadêmica da Faculdade de Medicina da UFMG
de 75% de todos os casos em crianças. A leucemia mielói- *** Professor Titular, Doutor - Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG

de aguda (LMA) responde por cerca de 20% das leuce- Departamento de Pediatria - Serviço de Hematologia - Faculdade de Medicina - Hospital das
Clínicas - Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte - MG - Brasil
mias e a leucemia mielóide crônica corresponde a aproxi-
Endereço para correspondência:
madamente 5% dos casos, sendo a forma mais comum Benigna Maria de Oliveira
Faculdade de Medicina da UFMG
das chamadas leucemias crônicas.1 Departamento de Pediatria
O principal objetivo deste artigo é fazer uma revisão Av. Alfredo Balena, 190
Belo Horizonte – MG
direcionada para o pediatra que presta atendimento às CEP: 30130-100
Telefone: 32489442 FAX: 32489397
crianças com suspeita ou diagnóstico de leucemia. Devido E-mail: benigna@uol.com.br

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sangue periférico. As manifestações clínicas decorrentes cie da massa tumoral quando do exame macroscópico do
dessa pancitopenia são palidez cutâneo-mucosa, infecções tumor. Os cloromas ou sarcomas granulocíticos são
e hemorragias, respectivamente.2 Um aspecto importante encontrados em menos de 5% dos pacientes ao diagnós-
é que a maioria dos pacientes com leucemia apresenta tico e, tipicamente, são observados nos ossos e partes
doença disseminada ao diagnóstico, notando-se a presen- moles da cabeça e pescoço. As leucemias monocítica e
ça de células blásticas leucêmicas no sangue periférico e o mielomonocítica podem ocasionar infiltração extensa da
envolvimento de baço, fígado e linfonodos. Portanto, não gengiva que se torna edemaciada, friável e hemorrágica.2,5
é possível falar-se de estadiamento anatômico.
As manifestações dolorosas em membros são freqüen- Dados laboratoriais
tes, principalmente na forma de dores ósseas e artralgia, Hemograma: o hemograma nas leucemias agudas não
que podem acometer cerca de 40% dos casos. São causa- apresenta um padrão único. O diagnóstico de leucemia é
das por infiltração leucêmica do periósteo ou das articu- sugerido pela presença de células blásticas no esfregaço.
lações ou por expansão da cavidade medular decorrente No entanto, linfoblastos no sangue periférico não são vis-
da presença de células leucêmicas.4 tos em cerca de 20% dos casos de LLA.3
A presença de febre é um achado comum e pode ser A contagem global de leucócitos pode estar diminuí-
decorrente de processo infeccioso, ou ser resultado da pro- da, normal ou aumentada. Algumas crianças e adultos
dução de citocinas pelas células normais ou leucêmicas.3,4 portadores de leucemia podem apresentar contagens
A hepatomegalia e/ou esplenomegalia estão presentes ao extremamente elevadas de blastos. Este fenômeno é
diagnóstico em cerca de 30% a 50% dos pacientes e geral- conhecido como hiperleucocitose e pode ser observado
mente não acarretam distúrbios fisiológicos. A linfodenome- em 5% a 20% dos pacientes com diagnóstico de leuce-
galia também é um achado comum, ocorrendo em 30% a mia. A hiperleucocitose é definida como uma contagem
50% dos casos. O aumento dos linfonodos é geralmente periférica de leucócitos superior a 100.000/mm3 e está
indolor e sem sinais flogísticos locais. A presença de massa associada a alto índice de mortalidade precoce, geralmen-
mediastinal anterior pode ocasionar a síndrome de compres- te decorrente de falência respiratória ou hemorragia intra-
são da veia cava superior, ou mesmo, estreitamento das vias craniana. As manifestações clínicas associadas à hiperleu-
aéreas por compressão extrínseca. O quadro clínico pode ser cocitose incluem distúrbios visuais, cefaléia e desconforto
grave, com início súbito dos sintomas e evolução rápida para respiratório devido à estase vascular, infiltração do SNC e
insuficiência respiratória ou cardíaca. Nesses casos, deve-se obstrução de capilares pulmonares.6
iniciar prontamente o tratamento quimioterápico, geral- Em geral, as crianças com leucemia mostram-se anêmi-
mente com utilização de corticoesteróides. O uso da radio- cas, embora valores normais de hemoglobina possam ser
terapia raramente é necessário.4,5 encontrados em alguns casos nos quais supõe-se que a evo-
A infiltração renal está presente em muitos casos, já que lução do clone leucêmico tenha sido muito veloz, não
esse órgão é ricamente vascularizado. Entretanto, manifes- dando tempo ao aparecimento do quadro de anemia.2,7
tações clínicas que expressem esse fenômeno são pouco fre- A contagem de plaquetas é geralmente diminuída
qüentes. A infiltração de pulmões e coração, sempre pre- embora em 20% dos casos a contagem possa estar acima
sente, é geralmente silenciosa do ponto de vista clínico.2 de 100.000/mm3. 2,7
O acometimento do sistema nervoso central (SNC) A Tabela 1 resume as principais alterações encontradas
pode ser encontrado ao diagnóstico em cerca de 5% a no hemograma de pacientes com diagnóstico de LLA.
10% dos pacientes. Existe infiltração das meninges na • mielograma: o diagnóstico das leucemias é firmado
forma mais freqüente de invasão neurológica, que pode pela punção aspirativa da medula óssea. O estudo
manifestar-se com quadro de cefaléia, vômitos, rigidez de desse tecido revela a substituição do tecido hemato-
nuca e outros sinais de meningismo. Se a infiltração leu- poiético normal por células leucêmicas imaturas. O
cêmica ocorre na emergência de nervos cranianos moto- diagnóstico é confirmado quando mais de 25% a 30%
res, mais comumente do nervo facial, observa-se paresia das células nucleadas são blastos. Se a medula não
ou paralisia correspondente. A infiltração parenquimato-
puder ser aspirada ou a amostra for hipocelular, a
sa sintomática é bastante incomum.2,4
biópsia de medula óssea fornece o material necessário
O envolvimento testicular clinicamente detectável é
para o estudo.3
incomum nos casos recém-diagnosticados e caracteriza-se
pelo aumento testicular indolor, uni ou bilateral.4 Os esfregaços são corados por técnicas habituais –
A infiltração da pele, subcutâneo e mucosas é infre- May-Grüwald-Giemsa, Leishman ou Wright – e por
qüente. A LMA pode apresentar-se na forma de cloromas, métodos citoquímicos.2 O exame morfológico e citoquí-
assim denominado pela coloração esverdeada da superfí- mico dos esfregaços de medula óssea permite o diagnósti-

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co e a classificação inicial da maioria dos casos de leuce- fim de se evitar a evolução para insuficiência renal e
mia. No entanto, em diversos casos a distinção entre os demais complicações metabólicas da síndrome de lise
diferentes subtipos de leucemia não pode ser feita apenas tumoral. Pacientes portadores de LLA que apresentam
pelas características morfológicas e citoquímicas. Por elevadas contagens de leucócitos ou grandes massas
meio do aspirado de medula óssea também são realizados tumorais ao diagnóstico podem apresentar hiperurice-
testes para a caracterização celular imunofenotípica, aná- mia, hipercalemia e hiperfosfatemia com hipocalcemia
lise do conteúdo de DNA, análises citogenética e molecu- secundária, mesmo antes do início da quimioterapia.9,10
lar.2,3 Além de auxiliar na classificação das leucemias, a • estudo da coagulação: na maioria dos casos as pro-
análise imunofenotípica e genética contribui com infor- vas de coagulação não estão alteradas. Em pacientes
mações de valor prognóstico. com leucemia promielocítica – padrão morfológico
do tipo M3 da classificação FAB – ou em raros casos
Tabela 1 - Dados laboratoriais da leucemia linfocítica aguda de LLA tipo T, podem ser observadas alterações suges-
ao diagnóstico tivas de coagulopatia.3
A realização de uma radiografia simples do tórax é
Achados laboratoriais Porcentagem de casos (%)
importante para detecção de massa mediastinal. Essa
Leucometria inicial
forma de apresentação da doença está fortemente associa-
< 10 mil/mm3 51
da com o subtipo de LLA derivado de linfócitos T.3,4
Entre 10-50 mil/mm3 30
Entre 50-100 mil/mm3 09 Diagnóstico diferencial
> 100 mil/mm3 10 Embora o diagnóstico de leucemia seja relativamente
Hemoglobina fácil, alguns pacientes ainda permanecem longos períodos
< 10 g/dl 80 sem que os clínicos ou pediatras suspeitem da doença.
> 10 g/dl 20 Muitas vezes, o atraso no diagnóstico ou o uso de trata-
Contagem de Plaquetas mento inadequado têm conseqüências negativas e podem
< 20 mil/mm3 28 constituir um fator prognóstico adverso.3 O diagnóstico
Entre 20 - 100 mil/mm3 47 diferencial das leucemias deve incluir doenças como a
> 100 mil/mm3 25 púrpura trombocitopênica imune (PTI), anemia aplásica,
artrite reumatóide juvenil, leishmaniose visceral, mono-
Fonte: Adaptado da referência 7. Estudo realizado pelo Children’s Cancer Study
Group envolvendo 4.455 criança nucleose infecciosa e outras infecções, e infiltração metas-
tática da medula por outras doenças malignas, como o
neuroblastoma.4
• punção lombar: o líquor deve ser analisado à procu- Quadros indistinguíveis de uma artrite reumatóide
ra de células leucêmicas, pois o acometimento preco- podem ser mimetizados por uma infiltração leucêmica
ce do SNC tem implicações prognósticas e terapêuti- periarticular que se manifesta por dor óssea incaracterísti-
cas importantes. Nos casos com acometimento do ca, às vezes bastante intensa, e febre. O diagnóstico de
SNC, o exame do líquor irá mostrar pleocitose e pre- leucemia, em particular da forma linfoblástica, deve ser
sença de células leucêmicas no exame citológico. investigado de forma cuidadosa, principalmente quando
• análises bioquímicas: a avaliação da função hepática o médico pretenda iniciar a administração de corticóides
e renal, a dosagem de ácido úrico, da desidrogenase suspeitando de artrite reumatóide, pois essa medicação é
lática (LDH) e de eletrólitos – sódio, potássio, cálcio, efetiva em ambas as condições clínicas e é capaz, portan-
fósforo e magnésio – devem ser realizadas antes do iní- to, de mascarar a real natureza do processo subjacente.2
cio do tratamento. É comum o encontro de níveis A PTI constitui a causa mais comum de aparecimento
aumentados de LDH decorrentes de uma rápida des- súbito de petéquias e equimoses em pacientes pediátricos.
truição e regeneração celular.3 As crianças com diag- Os pacientes com PTI geralmente apresentam hemograma
normal, exceto pela trombocitopenia e pela presença de
nóstico recente de leucemia devem receber hidratação
plaquetas gigantes na hematoscopia, contrastando com as
venosa vigorosa, alopurinol e, quando indicada, alcali-
alterações mais generalizadas das células sangüíneas obser-
nização da urina. O principal objetivo é prevenir ou vadas nos pacientes portadores de leucemia.4
tratar a hiperuricemia e garantir um fluxo urinário ele- O diagnóstico da leishmaniose visceral deve basear-se
vado, com a finalidade de reduzir a possibilidade de em dados epidemiológicos, clínicos e laboratoriais. O
precipitação de ácido úrico ou de fosfato de cálcio no quadro clínico típico é o de um paciente com história de
tecido renal, e aumentar a eliminação do potássio, a febre prolongada, desânimo, tosse, diarréia, com hepa-

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toesplenomegalia acentuada e sangramentos. Os achados tem contribuído de forma importante para o entendi-
hematológicos característicos são uma pancitopenia com mento da patogênese e para o prognóstico da doença.11
neutropenia, eosinopenia e leve linfocitose. Nos últimos trinta anos, houve uma melhora significa-
Pacientes com diagnóstico de mononucleose infeccio- tiva no prognóstico das crianças portadoras de LLA. No
sa ou outras doenças virais podem apresentar manifesta- período anterior à quimioterapia antileucêmica, a doença
ções clínicas semelhantes às da leucemia, como linfadeno- era uniformemente fatal e a maioria das crianças sobrevi-
megalia generalizada, esplenomegalia, febre, exantema via apenas um a dois meses após o diagnóstico.13
máculo-papular e linfocitose. Os linfócitos atípicos obser- Atualmente, 70% a 80% das crianças recém-diagnostica-
vados nas infecções virais devem ser diferenciados dos lin- das em países desenvolvidos apresentam uma sobrevida
foblastos. Na maioria dos casos, o diagnóstico diferencial livre de doença prolongada, acima de 5 anos, sendo que a
entre essas infecções e os quadros de leucemia pode ser maioria destes pacientes alcançará a cura.14,15 Esse sucesso
feito sem que haja necessidade da realização do mielogra- tem sido atribuído aos avanços no tratamento quimioterá-
ma, mas isso exige experiência laboratorial.4 pico, emprego do tratamento preventivo do SNC e à ade-
quação do tratamento de acordo com os fatores de risco
LEUCEMIA LINFOCÍTICA AGUDA para recidiva, com intensificação da quimioterapia para os
A LLA é a neoplasia mais comum na infância. O pico grupos de prognóstico desfavorável.16
de incidência ocorre entre os dois e quatro anos de idade; Alguns achados clínicos e laboratoriais presentes ao
observa-se uma ligeira predominância em crianças do diagnóstico parecem ter valor prognóstico, possibilitando a
sexo masculino (1,3M:1F).1 divisão dos pacientes em subgrupos, teoricamente com
A classificação da LLA depende da combinação das chances de melhor ou pior resposta ao tratamento.8 O regi-
características citológicas, imunológicas e cariotípicas: me terapêutico empregado é, sem dúvida, o fator prognós-
• classificação morfológica: a classificação proposta pelo tico mais importante.17 Em crianças portadoras de LLA
grupo FAB (franco-americano-britânico) distingue três derivada de precursores de células B, a contagem inicial de
subtipos morfológicos da LLA (L1, L2 e L3). Essa clas- leucócitos inferior a 50.000/mm3 e a idade ao diagnóstico
sificação não reflete a grande diversidade biológica da entre um e nove anos têm sido consideradas como fatores
doença. Os linfoblastos leucêmicos não apresentam prognósticos favoráveis na evolução desses pacientes.
características citoquímicas ou morfológicas específicas. Pacientes de outras faixas etárias ou aqueles com contagens
Sendo assim, o diagnóstico de LLA deve ser sempre que de leucócitos mais elevadas são considerados de alto risco
possível confirmado pela imunofenotipagem.11 para recidiva. Essas relações prognósticas podem ser expli-
• imunofenotipagem: o estudo imunológico das célu- cadas pela presença de anormalidades genéticas específi-
las leucêmicas pode ser feito por citometria de fluxo. cas.11 É importante ressaltar que outras características das
Esse método utiliza anticorpos monoclonais para evi- células leucêmicas, como o índice de DNA, anormalidades
denciar a presença de antígenos de diferenciação celu- citogenéticas, imunofenótipo e resposta inicial ao trata-
lar nas células blásticas.2 As LLA da infância são deri- mento, podem interferir e/ou modificar o prognóstico do
vadas de células de linhagem B em 80% a 85% dos paciente.18 Além disso, o estado nutricional deficiente e a
casos. Cerca de 15% das LLA pediátricas são deriva- condição socio-econômica-cultural precária constituem,
das de linfócitos de linhagem T.12 Apesar dos casos de igualmente, fatores muito desfavoráveis.19
LLA poderem ser subclassificados de acordo com o A quimioterapia combinada constitui o eixo principal
grau de maturação dos linfócitos B ou T, as diferencia- de tratamento da LLA há mais de 25 anos.14 A maioria
ções que realmente apresentam importância no que dos regimes terapêuticos modernos compreende uma fase
diz respeito à terapêutica, são aquelas que permitem de indução da remissão seguida das fases de consolidação
distinguir as leucemias derivadas de precursores de (intensificação) da remissão e de manutenção. Um pro-
células B, daquelas derivadas de células de linhagem T grama de tratamento pré-sintomático do SNC deve sem-
ou de linfócitos B maduros.11 pre ser instituído precocemente.
• citogenética e genética molecular: a análise do carió- A primeira fase do tratamento tem por objetivo indu-
tipo das LLA revela inúmeras alterações no número de zir uma remissão completa da doença, isto é, restaurar a
cromossomos – ploidia – e/ou alterações estruturais hematopoiese normal com desaparecimento de toda a sin-
como inversões, deleções e translocações. tomatologia clínica associada. Essa fase geralmente inclui
Aproximadamente 80% dos pacientes com LLA apre- o uso de, no mínimo, três drogas – glicocorticóide, vin-
sentam alterações numéricas ou estruturais dos cro- cristina, asparaginase e/ou daunomicina.16 Com bom
mossomos. O reconhecimento dessas anormalidades suporte antiinfeccioso, hemoterápico e metabólico, a taxa

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de remissão completa esperada é de 96% a 99%. A respos- hematopoiéticos da linhagem mielóide. A alteração que
ta clínica incompleta após essa fase de indução indica mau desencadeia o processo neoplásico pode ocorrer em qual-
prognóstico, com altos riscos de falha terapêutica.11 quer das diferentes linhagens celulares – eritróide, granu-
A consolidação ou intensificação constitui uma fase de locítica, monocítica ou megacariocítica – dando origem
tratamento intensivo, incluindo vários agentes quimiote- aos vários tipos de LMA atualmente conhecidos.
rápicos, aplicada logo após obter-se a remissão da doença. Existem vários sistemas de classificação da LMA. O
Seu objetivo é evitar o surgimento de clones resistentes às sistema mais utilizado é o desenvolvido pelo grupo FAB,
drogas e é capaz de promover remissões mais prolongadas o qual classifica a LMA em 9 subtipos distintos de acor-
e maior porcentagem de cura.16 do com a linhagem mielóide envolvida e o grau de dife-
As crianças portadoras de LLA, com exceção daquelas renciação das células leucêmicas. Essa classificação baseia-
com LLA derivadas de células B maduras, necessitam de se nas características morfológicas e citoquímicas das
tratamento prolongado, com duração total de dois a três células blásticas.23 A Tabela 2 mostra uma distribuição
anos, para que se possa evitar recidiva da doença. A fase de aproximada dos subtipos FAB da LMA em pacientes com
manutenção da quimioterapia, na maioria dos protocolos menos de 21 anos de idade.5
terapêuticos, tem como base o uso diário da 6-mercapto-
purina, acompanhada de doses semanais de metotrexato e Tabela 2 - Classificação da LMA na infância, segundo os critérios da
pulsos adicionais de vincristina e prednisona.14 classificação franco-americano-britânica (FAB)
O tratamento pré-sintomático do SNC é um compo- Subtipo FAB Porcentagem do total
nente essencial dos regimes terapêuticos e consiste de apli-
M0 – leucemia mielóide aguda com evidências 2%
cações intratecais periódicas de metotrexato/citarabina e mínimas de diferenciação mielóide
dexametasona, durante todo o tratamento. Atualmente, a M1 – leucemia mielóide aguda sem maturação 15% - 20%
radioterapia craniana tem sido reservada apenas para os M2 – leucemia mielóide aguda com maturação 25% - 30%
grupos de pacientes com alto risco de recidiva no SNC. M3 – leucemia promielocítica aguda 5% - 10%*
Entre esses estão os pacientes com infiltração leucêmica M4 – leucemia mielomonocítica aguda 20%
do SNC ao diagnóstico, leucemia de células T e a LLA M4Eo – leucemia mielomonocítica aguda com 5% - 10%*
eosinófilos anormais
com cromossomo Philadelphia.12
M5 – leucemia monocítica aguda 2% - 9%
As indicações para o transplante de medula óssea
M6 – eritroleucemia 3% - 5%
(TMO) durante uma primeira remissão permanecem
M7 – leucemia megacariocítica 3% - 12%
controversas. O TMO é usualmente indicado para
pacientes que não alcançaram a remissão após a primeira * Nos países latinos-americanos, incluindo o Brasil, a prevalência da forma M3 pode
fase de indução e para aqueles que apresentaram uma chegar a 30%.
Fonte: Adaptado da referência 5
segunda remissão após uma recidiva hematológica.12 No
entanto nas recidivas tardias, ou seja, naquelas que ocor-
rem depois dos primeiros 30 meses após diagnóstico, con- Na LMA a imunofenotipagem é utilizada para definir
segue-se um índice de resgate entre 40% e 70% com o a linhagem celular, especialmente nos casos em que a
tratamento quimioterápico, tornando também controver- morfologia e a citoquímica são inconclusivas. Uma das
so o papel do TMO nesses casos.20,21 principais contribuições da análise imunofenotípica é a
Apesar dos altos índices de cura, aproximadamente caracterização dos subgrupos FAB M0 e M7.5
20% a 30% das crianças apresentam recidiva da doença, Anormalidades cromossômicas recorrentes são detec-
a qual ocorre, geralmente, nos primeiros cinco anos após tadas na maioria das crianças com LMA. Várias dessas
o diagnóstico.20 O sítio de recaída pode ser medular ou alterações estão diretamente relacionadas a um subtipo
extramedular, atingindo qualquer órgão ou tecido, como
FAB específico e apresentam importância prognóstica,
SNC, testículo, olhos, ovário e útero. A medula óssea é o
podendo, também, funcionar como marcadores tumo-
local mais freqüente de recidiva. A recidiva é a principal
rais.24 Os estudos de citogenética e biologia molecular tor-
causa de interrupção da remissão, seguida por um peque-
naram-se parte essencial das rotinas de diagnóstico em
no número de casos nos quais a morte é secundária a
pacientes com LMA.
infecção, estando o paciente em remissão.22
Em relação a LLA, progressos limitados têm ocorrido
para a cura da LMA nas últimas décadas. Existem diferen-
LEUCEMIA MIELÓIDE AGUDA ças importantes entre os tratamentos empregados na LLA
A LMA é uma doença caracterizada pela proliferação e na LMA. As principais diferenças são: uma fase de indu-
clonal e maturação aberrante de um dos precursores ção da remissão que visa produzir uma mielossupressão

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intensa, um período de consolidação e manutenção deno- represents 15% to 20% of cases in patients less than 15 years old.
The clinical manifestations of acute leukemias are secondary to
minado pós-remissão, o qual é bastante mielossupressivo, inhibition of hematopoiesis by leukemic cells and to the effects of
e a utilização mais freqüente do TMO em pacientes que leukemic infiltration in different organs and systems. Anemia is
atingiram a primeira remissão.3, 25 caused by reduction of erythrocytes, bleeding is secondary to
thrombocytopenia, and infections are related to neutropenia. The
Está bem estabelecido que o protocolo de indução infiltration of tissues results in hepatomegaly, splenomegaly and
deve incluir a citarabina associada a uma antraciclina – lymphadenopathy. Acute leukemias are diagnosed by a bone mar-
daunorrubicina, idarubicina ou mitoxantrona. row aspirate that demonstrates more than 25% of the bone mar-
row cells as a relatively homogeneous population of blasts. The
Aproximadamente 75% a 80% dos pacientes alcançam a treatment of ALL consists of prolonged chemotherapy regimens.
remissão completa após o primeiro ciclo de tratamento. The role of allogeneic bone marrow transplantation during first
Essa taxa só é atingida se as medidas de suporte e o trei- remission remains controversial. The probability of cure in ALL
reaches 80%. In AML, with chemotherapy alone, the probability of
namento da equipe forem adequados.2, 23 long term disease free survival is from 30% to 40%. When bone
Assim que a remissão é induzida, tratamento mais marrow transplantation is used the estimated probability of prolon-
intensivo dos pacientes com LMA é essencial para evitar ged disease free survival is 50% to 60%.
recidiva. As alternativas terapêuticas incluem a quimiote-
rapia, o transplante alogênico de medula óssea de doado- Keywords: leukemia, acute lymphoblastic leukemia, acute
res relacionados ou não, e o TMO autólogo. myelogenous leukemia
A intensificação do tratamento após a remissão pode
ser feita com a utilização de múltiplas drogas não utiliza- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
das na indução ou com citarabina em altas doses.2 A
1. Bathia S, Robinson L. Epidemiology of leukemia in childhood. In:
maioria dos pacientes, entretanto, apresenta recaída da Nathan DG, Orkin SH, Ginsburg D, Look AT, eds. Nathan and
doença com o uso exclusivo de quimioterapia, situando- Oski´s Hematology of Infancy and childhood. 6th ed. Philadelphia:
Saunders; 2003. p.1081-1100.
se a probabilidade de cura entre 30% e 40%.26 Alguns
2. Viana MB. Leucemias e linfomas pediátricos. In: Murad AM, ed.
grupos de pacientes apresentam melhor perspectiva de Oncologia. Bases clínicas do tratamento. Rio de Janeiro: Guanabara-
cura, mesmo com o uso de quimioterapia, como os por- Koogan; 1996. p.372-383.
tadores da síndrome de Down.25 Os pacientes com leuce- 3. Ribeiro R. Leucemia linfóide aguda na infância e adolescência. In:
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estimada de sobrevida livre de doença a longo prazo para DG, Orkin SH, Ginsburg D, Look AT, eds. Nathan and Oski´s
Hematology of Infancy and childhood. 6th ed. Philadelphia: Saunders;
esses pacientes é de aproximadamente 70%.27 2003. p.1135-1166.
O transplante de células progenitoras hematopoiéticas 5. Ebb DH, Weinstein HJ. Diagnosis and treatment of childhood acute
tem sido amplamente utilizado no tratamento da LMA myelogenous leukemia. Pediatr Clin North Am 1997; 44:847-862.
infantil em suas várias fases, incluindo-se sua realização 6. Kelly KM, Lange B. Oncology emergencies. Ped Clin North Am 1997;
44:809-830.
durante a primeira remissão, como forma de intensifica-
7. Miller DR, Miller LP. Acute lymphoblastic leukemia in children: an
ção ou consolidação, e na segunda remissão – após recidi- update of clinical, biological, and therapeutic aspects. Crit Rev Oncol
va – ou em outras fases mais avançadas e mesmo na situa- Hematol 1990; 10:131-164.
ção de refratariedade primária à quimioterapia.28 Os resul- 8. Pui C-H. Acute lymphoblastic leukemia. Pediatr Clin North Am 1997;
44: 831-846.
tados de estudos prospectivos mostram superioridade dos
9. Altman A. Acute tumor lysis sydrome. Semin Oncol 2001; 28 Suppl 5:
resultados alcançados com o TMO alogênico quando 2-8.
comparado ao transplante autólogo ou à quimioterapia.29 10. Sallan S. Management of acute tumor lysis syndrome. Semin Oncol
Apesar da tendência de se indicar o TMO para pacientes 2001; 28 Suppl 5: 9-12.
portadores de LMA em primeira remissão, existem 11. Pui C H, Evans, W E Acute lymphoblastic leukemia. N Engl J Med
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imperfeições metodológicas nos estudos realizados até o
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momento, as quais impedem uma conclusão definitiva Características morfológicas e imunofenotípicas. Ser Monogr Esc Bras
sobre sua superioridade. Os resultados de diferentes estu- Hemalol 2002; 9: 25-35.
dos sugerem que o transplante alogênico de medula óssea 13. Beutler E. The treatment of acute leukemia: past, present, and future.
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pode curar até 50% a 60% dos receptores.23
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