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PARTILHA, RESISTÊNCIA E COLONIALISMO1

Marcelo Bittencourt2

NOVOS RUMOS

O objetivo deste texto é discutir o tema da penetração colonial na África.


Dúvidas e generalizações sobre o assunto permanecem nas salas de aula e as
contribuições acadêmicas não têm sido em número tão expressivo. Poucos foram os
textos elaborados por brasileiros sobre esse assunto e os trabalhos traduzidos o foram
em número insuficiente, em diferentes momentos e com distribuição nem sempre
satisfatória.
O quadro apresentado reforça a importância de se discutir o tema, com taque
para as questões que envolvem a partilha, a resistência africana e os “modelos" do
colonialismo europeu. Nos três casos as análises existentes têm sofrido significativas
alterações ao longo das últimas décadas, reforçando a tendência da contribuição da
historiografia africana ao estudo da História, quer através de novos métodos e
técnicas, quer pela elaboração de novas perspectivas. Nessa direção caberia destacar
os avanços da História Oral e a promissora imbricação entre a Antropologia e a
História.

A PARTILHA

As justificativas européias para a "corrida para a África" são conhecidas: levar a


civilização, a religião, o comércio e a pacificação. O argumento de base era a idéia de
que o ingresso africano no mercado internacional seria traduzido numa evolução do
continente, capaz até de pôr fim às hostilidades entre os diferentes povos africanos.
A adoção de tal perspectiva pelos que pretendem retratar o que de fato ocorreu
naquele final de século XIX implica a priori um "esquecimento" do período
imediatamente anterior, quando durante longo tempo se estabeleceram relações
comerciais e políticas entre Estados europeus e poderes locais africanos.

1
Texto retirado de Bellucci, B. (org.) Introdução à História da África e da Cultura Afro-Brasileira.
Rio de Janeiro: Centro de Estudos Afro-Asiáticos-UCAM/CCBB, 2003. pgs. 69-91.
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Doutor em História pela USP, professor de História da África e supervisar acadêmico do
Instituto de Humanidades e pesquisador do CEAA Centro de Estudos Afro-Asiáticos da UCAM -
Universidade Candido Mendes. Autor, entre outros, do livro Dos jornais às armas e da tese
"Estamos juntos", sobre os movimentos de libertação em Angola.

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A primeira releitura sobre tais fatos passou a encarar a partilha como
conseqüência da expansão do capitalismo europeu, fruto da revolução industrial,
ansioso por novos mercados produtores de matérias-primas e consumidores de
produtos manufaturados. Uma tese assumidamente econômica. Mas que também tinha
como característica o esquecimento da ação realizada pelos africanos. A partilha
aparece como via de mão única.
O quadro mais nítido de tal análise se consolida na imagem da Conferencia de
Berlim, ocorrida entre 1884 e 1885, como o momento em que as potências européias
teriam traçado o mapa da África unicamente de acordo com seus interesses. Do ponto
de vista historiográfico, essa interpretação vem fazer frente a uma história ainda presa
aos grandes personagens - militares e diplomatas - que teriam efetuado a partilha.
As alterações no modo de fazer história, no decorrer do século XX, seriam
responsáveis por algumas mudanças, principalmente de perspectiva, em relação à
análise acentuadamente econômica. A procura por uma nova interpretação dos
documentos e a constante busca de fontes alternativas que proporcionassem indícios
complexificadores, mas que ao mesmo tempo auxiliassem na explicação de pontos
ainda questionáveis, abririam as portas para novas pesquisas e também novos
argumentos sobre o tema.
Fundamentalmente, os novos trabalhos, em especial a produção dos
historiadores africanos, passaram a demonstrar que a relação entre a África e a Europa
tinha uma historicidade e que a partilha não poderia ser estudada sem a incorporação
desse passado. Passou a ser enfatizado o fato de que os africanos não entraram na
História com a chegada dos europeus e muito menos no século XIX.
A proposta era também a de solucionar algumas questões que permaneciam
sem resposta: por que depois de tanto tempo de relações comerciais só nos finais do
século XIX teria sido proposta uma dominação de tipo colonial formal? Por que a
penetração anterior na América e na Ásia e não na África? Por que os europeus nunca
conseguiram chegar às fontes africanas produtoras de ouro? Geralmente se respondia
a essas questões apelando para o clima, as doenças e o desconhecimento do terreno.
Mas tais problemas logísticos também foram encontrados em outros continentes.
A constatação mais nítida é que a Europa até meados do século XIX não tinha
condições de investir numa guerra de grandes proporções contra as estruturas políticas
africanas, algumas solidamente estabelecidas e mesmo muito bem armadas. Por outro
lado, até aquele momento a África fornecia, através do comércio, o ouro e os escravos
necessários à demanda internacional.

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Evidentemente, as novas considerações nesse campo de estudo não pretendem
argumentar que a África não tivesse interesse econômico para a Europa, ou melhor,
que o objetivo europeu não fosse primordialmente econômico, muito pelo contrário. As
perspectivas que aqui se anunciam buscam discutir a conjuntura da divisão e os
diferentes fatores que porventura forneçam uma melhor inteligibilidade dessa corrida
para a África. Afinal, não obstante a parceria comercial assinalada entre africanos e
europeus, tornava-se cada vez mais evidente a importância estratégica da África. O
continente poderia fornecer, diretamente e sem os encargos dos Estados americanos,
bens preciosos para o crescimento europeu, tais como alimentos e matérias-primas.
A primeira constatação é de que até fins do século XVIII e início do XIX o
interesse privado europeu na relação com o continente africano prevaleceu sobre o
estatal. Os pontos de soberania européia eram raros. No início do século XIX
aumentaria o número de possessões européias, mas, na sua quase totalidade,
concentradas ainda na costa. Esse quadro diz respeito acima de tudo à região
subsaariana, à exceção do extremo sul do continente, onde desde muito cedo se
estabeleceu um crescente número de europeus. No
extremo oposto, na região norte da África, da mesma forma, os interesses europeus,
em especial franceses, se infiltraram prematuramente. A França invadiu a Argélia em
1830 e passou boa parte do século XIX para consolidar seu controle na região,
principalmente em relação aos grupos islâmicos do leste e sul do território. No entanto,
ao longo daquele século, à exceção dessa parte e do continente, a disputa dos
diferentes interesses europeus por tais conexões manteve uma certa autonomia em
relação aos governos centrais. Os
agentes locais - militares e exploradores - detinham o poder de realizar tratados com
os chefes tradicionais e assim assegurar o controle sobre determinada região.
Importante destacar que a África, para boa parte dos governos europeus, não era de
alçada da diplomacia, mas sim dos militares, quase sempre da marinha
(BRUNSCHWIG, 1993, p. 16).
Nessa perspectiva, as expedições de europeus pelo continente africano, vinham
ocorrendo desde o século XVIII, tiveram a importante função de mapear as riquezas e
as formas de acesso ao território. Nomes como os de Livingstone, Stanley, Burton e
Speke deixaram as páginas exclusivas dos boletins das sociedades de geografia e
passaram a povoar as manchetes dos periódicos da época. Suas viagens através do
continente africano eram acompanhadas pelos jornais europeus e até mesmo norte-
americanos. Alguns deixaram para trás a fama de cientistas e escritores aventureiros e

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assumiram a posição mais fixa de homens de negócio, passando a cuidar da
exploração dos produtos comercializados na África.
Nas últimas décadas do século XIX, novos fatos se sucedem e o ritmo desse
intercâmbio muda drasticamente. Em 1867 dá-se a descoberta de diamante no
Transvaal (África do Sul) e, em 1881, de ouro no Rand (também África do Sul) e de
cobre na Rodésia (atual Zimbábue). Logo se inicia um período conturbado de disputas
acirradas entre aventureiros pela fortuna fácil. Acima de tudo, a repercussão dessas
descobertas promove alterações nas posturas desenvolvidas pelos poderes centrais
europeus até aquele momento.
Após a solução dos impasses provocados pela guerra franco-prussiana, em
1871, em que a França perdera Alsácia e Lorena, parte do processo histórico de
unificação da Alemanha, as potências européias procuraram evitar gastos na partilha
africana. Buscaram a solução da construção de esferas de influência sobre os
territórios, numa perspectiva de, no futuro, conseguirem mobilizar investimento
privado para a empreitada que se anunciava de envergadura. Não se produz uma
disputa imediata. A primeira alternativa foi a do reforço da diplomacia através dos
agentes locais, que se multiplicaram à procura de estabelecer o maior número possível
de tratados com os chefes africanos.
Para termos uma idéia dessa etapa de corrida diplomática, a França fez, entre
1819 e 1890, 344 tratados com chefes africanos, 118 antes de 1880. Vale realçar que
a própria idéia de protetorado dificilmente era traduzida com exatidão para os chefes
africanos. Estes, em troca de alguns tecidos, pólvora e álcool, deveriam ceder o
controle de extensas faixas de terra a governantes europeus que eles nunca
conheceram. Para completar o quadro, muitos desses europeus, responsáveis pela
celebração dos acordos, apresentavam-se de forma humilde, sem assessores, e
pedindo em troca pelos produtos oferecidos a concordância em um documento escrito
numa língua desconhecida. O curioso é que as próprias chancelarias européias eram
enganadas com tratados falsos. Chefias africanas e pontos geográficos eram
simplesmente inventados (BRUNSCHWIG, 1993, P. 58-59).
Se num primeiro momento os comerciantes europeus não estavam interessados
na partilha formal, já que esta poderia significar direitos alfandegários e outras
limitações, a crescente concorrência acabou por alterar o cenário. Os mesmos
comerciantes, com o aumento do interesse europeu sobre o continente, passaram a
pedir a interferência do Estado. O alargamento das fronteiras coloniais proporcionaria
impostos capazes de manter a jurisdição, faria face aos interesses privados de outras

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nações e controlaria minimamente as guerras com e entre africanos que dificultavam o
comércio e a arrecadação. Vale acrescentar que alguns comerciantes eram investidos
de autoridade para representar as potências européias. Assim sendo, o seu interesse
em buscar anexações era acrescido da cobiça pessoal para alcançar objetivos
comerciais (MACKENZIE, 1994, P. 18-20).
Como podemos observar, os aspectos que fariam acelerar a disputa se
sucediam. Os militares franceses passaram a buscar uma recuperação da sua imagem
junto à opinião pública interna após a derrota para a Alemanha e iniciaram, em meio a
certa indiferença governamental, a montagem de um vasto território sob sua guarda.
Na parte central da África, a disputa pelo rio Congo se intensifica. O rio passou a ser
considerado fator fundamental na exploração de uma parte significativa do interior do
continente. Na parte norte-oriental, o complicado jogo de interesses e investimentos
em torno do canal de Suez ameaçaria as relações entre ingleses e franceses.
Quando da Conferência de Berlim, a corrida já estava lançada. Por esse motivo
o encontro pretendia, entre outros objetivos, servir como freio, capaz de regular os
interesses e impedir o desentendimento entre as nações européias. O chanceler
alemão Otto von Bismarck, receoso do avanço da situação e de suas conseqüências
para a situação militar na Europa, sugere a organização da conferência. A reunião está
inserida nesse contexto de investimentos privados e pouco militarizados, em que a
busca principal é o comércio. Daí que o ponto de destaque tenha sido a discussão a
respeito da livre navegação no rio Congo.
Os resultados da conferência ainda falam de livre comércio, mesmo em caso de
guerra, e da regulação das disputas. Não se pretendia uma divisão imediata, que pelas
regras ajustadas poderia ser onerosa, afinal foi definida a idéia de ocupação do interior
para demarcação do território. Outro elemento que auxilia na desmitificação da
conferência é o fato de que os negociadores foram os próprios embaixadores na
Alemanha, não sendo necessário o envio de representantes especiais. A imagem
imortalizada da conferência, em que os diferentes representantes europeus rodeiam
uma mesa, onde está aberto um grande mapa da África, auxilia na manutenção da
idéia recorrentemente apresentada de que a conferência teria sido responsável pela
partilha definitiva dos territórios africanos entre as nações européias.
Mantendo a perspectiva de contenção dos gastos, os participantes da
conferência optaram pelo princípio da notificação. Assim, as nações deveriam
comunicar entre si seu interesse sobre determinada região e demonstrar sua atuação.
Essa estratégia fortalecia o papel das companhias concessionárias que retiravam

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encargos do Estado. Para confirmar essa preocupação financeira existente à época,
Oliver (1994, P. 210) lista alguns dos parcos orçamentos da Inglaterra para seus
governantes coloniais na África, na última década do século XIX, verbas capazes de
arcar com o custo de menos de uma dezena de quadros europeus.
Se os novos estudos buscam realçar o papel dos africanos nesse cenário, uma
análise equilibrada não pode deixar de ter em conta as disputas na própria Europa e
seus novos reordenamentos nacionais. Segundo Bismarck, seu mapa da África tinha de
um lado a França e do outro a Rússia. Essa premissa, evidentemente, ditava suas
relações com a Inglaterra. Com possibilidades e estratégias diferentes, Portugal e
Leopoldo II da Bélgica também conseguiram, através desse delicado jogo diplomático
europeu, salvaguardar extensas áreas coloniais na África, apesar de suas diminutas
proporções territoriais, militares e políticas quando comparados às demais potências
européias. No caso do rei belga, seus domínios na África eram pessoais e foram
construídos sob a fachada de associações internacionais filantrópicas, que só em 1908
passariam ao controle do Estado belga (HOCHSCHILD, 1999).
Outro fator europeu a influenciar nesse xadrez político e diplomático foram os
grupos de pressão. Homens de negócio, intelectuais e militares, todos muito próximos
dos políticos europeus, por vezes nas próprias redes familiares, articulavam e
aceitavam idéias assustadoras quanto à perda estratégica nacional que seria não partir
para a África. Sua capacidade de persuasão aumentava à medida que chegavam à
Europa as notícias de lucros concorrentes e da celebração de novos tratados entre
potências coloniais e autoridades locais africanas. Os desenvolvimentos tecnológicos da
época, capazes de proporcionar a industrialização de uma série de produtos africanos,
como a borracha, só vieram selar de vez a ambição reinante.
Somente alguns anos apos a Conferência de Berlim, a partir de 1890, é que se
acelera a corrida para a África por parte das nações européias. Exatamente quando se
substitui a idéia de notificação e de ocupação, vencedora na conferência, pela de área
de influência. A conferência, portanto, deve ser encarada como mais uma etapa de um
longo processo de conquista do controle colonial África pelas potências européias, que
conhece diferentes fases de intensidade, mas que assume o seu momento culminante
nas duas últimas décadas do século XIX e que só alcançará maior solidez ao longo da
segunda década do século XX.
Alguns autores amenizam a tese de cunho mais economicista afirmando que,
em seu conjunto, o continente africano foi o que menos recebeu investimento
estrangeiro até a Primeira Guerra. Para J. Mackenzie, um desses historiadores, "a

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partilha da África parece ter emergido de uma combinação de esperanças exageradas
com preocupações excessivas" (MACKENZIE, 1994, P. 63). Para tanto, a elite européia
teve um papel importante, bem como a passagem da primeira - carvão e ferro - para a
segunda - energia elétrica e aço -revolução industrial, propiciando ambições e
condições econômicas novas, além, é claro, do contexto político de disputa entre
africanos e entre europeus. De forma menos ousada, outros autores afirmam que a
"soberania colonial oferecia o meio através do qual as potências coloniais se
assegurariam contra o protecionismo comercial que seria praticado pelos rivais da
Europa à medida que a concorrência por mercados se tornasse mais acirrada"
(OLIVER, 1994, P. 200).
Cabe ainda realçar os avanços tecnológicos conquistados pelos europeus que,
se não podem ser considerados como o motor que deu partida ao processo de
colonização, devem ser vistos como instrumentos que possibilitaram tal ação.
Dentre eles devem ser lembrados os avanços da medicina - quinino, no combate à
malária -, da industria bélica - a metralhadora -, das comunicações - o telégrafo - e
dos transportes - a ferrovia e o navio a vapor.
O desenho do mapa político da África que conhecemos hoje é fruto desse
período, das ações e reações européias, mas também africanas, como veremos a
seguir. Significativamente, ainda que o colonialismo tenha sido ultrapassado pelos
povos africanos, as fronteiras estabelecidas pelos interesses europeus, desrespeitando
tradições e conexões locais e regionais, permanecem em vigor, o que tende a realçar a
extrema importância desse momento de partilha. Fronteiras que, ao serem mantidas
em função da impossibilidade política de uma nova arquitetura no momento da
descolonização, dividiriam os novos Estados nacionais, ganhando, por vezes, uma
dimensão formal em muitos casos inexistente no período colonial, passando a separar,
eventualmente, novos adversários inconciliáveis (OLIVER, 1994, P. 209).

(Ver mapas “África em 1880” e “África em 1914”, na pasta Mapas)

RESISTÊNCIAS

E quanto aos africanos? Qual o seu papel em todo esse enredo? Como afirmado
anteriormente, o que as novas produções no campo da História pretendem demonstrar
é que a esses não coube apenas a figuração como vítimas. Vários foram os dirigentes e
poderes locais africanos que forçaram os europeus a repensar uma melhor forma de

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dominação e de luta para a consolidação das diferentes conquistas. Muitos desses
homens demonstraram grande habilidade política e militar para conter o mais que
puderam a expansão colonial.
No entanto, para entender o fenômeno da resistência africana às potências
européias é preciso enfatizar, antes de tudo, as mudanças ocorridas ao longo de todo o
século XIX em quase todo o continente e, principalmente, nas relações já há muito
estabelecidas entre africanos e europeus.
O comércio e as estruturas políticas africanas sofreram grandes alterações
naquele século. Na África do Norte e Ocidental uma conjunção explosiva tomou lugar.
A nova expansão islâmica associada ao desdobramento das redes comerciais que
atravessavam o Saara, conectando-se aos postos de troca no oceano Atlântico, e ao
crescimento do comércio de armas alteraram a paisagem política e militar da região,
possibilitando reações de maior envergadura dos africanos à presença européia.
Várias foram as tentativas de ultrapassar particularismos étnicos e regionais,
buscando o fortalecimento de estruturas políticas, com base na arrecadação de
impostos e na montagem de exércitos profissionais. Os casos de Omar Tall (no
Senegal), Samori Turé (no Mali) e Mohamed Ahmed (o Mádi, no Sudão) ilustram
exemplarmente as tentativas de resistência africana em finais do século XIX ao
crescente controle europeu da costa africana, forçando sua penetração pelo interior do
continente.
Omar Tall surgiria em meados da década de 1860, numa África Ocidental
fragilizada pela sangria imposta pelo tráfico de escravos e instável com os
enfrentamentos étnicos, causa e conseqüência desse comércio nefasto. Os embates
locais permitiriam o estabelecimento de uma conformação político-religiosa disposta a
promover uma reunião supra-étnica. O Islão seria o fermento para realizar tal
conexão. Sua morte aos 65 anos, em 1864, agravaria as inúmeras contradições no
interior de seu império, que não consegue consolidar-se, incapaz de reforçar a idéia de
integração das populações submetidas (KI-ZERBO, 1991, P. 22-26).
Caso semelhante ao de Samori Turé, no Mali, que controlaria um vasto império
entre as décadas de 1880 e 1890. Seus domínios seriam marcados pela expansão
do ensino alcorânico e pela ênfase na disciplina militar, com o uso de cavalos em nova
dimensão e a profissionalização de parte do exército. Da mesma forma, Samori Turé
deixaria sua marca administrativa através do aperfeiçoamento das funções de
armazenamento, manutenção e distribuição dos gêneros alimentares, da
profissionalização de seu conselho e da regularização e ampliação da tributação.

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Todavia, essa militarização enfraqueceu a relação com as comunidades locais e forçou
a tática de "terra queimada", numa postura errática para fazer frente aos ataques
franceses. Em virtude desse comportamento na fase final de seu império, seria
assinalado pela historiografia do início do século XX como o condutor de uma máquina
de guerra voraz, escravista e assassina. Tal perspectiva historiográfica ignora, dessa
forma, a conjuntura da penetração européia e as suas inúmeras tentativas de
negociação com os militares ingleses e franceses. Turé seria detido pelas tropas
francesas numa emboscada em 29 de setembro de 1898 e em seguida deportado para
o Gabão, onde morreria dois anos depois (KI-ZERBO, 1991, P. 26-55).
Mohamed Ahmed, o Mádi, se apresentaria como o libertador dos povos do
Sudão, nas suas partes central e sul, capaz de aglutinar o sentimento xenófobo e
libertário em relação aos egípcios, em primeiro lugar, e posteriormente aos ingleses.
Em 1881 suas forças iniciam uma expansão mais ousada ao sul. Com sua morte em
1885, as forças de desagregação se fariam sentir. Uma nova derrota deixaria 11 mil
mortos madistas. Em 1899 os ingleses já controlavam a situação (OLIVER, 1994, P.
203-206).
O roteiro seria diferente no caso etíope. Menelik II iniciou seu reinado com a
idéia da necessária modernização do seu armamento. Cristão ortodoxo, foi capaz de
buscar o apoio de uma parcela significativa da população islâmica e, com isso,
construir um escudo mais eficaz contra a conflituosa relação com os interesses
italianos. Relação essa que se deteriora com o passar dos anos até que a guerra
começa em 1896, quando Menelik contava com um exército de 70 mil homens. O
embate teria como resultado a morte de 8 mil italianos. O recuo foi inevitável, bem
como o reconhecimento da soberania da Etiópia. Menelik viria a falecer em 1913 (KI-
ZERBO, 1991, P. 61-63).
Todos esses grandes líderes tiveram como tarefa construir conjuntos políticos
que ultrapassassem as particularidades étnicas e regionais, alimentando forças
capazes de defrontar o apetite europeu. A dimensão desses impérios, que dificultava
sua administração, e a inexistência de uma saída para o mar que proporcionasse a
aquisição de armamento foram os dois principais problemas. No caso de Omar Tall e
Samori Turé essa rota para o mar foi temporária, pois na costa já estavam
implantadas ou prontas para isso as potências européias. Por outro lado, ainda que o
armamento tivesse sido obtido em grande quantidade, seria necessário aperfeiçoar a
sua capacidade de utilização, treinamento e reposição, tarefas não muito fáceis para
grupos militares em constante mutação, à exceção dos homens instruídos por Menelik.

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Também a distância tecnológica do armamento de europeus e africanos foi se
acentuando com o passar do tempo. Enquanto os primeiros popularizavam o rifle,
entrando na era da metralhadora, os demais continuavam com o velho mosquete de
carregar pela boca, lento, mas ao mesmo tempo compatível com a possibilidade de
reparo por parte de seus ferreiros.
O caso da Etiópia demonstra, no entanto, que a existência de uma tradição
nacional, característica que esses impérios não tinham - eram todos recentes ou em
formação -, meios materiais suficientes e a posse de uma costa foram fatores
decisivos. A reunião de todos eles, num único caso, foi capaz de mudar o que vinha se
transformando num padrão de dominação das potências européias.
Em todos os exemplos listados acima, à exceção do caso etíope, as fissuras
internas e as disputas locais, muitas vezes impulsionadas pelas potências européias,
em especial França e Inglaterra, auxiliariam na curta duração das vitórias. Essa
constatação deve ser analisada tendo em conta a ausência de confrontação direta
entre as potências européias, ao passo que as estruturas políticas africanas ainda
passavam por uma fase de acomodação, com várias disputas militares entre elas.
Ao final do século XIX, percebe-se na costa ocidental o surgimento de uma nova
relação comercial entre africanos e europeus. A proibição do tráfico de escravos a
partir da costa do golfo do Benim dera força à passagem para o comércio lícito de bens
que iriam adquirir boa cotação no mercado europeu, como é o caso do cacau e do
amendoim. É assim que, ao longo dos anos, se concretiza a formação de unidades
produtoras rurais de africanos visando o comércio com os europeus. Seus filhos irão
estudar nas respectivas metrópoles e constituirão uma camada capaz de proporcionar
uma transição menos conflitante com as orientações européias, alçados até mesmo à
condição de executores da política colonial. É claro que, em alguns casos, essa relação
se deteriorou. No momento da luta pela independência, é dessa camada que sairá
parte dos quadros dirigentes africanos.
No que diz respeito ao processo de resistência à penetração colonial nas partes
central, leste e sul do continente é preciso, mais uma vez, recuar um pouco no tempo
a fim de entender as reestruturações políticas e econômicas por que passavam as
sociedades africanas na região. O século XVIII tinha sido responsável pela
consolidação de três inovações que afetariam drasticamente a região. A primeira
mudança fora de ordem agrícola: a introdução do milho e da mandioca americanos.
Culturas mais rentáveis, mais resistentes à seca, de melhor qualidade para
armazenamento e menos exigentes quanto à mão-de-obra, rapidamente se

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expandiram pelas sociedades coletoras e caçadoras, implicando no fortalecimento de
uns em detrimento de outros.
A segunda alteração foi no comércio, anteriormente marcado pelas trocas bens
materiais ligados ao ferro, sal e cerâmica doméstica. A expansão das redes comerciais
nos séculos XVIII e XIX, em função do tráfico de escravos, introduziu a circulação de
novas mercadorias: conchas marinhas, objetos de metal e latão, bebidas como o rum
e o brandy, tabaco, armas e roupas de algodão. Isso levou à crescente interação dos
povos do interior com o tráfico negreiro do litoral atlântico. Evidentemente, só alguns
conseguiriam obter tais riquezas. Outros, despossuídos de seus bens e laços de
solidariedade, seriam transformados em mercadoria, em escravos.
A terceira mudança foi na verdade conseqüência das duas anteriores. Os velhos
reinos foram modificados e novas estruturas políticas surgiram, de acordo com seu
posicionamento estratégico no entroncamento dessas rotas comerciais. A demanda na
costa por escravos alterou as dimensões dos reinos no interior, e também seus
padrões de atuação e administração. Foram modificadas as correlações de forças e as
alianças. Os maiores reinos entraram numa lógica escravista de ampliação de seus
exércitos para obtenção de escravos e armas garantindo, assim, rotas comerciais e
mercados. Não obstante essa estratégia, o efeito de centralização dessas estruturas
políticas abaria sendo pequeno, pois a maior parte da população permaneceu vivendo
em pequenas aldeias isoladas e não organizadas em unidades administrativas
conectadas (BIRMINGUN, 1992).
O fim do tráfico atlântico, na sua fase ilegal, em meados do século XIX, traria
nova onda de reestruturações políticas e comerciais. As principais chefias do interior da
África Central tinham organizado seus reinos em função desse comércio, e seu fim
marcaria o esgotamento da capacidade de expansão dessas estruturas políticas e, na
maioria dos casos, a sua fragmentação. A expansão européia nessa região defrontaria,
portanto, uma resistência muito fragilizada e dispersa, o que facilitaria suas ambições
e controles.
A resistência africana no Congo pode ser tomada como exemplo dessa ação
mais individual, menos organizada, em função da fragmentação existente e da forma
como foi montado o sistema de exploração colonial. A fuga para o interior e as
rebeliões de pequenas comunidades ou até mesmo individuais foram as estratégias
possíveis contra o selvagem mecanismo de controle criado por Leopoldo II e mantido
durante alguns anos pelo governo belga. Uma história de violência ilimitada da parte
dos europeus, com assassinatos em série, mutilações e decapitações, imortalizada nas

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páginas do escritor Joseph Conrad, em seu clássico Coração das trevas, e
recentemente recontada por Adam Hochschild, em O fantasma do rei Leopoldo.
No lado oriental os africanos enfrentariam a presença de outros intervenientes
para além dos europeus: os árabes. A expansão árabe começou a avançar para o
interior da África no início do século XIX. Os árabes penetram na região como
comerciantes e instalam-se nas proximidades das chefias africanas locais, organizando
o comércio de escravos e de marfim. Com o passar dos anos criam exércitos e
transformam suas feitorias em fortalezas. Submetem os chefes africanos da costa e
avançam para o interior, disputando áreas "produtoras" de escravos com os impérios
africanos do interior, como foi o caso dos impérios Lunda e Kazembe. Seu domínio de
armas de fogo modernas e em bom número explicaria a rápida expansão pelo leste
[BIRMINGHAN, 1992).
Todavia, o final do século XIX traria novidades incontestáveis para a expansão
árabe. Pelo centro surgiam os belgas, e pelo leste os alemães, de início, e depois os
ingleses. A luta contra o tráfico de escravos produzira estragos em suas redes de
comércio. Ainda que tivessem efetuado uma transição segura para o comércio de
mercadorias lícitas, como o marfim, o tráfico ilegal continuava sendo importante e sua
fragilização pela ação dos europeus desgastara de forma decisiva a sua capacidade de
disputa com os novos atores. Logo a parte oriental do continente seria retalhada entre
ingleses, alemães, belgas e o pequeno Portugal, que mais uma vez soube jogar e os
interesses das grandes potências, mantendo antigas possessões redundariam na
grande colônia de Moçambique.
Ainda que o controle europeu tenha se estabelecido num espaço de tempo
relativamente curto, a resistência africana nessa região centro-oriental também se
faria sentir. Os belgas, na parte mais a leste de seus domínios, ao sul da floresta
tropical, teriam que defrontar os lundas e os kubas, que mantinham algum armamento
remanescente do período de tráfico de escravos. Da mesma forma, os alemães teriam
que se esforçar para sobreporem-se aos ngonis na Tanganica. Acabariam por perpetrar
o massacre de pelo menos 120 mil africanos (KI-ZERBO, 1991, P. 96-97). Vale
enfatizar que muitas dessas ações violentas podiam estar a cargo das companhias
concessionárias, que aumentavam sua lucratividade em função da submissão dos
africanos ao seu terror.
Na porção mais ao sul do continente a instalação de colonos holandeses, século
XVII, associados aos huguenotes franceses, em fuga dos conflitos religiosos na França,
fornecerá um quadro bem diferenciado do que fora visto até então como forma de

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penetração colonial. Diferente e prematuro, quando parado aos casos anteriormente
citados. A presença desses colonos bôeres, fruto das ações da Companhia Holandesa
das índias Orientais (VOC), seria mantida mesmo após a passagem do controle dessa
região para os ingleses, como forma de monitorar o caminho para as índias. Os bôeres
resistiriam à "colonização" inglesa e à legislação abolicionista, baseados em crenças de
cunho religioso e lingüístico, iniciando uma longa expansão da região da Cidade do
Cabo em direção ao leste e ao norte do que seria posteriormente a África do Sul. Esse
movimento resultaria no reordenamento espacial das populações africanas dessas
regiões.
É nesse momento que surge a figura lendária de Shaka. Ainda que o confronto
direto com o poderio militar europeu de maior porte tenha sido praticamente
inexistente, suas ações repercutiram internacionalmente e resultaram na formação de
um vasto Império Zulu, assegurado por uma força militar de mais de 100 mil soldados,
que conheceu o seu auge nas décadas de e 30 do século XIX. A militarização
promovida por Shaka implicou uma reestruturação dos regimentos, sua divisão por
sexo e função no campo de batalha, além da implementação de uma rígida disciplina,
em que o recuo e a perda da arma levava à execução capital. Seu engenho militar
promoveu alterações no armamento - suprimiu a lança de arremesso e diminuiu o
tamanho das azagaias, forçando o combate corpo a corpo de seus homens e,
conseqüentemente, uma postura mais ofensiva -, na estratégia militar e na estrutura
da sociedade - o casamento de seus homens só seria permitido a partir dos trinta
anos, como recompensa militar.
No entanto, as fórmulas do sucesso alimentariam o descontentamento. A
expansão zulu era sinônimo de conquista e morte. Os grupos étnicos submetidos
presenciavam a morte dos mais velhos e o abandono pelos jovens da língua materna e
dos seus nomes como condição de aceitação na tropa zulu. Shaka, na sua própria elite
dirigente, encontraria inúmeros descontentes com a sua tirania. Assim se estabelece a
conspiração que vitimou um dos maiores conquistadores africanos, capaz de retardar a
expansão bôer e inglesa, mas ineficaz na construção de uma estrutura política sólida o
suficiente para manter-se face aos interesses africanos e europeus em contrário (KI-
ZERBO, 1991, P. 5-13).
Como último ponto a ser destacado nesse item das resistências caberia
mencionar as ações de desobediência pautadas numa perspectiva religiosa.
Curiosamente, assim como o islamismo, também o cristianismo, ainda que de forma
sincrética ou messiânica, serviria de fermento para movimentos questionadores da

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ordem colonial, e seu principal foco seria a região central da África. É bem verdade que
um dos primeiros casos do continente seria personificado pelo catequista metodista
William Harris, oriundo da Libéria, que inicia sua pregação na Costa do Marfim em
1913, fugindo, portanto, a essa orientação espacial. Embora moderado em relação aos
ditames coloniais, sua livre interpretação religiosa chocava-se com os rigores
cotidianos impostos pelos padres católicos. O desfecho foi sua expulsão para a Libéria,
onde viria a falecer (KI-ZERBO, 1991, P. 173).
Simon Kimbangu, também oriundo de formação em missão protestante, seria
um dos primeiros a dar início, no Congo Belga, ao messianismo marcante dessa região
central do continente. Kimbangu começa em 1921 a divulgar idéias de revitalização
moral, começando pelo fim da poligamia, das danças religiosas e do consumo de
álcool. Em seguida pregaria a suspensão do pagamento do imposto colonial e da
cultura obrigatória por parte de seus seguidores. Orientações, evidentemente, em total
descompasso com os interesses coloniais. Apesar da grande repercussão obtida e do
apoio na região, ele seria detido em 1921, vindo a falecer trinta anos depois ainda na
prisão (KI-ZERBO, 1991, P. 173).
A composição de movimentos religiosos de massa com desobediência às
orientações coloniais conheceria algum fôlego nessa região da África, constituindo uma
intrigante e recorrente forma de resistência. Em Angola, o culto à deusa Maria, que
segundo seus seguidores iria libertar os negros do jugo dos brancos, estaria na base
da revolta de 1960, ocorrida em Cassanje, no norte da colônia. Os angolanos, em luta
contra as condições impostas aos trabalhadores do algodão, atacam algumas lojas de
comerciantes portugueses, uma missão católica e a residência dos representantes
oficiais governo. A repressão das forças militares portuguesas seria imediata e
sangrenta, bombardeando as aldeias e buscando preservar ao máximo a plantação
(BITTENCOURT, 1999, P. 132-134).
O tocoísmo, outro desses fenômenos sincréticos, capaz de amalgamar
elementos de religiosidade de origem batista, kimbanguista e de testemunhas de
Jeová, despontaria no Congo mas migraria para o território angolano. Seu líder, Simão
Toco, originário do norte de Angola, após formação em missões batistas, parte para o
Congo Belga, onde permanece até 1950, ando é expulso em função das disputas
religiosas em Leopoldville e da percussão de suas idéias de desobediência civil pacífica.
Após sua volta para Angola, Simão Toco passa a ser transferido de região em região,
tão logo começam a surgir sinais de sucesso de sua pregação. Essa peregrinação
acabaria por ampliar o raio de ação do tocoísmo. Por fim, a estratégia portuguesa

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altera-se radicalmente e passa-se a utilizar o próprio Simão Toco como defensor da
pátria indivisível portuguesa (BITTENCOURT, 1999, P. 135-137).
Esses últimos casos de resistência e desobediência ao controle colonial arcam o
fim de um determinado período e, principalmente, de um determinado tipo de luta. A
partir daquele momento as ações anticoloniais seriam controladas por movimentos de
caráter ou ambição nacional, independentistas, que levariam adiante a luta política ou
mesmo armada contra as metrópoles européias.

COLONIALISMO OU COLONIALISMOS?

Estabelecida a partilha, sufocadas as revoltas, tomam corpo as ações coloniais


no continente. O formato da dominação resultaria da política colonial proposta por
cada potência, das condições geo-estratégicas do território em questão e da estrutura
política e socioeconômica encontrada, além do grau de desenvolvimento do país
colonizador. A economia, evidentemente, dada a situação, assumiria as rédeas no
estabelecimento das relações estruturais do sistema. Nessa perspectiva, a atividade
colonial passa a ser complementar e especializada. Seu objetivo é produzir matérias-
primas agrícolas e minerais para a metrópole. Para alcançar esse fim vale-se inclusive
do mecanismo de articular diferentes modos de produção, mantendo relações de
produção não-capitalistas, tradicionais africanas, num papel integrado ao sistema
capitalista em implantação.
Ainda numa perspectiva mais abrangente de análise podemos admitir que a
dominação colonial que teve lugar no continente africano assumiu como características
básicas a baixa tecnologia e o pequeno investimento de capital, à exceção do setor
mineiro - quase metade dos investimentos europeus na África até 1938 foram na
África do Sul, no setor mineiro, e quase dois terços se considerarmos a África Austral.
Sua postura seria do tipo predatória quanto aos recursos humanos e naturais, abrindo
mão de qualquer preocupação com a renovação dos fatores de produção. Daí a
importância da preservação das formas de produção não-capitalistas capazes de
garantir a reposição de homens e parte do seu "custo de manutenção".
Para fazer funcionar essa estrutura, era fundamental a exploração da mão-de-
obra africana através do trabalho forçado, que receberá diferentes nomes e passará
por variadas estratégias. De início a mão-de-obra seria obtida através dos "escravos
libertos", nome dado aos africanos que eram "libertados" pelos europeus das
caravanas ou dos barcos que faziam o tráfico, mas que em contrapartida "pagariam"

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com trabalho, em princípio livre, mas sabidamente compulsório, sua nova condição
(OLIVER, 1994, P. 214). Também as companhias concessionárias podiam receber o
monopólio da atividade de recrutamento de mão-de-obra, o que, uma vez mais, abria
margem para atrocidades ilimitadas.
A economia colonial implicaria por destruição ou contaminação na modificação
de todas as esferas da vida africana. Seus efeitos terríveis se fariam sentir na própria
cosmogonia e, conseqüentemente, nas relações sociais africanas. A exploração ditaria
regras então impensáveis como a expropriação das terras onde estavam enterrados os
antepassados, a submissão a tarefas agrícolas - próprias das mulheres, segundo a
tradição -, entre outros fatores que causavam uma grave desarrumação da
compreensão o mundo até aquele momento predominante.
O racismo seria o cimento dessa estrutura, capaz de alimentar uma justificativa
ideológica, legitimadora da dominação, e que ambicionava “naturalizar” a situação
colonial. Sua pior conseqüência seria a internalização, pelo colonizado, da crença em
sua inferioridade, aumentando a eficácia do mecanismo de dominação e devorando a
vítima, pressionada pelo sistema colonial e pelos meios de reprodução do racismo. A
tentativa seria a de associar o racismo somente aos chamados "povos de cor”,
transformando-o em algo sempre existente, desvinculando sua criação do momento de
estreitamento de relações entre europeus e africanos, quando o tráfico de escravos
assumira a forma primeira de implementação. Escamoteava-se, portanto, que até
aquele momento a escravidão tomara outros pontos como justificativa: a religião
(infiéis, pagãos e judeus), a pertença (estrangeiros) e a guerra.
A lógica racista buscava descobrir e pôr em evidência diferenças reais ou
imaginárias entre o colonizado e o colonizador. Em seguida, valorizavam-se essas
diferenças em proveito do colonizador e em detrimento do colonizado para, finalmente,
apresentá-las como definitivas e torná-las coletivas. As diferenças culturais passam a
ser apresentadas como genéticas, imutáveis, passíveis de evolução somente no longo
prazo (MEMMI, 1977).
A construção colonial utilizaria esferas de atuação muito diferenciadas, mas
igualmente importantes na sua legitimação. Uma delas seria a Antropologia, que nasce
com o colonialismo e tem com ele estreitas relações, já que a dominação colonial
delimitava o seu objeto. Até então notava-se uma grande indefinição na sua existência
entre a História e a Filosofia, mas a divulgação da escola evolucionista, em finais do
século XIX, alertando para a primazia dos estágios de evolução técnico-econômica,

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proporcionaria um reforço contundente na sua própria justificativa como campo de
saber específico e como fiador do avançar da opção colonial.
Nos anos 30 do século XX, a escola funcionalista manteria a aliança entre os
estudos antropológicos e as ambições coloniais européias, assumindo, todavia, um
aspecto mais operacional, que buscava melhor conhecer os indígenas, a fim de melhor
dominá-los. Somente no pós-Segunda Guerra se apresentaria uma proposta
contundente de recusa à colaboração com o colonialismo. Passa-se a discutir o papel
da Antropologia como fornecedora do “plano de intervenção" para os militares e
administradores europeus contra as populações africanas estudadas (PEREIRA, 1978,
P. 21). Por fim, uma vez mais, a África iria incrementar o processo de discussão e
também o avanço das ciências humanas. A Antropologia revê o papel do antropólogo,
a especificidade do seu objeto e apresenta propostas para sua africanização, bem
como uma reformulação teórica em função dos povos estudados.
No terreno das instituições, o colonialismo caminharia de braços dados com as
igrejas cristãs, católicas ou protestantes, já que sua dispersão pelo continente seria
uma marca colonial. O militar, o padre ou pastor e o recrutador de mão-de-obra
seriam figuras freqüentes no cotidiano africano. E o cristianismo não atuaria apenas no
campo da fé, alteraria também os modos de vida, afetando as noções básicas de
propriedade, de estrutura familiar, dos sistemas de herança, das práticas diárias da
alimentação, do vestuário e da educação das crianças.
Curiosamente, ainda que o cristianismo tenha sido um elemento importante do
processo de desestruturação das sociedades africanas, ele foi ao mesmo tempo um
caminho para a formação de novas afirmações identitárias e, junto com a
escolarização, forneceu possibilidades, ainda que limitadas, de mobilidade social, que
os colonizados utilizaram o melhor que puderam. É por meio do ensino praticado nas
missões religiosas que se constitui uma das principais vias de formação de elites
africanas ocidentalizadas, que se num primeiro momento amorteceram as idéias
colonialistas, chegando a atuar como agentes dessa dominação, em seguida se
transformaram em lideranças ou candidatos ao recrutamento por parte dos
movimentos de independência, baseados em propostas e preocupações nacionais.
Apesar das limitações que as análises construídas através de modelos
explicativos podem implicar, vale referência à já clássica diferenciação entre os tipos
de colônias que tiveram lugar na África. A primeira delas seria a denominada colônia
de povoamento, ou enraizamento (settler). Sua característica básica era a instalação
no território de uma população de origem européia que se torna numericamente

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expressiva, apesar de permanecer minoria face à população africana. Este segmento
passa a comandar os destinos da colônia nos mais variados aspectos e por isso assume
certa autonomia administrativa. Na esfera econômica se especializa na apropriação das
terras dos camponeses africanos e, quando muito, na instalação de uma indústria
transformadora. Os principais exemplos seriam África do Sul, Argélia, Quênia e Angola.
Os brancos ali instalados lucravam com o colonialismo, gozando de regalias
somente possíveis em função do sistema colonial. Na sua grande maioria foram os
maiores defensores dos preconceitos raciais, garantia importante da manutenção
dessa condição privilegiada. Com o passar do tempo, o interesse dos colonos tende a
diferenciar-se cada vez mais dos da grande burguesia metropolitana, que não pretende
continuar a sustentar os preços cobrados pelos colonos por suas exportações agrícolas
e nem auxiliar na manutenção de uma força militar cada vez maior para fazer face ao
crescente desejo de independência dos africanos. Em paralelo, os colonos reivindicam
maior autonomia da metrópole, reclamando das amarras impostas pelos exclusivos
coloniais, como se a sua situação não fosse o resultado de uma situação colonial
(PEREIRA, 1978, P. 18 E 19).
As chamadas colônias de enquadramento, também denominadas de exploração,
como se fosse possível ser colônia e não ser de exploração, possuem como
características básicas o pequeno número de colonos instalados - o que impedia
pretensões autonomistas - e a concentração de forças no papel policial e militar. Os
colonos residentes em sua maioria são funcionários do governo e das grandes
empresas concessionárias. Não se apropriam das terras, que continuam nas mãos dos
africanos, forçados a manterem a produção agro-exportadora a preços baixos. Os
principais exemplos tiveram lugar na África Ocidental britânica, em especial Gana e
Nigéria, e no Senegal (PEREIRA, 1978, P. 19).
Por último, as denominadas mistas. Como o nome informa, trata-se das
colônias que muitas vezes concentraram um número expressivo de brancos, mas não
de forma proporcional ao montante encontrado nas de povoamento. Para além disso,
na maioria dos casos ocorreu uma concentração regional como no Zaire e na Zâmbia -
antiga Rodésia do Norte -, devido à exploração mineira. No Zaire chegou a haver 110
mil brancos ligados a essa atividade de exploração mineira na região sul, no Katanga,
atual Shaba.
Quanto à administração, o esquema proposto apresenta duas vertentes: a
direta e a indireta. No primeiro caso, o controle por parte dos colonos pretendia ser o
mais amplo possível, tanto no plano espacial quanto no administrativo, ainda que em

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muitas situações fosse necessária a colaboração com os chefes tradicionais para
alcançar regiões no interior da colônia. No que se refere às colônias de administração
indireta, a marca era a utilização de agentes autóctones que foram subjugados
militarmente. Tais governos, em muitos casos, após uma alteração forçada pelo
colonialismo, poderiam até mesmo obter ganhos financeiros para a camada dirigente
africana, através da exploração da massa camponesa. Invariavelmente, busca-se a
concentração numa agricultura para exportação de interesse europeu em detrimento
da agricultura de subsistência e troca interna.
Como afirmado anteriormente, os esquemas de análise apresentados têm suas
limitações e assim devem ser encarados. A crítica ao estudo do colonialismo genérico é
pertinente e atual. O acompanhamento da colonização de qualquer metrópole sem
referências ao momento e ao local específicos torna a análise extremamente débil. De
ambos os lados existiam forças, desejos e projetos diferentes, tanto do colonizador,
que precisa ser encarado tendo em conta as diferenças existentes entre funcionários,
comerciantes, aventureiros e missionários, como do colonizado, com suas formações
sociais e formas de luta distintas.
É possível mesmo se perceber uma maior proximidade no que diz respeito às
experiências vividas durante o período colonial do ponto de vista regional, ou seja,
entre territórios vizinhos, independentemente da metrópole colonizadora. E isso
poderá gerar respostas similares a tal colonização.
Não obstante essa ressalva, numa perspectiva que se pretende mais
abrangente uma constatação deve ser destacada. Nas colônias de povoamento, ou
seja, onde se estabeleceu um número significativo de colonos brancos, o enraizamento
dessa população criou interesses muito específicos que nem sempre caminharam na
mesma direção dos interesses metropolitanos. Nesses locais a tendência à existência
de guerras de independência mais violentas se estabeleceu.
O fundamental em relação ao colonialismo é que o seu estudo deve partir de
situações concretas no tempo e no espaço entre colonizadores e colonizados. O quadro
de análise que identifica colônias de enquadramento e de povoamento, de
administração direta e indireta é importante por tentar produzir um cenário mais
abrangente para dar conta de uma realidade que se estabeleceu em todo o continente.
Porém, como em quase todos os esquemas análise de maior amplitude, nem sempre
atende a estudos de caso mais específicos.

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