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Decisão do Supremo Tribunal Federal quanto ao

reconhecimento de união estável em relações homoafetivas

João César Sampaio Neto∗ Rafaela Lima Torres Maciel†

13 de abril de 2018

Resumo

Proposto como texto suporte para apresentação oral de mesmo tema, o presente estudo
propõe-se a analisar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento
conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, nas quais é discutida a
possibilidade de equiparação da união entre pessoas do mesmo sexo à entidade familiar,
esta última prevista no artigo 1.723 do Código Civil. A leitura dos supracitados
instrumentos e a breve examinação de selecionados textos dentre os que fundamentam
os votos permitiram atingir uma melhor compreensão do tema, construir opiniões
diante da decisão da Corte e relacionar o assunto com o conteúdo da disciplina DIR213
- Ciência Política, ministrada pelo Prof. Gabriel Marques no semestre letivo de 2018.1.

Palavras-chave: união homoafetiva. ADPF 132. ADI 4277.

Introdução
Provocado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e pela Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o Supremo Tribunal Federal
(STF) julgou, na sessão de 4 de maio de 2011, procedentes os pedidos de reconhecimento
de união estável para casais de mesmo sexo.
A ADPF 132 foi protocolada pelo governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio
Cabral, indicando a violação de preceitos fundamentais - tais como o direito à igualdade,
o direito à liberdade e a dignidade da pessoa humana - na interpretação discriminatória
em parte do Estatuto dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro e no conjunto de
decisões judiciais dos tribunais estaduais que negavam às uniões homoafetivas o mesmo
regime jurídico das uniões estáveis.
A ADI 4277, por sua vez, foi ajuizada na Corte pela Procuradoria-Geral da
República e objetivava a declaração, pelo STF, da obrigatoriedade do reconhecimento,
no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que
atendidos os requisitos exigidos para a constituição de união estável entre homem e mulher.

cesarneto87@gmail.com

rafaelaltorresm@gmail.com

1
Pedia, ainda, a extensão dos direitos e deveres dos companheiros em união estável aos
companheiros em união estável homoafetiva.
Diante da complexidade da matéria e de sua relevância, representantes de diversas
entidades foram admitidos como amici curiae, tanto em favor da causa quanto contrários.

1 Relatório
1.1 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132
Em fase de sucessisvas decisões judiciais desfavoráveis à concessão de benefícios a
cônjuges de servidores estaduais no Rio de Janeiro, a ADPF 132, ajuizada pelo Governador
do estado do Rio de Janeiro em 25 de fevereiro de 2008, teve por objetivo questionar a
constitucionalidade do art. 19, inc. II e V e art. 33, I a X e parágrafo único, todos do
Decreto-lei no 220 de 18 de julho de 1975 (Estatuto dos Servidores Civis do Estado do
Rio de Janeiro) quanto ao cumprimento de preceito fundamental. Além destes, cita-se
o conjunto de decisões judiciais proferidas por tribunais estaduais como, também, ato
causador de lesão.
Listam-se como preceitos fundamentais violados "o direito à igualdade (art. 5o ,
caput); o direito à liberdade (art. 5o , II), do qual decorre a autonomia da vontade; o
princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o , IV); e o princípio da segurança jurídica
(art. 5o , caput), todos contidos na Constituição da República" 1 .
A causa teve como Relator o Min. Carlos Ayres de Britto.

1.2 Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277


A ADI 4277 foi, inicialmente, autuada pela Procuradoria-Geral da República (PGR)
como ADPF 178 em 22 de julho de 2009. A petição inicial provou-se incapaz de delimitar
objeto específico a ser impugnado pela via de ADPF, conforme disposto nos artigos 1o e
4o da Lei no 9.882/99. Contudo, em pedido subsidiário na mesma petição, após emenda,
a Procuradoria-Geral da República teve atendido o conhecimento da ADPF como ADI,
pedindo interpretação conforme do art. 1.723 do Código Civil.
A PGR argumenta que, diante do disposto no art. 1.723 do Código Civil2 ,

Art. 1.723. É reconhecida a união estável entre o homem e a mulher,


configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família."

a única interpretação que traz o dispositivo à conformidade com a Carta Magna é aquela que
reduz a explicitude da expressão "entre homem e mulher" a mero caráter exemplificativo,
possibilitando que se estendam seus efeitos à união entre pessoas do mesmo sexo, inclusive
no que diz respeito aos requisitos de "convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida
com o objetivo de constituição de família".
Conforme previsto no art. 282 do Código de Processo Civil CPC/73, à época
vigente, a existência de causa relacionada, por conexão ou continência, já ajuizada - qual
1
ESTADUAL, P. E. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 132. Rio de Janeiro,
2008. Acesso em: 13 de abril de 2018.
2
BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. Acesso em: 13 de abril de 2018.

2
seja a supramencionada ADPF 132 - implica em distribuição por prevenção, tendo sido a
ADI 4277 distribuída para o Min. Carlos Ayres de Britto.

2 Fundamentação
Apesar da decisão ter sido unânime em favor do pedido de interpretação conforme
a Constituição, além de alguns dos fundamentos que alicerçaram a decisão, descrever-se-ão
alguns dos argumentos contrários defendidos pelos amici curiae em suas sustentações.

2.1 Argumentos em favor do reconhecimento da união estável homoafetiva


Os ministros se revezaram na defesa do direito dos homossexuais e se utilizaram
de diversos instrumentos para fundamentação de seus votos - em todos eles permearam os
princípios constitucionais e os direitos fundamentais, em especial aqueles que intersetam
os direitos humanos.
No âmbito do direito comparado, citaram-se o debate inglês Devlin-Hart, sobre a
descriminalização das práticas homossexuais, e diversos processos jurisdicionais ocorridos em
países como Canadá e África do Sul que trouxeram à pauta o casamento civil homoafetivo.
Questionou-se, ainda, a conjuntura atual do Direito no Brasil, enfrentando a
abordagem dogmática que muito dista da realidade atual.

2.2 Enquadramento da união homoafetiva no rol de modalidades previstas no art. 226


da Constituição Federal de 88
Em seus votos, os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso
não admitem o enquadramento da união homoafetiva estável no rol de modalidades de
entidade familiar previstas no art. 226 da Carta Política, quais sejam, citando voto do Min.
Ricardo Lewandowksi, a constituída pelo casamento, a configurada pela união estável e,
ainda, a que se denomina monoparental.
Apesar de não considerado possível tal enquadramento de uma "união estável
homoafetiva"por interpretação extensiva do §3o do art. 226, propõe-se um processo de
integração analógica de uma "união homoafetiva estável", observando-se surgimento de
nova espécie de entidade familiar a ser entendida ao lado daquelas explícitas no referido
artigo.

2.3 Argumentos dos amici curiae contrários aos pedidos


Não menos importantes foram as sustentações orais proferidas pelos representantes
de entidades da sociedade na condição de amici curiae, em especial aqueles em posição
contrária ao voto do relator.
O principal instrumento contrário aos pedidos, suscitado pelas entidades religiosas e
conservadoras ouvidas, é a tipificação dos dispositivos do art. 226 da Constituição Federal de
88 e do art. 1.723 do Código Civil como numerus clausus com a proposta de entendimento
meramente exegético.
Em acréscimo, há clara tentativa de caracterizar a sociedade brasileira como incapaz
de aceitar práticas modernas, então banais em outros países, como a legalização do consumo
da maconha, a instituição de pena de morte e o casamento homoafetivo.

3
3 Decisão
Por fim, o STF reconheceu, em uma decisão unânime histórica, as uniões ho-
moafetivas. Todos os 10 ministros votantes no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277
manifestaram-se pela procedência das respectivas ações constitucionais, reconhecendo a
união homoafetiva entidade familiar e aplicando à mesma o regime concernente à união
estável entre homem e mulher, regulada no art. 1.723 do Código Civil brasileiro. A decisão
tem eficácia erga omnes e efeito vinculante.

Opiniões dos autores


Entende a autora Rafaela Torres como acertada a decisão do STF no que tange ao
reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar, ainda que em configuração
diversa das modalidades previstas no art. 226 da Constituição Federal de 1988. Ainda
segundo a autora, o artigo 226 não veda ou proíbe o reconhecimento da união homoafetiva
como entidade familiar e, consequentemente, não exclui tal construção familiar do acesso às
garantias contempladas a uma união estável. Ainda que fosse o caso, uma constituição que
exclui e segrega qualquer parcela da população gera a discriminação, o ódio, a violência e o
caos, perdendo assim a sua significância dentro da normatização jurídica da sociedade. Em
suma, uma constituição que serve de obstáculo para cumprimento dos Direitos Fundamentais
corre o risco de tornar-se ilegítima e nula.
Em opinião conflitante, o autor João Sampaio pontua que, ainda que a união
homoafetiva seja uma realidade social a ser abraçada e protegida pelo ordenamento
jurídico, merecendo direitos semelhantes aos conferidos numa união estável "heteroafetiva",
a caracterização da união homoafetiva como entidade familiar excede reconhecido limite da
interpretação conforme à Constituição: o da vontade do legislador. Conforme transcrito no
Diário da Assembleia Nacional Constituinte, Suplemento "B", p. 209, em debate acerca do
polêmico conteúdo do art. 226, enquanto ainda em forja, ficou clara a vontade do legislador
constituinte em limitar o conceito de união estável a indivíduos de sexos distintos.
Em breve artigo que versa sobre a interpretação conforme a Constituição, o
especialista em Direito Constitucional Julio de Melo Ribeiro é assertivo ao afirmar que
"não basta que a letra da lei permita várias interpretações. É mister que não se deturpe a
finalidade claramente reconhecível da norma" 3 . No presente caso, é possível contestar a
existência real de "lacuna"no ordenamento, tendo em vista que o legislador constituinte
faz-se claro diante da matéria, eliminando a necessidade de interpretação (in claris non fit
interpretatio).
Desta prática frequentemente identificada pela doutrina como "Poder Judiciário
em desempenho de função atípica legislativa", observa-se feliz paralelismo com o conteúdo
desenvolvido na disciplina DIR213 - Ciência Política, cabendo reflexão e discussão sobre
excessos no desempenho de funções atípicas pelos poderes. Estaria o controle de consti-
tucionalidade sendo utilizado como instrumento legislativo pelo STF, dados a eficácia
erga omnes e efeito vinculante de suas decisões? Até que ponto a concepção moderna de
um Judiciário que supera a mera bouche de la loi respeita o princípio da separação dos
poderes? Tendo em vista a clara compatibilidade do pedido nas ações com os princípios
constitucionais de liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, existiria caminho
3
RIBEIRO, J. de M. Interpretação conforme à Constituição: A lei fundamental como vetor hermenêutico.
3. ed. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 2009. Acesso em: 12 de abril de 2018.

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alternativo que permitisse o reconhecimento legal da união homoafetiva pelas vias do
Poder Legislativo em sua função típica de legislar, de modo a não afrontar a separação dos
poderes?

Referências

BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. Acesso em: 13 de abril de 2018. Citado na página 2.

ESTADUAL, P. E. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 132.


Rio de Janeiro, 2008. Acesso em: 13 de abril de 2018. Citado na página 2.

RIBEIRO, J. de M. Interpretação conforme à Constituição: A lei fundamental como vetor


hermenêutico. 3. ed. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 2009. Acesso em: 12 de
abril de 2018. Citado na página 4.

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