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Breve análise do Recurso Extraordinário 646.

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O acórdão analisado se trata do Recurso Extraordinário 646.721, julgado pelo


STF, tendo como recorrente São Martin Souza da Silva, e recorrida Geni Quintana,
em contraposição ao desprovimento do recurso realizado pela Oitava Câmara do
TJ/RS. O recurso se originou de uma ação que versava sobre decisão de partilha
em um processo de inventário.
No recurso julgado pelo TJ/RS, foi afastada a aplicação do artigo 1.829,
incisos I e II do Código Civil, na situação de união estável, sob o argumento de que a
Constituição Federal não iguala os institutos casamento e união estável. Portanto, o
Recurso Extraordinário 646.721 foi interposto no intuito de modificar o referido
entendimento.
O presente acórdão está dividido nas seções: ementa, descritivo breve do
acórdão, relatório, subseções individuais para os votos dos ministros, proposta de
tese, voto sobre a proposta, e extrato da ata contendo a decisão.
No voto do Ministro Marco Aurélio, relator do acórdão, ele argumenta que não
cabe equiparação pelo simples fato de haver dois institutos diferentes mencionados
na Carta Magna. O exemplo que ele cita é a previsão constitucional de facilitar a
conversão de união estável em casamento, que já comprovaria a distinção
conceitual dos institutos.
Ele traz um argumento alheio que chama a união estável de “casamento
incompleto” e “instituição meio”, enquanto o casamento seria a “instituição fim”,
ilustrando também com o artigo 1726 do Código Civil, que ao considerar a
conversão de união estável em casamento, traça um limite conceitual dos dois
institutos, decretando assim a distinção entre eles. O ministro Marco Aurélio também
compara o número de artigos de lei que contemplam o casamento com o número
pequeno de artigos que versam sobre a união estável, e admite que a união estável
também é digna de proteção, mas uma proteção diferenciada em razão das
particularidades de cada instituto.
Ainda, o referido Ministro afirma que não cabe realizar juízo de valor quanto
às distinções de aplicação da sucessão para companheiros e cônjuges, que não
deve ser considerado “pior” o companheiro(a), integrante da união estável, só ter
direito ao patrimônio herdado para cuja aquisição tenha contribuído, enquanto o
cônjuge herda os bens particulares do falecido, se não tivesse direito à meação.
Ainda, ele assume que ao igualar os dois institutos, ocorre uma violação à
autonomia dos integrantes do relacionamento, que escolheram em vida o instituto
familiar conforme suas preferências e cientes das consequências sucessórias,
representando também um desrespeito ao integrante falecido, por não mais poder
se manifestar sobre a alteração unilateral dos efeitos do regime de bens, com base
na referência doutrinária de Miguel Reale. A insegurança jurídica também é
produzida na equalização dos dois institutos discutidos, estimulando os casais a
manterem apenas união estável ou dissolverem ela, sob o temor dos efeitos
sucessórios, podendo estimular até mesmo a solidão como escolha, imputando ao
STF a infelicidade das pessoas.
Por fim, Marco Aurélio declara constitucional o artigo 1790, votando pelo
desprovimento do recurso extraordinário. Quanto ao fato de versar sobre uma união
estável homoafetiva o recurso, o ministro afirmou que o gênero dos integrantes não
está sob análise, apenas os efeitos sucessórios sobre o instituto da união estável em
geral.
O Ministro Luís Roberto Barroso teve seu voto vencedor, destacando
primeiramente que a questão da homoafetividade na união estável já tem
entendimento consolidado assegurando a equiparação à união estável heteroafetiva,
dispensando assim análise deste pormenor no recurso em debate. O ministro fez
menção a duas leis sucessoras da Constituição de 1988, a Lei 8.971/94 e a Lei
9.278/96, que faziam equiparação sucessória da união estável com o casamento, e
alegou que o novo Código Civil vigorou a partir de 2003, porém foi estruturado nos
anos 70, antes da Constituição que vigora.
Assim ponderou Barroso: considerando que as questões sobre união estável,
presentes nas leis citadas, foram elaboradas conforme o desenvolvimento da
sociedade contemporânea, e promoveram maior visibilidade e legitimidade da união
estável, acompanhando as atualizações dos institutos familiares, e assim buscando
ampará-los, é incoerente interpretar como constitucional o artigo 1.790 do Código
Civil. O Código Civil tem sua construção baseada em conceitos ultrapassados no
Direito de Família dos anos 70, posteriores aos avanços constitucionais, e adota,
nas palavras do Ministro, uma hierarquia entre os tipos de família, profundamente
oposta aos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana
e da vedação ao retrocesso.
Em sua tese, Barroso explicita que, se tratando de uma união estável de
duração de quarenta anos, entre dois companheiros, como no caso concreto em
análise, é constitucional o companheiro sobrevivente ser concorrente na sucessão
com a mãe do falecido, devendo reivindicar seu direito de metade da herança. E
aplicando o artigo 1790, ocorreria uma desvantagem injusta, como se o
companheiro (união estável) fosse menos digno que o cônjuge (casamento),
determinando como direito do companheiro apenas um terço do patrimônio que ele
tenha ajudado a conquistar, expressando um retrocesso ultrajante frente aos direitos
já conquistados após a Constituição de 1988, como é possível extrair também das
leis anteriormente mencionadas.
Em contraposição ao argumento do Ministro Marco Aurélio sobre a violação
da autonomia após a morte do companheiro, quanto à escolha de instituto familiar
em vida, Barroso destaca que o casal que integra a união do caso concreto discutido
não tinha a opção de se casar na época, por ser homoafetivo, então não
constituíram casamento apenas por falta de opção.
Outra contraposição feita por Barroso refutou o comentário do Ministro Marco
Aurélio sobre a conversão da união estável em casamento: o último alegou que essa
conversão já demonstrava a impossibilidade de equiparação por reconhecê-los
como dois institutos distintos, e o primeiro afirmou que a conversão serve apenas
para conferir segurança jurídica, mas de forma alguma estabelece uma hierarquia de
institutos familiares ou distinção absoluta entre eles. Barroso aludiu que tal
hierarquia entre modelos familiares foi veemente combatida pela presente Corte na
ADI 4.277 e na ADPF 132.
Desta forma, o Ministro Barroso votou pelo provimento do recurso
extraordinário, determinando inconstitucional o artigo 1790 do Código Civil,
aprovando a aplicação do artigo 1829, do mesmo diploma legal, também à união
estável. Feita a ressalva quanto às partilhas julgadas ou acordadas antes da
presente decisão do STF, que não sofrerão os efeitos desta.
O Ministro Luiz Fux, em seu voto, também relembrou a ADPF 32 com o
sentido de reforçar o reconhecimento de todas as uniões familiares, incluindo as
uniões homoafetivas, votando pela inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código
Civil, divergindo do Ministro Marco Aurélio e concordando com a manifestação do
Ministro Luís Roberto Barroso.
O Ministro Alexandre de Moraes reconheceu a distinção entre união estável e
casamento, elucidada pelo Ministro Marco Aurélio, mas argumentou que a união
estável, na prática, funciona como um casamento, citando os ensinamentos do
Professor Álvaro Vilaça.
A ênfase do seu posicionamento foi na aplicação da proteção à família de
forma igualitária como papel do direito sucessório, através do princípio da
solidariedade e do princípio da igualdade. O Ministro acrescentou que privar o
companheiro da herança - considerando que cultivou uma união estável de 40 anos
- apenas por não ter tido a oportunidade de constituir um casamento, representa
uma violação a estes princípios fundamentais à família.
Em sua fala trouxe, como Barroso, a violação à proibição ao retrocesso,
observando que o atraso na aprovação do Código Civil instituiu conceitos antiquados
ao entrar em vigor, contraditórios às Leis 8.971/94 e 9.728/96, mais recentes e
socialmente atualizadas quanto à união estável. Deste modo, solicitou a
inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, e o provimento ao recurso
extraordinário.
Edson Fachin também se ateve ao entendimento de que o pluralismo familiar
deve ser reconhecido e respeitado de forma una, símbolo do conceito de família, e
enfatizou que esse reconhecimento é consolidado nos âmbitos de doutrina e
jurisprudência. Fachin argumentou que não cabe, em consonância com a
Constituição, admitir hierarquização dos tipos de família, pois as diferenças
existentes em suas formas não autorizam distorção discriminatória, isso
caracterizaria um julgamento moral sobre os modelos de família, de acordo com o
ministro.
Ele também ilustrou sua fala com o princípio eudemonista do artigo 226,§ 8º,
da Constituição, que dispõe que a aplicação da proteção à família é direcionada a
todos os integrantes dela, o traduzindo na exigência de não tratar indivíduos em
situações iguais – integrantes de uma família – de forma diferente, e alegou que o
único ponto em que casamento e união estável se diferem é na formalidade, no
registro. Fachin explicitou que quando o cônjuge é o sobrevivente, em concorrência
com descendentes comuns, possui a garantia da quota mínima de ¼ da herança, já
quando o sobrevivente é companheiro, na configuração de união estável, não possui
essa garantia mínima. Na concorrência com descendentes apenas do falecido, o
companheiro também tem direito à quantia inferior em relação ao casado.
Sobre a concorrência com ascendentes, o ministro destacou que em todas as
hipóteses o companheiro de união estável sempre terá apenas 1/3 dos bens
adquiridos durante a união, já no casamento, o sobrevivente se concorrer com um
só ascendente pode receber metade, e sobre toda a herança, não apenas os bens
adquiridos durante o casamento. Na inexistência de ascendentes, o herdeiro
universal é o cônjuge sobrevivente, já ao companheiro restam apenas 1/3 dos bens
adquiridos durante a união, os demais bens e os outros dois terços se destinam aos
parentes colaterais.
Fachin questiona o motivo da distinção sucessória cruel explicitada, partindo
do ponto de vista que um casal de união estável e um casal que constituiu
casamento se amaram e se respeitaram da mesma forma. Assim, ratificou o
entendimento dos Ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Luiz Fux,
classificando o artigo 1.790 do Código Civil como inconstitucional, e pedindo o
provimento do recurso extraordinário.
A Ministra Rosa Weber votou no mesmo sentido, para que fosse provido o
recurso extraordinário, fazendo alusão ao Recurso Extraordinário 878.694.
O Ministro Ricardo Lewandowski acompanhou o voto do Relator, Ministro
Marco Aurélio, alegando que no artigo 226, §3º, da Constituição, existe clara
distinção entre os dois institutos, principalmente em suas formalidades, quais sejam:
na invalidação, na dissolução, no regime patrimonial e sucessório, justificando a
forma diferenciada que se apresenta no Código Civil. Desse modo, negou
provimento ao recurso.
A Ministra Cármen Lúcia se manifestou favorável à igualdade dos tipos de
união, votando para o provimento do recurso e para a inconstitucionalidade do artigo
1.790 do Código Civil. A ministra, em seu voto como juíza vogal, inseriu o relatório
da tramitação do recurso extraordinário, nele constou o requisito preenchido de
repercussão geral, vinculado à questão sucessória dos casais homoafetivos em
união estável, e elencou no relatório a decisão do recurso originário que estabelecia
a aplicação do artigo 1.790 do Código Civil na situação, bem como a sugestão de
desprovimento da Procuradoria-Geral da República, e a decisão da ADPF 132.
A Ministra, por fim, remeteu-se aos fundamentos apresentados pelo Ministro
Luís Roberto Barroso quanto à involução estabelecida pelo Código Civil no direito de
família, referente à união estável, dando provimento à tese que declara a
inconstitucionalidade do artigo 1.790, determinando que o companheiro integrante
de união estável homoafetiva é amparado pelo disposto no artigo 1.829 e 1.837 do
mesmo Código.

Quando a Constituição prevê a facilitação da conversão em casamento, ela


atua em prol dos institutos familiares sem discriminação entre eles, se permite a
conversão de união estável em casamento, é evidente um caráter de proximidade e
semelhança entre os institutos, se fossem institutos com distinções profundas, não
faria sentido a Carta Magna assegurar a conversão, não haveria interesse em
oferecer maior segurança jurídica aos casais dispostos a formalizar a união.

Como exaustivamente argumentado pelos Ministros que contribuíram para o


provimento do recurso, os casais que vivem em união estável diferem do matrimônio
apenas pela certidão de casamento, mas dividem um lar em comunhão, alguns
possuem filhos, convivem como se em um matrimônio estivessem. Portanto, uma
postura interpretativa rigorosa e excludente da legislação pátria, que favorece o
distanciamento entre os modelos de família, vai contra os alicerces da Constituição
de 1988, que buscam promover a legitimidade do pluralismo familiar.

Os ditames constitucionais existem para proteger os cidadãos e promover


condições de vida dignas e satisfatórias, a dignidade compreende o
desenvolvimento e o amparo das entidades familiares. A constituição de família é
uma necessidade que acompanha a humanidade desde seus tempos primitivos,
obstar o direito sucessório de famílias apenas formalmente diferentes do casamento
é inconcebível. A diversidade se mostra cada vez mais presente na sociedade,
devendo ser recepcionada sempre em favor do desenvolvimento humano, conforme
o preâmbulo da Constituição Federal.

A presente resenha é indicada para operadores do direito e estudantes da


área, e demais interessados no Direito de Família e no Direito Sucessório.

Este acórdão foi presidido pela Ministra Cármen Lúcia, e teve como Relator o
Ministro Marco Aurélio, e como Redator o Ministro Luís Roberto Barroso, estavam
presentes os ministros: Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski Luiz Fux, Rosa
Weber, Edson Fachin e Alexandre de Moraes.

Blenda Monteiro Freitas, acadêmica do Curso de Direito da UNICNEC.

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