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HATSHEPSUT: A MULHER FARAÓ ESQUECIDA

Helayne Cândido

África: Este continente cheio de mistérios, enigmas e culturas a


serem conhecidas e por muito tempo explorada, destruída e apagada
de nossas memórias, antes mesmo de conhecê-las, possui uma
personagem de profunda personalidade, que além de desempenhar seu
papel de esposa, foi uma regente faraó. Esta mulher se chamava
Maatkara Hatshepsut (1504 – 1483 a. C), e viveu na região onde hoje
denominamos de Chifre da África, nas terras do Punt (nas
1
proximidades da atual Somália) e governou num período de
aproximadamente vinte e dois anos. Não é, seja como for, uma área
homogênea, seja geográfica, linguística, ou culturalmente, e se pode
encontrar ali tanta variação quanto em qualquer outra das grandes
massas do mundo. (SHINNIE, apud HARRIS, 1993 p. 446)
O que se pretende é conhecer um aspecto da história africana e
buscar compreender as relações do Egito, parte integrante da África
que nos é apresentada desde a mais tenra idade, como não fazendo
parte da mesma, enfatizando o papel que a mulher desempenhou nesta
sociedade, focando nosso olhar para Hatshepsut.
Sem nos aprofundarmos numa discussão de gênero, o foco desta
pesquisa é elaborar um conhecimento sobre esta mulher que viveu
num período que, embora as mulheres possuíssem certa liberdade,
autonomia e alguns direitos, elas viviam num mundo muito agressivo,
até mesmo cruel. Hatshepsut foi aquela que se legitimou como faraó,
dando autenticidade para sua condição de deusa terrestre. Cargo que
na maioria das vezes era ocupado por homens, sendo que no Reino
Antigo, [...] Quanto às estruturas governamentais, sob o Reino Antigo o
faraó era o mais absoluto dos monarcas, adorado como um deus e visto
como suprema autoridade religiosa, militar, civil e judiciária 2
(CARDOSO, 2004 p. 55).
Muitas foram as mulheres que exerceram papel de comando
nesta época, todavia realizavam um papel figurativo, geralmente
enquanto seus reis estavam ausentes. Hatshepsut foi além!
Considerando que ela abandonou sua imagem feminina sedutora e
provou que uma mulher pode exercer um papel de comando, tão bem
quanto um homem. Para isso adotou o uso de calças e barba postiça,
costume esse adotado por todos os faraós, tendo um significado
parecido com uso da coroa. Estudá-la é desmistificar essa visão de
usurpadora que lhe conceberam, com um juízo precoce graças a sua
condição de mulher.
[...] Hatshepsut não mais podia assumir as funções
daquela que devia despertar os ardores do deus.
Seja desde essa época, ou antes, no ano 7 do
reinado, data sobre a qual não há mais equívoco a
respeito da completa tomada de poder da soberana,
a partir de então ela foi obrigada a modificar seu
comportamento. Sacrificou em definitivo e
oficialmente seu aspecto inicial e deixou de agir em
público como uma mulher. Teve que se conduzir,
em todas as ocasiões, como uma faraó.
(NOBLECOURT, 1994 p. 161)

Maatkara Hatshepsut nasceu na região de Tebas, no fim do


reinado de Amenotepe I, que não possuía descendente e o pai de 3
Hatshepsut, Tutmósis I, foi designado seu sucessor. Este, por sua vez,
expandiu seu império até o Rio Eufrates, na Mesopotâmia, como nunca
antes havia acontecido. Ao falecer, Hatshepsut tornou-se sua sucessora
direta, visto que seus irmãos estavam mortos. Porém seu pai havia tido
um filho com uma das mulheres de seu harém, o que o tornava meio -
nobre. Então, Hatshepsut, sendo descendente direta do grande faraó
Tutmósis I, e possuindo o sangue real, casa-se com seu meio-irmão,
Tutmósis II, aos 17 anos de idade. Aproximadamente 4 anos depois,
seu marido e irmão acaba falecendo, tendo como seu herdeiro um
menino fruto de um relacionamento com uma de suas concubinas. O
menino não poderia assumir o reino, pois ainda era uma criança.
Então, Hatshepsut finalmente assume o governo, herdado de seu pai,
na época do ouro. Ela tornou-se regente do reino em razão da
minoridade do novo Tutmósis: esse é o ponto de partida de sua grande
aventura. (NOBLECOURT, 1994 p. 158)

4
Figura 1: Hatshepsut

A rainha Hatshepsut, a de nobre de busto, (NOBLECOURT, 1994


p.155) enquanto esteve no comando, dedicou-se ao embelezamento do
Egito, realizando grandes construções, restaurando antigos templos,
pois o raciocínio egípcio se baseava na acumulação de exemplos
concretos, não em teorias gerais (CARDOSO, 2004 p.83) para legitimar
seu reinado e também cuidou da educação de Tutmés II, que deveria
ter entre quatro ou cinco anos quando seu pai faleceu, preparando-o
para ser o próximo governante, no templo de Amon. Vale ressaltar que
[...] nos blocos de quartzito da capela da Barca consagrada a Amon por
Hatshepsut, mostram-nos em todo caso, a rainha em companhia do
jovem Tutmósis [...] (NOBLECOURT, 1994 p. 160) Seu reinado foi
marcado por um período de paz e prosperidade econômica. É
interessante salientar que talvez este tenha sido o período em que o
Egito possuía dois Reis: Hatshepust e Tutmés III (1490 – 1468 a.C.),
pois em várias esculturas eram reprozidos os dois sempre juntos.
Durante os sete primeiros anos, o nome de Tutmés III era sempre
utilizado em decisões do governo. Desde então, Hatshepsut se
proclama rei-feminino, visto que para o pensamento egípcio não
existiria uma rainha reinante. (BAKOS, 2012 p. 24) Ou seja, Hatshepsut
seria aquela que estava cuidando, zelando, organizando e 5
administrando para aquele que um dia seria seu sucessor, [...] uma
grande rainha que, por toda parte, como se pode ver, reservara um
lugar de honra ao jovem rei Tutmósis. (NOBLECOURT, 1994 p. 171)
Tal beleza em suas construções pode-se ser verificada na
seguinte descrição:

Dezenas de esfinges, com o rosto de Hatshepsut


pintado de amarelo, bordejavam o caminho desde o
canal que vinha do Nilo até o pátio inferior. É
preciso reconhecer nessa via de acesso triunfal, que
os gregos chamaram de dromos, uma inovação da
soberana, da qual seus sucessores se apoderaram e
continuaram em seguida. Sete pares de esfinges
com juba de leão flanqueavam a aleia central do
pátio, guarnecido de pessegueiros, tamareiras e
palmeiras, onde bacias escavadas eram destinadas a
receber libações de leite, em determinados ritos.
(NOBLECOURT, 1994 p. 171)

Logo nos primeiros anos de seu governo, providenciou para que


pessoas de sua confiança ocupassem cargos importantes e todos
aqueles que dela não mereciam credibilidade, tratou de afastar. Era
uma mulher bonita e inteligente e quando se sentiu legitimamente
forte, proclamou-se faraó, assumindo os atributos masculinos de sua
posição, mas não se dizia “toda-poderosa”. 6
Os anos que se seguiram afirmaram a autoridade de
Hatshepsut, descrita por Ineni, sendo que grande
parte da Corte e do país devia reconhecê-la, em
razão de suas origens e também, por certo, de sua
personalidade e discurso brilhante e persuasivo.
(NOBLECOURT, 1994 p. 159)

Com a ajuda de seus sacerdotes, que podem ter recebido muito


ouro por isso ou pelo simples medo dos deuses, ela intitulou-se filha do
Deus Amón – Rá, que teria estado com sua mãe, representado por
Tutmés I, consolidando assim seu poder real legitimado pelo
consentimento dos deuses. Percebemos então, a forte influência da
religião nos assuntos referentes ao estado, visto que talvez, Tutmés III
pudesse evocar alguma espécie de revolta. Mas isto não aconteceu.

Para os egípcios, o caráter divino dos reis


transmitia-se pelas mulheres: era preciso que o
herdeiro fosse filho não só do rei, mas também de
uma princesa de sangue real; daí os frequentes
casamentos de faraós com suas irmãs e meias-
irmãs, e ocasionalmente com suas próprias filhas.
Quando o novo rei era filho de uma esposa
secundária, ou de fato um estranho à linhagem real,
devia casar-se com uma princesa de sangue. Ao
falharem os expedientes normais, podia ocorrer a 7
legitimação por ficção religiosa: um oráculo de deus
Amon; ou então, afirmação de que o deus teria
pessoalmente gerado o soberano em sua mãe
terrestre (teogamia). (CARDOSO, 2004 p. 62)

Figura 2: Imagem de Hatshepsut violada


A preocupação da rainha Hatshepsut era de manter a ordem no
seu reino e fazê-lo respeitado, não apenas com suas ações e decisões,
mas restaurando e construindo monumentos, podendo-se dizer, de
maneira pedagógica, para as gerações futuras, eternizando assim sua
história, de seu reinado e de seu povo.
Não há relatos de que Hatshepsut tenha se casado novamente,
mas isso não significa que ela não tenha tido um companheiro. Seu
nome seria Senenmut e possuía cargos em funções administrativas e
religiosas. Seu dom para a arquitetura é inegável, tamanha a beleza do 8
templo construído em Deir el-Bahari. Vale salientar que

Os antigos egípcios não tinham, como nós, uma


noção da arte como atividade que se autojustificava:
arquitetos, escultores ou pintores viam-se como
funcionários ou como artesãos que produziam
objetos funcionais para o uso religioso, funerário ou
de outro tipo. (CARDOSO, 2004 p.99)

Pode-se afirmar que Senenmut foi a segunda maior


personalidade durante o reinado da rainha soberana. Sua fidelidade
parece ter sido total. Ligado a todas as suas realizações, ele
visivelmente lhe dedicou muito respeito e uma quase devoção.
(NOBLECOURT, 1994 p. 163) Em todas as suas obras, encontrava uma
maneira de marcar o nome de Hatshepsut, mesmo que fosse de
maneira disfarçada, com a criptografia, a arte de escrever por meio de
abreviaturas ou de sinais, para atiçar a curiosidade dos que ali se
aproximassem e também como forma de proteção. Sobre Senenmut
encontra-se a seguinte descrição:

Tendo obtido a confiança do Palácio, desde


Tutmósis II, bem depressa ele foi recompensado
com cargos de extrema importância; porém, antes
de tudo, ele se declarava responsável por todos os
templos de sua senhora, do que ele parece ter tido
mais orgulho. (NOBLECOURT, 1994 p. 162) 9
Senenmut teria sido um grande companheiro, guardião e
protetor da história de Hatshepsut, pois, além de elaborar magníficas
obras tinha uma tática específica para ocultar imagens que passariam
despercebidas e consequentemente, não eliminadas.
10

Figura 3: Senenmut

Hatshespsut teria tido uma filha chamada Nefêrure que teria


morrido por volta do ano 14. Senenmut, talvez o pai da menina, tratou
de representá-la em suas obras e indiretamente marcar sua presença
na vida dela:
Ela usa o longo vestido moldado da época e, com o
ureu na fonte, está toucada com as duas altas
plumas de sua função sacerdotal. Seu intendente,
Senenmut, está em pé atrás dela e segura um
grande leque. (NOBLECOURT, 1994 p. 183)
Ela teria sido enterrada próxima à sepultura que estava sendo
preparada para sua mãe, a rainha soberana. Vale ressaltar que o
próprio Senenmut providenciou uma autorização real para preparar
uma sepultura para si, em Deir el-Bahari. As três pequenas peças dessa
nova sepultura não foram terminadas, mas pode-se ver no muro,
Senenmut em atitude de grande respeito dos nomes de Hatshepsut.
(NOBLECOURT, 1994 p. 184)
A história da concepção da rainha é relatada em seu templo
funerário em Deir el-Bahari e descrita de maneira ímpar: o relato é de
que sua mãe Amósis estaria em um palácio real sob a observação do 11
deus Amon-Ra. Este toma a aparência de Tutmés I, e os dois tem
relações sexuais e no meio de um aroma enibriante, Hatshepsut é
concebida, E o deus Amon-Rá salienta que ela dará a luz à uma menina
que governará o Egito. Os sacerdotes imaginavam que se o deus Amon-
Rá não concordasse com isso, algo de ruim aconteceria e, no entanto, o
período de reinado de Hatshepsut foi de muita tranquilidade,
entendida como um sinal dos deuses. Ela foi a primeira rainha a fazer
uso da teogamia para legitimar seu poder como faraó. No Egito, o faraó
se tornava um deus após a sua morte sendo assim cultuado.
Segundo Noblercourt, p.150, as evidências de que essa rainha
realmente existiu foram encontradas no ano de 1858, quando Auguste
Mariette encontrou no templo de Deir el-Bahari expressões em relevo
do que teria sido a expedição à região de Punt.

12
Figura 4: Templo Del el-Bahari

O lugar de repouso da múmia da rainha Hatshepsut, foi escolhido


por ela mesma e seu desejo era de ser inundado no Vale dos Reis, local
esse de sepultamento de vários reis. A descrição do local diz que é um
ambiente de difícil acesso, onde até mesmo a respiração se torna difícil.
No sétimo ano de seu governo ela decidiu onde repousaria seu corpo e
pediu para que se iniciasse a obra, que durou cerca de nove anos, para
que se alcançasse o local determinado por ela. Porém, ela não chegou a
ocupar o belíssimo local funerário de quartzito amarelo, destinado
para a Senhora dos dois países (NOBLECOURT, 1994 p.157)
Seu grande sacerdote Hapuseneb foi encarregado
de executar sua vontade: fez empreender, atrás da
falésia onde se recostava o templo, a escavação de
uma sepultura (nº 20 do Vale dos Reis), onde o
trabalho prolongou-se até o ano 16, sem ser
terminado e que, portanto, não traz nenhuma
decoração nem texto algum. A trajetória da galeria
de acesso é um corredor curvo de
aproximadamente 213 m de comprimento, tendo o
arquiteto com certeza tentado alcançar, sem
consegui-lo, a parte de trás do santuário de Deir el-
Bahari. A câmara funerária, retangular, mede mais
ou menos 97 metros de comprimento. No interior 13
foram encontrados dois sarcófagos de quartzito
preparados para a rainha, tendo um dos dois sido
transformado para Tutmósis I. (NOBLECOURT,
1994 p. 173)

O motivo do falecimento da rainha faraó Hatshepsut, teria sido


uma dor de dente juntamente com uma diabetes aguda. A partir disso,
todos foram os esforços para fazê-la desaparecer, assim como sua
memória, por completo da História do Egito. Seria ódio, motivado por
vingança, ou pela autoafirmação do ego de quem assim desejava que
ela sumisse?
Figura 5: Múmia de Hatshepsut 14
Estas questões são difíceis de responder. O que temos são
indícios de que esta pessoa não conseguiu realizar seu plano.
Hatshepsut aparece nas entrelinhas da História e sua trajetória neste
ura 5
mundo está viva e adormecida, pronta para ser acordada, estudada e
repleta de questionamentos. Podendo ser uma história equivalente a
de muitas mulheres nos dias de hoje, que de todas as formas abrem
mão de alguma coisa e/ou assumem papéis que perante a sociedade
são entendidos como não sendo próprios para elas.
Uma das grandes obras que refletem o registro do reinado
da rainha Hatshepsut, foi a construção de dois obeliscos com o registro
de sua vida. Hatshepsut ordenou que fossem construídos quatro
obeliscos no templo de Amun, em Karnak, sendo que dois
desapareceram. Eles eram/são, grandes documentos históricos do
relato da construção do poder de uma mulher egípcia. (BAKOS, 2012
p.27)

[...] Isto foi quando sentei no meu palácio, E pensei


em meu criador,
Que meu coração me levou a fazer para ele Dois
obeliscos de eletro,
Cujo cume atingiria o céu [...] (Extrato do Obelisco
de Hatshepsut, em BAKOS, p. 31)
15

Figura 6: Obelisco de Hatshepsut

ura 5
HATSHEPSUT E A REGIÃO DE PUNT
Muitas foram as tentativas de pesquisas para se localizar o
reinado de Punt. Reino este que estabeleceu relações com o Egito
durante o Novo Império. Há evidências de que se localizaria no Chifre
da África.
Erroneamente, crescemos com a ideia de que o Egito seria uma
grande cultura que derramava suas ideias e práticas aos povos ao seu
redor, que bebiam de seus feitos. Quando na verdade, muitas vezes, era
o próprio Egito quem buscava essa troca. Sendo assim, é possível
vislumbrar uma reciprocidade nas influências, sejam elas comerciais, 16
culturais ou religiosas, com várias regiões e neste caso,
especificamente, com a região de Punt, que segundo a descrição, seria
uma região lindíssima:

Há uma teoria instigante segundo a qual Punt se


localizaria na parte da costa da África que se
estende do rio Poitialeh, ao norte da Somália, até o
cabo Guardafui. Trata-se de uma região montanhosa
com plantações dispostas em terraços que lembram
aqueles representados em Deir el-Bahari e onde as
árvores crescem em abundância, incluindo-se o
bálsamo, de que se extrai o incenso. (ZAYED, 1993
p.110)
As expedições com os navios da Hatshepsut (pesquisas apontam
que eram na quantidade de cinco) eram realizadas pelo mar, e
buscavam comercializar os mais variados produtos, sendo o incenso o
principal deles. Nestas viagens comerciais, além de troca de
mercadorias, houve uma troca de experiências e trocas culturais, que
podemos dizer, influenciou tanto o Egito como os outros povos.

[...] a soberana não somente juntara aos membros


da expedição zoólogos, engenheiros e botânicos,
mas muito provavelmente sábios-sacerdotes do
Nilo (hidrógrafos, em uma palavra, especialistas em 17
irrigação, sempre tão famosos em todo o Egito)
encarregados de estudar o regime das providenciais
chuvas tropicais, que eles pressentiam deverem
condicionar as cheias do rio, inexorável regulador
de toda a vida do Egito. A oportunidade era muito
séria para que uma rainha tão fina e prudente como
Hatshepsut, para quem os conselhos de um sábio
como Senenmut eram autoridade, negligenciasse
um fenômeno de tal importância (NOBLECOURT,
1994 p. 177).

Já uma pesquisa realizada recentemente, na costa do Mar


Vermelho, descobriu vestígios da relação dos egípcios com Punt.
Algumas inscrições foram encontradas e acabaram confirmando a rota
pelo mar, mas sua localização exata, não existe. Os textos egípcios não
localizam claramente a Terra de Deus, se bem que sua própria
denominação destaque o quanto a julgavam venerável e próxima das
origens. (NOBLECOURT, 1994 p. 177)
Então, é possível afirmar que os egípcios transitavam nesta
região de Punt para buscar incenso e outros produtos fornecidos, pois

Há quem afirme que vários faraós tentaram


alcançar regiões mais distantes. Uma expedição a
Punt no reinado de Ramsés III é descrita no papiro
de Harris: (...) cruzou o mar Muqad”. Os navios
alcançaram o sul do cabo Hafum no oceano Índico.
Mas essa rota era bastante perigosa às tempestades
que se abatiam sobre área. Talvez possamos 18
concluir que o cabo Guardafui era, ao sul, o ponto
extremo alcançado pelos navios que se dirigiam a
Punt, e que os limites meridionais de Punt ficavam
próximos docabo Guardafui. Quanto aos limites
setentrionais, pode-se dizer que se foram
modificando com o correr dos séculos. (ZAYED,
1993 p.111)

A região do Punt, a Terra de Deus, pode ser entendida em duas


etapas: a primeira seria o período que antecedeu o reinado da rainha
Hatshepsut. Período este que os egípcios não tinham muitas
informações sobre Punt. Nessa época, eles conseguiam incenso através
de intermediários e estes, reproduziam lendas sobre o lugar, com o
propósito de aumentar o valor dos incensos. A segunda etapa teve seu
início com a rainha Hatshepsut, quando uma frota de navios teria
recebido ordens para trazer as árvores que forneciam o incenso.
Sobre a região de Punt, Zayed, p. 112, descreve:

[...] Punt aparece na lista dos povos vencidos, o que,


em vista da grande distância que separa os dois
países, parece bastante improvável. Exigia-se que os
chefes de Punt levassem presentes ao faraó. Este
encarregava um dos seus subordinados de receber
os chefes e os presentes.

Talvez pudéssemos considerar a amizade nas relações da rainha


soberana com o povo de Punt, pela estreita ligação da terra do incenso 19
e a forma como a rainha foi concebida. Inúmeras foram as árvores
desta planta, levadas ao Egito, a pedido de Hatshepsut, quem sabe
desejando reforçar e estabelecer sua legitimidade na mentalidade de
seu povo, sobre a posição que ocupava.
[...] há uma representação do nascimento divino de
Hatshepsut, em que sua mãe, Amósis, é despertada
pelo aroma do incenso originário da terra de Punt.
Nesse caso, a associação do nome de Punt com a
origem divina da rainha é um indício da amizade
que a rainha do Egito mantinha com Punt, cujos
habitantes adoravam Âmon. (ZAYED, 1993 p.112)

Há uma descrição de que o povo de Punt chegava ao Egito, e


levava presentes para o faraó, fato este que era uma exigência. Havia
relações de comércio pelo mar Vermelho e também por via terrestre.
No final do reinado de Ramsés IV, estas relações chegaram ao fim.
Pelas pinturas encontradas nos templos em Punt, é possível dizer que
não houve registros após o reinado da rainha Hatshepsut.
A esse respeito, Hatshepsut contentou-se com fazer
representar, num dos muros de seu templo, a
partida de Tebas e a chegada a Pount, de onde os
navios retomam a vela, depois de exibir os bens
para arrolá-los na capital, em presença da imagem
de Amon (NOBLECOURT, 1994 p. 178).

HATSHEPSUT, UMA HISTÓRIA ENTRE TANTAS 20


Hatshepsut foi uma rainha preocupada com a prosperidade de
seu reino e criou vínculos comerciais bastante importantes para o
crescimento da região e relativa paz, naquela época. Para
compreendermos as relações existentes entre os povos africanos, neste
caso mais especificamente, do Egito com o resto da África, é preciso
compreender o porquê dos povos, grupos e/ou tribos estabelecerem
tais relações: A necessidade. Este foi o estímulo. O Egito precisava de
produtos africanos, como marfim, incenso, ébano, de modo mais geral,
de madeira. (ZAYED, 1993 p.113)
Muitas vezes imaginamos o Egito como sendo o propagador de
uma grande cultura, quando na verdade deveríamos imaginar que ele
próprio absorveu várias informações de diferentes locais, de uma
maneira recíproca.

O Egito certamente fica na África e, neste sentido, é


africano, mas se situa numa vital encruzilhada
mundial próxima à Ásia Ocidental, e é aberto a
muitas influências que com dificuldade penetraram
mais para o ocidente ou o sul, e desenvolveu,
portanto, uma civilização de muitas formas distintas
daquelas do resto da África (SHINNIE, apud
HARRIS, 1993 p. 445).

Nesse contexto, Hatshepsut tentou expandir seu reinado 21


estabelecendo relações com o comércio, mantendo a ordem para seu
povo, com a já tão repetida vezes, paz e tranquilidade que
caracterizaram seu tempo de governo e ainda zelou para que seu
sucessor crescesse num ambiente de aprendizado, para substituí-la no
futuro. Ele, Tutmósis III, foi o mesmo que ordenou que todas as suas
pinturas e/ou monumentos, fossem destruídos. Arte, que em muitas
delas, ele próprio estava representado, mostrando seu zelo pela
continuidade da família, e de seu governo.
CONCLUSÃO
Tutmósis III [...] Êsse poderoso faraó, cujo nome fazia tremerem
os soberanos de todo o Próximo Oriente [...] (LANGE, 1958 p. 203), foi
um grande militar, possuindo um exército extremamente profissional e
realizando várias conquistas. Era considerado enérgico, sendo também
comparado por alguns escritores como o Napoleão da antiguidade.
Podemos dizer que Tutmósis III assumiu um Egito com bases
sólidas, onde o comércio fluía bem e a paz se apresentava estável. E
assim como Hatshepsut, também construiu templos, onde em suas
paredes retratava cenas de suas batalhas e conquistas, bem como, 22
obeliscos para glorificar e agradecer suas vitórias ao deus Amón-Rá.
Mas havia um problema: o fato de que ele teria herdado seu
reinado de uma mulher. E talvez aqui seja o ponto chave de toda esta
história. Respeitando a individualidade de ambos, enquanto Tutmósis
III é forte, guerreiro, conquistador e homem, Hatshepsut era mulher! A
mulher que solidificou e fortaleceu o Egito através de relações
comerciais que mantinha com o resto da África, e que teve seu governo
marcado pela extrema paz na vida de seu povo, como já foi citado. Ela
possuía uma personalidade forte, sabia o que queria e onde queria
chegar. E era mulher...
E talvez por este fator, muitos historiadores a descreveram,
segundo uma visão egípcia antiga, como ambiciosa, usurpadora, aquela
que ousou se declarar como faraó. Pensamento explicitamente
negativo. É possível arriscar a ideia de que há uma construção no
ideário do que deveria ser um rei (forte, lutador, símbolo de
masculinidade), a frente de seu povo, enquanto Hatshepsut liderou,
sendo mulher e fugindo dos estereótipos estabelecidos pela maioria
dos escritores que claro, eram homens. Através de sua escrita,
formulavam um ideal histórico de memórias, do qual Hatshepsut,
mulher, não poderia fazer parte.
É possível observar esta discrepância na forma como muitas
vezes eles são descritos: enquanto Tutmósis III é aquele poderoso 23
organizador e administrador (LANGE, 1958 p. 203), Hatshepsut é
descrita como

[...] A herdeira do trono, intransigente aferrada às


suas prerrogativas não sossegou enquanto não
adquiriu, como soberana autócrata, todos os
privilégios de seus antecessores masculinos [...]
jovem mulher esbelta, de flórido busto, rosto
pequeno mas enérgico e orgulhoso, sob a diadema
dos faraós. (LANGE, 1958 p. 225)

Ou seja, o fato de sua competência no engrandecimento de seu


governo, preparado para que Tutmósis III o herdasse, não aparece.
Como se suas ações fossem resultado de pensamentos egoístas e
mimados. Afinal, ela deveria se conformar com sua função de esposa e
mãe, e apenas assim seria considerada uma mulher honrada.

Figura 7: Tutmósis III 24


Ora, a mulher egípcia possuía um papel importante nesta
sociedade. Sempre retratada nas paredes dos templos, desde a mais
simples até a mais importante figura, ela sempre se faz presente em
cerimônias de todos os tipos e/ou atos fúnebres. E a forma como são
representadas evidenciam sua função e importância para este (ou para
cada) grupo.
Há uma intenção na maneira de perpetuar as imagens dessas
mulheres juntamente com a importância dada aos traços de sua
feminilidade. Traço este de suma importância para o mundo egípcio,
no entendimento da complementaridade e continuação da família. Nas
diversas obras e pinturas sobre o cotidiano dessas mulheres, elas são
representadas de maneira passiva, inferiores até mesmo no tamanho
em relação a proporção e deslocadas do ambiente, estando a figura
masculina sempre em primeiro plano.
Noblecourt (1994 p. 207), ressalta a importância dada à imagem
do casal, com bases em crenças religiosas e afirma ainda, que não é à
toa essa importância dada a figura da mulher, vindo de um povo que
tinha na deusa Ísis, aquela que seria a irmã cuidadosa, esposa fiel a
amante [...], e percebemos que a mulher então, possuía um papel a
desempenhar nesta sociedade que embora a aceitasse ou a entendesse
como parte fundamental para a solidificação e fortalecimento da 25
família, não poderia passar disto.

O homem é representado como um guerreiro, um


caçador, talvez um mágico. A imagem feminina
traduz o amor, a fecundidade ou a solicitude, ou
seja, a amante, a mãe, a carpideira (ou “enlutada”), a
que provoca o desejo, que dá a vida ou vela o morto
que parte para a sua eternidade. Nesses papéis
essenciais, ela surge como desejável, respeitável e
protetora: ela materializa, seja como for, uma
atração, uma necessidade, um conforto.
(NOBLECOURT, 1994 p. 201)

Portanto, a mulher possuía seu papel, sua autonomia, suas


funções e sua importância para esta sociedade, diante do que a visão
masculina entendia como sendo importante. Ousar sair desses padrões
seria uma aventura e tanto.
E o que teria feito Hatshepsut, para provocar tamanha ira a
ponto de destruírem suas imagens? Além da preocupação com saques
aos túmulos dos faraós, o que mais teria ensejado o sentimento de
fazer com que sua múmia, desaparecesse por completo da história da
humanidade? Talvez o fato de ser mulher... talvez o fato de ser uma
mulher que teve a audácia de se intitular faraó!
Sem cometer qualquer forma de anacronismo, é necessário
perceber que assim como a mulher de hoje, a mulher egípcia 26
participava sim da sociedade no geral, porém na maioria das vezes, em
cargos secundários. Caso realizasse funções fora do ambiente de sua
casa, esta seria uma dançarina, uma cantora ou uma sacerdotisa. Caso
fizesse parte da família real, seria aquela que era a esposa do rei ou a
mãe do mesmo. Embora se julgue que elas tinham os mesmos direitos
jurídicos, constata-se que esse índice é muito pequeno em relação aos
homens. Para SOUSA, (2010, p. 31)

[...] mais do que afirmar a igualdade jurídica das


mulheres em relação aos homens no Egito, devemos
ter mente a seguinte questão: qual era a
possibilidade real das egípcias de exercê-la?
Sua figura era daquela que deveria dar vida ao novo rei e por
fazer parte da nobreza essa tolerância sobre sua pseudo - igualdade
era efetivada. Mulheres que não faziam parte desse grupo, dificilmente
conseguiriam ser reconhecidas nesta sociedade em pé de igualdade
junto aos homens.
Percebemos então, que embora muitos anos tenham se passado,
Hatshepsut talvez tenha sido uma, entre tantas mulheres da história, a
frente de seu tempo. Que não aceitou sua posição em conformidade e
que por isso, na visão masculina, não era uma mulher honrada.
Observar o discurso que se estabelece em torno da vida de 27
Hatshepsut é perceber a anulação de muitos escritores ao fato de que
as mulheres têm sim sua contribuição para a História; e no caso de
Hatshepsut, ela foi a mulher que contribuiu para a construção de uma
das grandes civilizações do mundo: o Egito.
Referencial Bibliográfico
BAKOS, Margaret. O obelisco de Hatshepsut: suporte e imagens de poder.
In SOUZA NETO, José Maria Gomes de. (org.) Antigas Leituras:
Diálogos entre a História e a Literatura. Recife: Edupe, 2012.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense,
2004.
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1969.
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Itatiaia Limitada, 1958.
NOBLECOURT, C. A mulher no tempo dos faraós. São Paulo: Papirus,
1994.
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Egito. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 28
SOUSA, A. A mulher faraó: representações da rainha Hatshepsut
como instrumento de legitimação. Dissertação de mestrado em
História. Niterói: UFF, 2010.
ZAYED, A. E. H. Relações do Egito com o resto da África. In: História
geral da África, II: África antiga / editado por Gamal Mokhtar. – 2. Ed.
rev. – Brasília: UNESCO, 2010.

Lista de figuras
Figura 1: Hatshepsut
http://arqueologiaegipcia.com.br/tag/hatshepsut/
Figura 2: Imagem de Hatshepsut violada
http://arqueologiaegipcia.com.br/tag/hatshepsut/
Figura 3: Senenmut
http://faculty.txwes.edu/csmeller/human-
experience/ExpData09/01AncMed/AncMedPICs/EgPICs/egP_Senenm
ut432.htm
Figura 4: Templo Del el - Bahari
http://arqueologiaegipcia.com.br/tag/hatshepsut/
Figura5: Múmia de Hatshepsut.
http://arqueologiaegipcia.com.br/wp-
content/uploads/mumia_de_hatshepsut.jpg
Figura 6: Obelisco de Hatshepsut
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Flickr_-_Gaspa_-
_Tempio_di_Karnak,_obelisco_di_Hatshepsut.jpg
Figura 7: Tutmósis III
https://picasaweb.google.com/114763305498883712707/EGITO2#5
198215748850748850

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