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Altruísmo ou Egoísmo?

[Comunicação apresentada no Quinto Encontro


de Filosofia Contemporânea da FUNREI. São
João del-Rei, 29 de Maio de 2001]

Mario A.L.Guerreiro
Departamento de Filosofia da UFRJ

De acordo com uma classificação bastante comum, as teorias éticas costumam


ser divididas em altruístas e egoístas. Considera-se por exemplo que as teorias de T.
Hobbes (1968) e de A. Rand (1984) são do tipo egoísta, ao passo que as de A. Smith
(1958) e I. Kant (1952) são do tipo altruísta. Mas, antes de decidir se essa classificação
tem alguma razão de ser, é oportuno responder a duas perguntas: (1) Como se
caracterizam ações humanas egoístas e altruístas? (2) Qual o critério para se passar do
domínio do que é ao que deve ser, mostrando que uma ética altruística é preferível a
uma egoística ou o contrário?
John Dewey sustenta que a oposição altruísmo / egoísmo constitui uma falsa
dicotomi-a na caracterização da ação humana. Assim sendo, essa falsa dicotomia tem de
se estender às valorações positiva ou negativa da moralidade de uma ação e, em um
domínio mais amplo, às classificações das teorias éticas. Se ele tem razão no que diz
respeito à caracterização da ação humana, dificilmente deixará de tê-la no que diz
respeito às referidas valoração e classificação. Mas quais suas alegações para considerar
que esses dois opostos – por suposição mutuamente exclusivos e exaustivos -
constituem na realidade uma falsa dicotomia?
Dewey começa considerando que, quando são tematizadas as noções de egoísmo
e altruísmo, geralmente o que está em jogo é uma tentativa de responder uma questão
básica: “Os indivíduos humanos sempre agem em função dos seus interesses ou às
vezes agem para ajudar ou beneficiar de algum modo os outros?” Indagando de outra
maneira: as ações dos indivíduos estão sempre em função do auto-interesse ou há lugar
para ações desinteressadas? (Dewey, 1997, p. 231).
Do modo como estão colocadas ambas as indagações, elas não estão situadas no
domínio do que deve ser, mas sim no do que é. Desse modo, não seria contraditório se a
dissesse que as ações humanas estão sempre em função dos interesses dos agentes, mas
não é assim que devem ser. Tampouco seria contraditório se b dissesse que algumas
ações humanas são desinteressadas, mas não é assim que devem ser. Disto se conclui
que, de um ponto de vista estritamente ético, o que realmente importa não é a
caracterização das ações humanas como altruístas ou egoístas, porém qual o modo
recomendado como conduta correta e como pode ele ser justificado. [É sempre oportuno
lembrar que a teoria da ação humana lida com questões de facto, ao passo que a ética
lida com questões de jure, pois não procura dar uma resposta para: “Como agimos?”,
mas sim para: “Como devemos agir?”].
De acordo com J. Dewey, uma teoria ética do suposto “tipo altruísta” costuma
eleger o benefício feito ao outro como a forma de conduta mais elevada. Se isto não
exige uma renúncia radical ao auto-interesse, exige ao menos que ele seja posto de lado
ou não levado em consideração em determinadas ações. Por sua vez, uma teoria ética do
suposto “tipo egoísta” costuma eleger a busca da auto-realização como a conduta mais
elevada. Ela costuma rejeitar a ação desinteressada ou ao menos subordiná-la ao auto-
interesse do agente. Para esse tipo de ética, a finalidade última do agente deve ser sua
realização pessoal. Ocorre que, em deter-minadas circunstâncias, a melhor maneira de
efetuá-la consiste em dar atenção às necessidades e aos interesses alheios. (Dewey,
1997, p.231).
[obs. nossa: Um exemplo característico do nosso tempo: gerentes de uma grande
empresa, fazendo o cálculo da relação custo-benefício, chegam à conclusão de que sai
mais barato pagar um plano de saúde para seus funcionários do que arcar com os
prejuízos produzidos por muitas faltas e maus desempenhos decorrentes de
enfermidades do seu pesso-al].
Dewey entende que todas as ações humanas são e devem ser movidas pelo auto-
interesse. O altruísmo é na realidade um “egoísmo disfarçado”(disguised selfishness).
Embo-ra ele não tenha esclarecido o sentido desta última expressão, temos razões para
acreditar que ele tinha em mente todas aquelas ações cuja finalidade aparente é um
benefício prestado ao outro, mas tal fim é apenas um meio para a autopromoção, para o
apaziguamento de um sentimento de culpa ou mesmo para alcançar um interesse próprio
qualquer.
Dewey concede que, na busca da sua auto-realização, um indivíduo vê-se
forçado a desempenhar algumas ações consideradas não-egoístas (unselfish), mas tão-
somente como meios indispensáveis para a consecução dos seus fins. Embora a busca
da auto-realização faça com que o indivíduo aja movido pelo auto-interesse, a teoria da
auto-realização deve ir até de-terminado ponto, além do qual deve ser complementada
por uma teoria da ação desinteressada voltada para o benefício do outro. (Dewey, 1997,
p. 232).
De acordo com Dewey, quando Kant tentou fornecer uma visão substantiva da
moralidade, produziu um problemático dualismo, pois afirmou que um indivíduo deve
agir visando a uma coisa para si e a outra para os outros. Ele deve buscar seu auto-
aperfeiçoamento e a felicidade dos outros. Ele pode, mas não deve, agir visando à sua
felicidade; ele não deve nem pode agir visando à perfeição dos outros. Vale dizer que,
para Kant, cada indivíduo tem de moralizar a si mesmo, pois se trata de uma questão de
sua própria motivação interna.
Para Dewey, o referido dualismo kantiano produz uma estranha e complicada
situação (a strange plight): um indivíduo deve buscar para os outros um bem que, caso
buscasse para si mesmo, tornar-se-ia um mal. Buscar para si mesmo a felicidade é visto
por Kant como um empreendimento egoísta e moralmente condenável, porém buscá-la
para os outros, altruísta e louvável. Devemos convir que, ao menos à primeira vista,
trata-se de uma concepção extrema-mente incongruente. Além disso, Dewey afirma que
Kant não esclareceu satisfatoriamente a razão pela qual a busca da própria felicidade é
considerada um mal e a dos outros, um bem. (Dewey, 1997, p.232). E é oportuno
lembrar que tanto Aristóteles (1956) como Thomas Jefferson (1952), entre outros,
consideravam a busca da própria felicidade um caminho na direção do maior de todos
os bens – o summum bonum – a finalidade última da nossa exis-tência no mundo.
Indo mais longe, Dewey afirma que essa é a base de qualquer teoria ética, que
tenta estabelecer dois critérios distintos para a ação moral, um tipo de teoria que assume
a ação moral como uma combinação de amor próprio racional (rational self-love) e de
benevolência racional (rational benevolence), de tal modo que o indivíduo realmente
virtuoso combina um interesse racional por seu pró-prio bem-estar (welfare) com um
interesse racional pelo bem-estar do outro. Para Dewey, a grande dificuldade envolvida
com essa concepção consiste em en-contrar um Princípio Unificador capaz de
determinar em que ponto deve terminar o interesse por si mesmo e deve começar o
interesse pelos outros. (Dewey, 1997, p.232). De fato, isto está longe de ser uma tarefa
fácil.
Segundo pensamos, a referida demarcação não é apenas um problema para um
determinado tipo de teoria ética, nem somente um problema para a teoria ética. Antes de
qualquer valoração da conduta humana no domínio do dever ser, cabe determinar até
que ponto um indivíduo humano efetivamente age levando unicamente em consideração
seus próprios interesses e a partir de que ponto passa a agir levando em consideração os
dos outros.
As teorias da ação humana que consideram o agente humano egoísta ou altruísta
por natureza - como parecem ser respectivamente os casos clássicos de Hobbes e
Rousseau - mostram-se como radicalismos insustentáveis, assim como as que
consideram o agente inteiramente racional – como é o caso da teoria da decisão baseada
na teoria dos jogos de von Neumann e Morgenstern (1944) - ou inteiramente irracional
– como é o caso da psicanálise, entre outras visões (Tuchman, 1984, pp. 3-36 e Schick,
1997). Desse modo, as verdadeiras questões são: Quais devem ser os limites da ação
interessada e da desinteressada? Quais devem ser os limites da ação racional e da
irracional? [Dada a complexidade dessas questões, não temos a menor intenção de
tematizá-las no presente trabalho].
Para Dewey as questões do Princípio Unificador e da referida demarcação são
questões ociosas, a menos que fique bem esclarecido o que se deve entender por self, de
modo a se alcançar uma melhor compreensão de expressões tais como self-interest
(auto-interesse ou interesse de si próprio), self-realization (auto-realização ou
realização de si próprio) e self-love [ palavra ambígua, que tanto pode ser traduzida por
como “auto-estima” ou “amor próprio” – termos considerados sinônimos – como por
“egoísmo” e “narcisismo” – termos que não são sinônimos, pois apresentam acepções
marcadamente distintas das dos dois pri-meiros]. Cabe lembrar que o narcisismo se
caracteriza por excessiva admiração de si mesmo e por uma superestimação das próprias
qualidades, geralmente acompanhada por uma subestimação das dos outros. O egoísmo,
por sua vez, comparte uma feição importante com o narcisismo: uma forte concentração
sobre si mesmo e sobre os próprios interesses, que difi-culta bastante ver os outros e os
interesses dos outros.
Assentado isto, Dewey coloca uma indagação crucial para sua problemática: O
self (o próprio eu, o si próprio) tem uma existência dada e/ou pressuposta ou,
alternativamente, só existe à medida que age? Ele entende que, caso se considere estar
em jogo esta última alternativa, a dicotomia egoísmo / altruísmo pode ser desfeita
mediante uma reconsideração de toda a questão (Dewey, 1997, p. 232). Ele considera
que temos de dizer que um indivíduo sempre age como si mesmo (as himself), mesmo
quando procura simular uma conduta alheia. Mas isto é diferente de dizer que ele age
para si mesmo (for himself) como um fim.
O caráter questionável da concepção de que um indivíduo sempre age para si
mesmo tem a mesma origem do caráter questionável da doutrina da auto-realização ou
realização de si mesmo (self-realization). Esta assume o pressuposto de que um
indivíduo já está aí e qualquer coisa que ele faça, a faz como um meio para si mesmo
visando a um fim externo. Concebida assim, a relação entre o ato e o próprio eu (self) é
externa. O próprio eu é o verdadeiro fim, não importando qual possa ser o suposto fim,
e o ato desempenhado por ele é mero meio para o bem-estar ou a realização do
pressuposto self. (Dewey, 1997, p. 232).
Todavia, Dewey sustenta que, se o self é organicamente idêntico ao ato
(organically identical with the act), então o ato não pode ser mero meio para a
realização ou bem-estar do self. O indivíduo tem de realizar necessariamente o ato,
porque o ato é ele mesmo e ele tem de fazer isto como ele mesmo (and do it as
himself), ou seja: ele tem de colocar todo o seu ser no ato. E isto é bastante diferente de
dizer que o indivíduo age para si mesmo (acts for himself), quer dizer: age visando ao
seu próprio benefício.
Dewey assevera que essa mesma objeção pode ser colocada em relação à noção
de interesse. Há uma determinada concepção segundo a qual a conduta de um indivíduo
é sempre motivada por seu interesse, que controla sempre sua ação. Segue-se daí que o
altruísmo é na realidade um “egoísmo esclarecido” (an enlightened selfishness). Mas,
para Dewey, essa concepção está baseada numa falsa psicologia, e esta consiste no
estabelecimento de uma diferença entre o interesse do indivíduo e a ação deste mesmo.
O interesse é concebido como algo fixo e derradeiro e o ato concebido como um meio
subordinado à consecução do interes-se. Visto assim, o ato é simplesmente um
instrumento. (Dewey, 1997, p.233). Contudo, como já havia sido proposto, o ato se
identifica com o interesse do indivíduo. Seu interesse não é algo separado do ato, de
modo que este o alcança mediante uma polarização na sua direção, porém algo que pode
ser conhecido pela observação do indivíduo em ação. Para todos os efeitos, ele faz o que
faz como seu interesse (as his interest), não por seu interesse (for his interest).
As teorias altruísta e egoísta estão ambas baseadas na já mencionada falsa
psicologia. Elas têm a mesma concepção do self como algo separado do ato
desempenhado pelo agente. Ambas se dão conta da objeção moral podendo ser
endereçada a elas e, por isto mesmo, tentam corrigir sua deficiência mediante a
colocação em cena do self de outro indivíduo. E ele é convocado pela máxima: “Você
não deve agir visando somente ao seu interesse”, ou de modo mais forte: “Você não
deve agir visando ao seu interesse”. Dewey lembra que a dificuldade envolvida com
essa concepção já havia sido sugerida por ele. “Por que razão o self do outro é melhor
do que o meu?”. “Por que razão a finalidade almejada pelo outro é considerada algo
superior à almejada por mim?”. “Por que o self encontrável em qualquer outro
indivíduo humano é superior ao que pode ser encontrado em mim?”. Somos levados a
concordar com Dewey no sentido de que não parece haver nenhuma razão, embora não
o façamos por concordar com o que ele chama de “falsa psicologia”.
Dewey entende que, para manter a coerência, o self tem de ser considerado um
princípio moral ou não-moral. Supondo que seja o caso da segunda alternativa, e ele
seja consi-derado uma finalidade não-moral (nonmoral end), então ele tem de ser assim
considerado onde quer que possa ser encontrado, em mim, em você ou nele. Supondo
que seja o caso da primeira, e ele seja tomado como uma finalidade moral -
independente de onde possa ser encontrado - então o ego e o alter ego se situam no
mesmo nível moral, ou seja: não há como reivindicar a supremacia de qualquer um
deles em relação ao outro.
Se é assim, o que quer que um indivíduo considere ser seu interesse, ele faz. Um
indiví-duo mentalmente são (a sane man) não poderia fazer coisa alguma, a não ser
como seu interesse. Contudo, isto não quer dizer que ele vise necessariamente ao seu
próprio bem como algo a ser alcançado a qualquer custo e, a partir daí, considere
qualquer outra coisa como simples meio para a obtenção da coisa visada. Ao contrário,
isto quer dizer que os problemas morais despontam, porque um indivíduo não sabe a
priori qual seu interesse. Todo o processo moral de deliberação, esforço e desejo é um
processo de descoberta de interesse, através do qual um indivíduo descortina o que ele
considera digno de valor. (Dewey, 1997, p. 233).
Cabe aqui uma objeção: Ora, se um indivíduo não soubesse qual seu interesse,
sua ação seria carente de finalidade. Admitindo ser difícil, se não impossível, conceber
uma ação humana desprovida de finalidade – a menos que seja inteiramente irracional -
como podemos dizer que um indivíduo pode agir sem saber qual seu interesse? Ele pode
se sentir incerto e inseguro a respeito do seu interesse, mas isto é outra coisa.
Entendemos que Dewey tem razão quando se refere ao processo de descoberta,
pois é através da ação moral que um indivíduo pode mudar de interesses e de valores e
estabelecer para si mesmo uma hierarquia de valores em que alguns serão mais valiosos
que outros, em que alguns serão incorporados (e outros rejeitados) à sua axiologia
construída com maior ou menor reflexão voltada para sua atividade prática. [Todavia,
transmutação radical de todos os valores e emergência de um “novo homem” tem um
inconfundível sabor de mitologia e só é levada a sério por pensadores utópicos como
Nietzsche e seus incontáveis acólitos e simpatizantes “pós-modernos”].
Dewey entende que o self está imerso em um processo contínuo de construção.
Assim sendo, ele não pode se construir adequadamente, a não ser nos termos do
conteúdo que ele fornece para a situação particular em que o agente tem de agir. Isto
implica que o self não pode se definir, a não ser nos termos de um todo mais amplo em
que têm de estar incluídos não só situações passadas como também outros agentes.
Desse modo, toda ação tem de ser considerada altruísta, não no sentido de que o outro
seja sua finalidade, mas sim no sentido de que um indivíduo, em busca do que é seu
próprio eu (self) – procurando valorá-lo em termos do ato individual tendo de ser
desempenhado - vê-se obrigado a recorrer aos outros indivíduos envolvidos com a sua
decisão, como condições necessárias para que ela se efetue.
Evidentemente, um indivíduo não vive isolado em uma ilha e, por isto mesmo,
sempre age dentro de um processo de interação com outros indivíduos, mas isto é uma
característica básica da ação humana, não - como quer Dewey – uma característica do
“altruísmo” no sentido próprio do termo. Do modo como Dewey se expressa, ele pode
estar caracterizando coisas diferentes, tais como um pedido de ajuda de um indivíduo a
outro ou a cooperação entre indivíduos. Na primeira alternativa – supondo que o pedido
seja atendido - o agente experimenta um benefício alheio sem beneficiar o outro; na
segunda – supondo que a coope-ração seja eficaz - desponta um benefício mútuo em
uma simbiose humana. Mas qual o critério para avaliar o altruísmo no sentido próprio
do termo em que o bem do outro é a finalidade última da ação? Baseado em que critério
um indivíduo decide se deve ou não ajudar ou beneficiar de algum modo o outro?
Dewey entende que uma alegação improcedente consiste em considerar os
interesses passados e presentes do self do agente como finais e simplesmente dizer: “É
meu dever moral fazer sempre o que posso para os outros e aqui está uma oportunidade
para que eu seja altruís-ta, para que eu mostre para mim mesmo que sou capaz de
realizar um auto-sacrifício” (self-sacrifice). Ele entende que o indivíduo que pensa
assim, e age de acordo com o que pensa, está muito mais voltado para sua auto-
afirmação do que para a prestação de um benefício ao outro. Sem dúvida, há pessoas
que costumam proceder desse modo, mas será que podemos generalizar tal conduta a
todas as supostamente altruísticas? Será que o altruísmo não passa de uma auto-
afirmação revestida de um falso interesse pelo outro? Tais questões tem de ser
cuidadosamente examinadas.
Contudo, Dewey entende que, embora o egoísmo e o altruísmo sejam
aparentemente opostos mutuamente exclusivos e exaustivos, ambos repousam sobre a
mesma psicologia bási-ca, que consiste em supor ser possível definir o próprio eu (self)
sem relacioná-lo com uma situação em que um indivíduo se posiciona em relação ao
outro. De nossa parte, pensamos que isto mostra outra coisa: que o self deve ser visto
sempre dentro de um processo de interação com os outros e reforça a conhecida
afirmação de Ortega y Gasset de que “Eu sou eu mais a minha circunstância”
(Kujawski, 1994, pp.38-40), porém isto não nos parece concorrer para um bom
argumento a favor da idéia de que está em jogo uma falsa dicotomia, como pretende
Dewey.
Para Dewey a maneira correta de encaminhar a resposta consiste em indagar:
“O que sou eu mesmo em relação a esse caso particular ou o que é o outro considerado
do mesmo modo?” Em outras palavras: “O que sou eu tal como identificado na ação ou
o que é o outro tal como identificado da mesma maneira?”. Diante disso, parece que ele
rejeita qualquer tipo de ética normativa em nome da casuística.
Mas será possível aplicar uma casuística como alternativa para uma ética
normativa ou aquela só pode ser bem aplicada como complementação desta? Quase
sempre podemos, e às vezes devemos, abrir exceções para uma regra. Mas isto não
constitui uma rejeição, porém uma confirmação da regra. Não devemos aplicar uma
regra para cada caso, assim como a homeopatia - entendendo que não há doenças, mas
sim doentes – costuma aplicar um remédio para cada paciente. Se esta visão
nominalista funciona ou não no campo da medicina, é algo que não sabemos dizer, mas
estamos certos de que tal procedimento levou a casuística a um completo descrédito
tornando-a sinônimo de casuísmo ou arbitrariedade. W. Lillie, no entanto, assumiu uma
defesa consistente da aplicação da casuística:

Foi afirmado no nosso primeiro capítulo que a casuística é uma


ciência legítima, ainda que extremamente difícil. É uma razoável
extensão do domí-nio da ética examinar como seus princípios
funcionam em circunstâncias re-ais da vida moral. É mesmo vantajoso
para o estudo puramente teórico da ética examinar tais aplicações.
Quando um engenheiro trabalha com materiais reais – aço, concreto,
etc.- os princípios da dinâmica, que ele estudou em seus textos
teóricos, podem se mostrar defeituosos e ele pode ser levado a fazer
novas descobertas teóricas. Semelhantemente, o filósofo moral, ao
aplicar seus padrões e normas a casos reais, pode descobrir que estes
[ padrões e normas] levam a contradições, coisa que sugere uma
revisão dos mesmos. A mais comum objeção a um intuicionismo geral
ou dogmático – como o descrito por H. Sidgwick [em Methods of
Ethics, Livro III] é que as regras descobertas por intuição se
contradizem umas às outras na vida real, e isto leva o filósofo moral a
reconsiderar sua teoria. Se os princípios éticos não são
constantemente testados para verificar como eles funcionam na
prática, o assunto todo [a ética] torna-se uma fantasia de filósofos
distanciada igualmente da vida de homens bons e maus. (Lillie, 1966,
p.225, os itálicos são nossos).

Para Dewey, o verdadeiro critério pode ser encontrado no ego ou no alter ego
em relação à situação particular como um todo. É imprescindível ir além do eu fixo, do
eu dado em ambos os casos, para alcançar um critério para resolver o problema. Caso se
proceda de outro modo, a questão será colocada sobre uma base arbitrária ou
sentimental. Arbitrária, caso se suponha existir um cânone externo capaz de fornecer a
resposta adequada; sentimental, caso permita que os sentimentos experimentados em
um momento particular determinem o que deve ser feito.
Baseado nisso, Dewey considera que a opção entre altruísmo e egoísmo é na
realidade um pseudoproblema, pois resulta em última análise de uma falsa psicologia do
self. Toda ação humana é egoísta no sentido de que o ato se identifica com o self. Toda
ação humana é altruísta no sentido de que todo agente humano, ao se definir em termos
de finalidade, não pode deixar de levar em consideração os outros; tem de definir seu
self sempre em relação aos outros. Apesar de Dewey ter feito algumas observações
extremamente proveitosas, não estamos convencidos de que a referida oposição
constitui, de fato, uma falsa dicotomia.
Ele procurou fundamentar sua alegação no domínio da ação humana, para
posteriormente, tirar conseqüências para a ética. Como vimos, o ponto básico que
permitiu essa passagem do domínio do ser ao do dever ser – embora não tenha incorrido
na falácia naturalista apontada por D. Hume (1978) – se apoiou numa questionável
identidade do self e do seu ato. Há aí ao menos duas objeções podendo ser feitas: (1) Se
o eu próprio fosse idêntico ao ato desempenhado por ele, seria desprovido de qualquer
potencialidade.
Todavia, se - como o próprio Dewey admite – o self está “imerso em um
processo contínuo de construção”, como admitir que ele é desprovido de
potencialidade? (2) Se o eu próprio fosse idêntico ao ato, não poderíamos conceber a
possibilidade de diferentes eus, dotados de formações bastante diferentes, poderem
desempenhar atos que, se não são idênticos, pertencem ao menos ao mesmo tipo - e o
que está em jogo neste contexto não são token-actions (ações singulares) porém type-
actions (ações típicas).
Poderiam ser feitas outras objeções, mas basta dizer que a mencionada
concepção de Dewey é extremamente antiintuitiva. Parece muito mais proveitoso
assumir que, na teoria da ação estão em jogo ao menos seis entidades distintas, que
nenhuma teoria ética pode deixar de levar em consideração:

(1) agentes,
(2) motivos,
(3) circunstâncias
(4) ações desempenhadas pelos agentes
(5) finalidades buscadas por eles
(6) sentidos conferidos por eles às suas ações.

Segue-se que, uma vez recusada a “verdadeira psicologia” proposta por Dewey,
sua alegação da falsa dicotomia altruísmo/ altruísmo – no contexto do dever ser - não
pode ser sustentada do modo como ele tentou sustentá-la. Se-gundo entendemos, a
polêmica entre teorias éticas que defendem a primazia da ação interessada e da auto-
realização pessoal, bem como as que sustentam a primazia da ação desinteressada e da
benevolência, não constitui uma polêmica estéril. Assim sendo, as orientações de
conduta egoísta ou altruísta não constituem uma pseudodicotomia.
Contudo, pensamos que é um grave mal-entendido inferir uma ética do tipo
egoísta diretamente de uma teoria egoísta da ação humana ou inferir uma ética do tipo
altruísta diretamente de uma teoria altruísta desta mesma ação. Supondo que assim se
proceda, cabe falar em uma inadvertida passagem do domínio do ser ao do dever ser, o
que caracteriza a falácia naturalista (Hume, 1985 e Carcaterra, 1969). O que cada tipo
de ética tem realmente de fazer é apresentar justificativas para a sustentação de que
devemos agir visando à nossa auto-realização ou visando ao benefício do outro, ou
ainda tentando conciliar ambos os interesses. Neste último caso, temos de reconhecer
que a exigência feita por Dewey de um Princípio Unificador - apesar da dificuldade em
satisfazê-la - mostra-se algo imprescindível.
Mas há por acaso uma incompatibilidade radical entre a busca da auto-realização
e a ação desinteressada visando ao benefício do outro? Será que o auto-interesse está
sempre em conflito com o bem do outro? Ou será que isto ocorre apenas ocasionalmente
em situações-limite? Damos por assentado que a auto-realização não deve se fazer
mediante a produção de malefícios aos outros, pois, se a preocupação com a integridade
do outro não fosse levada em conside-ração, tudo seria válido para conquistar um
objetivo e os objetivos justificariam os meios, por mais danosos que fossem estes para
os outros. Porém, como não gostaríamos que os outros procedessem desse modo
conosco, somos levados a estabelecer como princípio ético que o limite do interesse de
cada um deve terminar onde começa o do outro – apesar de, em determinados casos, ser
extremamente difícil traçar uma linha demarcatória.
Pode-se alegar que o referido princípio não é motivado pelo altruísmo e por uma
disposição desinteressada, mas não se pode alegar que é motivado pelo egoísmo e pelo
auto-interesse, a menos que consideremos se tratar do egoísmo e do interesse de cada
um e de todos, uma vez que o cumprimento do mencionado princípio é benéfico para
todos e seu descumprimento maléfico para todos. Como propunha Locke (1966), a
liberdade de ação de cada um deve sofrer restrições e estas se justificam em nome da
liberdade de todos.
Devemos entender, no entanto, que a eleição do princípio de se abster da prática
do mal caracteriza uma atitude egoísta, uma vez que estamos todos preocupados em
evitar ou coibir males morais que podem nos atingir pessoalmente? Mas devemos
chamar de “egoísta” um indivíduo que não deseja o mal para si próprio? E será que um
altruísta o deseja? Será que um altruísta deve renunciar completamente ao seu auto-
interesse, mesmo quando está em jogo um legítimo interesse? Caso faça isto, não
deixará de ser altruísta e passará a ser um indivíduo carente de auto-estima? Por outro
lado, não devemos confundir o amor-próprio (ou auto-estima) com o egoísmo e o
narcisismo, que não se caracterizam meramente como preocupação consi-go próprio,
porém como um excesso de preocupação e de admiração por si mesmo, capazes de
impedir alguém de, ao encetar um curso de ação, colocar-se na posição do outro e
indagar seriamente a si mesmo se ele gostaria de ser tratado do mesmo modo como trata
o outro.
Segundo pensamos, o referido deslocamento é algo indispensável, ao menos em
con-cepções éticas que, como a de John Suart Mill (1981), assumem como princípio
ético supremo a rejeição de qualquer ação capaz de produzir dano (material ou moral)
ou mesmo risco de dano (material ou moral) para o outro. O mencionado filósofo
caracterizou o mencionado princípio com a máxima: No harm to others (Nenhum dano
para os outros). Mas, para pô-la em prática, é indispensável estar a todo momento
fazendo o referido deslocamento e indagando a si mesmo: “Eu gostaria que ele fizesse a
mim isto que estou fazendo a ele?”. “Se eu estivesse no lugar dele, eu gostaria de ser
tratado assim?”...
Há quem considere que a ética de Mill é negativista e egoística. Não há dúvida
de que ela é negativista, à medida que não faz nenhuma prescrição relativa ao que
devemos, porém ao que não devemos fazer. Mas pode ela ser considerada egoística,
quando sua preocupação precípua é a integridade física, patrimonial e moral do outro? É
verdade que Mill não emite nenhuma proposição ética dizendo que devemos agir
procurando produzir o bem ou a felicidade do outro e não procurando nossos próprios
bem e felicidade. Caso tivesse feito isto, ele estaria endossando a posição de Kant, que,
como vimos, foi severa e corretamente criticada por Dewey.
Para Mill, não há nada de errado em um indivíduo procurar seu bem e sua
felicidade – ao contrário, isto é o que é esperado dele, para estar de acordo com a
natureza humana, tal como já havia proposto Aristóteles – desde que, ao longo da sua
procura, não produza intencionalmente o mal e a infelicidade alheios. Se não podemos
dizer que a ética de Mill é “altruística” no sentido forte e positivo em que cabe dizer que
a ética kantiana o é, também não podemos dizer que ela é “egoística”, no sentido de se
limitar a enaltecer, pura e simplesmente, a auto-realização, uma vez que a autêntica
realização de um indivíduo só deve ser buscada mantendo profundo respeito pela auto-
realização do outro, por mais diferente e repelente que seja, para ele, o caminho
escolhido pelo outro. Sem a séria adoção desse princípio ético, não se pode por em
prática uma visão de mundo capaz de conviver com a pluralidade de escolhas e de
diferenças entre as pessoas humanas.
Ayn Rand (1991) discordou radicalmente de Dewey, pois não só não considerou
que egoísmo/ altruísmo constituíam uma falsa dicotomia, como também assumiu uma
ousada defesa do “egoísmo”, coisa indicada pelo próprio título do seu livro: The Virtue
of Selfish-ness (A Virtude do Egoísmo). Todavia, considerando o caráter ambíguo de
termos como self-love - que, como vimos, tanto pode ser entendido como “egoísmo”,
“indiferença em relação ao outro” ou como “amor próprio” e “auto-estima”- não
devemos pressupor açodadamente que está em jogo “o culto do eu” tal como proposto e
praticado por filósofos e literatos da época do Romantismo [vide a este respeito a
esclarecedora análise feita por Tucker (1963, pp.33-48)]. Assim sendo, cabe indagar, de
saída, que pretendia exatamente dizer a referida autora com selfishness. Ela própria fez
questão de esclarecer isso na introdução da referida obra:

No uso popular, a palavra “egoísmo” (selfishness) é um sinônimo de


maldade; a imagem que invoca é de um brutamontes homicida que
pisa sobre pilhas de cadáveres para alcançar seu próprio objetivo, que
não se importa com nenhum ser vivo e persegue apenas a recompensa
de caprichos inconseqüentes do momento imediato [obs. nossa:
Temos de reconhecer que há um exagero nas primeiras linhas da
descrição da autora. Pensamos que, de acordo com o uso lingüístico,
“egoísta” costuma ser empregado para qualificar “um indivíduo
inteiramente voltado para si próprio, visando unica-mente à satisfação
dos seus interes-sess e totalmente indiferente aos senti-mentos e
interesses do outro”] (Rand, 1991, p.14).

Rand, no entanto, procura contrastar o uso popular com o significado que,


segundo pensa, pode ser encontrado no dicionário:

Porém o significado exato e a definição do dicionário para a palavra


“egoísmo” é: preocupação com nossos próprios interesses [o grifo é
da própria autora]. Este conceito não inclui avaliação moral; não nos
diz se a preocupação com os nossos próprios interesses é boa ou má;
nem nos diz o que constituem os interesses reais do homem. É tarefa
da ética responder a tais questões. (Rand, 1991, p.14, o grifo é da
própria autora).

Supondo que a definição de dicionário seja de fato a apontada pela autora, não
há dúvida de que a expressão “preocupação com os nossos próprios interesses” abriga
unicamente um sentido descritivo, podendo receber adicionalmente um sentido
valorativo positivo ou negativo, dependendo de como se considera o referido tipo de
conduta. Cabe lembrar que não é de nenhum modo raro a mesma expressão descritiva
receber, de diferentes modos de apreciação, uma valoração positiva ou negativa.
Pedagogas costumam valorar negativamente as expres-sões “ser competitivo” e “ser
agressivo”, mas gerentes de vendas as empregam freqüen-temente com uma valoração
positiva. Mas será que estão conferindo o mesmo sentido descri-tivo às mesmas
expressões a que conferem valorações opostas?
Consideremos as seguintes conjunções: (1)“ Teresa é extremamente ciumenta
[juízo descritivo] e o ciúme prejudica bastante nosso relacionamento” [juízo de valor] e
(2) “Teresa é extremamente ciumenta [ juízo descritivo] e isto é uma prova de que ela se
interessa muito por mim”[ juízo de valor]. Passando do sentido descritivo ao valorativo,
Rand afirma que a imagem do brutamontes, tal como contida na descrição do uso
popular de “egoísmo”, não é uma criação anônima despontando da interação social
entre os indivíduos. Trata-se de uma elaboração ideológica visando a uma determinada
finalidade:

A ética do altruísmo criou a imagem do brutamontes, como sua


resposta, a fim de fazer os homens aceitarem dois princípios
desumanos: (a) qualquer preocupação com nossos próprios interesses
é nociva, não importando o que esses interesses possam representar, e
(b) que as atividades do brutamontes são, na verdade, [ o grifo é da
autora] a favor dos nossos pró-prios interesses (que o altruísmo impõe
ao homem renunciar pelo bem de seus vizinhos). (Rand,1991, p.15).

[obs. Em inglês, neighbour pode ser usada como “vizinho” mas


também pode ser usada como “próximo”, como por exemplo na
expressão bíblica Love thy neighbour as thou lovest thyself, “Ama a
teu próximo como a ti mesmo”].

Embora Rand não atribua a nenhum filósofo nem a nenhuma corrente filosófica
isto que ela caracterizou brevemente acima como “ética do altruísmo”, a crítica feita em
seguida retoma claramente, na década de 60 [obs. : A primeira edição de The Virtue of
Selfishness é de 1961], a mesma crítica que Dewey tinha endereçado à ética kantiana na
década de 30 [obs. : A edição revista de Ethics é de 1932]:

O altruísmo declara que qualquer ação praticada em benefício dos


outros é boa, e qualquer ação praticada em nosso próprio benefício é
má. Assim, o beneficiário [ o grifo é da própria autora] de uma ação é
o único critério de valor moral – e contanto que o beneficiário seja
qualquer um, salvo nós mesmos, tudo passa a ser válido (Rand, 1991,
p.15).

A grande diferença entre a posição de Dewey e a de Rand é que, enquanto o


primeiro procura mostrar que a oposição egoísmo/altruísmo constitui uma falsa
dicotomia, a segunda procura mostrar que se trata de uma autêntica dicotomia.
Enquanto o primeiro reivindica a necessidade de elaboração daquilo que ele mesmo
chama de Princípio Unificador, capaz de delimitar onde acaba o interesse por si próprio
e começa o interesse pelo outro, a segunda assume decididamente uma visão ética
baseada no auto-interesse – desde que, é claro, se trate de um legítimo interesse - e dá
início a uma virulenta crítica da assim chamada “ética do altruísmo”. A passagem que
se segue imediatamente à citada acima é extremamente contun-dente:

(...) tudo passa a ser válido. Daí a imoralidade assustadora, a injustiça


crônica, os padrões duplos, os conflitos e as contradições insolúveis
que têm caracterizado os relacionamentos humanos e as sociedades
humanas através da história, sob todas as variantes da ética altruísta.
Observe a indecência do que se consideram julgamentos morais
atualmente. Um industrial que produz uma fortuna e um gângster que
rouba um banco são considerados igualmente imorais, já que ambos
procuram fortuna para o seu próprio benefício “egoísta”. Um jovem
que desiste de sua carreira para sustentar seus pais e nunca sobe além
do posto de empregado de mercearia é considerado moralmente
superior àquele que suporta uma luta difícil e conquista sua ambição
pessoal. Um ditador é considerado moral, desde que as indizíveis
atrocidades cometidas tenham tido a intenção de beneficiar “o povo”,
não a ele mesmo. (Rand, 1991, p.15, o grifo é nosso).

[obs. nossa: Se entendermos que “ser ambicioso” é “desejar


ardentemente realizar uma grande aspiração”, não há nisto nenhum
mal moral. Poderá haver, no entanto, dependendo da natureza da coisa
ambicionada e/ou dos meios empregados para alcançá-la. Tal como
“ser competitivo” e “ser agressivo”, “ser ambicioso” costuma receber
valorações positivas ou negativas, dependendo de quem considera tais
modos de ser. Por exemplo: a pedadoga ou o gerente de vendas].

Os três exemplos apresentados por Rand caracterizam diferentes situações no


contexto da assim chamada “ética do altruísmo”. No primeiro caso, embora tanto o
industrial como o gângster estejam voltados para o mesmo fim – o enriquecimento –
não empregam o mesmo meio para atingi-lo, e é a diferença entre os meios, empregados
pelo primeiro e pelo segundo, que permite distinguir, respectivamente, um interesse
legítimo de um ilegítimo. No terceiro caso, o ditador, diferentemente do gângster, não
está supostamente visando ao seu próprio interesse, mas sim ao do “povo”. Pondo de
lado o freqüente caráter populista contido na expressão do referido interesse, cabe fazer
uma indagação crucial: Que importa os fins serem bons ou maus, se os meios
empregados para atingi-los são notadamente maus?
Só é possível fazer uma distinção entre as condutas do gângster e do ditador -
considerando a primeira reprovável e a segunda louvável - caso se concorde com o
princípio maquiavélico de que os objetivos justificam os meios. Porém, supondo que
endossemos o referido princípio, basta o gângster assaltar um banco com vistas a
distribuir o dinheiro entre os pobres, para que sua finalidade “altruísta” justifique o meio
empregado para alcançá-la, que pode até mesmo ser visto por ele e por alguns outros – à
exceção do dono do banco, obviamente - como um meio de “redistribuição de renda” -
uma maneira de ver as coisas que reitera a idéia de que há limites para a inteligência e
para a sinceridade, mas parece não haver limites para a ignorância e o cinismo humanos.
Das considerações feitas nas passagens citadas acima, Rand extraí conseqüências
bastante desagradáveis, porém coerentes com os pressupostos assumidos por ela.

Observe o que este critério moral, que considera apenas o beneficiário,


faz à vida de um homem. A primeira coisa que ele aprende é que a
moralidade é sua inimiga: não ganha nada com ela, apenas perde; tudo
o que ele pode esperar são perdas auto-impostas e o manto cinzento e
deprimente de uma obrigação incompreensível. Ele pode esperar que
os outros possam, ocasionalmente, sacrificar-se em seu benefício,
assim como ele se sacrifica de má vontade, em benefício deles, mas
ele sabe que tal relacionamento só produzirá ressentimentos mútuos,
não prazer – e que, moralmente, esta busca de valores será como uma
troca de presentes de Natal não desejados e não escolhidos que
nenhum deles se permite, moralmente, comprar para si mesmo. Exceto
nos momentos em que conseguir realizar algum ato de auto-sacrifício,
ele carecerá, como pessoa, de qualquer significado moral: a
moralidade não toma conhecimento dele e não tem nada a dizer-lhe
como orientação nas questões cruciais de sua vida; esta é somente sua
vida pessoal, privada, “egoísta” e, como tal, é considerada, ou
maléfica ou, na melhor das hipóteses, amoral (Rand, 1991, p.16, o
grifo é da própria autora).

Concordemos ou não com a valoração de “altruísmo” feita por Rand, é preciso


fazer algumas distinções que, ao que tudo indica, não foram feitas por ela: (1) uma ação
altruísta que não implica sacrifício nem qualquer tipo de perda para quem a pratica [ por
exemplo: apanhar uma nota de cinqüenta reais, que uma pessoa deixou cair do seu
bolso, e devolver a ela ]. Caso o agente moral pegasse a nota e enfiasse rapidamente no
seu bolso, estaria praticando um ato imoral, pois estaria se apropriando indebitamente
de propriedade alheia. Caso ele simples-mente não avisasse o perdedor da nota, estaria
deixando de prestar um benefício ao outro – mas um benefício que não implicaria
nenhum sacrifício nem perda para o beneficiador.
Não devemos considerar que, na decisão de não avisar o perdedor da nota, está
em jogo uma inequívoca atitude egoísta caracterizada pela fria indiferença ao bem do
outro? E que, na decisão de apanhar a nota e devolvê-la ao outro, está em jogo (1) uma
atitude autenticamente altruísta, motivada tão-somente por aquilo que tanto David
Hume (1968) como Adam Smith (1984) chamaram de sympathy (solidariedade ou
compaixão) e tomaram como o fundamento último da moralidade?! [Mas por que não
considerar que tal fundamento é a capacidade de se envergonhar – uma capacidade que,
à exceção do caso do psicopata, todos os seres humanos possuem, apesar de nem todos
passarem da potencialidade ao ato, realizando o correspondente desempenho, ou seja:
envergonhando-se de fato por terem praticado um ato vergonhoso?!].
(2) Uma ação altruísta que implica algum tipo de sacrifício ou de perda, mas
realizada de má vontade pelo agente moral, que não a considera como uma obrigação
moral auto-imposta, porém como um dever introjetado, proveniente dos costumes, ou
uma espécie de satisfação devendo ser prestada ao seu meio de relacionamentos ou à
sua comunidade [ por exemplo: o milionário que pratica atos de filantropia, visando à
construção de uma boa imagem diante dos seus amigos e conhecidos].
(3) Uma ação altruísta que implica algum tipo de sacrifício ou de perda, mas
realizada de boa vontade pelo agente moral, cuja satisfação espiritual em praticar o ato é
considerada por ele como maior do que a perda ou o sacrifício acarretados para ele na
sua consecução. [E reparemos que, caso se aceite que o agente sempre age em função
daquilo que, para ele, produz mais satisfação do que insatisfação, maior prazer com o
menor sofrimento, não se pode dizer que o agente desse terceiro tipo de ação altruísta
não procedeu racionalmente ou em desacordo com o aventado padrão de conduta].
Quer esteja em jogo (1), (2) ou (3), parece não haver dúvida de que – não
importando as assinaladas diferenças - as ações praticadas pelos respectivos agentes
prestam benefício ao outro, não importando se eles as fazem de boa ou má vontade, de
modo desinteressado ou interesseiro. Mas que dizer da alternativa considerada por
Dewey, de acordo com a qual “o altruísmo é na realidade um “egoísmo disfarçado” (a
disguised sefishness), ou seja: o possível benefício prestado ao outro é tão-somente um
fim aparente; na realidade, um meio cujo verdadeiro fim é um benefício para si
mesmo?!
Tanto entre filósofos como entre pessoas comuns, não é raro encontrar a idéia de
que toda e qualquer ação praticada por um indivíduo humano é direta ou indiretamente
interessada; o ser humano é incapaz de praticar atos desinteressa-dos, ou seja: não
pretendendo alcançar nada através das ações desempenhadas, nem qualquer forma de
retribuição - em curto, médio ou longo prazo - da parte do beneficiado, nem mesmo
nutrindo a expectativa de uma possível e razoável gratidão, pois tal expectativa
destruiria a natureza desinteressada e espontânea do ato.
Como generalização, tal idéia é facilmente refutável. Se você não tem registro de
nenhuma ação autenticamente desinteressada – de acordo com a caracterização feita
acima - praticada por você mesmo ou por pessoas suas conhecidas, podemos apresentar
exemplos históricos de heróis e de santos ou até mesmo de personagens não podendo
ser assim consideradas, mas que praticaram ações dessa natureza. Você poderá nos
contrapor alegando que, na realidade, as finalidades últimas das referidas ações não
eram os respectivos beneficiários, mas sim a obtenção da própria salvação, de prestígio
religioso ou mundano ou mesmo de qualquer outro bem para os próprios agentes. Mas,
considerando que nem você nem qualquer outro indivíduo humano pode ter acesso
direto ao que se passa no interior de uma alma humana alheia, como você ou qualquer
outra pessoa – exceto Deus e Freud – pode ter certeza de que uma determinada ação
estava realmente em função dessa finalidade última?
Dizer que a maioria das pessoas age assim – embora não justifique que eu ou
você devamos fazer o mesmo - é uma alegação podendo ser levada em conta, desde que
sejam apresentadas estatísticas feitas a partir de observações rigorosas da conduta
humana. Mas como é possível observar coisas tais como intenções? Como podemos
entrar em contato direto com intenções, além das nossas próprias? Intenções alheias
não podem ser observadas, porém inferidas – extraídas de ações praticadas por agentes
determinados.
Contudo, não se trata de inferências lógico-formais em que são aplicadas regras
infe-renciais de caráter objetivo e explícito, porém de outras que, por sua natureza,
comportam sempre interpretações das condutas, abrigam maior ou menor probabilidade
de acerto e, por isto mesmo, estão sempre sujeitas a erros inferenciais. Isto não quer
dizer que deduções formais estejam totalmente isentas de erro, porém que as inferências
de caráter provável estão muito mais propensas a cometê-los, simplesmente porque
nutrem a pretensão de acrescentar algo ao que já é sabido pelas premissas, não a de
simplesmente explicitar o que já está contido nas mesmas.
Nesse caso, você tem de admitir que a mesma ação, supostamente altruísta, tanto
pode ser vista com olhos céticos - suspendendo o juízo no tocante à natureza da
finalidade última do agente - como pode ser vista com olhos maldo-sos, sempre
abrigando a idéia de que o agente - como diz o conhecido provérbio -“Não prega prego
sem estopa” [corruptela de “sem escopo”]. Além disso, ele pode fazer uma injustificável
alegação em relação a qual você não pode fazer uma justificável contra-alegação: a de
que não tem nenhum cabimento a intenção atribuída por você a ele; ou, dizendo algo
bastante semelhante de uma maneira bastante diferente, ele pode simplesmente enunciar
o lema da Ordem da Jarreteira: Honni soit qui mal y pense (Maldito seja aquele que vê
aí um mal), ou seja: “Você está me julgando como se eu fosse você e atribuindo a mim
uma intenção que estaria em você, caso você tivesse feito o que fiz”. E se o outro
retrucar, terá início uma infindável polêmica bizantina.
Diante de todas as observações feitas acima, como julgar a crítica feita por Rand
ao que ela mesma chamou de “a ética altruísta”? Devemos considerar que, em todas as
variações apresentadas, trata-se de uma concepção ética inaceitável? Antes de responder
a essa indagação, faz-se oportuna uma observação: Ayn Rand é considerada uma
decidida pensadora liberal, uma libertarian (libertária) – para usar o termo
freqüentemente usado por pensadores americanos com vistas a distinguir o “liberalismo
individualista” – o de R. Nozick (1991), por exemplo – do “liberalismo social” ou
“liberalismo do bem-estar”- o de J. Rawls (1971), por exemplo. Embora Rand deva ser
situada dentro de uma tradição de pensamento indo de J. Locke no século XVII a R.
Nozick no nosso século, passando por D. Hume e A. Smith no século XVIII e por J.
Stuart Mill no XIX, sua visão ética difere, ao menos em um aspecto crucial, da
sustentada pelos referidos filósofos e outros afins.
Todos os mencionados pensadores – com as exceções de Hume e Smith - se
caracterizam pela sustentação de uma ética negativista, ou seja: um tipo de ética que
não enuncia o que devemos, mas sim o que não devemos fazer. Embora tal concepção
possa ser considerada “altruísta”, na estrita acepção de que sua preocupação precípua é
o outro e os possíveis males podendo ser feitos a ele – como vimos, de passagem, no
pensamento de J. Stuart Mill enfeixado pelo lema No harm to others – ela não pode ser
considerada “altruísta” na estrita acepção de conferir uma valoração ética positiva a toda
e qualquer ação desinteressada visando ao bem do outro.
Contudo, isso não quer dizer que confira uma valoração ética negativa a esse
segundo sentido de “altruísmo”, porém que simplesmente se silencia a esse respeito por
assumir se tratar de uma questão de opção estritamente pessoal os possíveis bens que
um indivíduo pode fazer ao outro e os possíveis males que pode fazer a si mesmo.
Podemos julgar ser lamentável que ele se entregue à autoflagelação ou tome a decisão
de cortar seus pulsos, podemos até tentar persuadi-lo a não fazer tais coisas, mas temos
de admitir que ele não pode ser coibido a não fazê-las, pois isto seria desrespeitar sua
liberdade de ação.
E neste particular a ética negativista e o direito procedem do mesmo modo, uma
vez que há uma lei que pune a tentativa de homicídio, mas não uma que puna a tentativa
de suicídio; há uma lei que pune a produção de lesões corporais, mas não as produzidas
por um indivíduo em si mesmo.[E nada é mais coerente se considerarmos que, sendo
um indivíduo, antes de qualquer coisa, proprietário do seu próprio corpo – como
sustenta vigorosamente Locke (1966) – ele goza do direito de fazer com ele ou dele o
que bem entender, desde que os possíveis malefícios produzidos se voltem para ele
mesmo].
À primeira vista, tal consideração pode parecer uma fria indiferença em relação
aos malefícios feitos pelo outro a si mesmo, porém o espírito dessa tomada de posição é
o profundo respeito pela autodeterminação e pela liberdade do outro. Desse modo, se
uma pessoa exerce sua liberdade para produzir um bem ou um mal para si mesma – seja
fazendo uma boa dieta e praticando exercícios diários, seja fumando e bebendo
desbragadamente - e neste legítimo exercício não acarreta nenhum risco de dano, físico,
patrimonial ou moral, para ninguém além dela própria, como considerar tal conduta
eticamente reprovável, sem manifes-tar uma atitude paternalista e invasora da esfera
privada da autonomia e da liberdade do indivíduo? Evidentemente, isto se aplica a
indivíduos adultos e em pleno gozo das suas faculdades - os que são considerados livres
para decidir e responsáveis por suas decisões - não a crianças nem a débeis mentais,
que não são livres, porque são tutelados, nem são considera-dos responsáveis, por
carecerem de condições mentais para responder por seus atos.
Diante disto, cabe indagar: Como pode Ayn Rand fazer uma reprovação da
“moral do altruísmo”? Com boas ou más intenções, visando ao bem do outro como fim
em si mesmo ou como meio para o próprio bem, as ações altruístas não costumam
produzir mal para os outros, a não ser sob a forma de mal involuntário, quando a
intenção do agente é boa, mas sua ação tem como conseqüência não-pretendida um
efetivo mal feito ao outro.
De um ponto de vista jurídico, a ausência de dolo diminui a gravidade do mal
produzido pelo agente ao outro, mas não o inocenta. Mas, de um ponto de vista moral,
devemos considerar que cometer um erro da referida natureza é uma conduta eticamente
reprovável? Será que – como se costuma dizer – “O inferno está cheio de bem-
intencionados”? Supondo que esteja, onde estão os mal-intencionados? Devemos
entender que ambos devem ser colocados “dentro do mesmo saco”? Mas isto não seria
cometer uma grave injustiça?
Assim como uma excelente intenção pode produzir um péssimo resultado, uma
péssima pode produzir um excelente resultado. Desse modo, se julgarmos as ações
morais unicamente pelas intenções dos agentes, teremos de remeter ao céu um
verdadeiro santo cujas excelentes intenções produziram péssimos resultados [não-pre-
tendidos por ele, é claro] e de remeter ao inferno um verdadeiro crápula cujas péssimas
intenções produziram excelentes resultados [igualmente não-pretendidos]. Porém se as
julgarmos unicamente pelos resultados, o santo vai para o inferno e o crápula para o
céu.
Mas será possível aplicar um critério combinando a apreciação ética tanto de
intenções como de resultados? Neste caso, só iriam para o céu aqueles cujas boas
intenções produzissem idênticos resultados, o que pressupõe uma conjunção de bondade
sem ingenuidade, de inteligência sem maus propósitos; de astúcia das serpentes sem o
veneno das mesmas, de mansidão das pombas sem a simploriedade das mesmas. Mas
quantos seriam capazes de preencher os referidos requisitos? É muito difícil? Mas se
fosse fácil, pequeno seria o mérito da conquista moral.
À primeira vista, pode parecer que a reprovação de Rand é justificável naqueles
casos em que o indivíduo está totalmente voltado para o bem alheio, de tal modo que ele
deixa de lado seu próprio bem e não luta por seus legítimos interesses. Sob este aspecto
a crítica feita por ela ao que denominou “ética do altruísmo” - ainda que não estivesse
nomeadamente endereçada a nenhuma corrente filosófica nem a nenhum filósofo em
particular – pode ser adequadamente dirigida à ética kantiana e não difere da feita na
década de 30 por Dewey.
Lembremos aqui que o referido filósofo americano tinha criticado o que
denominou “dualismo kantiano”, sob a alegação de que – reiterando in totum o que
dissemos - o referido maniqueísmo produz uma estranha situação (a strange plight):
um indivíduo deve buscar para os outros um bem que, caso buscado para si mesmo,
tornar-se-ia um mal. Buscar para si mesmo a felicidade é considerado por Kant um
empreendimento egoísta e moralmente condenável, porém, buscá-la para os outros,
altruísta e louvável. Dewey afirma que Kant não esclareceu satisfatoriamente a razão
pela qual a busca da felicidade de si mesmo é considera um mal e a da dos outros um
bem (vide Dewey, 1997, p.232) – coisa que, segundo pensamos, é dificilmente
justificável.
Tanto Aristóteles como Thomas Jefferson – que tomaram a felicidade como
nosso bem supremo (summum bonum) - discordariam veementemente da posição
kantiana, uma vez que entendiam ser a busca da felicidade de si mesmo algo inerente à
natureza humana e dificilmente podendo ser considerada um mal, seja por estar de
acordo com a referida natureza, seja por não produzir nenhum mal para os outros [a não
ser, evidentemente, quando a felicidade de si mesmo é alcançada através da - ou
indiferente à - produção da infelicidade alheia, coisa que não é, sob nenhuma hipótese,
uma conditio sine qua non, porém um meio moralmente condenável empregado para
alcançar um fim moralmente aceitável. Jefferson (1952) – discorrendo sobre os direitos
inalienáveis outorgados pelo Criador a todos os homens – não só assumiu ser a
felicidade de si mesmo um inequívoco bem, como situou entre esses direitos o da busca
da felicidade (pursuit of happiness). [E temos razões para entender que, para ele,
“felicidade” é um sinônimo de auto-realização].
Ao dizer que todos os homens têm direito à busca da felicidade, Jefferson correu
o sério risco de não ser entendido por aqueles que se apegam à letra e não procuram o
espírito de uma norma jurídica ou de uma prescrição ética. Apesar da sentença ter sido
formulada gramaticalmente de uma forma positiva, seu conteú-do não expressa uma
prescrição do tipo afirmativo, porém negativo. Supondo que fosse o caso da primeira
alternativa, ela teria de ser considerada redundante e inócua. Se, em virtude da natureza
humana, todos os homens procuram espontaneamente alcançar a felicidade, para que
prescrever que eles gozam do direito de fazer algo que já estão efetivamente fazendo
desde os mais remotos tempos? Não seria algo análogo a prescrever que todos os
homens têm os direitos de respirar, andar e falar?
Porém, supondo que seja o caso da segunda, o que está realmente em jogo não é
exatamente o que está expresso de forma positiva como um “direito”, porém o que está
impli-cado como um dever. Se todos os homens têm o direito à busca da felicidade,
nenhum homem tem o direito de impedir ou dificultar, injustificadamente, a referida
busca. Dito de outro modo: Todos têm o dever de não interferir abusivamente nos
diferentes caminhos escolhidos por seus semelhantes – por mais indesejáveis ou
repelentes que possam ser considerados - para conquistar aquilo que cada qual julga ser
a (sua) felicidade [E estamos justificados a entender assim, uma vez que, no texto da
Declaração de Independência, Jefferson não define “felicidade”, dando a entender que
não há um padrão universalmente aplicável às mais diferentes formas de busca].
Mas o que caracteriza “injustificadamente” e “interferir abusivamente”? Se,
trilhando um ou outro dos diversos caminhos para a felicidade, um indivíduo não faz
nada que possa representar dado nem risco de dano (físico, patrimonial ou moral) para o
outro, qualquer interferência nos seus cursos de ação, seja para impedi-los ou gerar
empecilhos, tem de ser considerada uma interferência abusiva e injustificável. Estamos
certos de que Ayn Rand, sendo uma pensadora libertária (libertarian), não deveria
fazer – e não fez de fato - nenhuma restrição a essa ética negativista sucintamente
apresentada, que se caracteriza por prescrever o que não devemos fazer e explicitar o
critério para não dever fazê-lo. Mas se é assim, como pode Rand rejeitar a ética do
altruísmo sob a alegação principal de que o altruísta busca o bem para os outros, mas
não para si próprio; defende os legítimos interesses dos outros, mas não os igualmente
legítimos seus [uma vez que defendê-los implicaria buscar um bem para si próprio]?!
Se o altruísta não está voltado para a produção de qualquer mal aos outros, é
inócuo aplicar a ele o princípio do No harm to others. Se o único mal que ele pode
fazer é o que supostamente faz a si mesmo, não buscando sua felicidade, mas sim a dos
outros; não defen-dendo seus legítimos interesses, porém o dos outros, rejeitar tais
condutas tomando-as como imorais não é por acaso assumir uma postura paternalista e
intervencionista determinando o que ele deve fazer, não o que não deve? Não é por
acaso desrespeitar o espaço privado da sua liberdade de agir como bem entende, desde
que suas ações não acarretem, voluntariamente, males para os outros?
Como vimos, Jefferson permaneceu fiel a uma longa tradição libertária, à
medida mes-ma que permaneceu fiel a uma ética negativista, apesar das aparências
indicarem o contrário. Rand parece não ter permanecido fiel a essa mesma tradição, não
por simplesmente ter introduzido prescrições positivas na ética, mas sim por ter
produzido uma gritante contradição interna no seu discurso – uma contradição entre a
aceitação dos princípios básicos da ética negativista – coisa claramente explicitada por
ela em diferentes passagens de A Virtude do Egoís-mo - e a crítica feita à ética do
altruísmo, unicamente baseada em prescrições positivas – critica esta que, em última
análise, acaba ferindo um dos princípios básicos da visão libertária: o respeito pela
diversidade de opiniões, modos de vida e orientações de condutas; mais
especificamente: a legítima prerrogativa de um indivíduo adotar um padrão ético
“egoísta” ou “altruísta”, uma vez que - como acreditamos ter mostrado satisfatoriamente
– um ou outro pode ser adotado sem que sejam necessariamente transgredidos os
princípios de uma ética negativista.
Pensamos ser interessante comparar as idéias de Dewey e Rand com as de Jon
Elster, não só porque os três pensadores se voltaram para o mesmo tema - o egoísmo e o
altruísmo - mas também porque suas diferentes abordagens apresen-tam a mesma
articulação de campos do conhecimento com diferentes núcleos. Dewey e Rand são
filósofos cujas reflexões sobre um tópico caracteristicamente pertencente à ética
envolveram temas relacionados com a psicologia, a pedagogia e a política.
Por sua vez, Elster é um sociólogo cuja abordagem é fortemente sedimen-tada na
filosofia, mais especificamente: na epistemologia e na ética. Não impor-tando o fato de
o texto de Dewey ter sido publicado na década de 30, o de Rand na década de 60 e o de
Elster no final da década de 80 [a primeira edição de Nuts and Bolts for The Social
Sciences é de 1989], eles não só abordaram o mesmo problema, dentro de tipos de
abordagem bastante semelhantes, como também se inseriram numa mesma
problemática, como tentaremos mos-trar.
Elster (1994, p.71) começa afirmando que: “No estado de natureza ninguém se
importa com os outros. Afortunadamente, não vivemos nesse estado desolador”. Ele não
entra em detalhes e, por isto mesmo, permite a interpretação de que esteja retomando a
posição de T. Hobbes (1968) de que o homem é por natureza egoísta e a sociedade –
com o contrato social e a instauração do estado de direito – reprime e atenua seu
egoísmo. Ele admite em seguida que “às vezes levamos em conta o sucesso e o bem
estar de outras pessoas e nos dispomos a sacrificar algo do nosso próprio em benefício
das mesmas”(Elster, 1994, p. 71). Mas ele mesmo põe em dúvida esse comportamento
aparentemente altruísta, aventando a possibilidade de que esteja em função do auto-
interesse. Os exemplos oferecidos não diferem do espírito dos já apresentados:

Não é de meu interesse de longo prazo ajudar os outros de modo que


possa receber ajuda em retribuição quando precisar? O patrono de
uma obra beneficente não é motivado antes por seu próprio prestígio
que pelas necessidades dos beneficiários? O que lhe importa é que
suas doações sejam visíveis e divulgadas e não quem se beneficia
delas. (Elster, 1994, p.71)

[obs. Não necessariamente, pois ele pode se manter fiel ao Princípio


de Discrição expresso pela máxima: “O que é mão direita faz, a
esquerda não precisa ficar sabendo” (vide a este respeito Guerreiro,
1995, pp.71-2)].

É importante chamar a atenção para o aspecto de que até o presente momento o


pensamento de Elster está se movendo inteiramente no domínio da teoria da ação
humana. Como ele não emitiu nenhum juízo de valor, não se pode dizer que esteja
propondo nenhum tipo de ética, seja a favor, seja contra o altruísmo. Observa que há
mesmo quem não esteja interessado nas motivações que levam os indivíduos a agirem
desse ou daquele modo, mas sim na influência que as instituições sociais podem exercer
sobre o comportamento dos indivíduos.

Alguns poderiam argumentar (...) que as pessoas são motivadas


sempre e em toda parte pelo auto-interesse e que as diferenças no
comportamento são devidas apenas a diferenças em suas
oportunidades.[obs.: Implica isto dizer que “a ocasião faz o ladrão?”].
A sociedade civilizada, desse ponto de vista, depende de ter
instituições [os itálicos são de Elster] que façam com que seja do auto-
interesse racional das pessoas dizer a verdade, manter suas promessas
e ajudar os outros – e não de que as pessoas tenham boas motivações.
(Elster, 1994, p.71).

Mas como podem as instituições fazer com que as referidas ações sejam do auto-
interesse racional das pessoas? Elster não explica isto, mas admite explicitamente que o
argumento acima é errado (Elster, 1994, p.72). Dito isto, ele parte para examinar a idéia
de que toda ação é auto-interessada, porque é motivada pelo prazer que proporciona ao
agente. “Se dou um presente a alguém que amo, não estou simplesmente usando essa
pessoa como meio para minha própria satisfação?” (Elster, 1994, p.72).
Aparentemente, sim, pois a finalidade última do referido ato não é o prazer que o
outro experimenta, porém o prazer que o agente experimenta com o prazer do outro.
Todavia, Elster considera que, na realidade, o prazer experimentado pelo agente não
passa de um “subprodu-to” do prazer do outro. Além disso, ele considera que nem
todas as ações altruísticas são feitas por amor e produzem prazer para quem as faz.
Algumas são feitas por um senso interno de dever e não precisam proporcionar prazer
ao agente (Elster,1994,p.72). Feitas essas oportunas observações, ele toca em um ponto
não-tematizado por Dewey nem por Rand:

Mas não podemos imaginar coerentemente um mundo em que todos


ten-ham motivações exclusivamente altruísticas. O objetivo do
altruísta é proporcionar aos outros uma ocasião de prazeres
egoísticos ( os itálicos são nossos) – o prazer de ler um livro ou beber
uma garrafa de vinho que se ganhou de presente. Se ninguém tivesse
prazeres egoísticos de primeira ordem, ninguém poderia, tam-bém, ter
motivos altruísticos de ordem mais elevada (Elster, 1994, pp. 72-3).

A partir dessa penetrante observação de caráter psicológico, Elster é levado a


uma não menos penetrante de caráter sociológico:

Alguns dos excessos da revolução cultural chinesa ilustram o absurdo


do altruísmo universal. Foi dito a todos os cidadãos chineses que
sacrificassem seus interesses egoísticos pelos interesses do povo –
como se o povo fosse algo além e mais elevado que a totalidade dos
cidadãos chineses. O ponto é simplesmente lógico. Se alguns devem
ser altruístas, outros devem ser egoístas, ao menos durante parte do
tempo, mas todos poderiam ser egoístas o tempo todo. (Elster, 1994,
p.73).

Mas - como sugere Ester - podemos mesmo imaginar um mundo em que todos
tenham motivações unicamente egoísticas? Seria um mundo em que ninguém se
apaixonaria por ninguém; ninguém seria capaz de amar, mesmo não sendo amado.
Situado ainda no domínio da ação humana, sem passar do ser ao dever ser, Elster recusa
a idéia de que os indivíduos sempre agem movidos pelo auto-interesse. Segundo ele, “os
pais têm um interesse egoístico ao ajudar seus filhos, supondo que os filhos irão cuidar
dos pais na velhice”. Mas se os filhos correspondem à expectativa dos pais, não se pode
dizer que estão agindo por auto-interesse. Apesar disto, isto não impede muitos de fazer
tal coisa. (Elster, 1994, p.73). [obs. nossa: Não cremos que o referido interesse dos pais
seja maior do que o verdadeiro amor que sentem por seus filhos e se estes preenchem o
que é esperado deles, tanto podem fazê-lo por amor aos seus pais como por mera
retribuição].
Em seguida, Elster fornece um exemplo inequívoco de ação altruísta: “Alguns
contribuintes de obras de caridade dão anonimamente e assim não po-dem ser
motivados pelo prestígio”. (Elster, 1994, p.74). Como já havíamos ob-servado, aqueles
que assim o fazem buscam unicamente o bem dos outros; sua conduta é guiada pelo
Princípio de Discrição enfeixado pelo moto: O que a mão direita faz, a esquerda não
precisa ficar sabendo. Elster completa seu pensamento di-zendo: “Presentes
publicamente visíveis poderiam ser explicados pelo prestígio de doar ou pelas sanções
sociais impostas aos não-doadores. Apenas presentes de desconhecido a desconhecido
são não-egoísticos sem ambigüidade” (Elster, 1994, pp.74-5, os itálicos são nossos).
Examinando mais detalhadamente a motivação altruística, Elster entende que
ajudar ou dar amor são comportamentos instrumentais, quer dizer: comportamentos
voltados para resultados. Se um pai ajuda seu filho, procura o melhor meio de fazê-lo
feliz. Quanto ao conceito de dever, ele tanto pode ser instrumental como não-
instrumental. Exemplo deste último tipo, para Elster, é o imperativo categórico
kantiano, que, grosso modo, corresponde à pergunta: “Mas, e se todos fizessem isso?”.
O que seria se todos sonegassem seus impostos? Se todos ficassem em casa no dia das
eleições ou se recusassem a ajudar os pobres? Elster observa oportunamen-te que esse
apelo poderoso não está preocupado com resultados reais, com o que aconteceria se eu
adotasse certo curso de ação. Está ligado ao que iria acontecer, hipoteticamente, se
todos o adotassem. (Elster, 1994, p.75).
Contudo, Elster observa que Kant e os kantianos não estão preocupados nem
com resultados nem com circunstâncias [coisa que, segundo pensamos, gera difíceis
obstáculos para a compreensão de agentes morais, que são sempre indivíduos agindo
dentro de circunstâncias específicas e visando a resultados quase sempre da mesma
natureza]. Por sua vez, os assim chamados utilitaristas – às vezes também conhecidos
como “conseqüencialistas” - não estão somente preocupados com resultados, mas
também com circunstâncias. Mas, para Elster, há ainda uma terceira alternativa:

Pessoas de uma terceira categoria estão preocupadas com


circunstâncias, mas não com resultados. Olham para o que os outros
estão fazendo e seguem a maioria. Se outros dão pouco, fazem o
mesmo; e similarmente se outros dão muito. A motivação subjacente é
uma norma de eqüidade [os itálicos são de Elster]. Uma pessoa deve
fazer a parte que lhe cabe, mas apenas se os outros estiverem fazendo
a deles. Essa motivação é insensível a resultados, conforme mostra o
fato de que leva ao padrão exatamente opos-to ao do utilitarismo
orientado por resultados. (Elster, 1994, p. 76).

Concordamos inteiramente com a caracterização acima, embora extraia-mos dela


conseqüências diferentes – talvez mais contundentes – do que as extraídas por Elster.
Procurando evitar uma contradição semelhante à cometida por A. Rand, quando da sua
rejeição da ética altruísta, não podemos fazer nenhuma censura moral às pessoas que
condicionam seu comportamento ao da maioria, porque as consideramos livres para
escolher qualquer padrão de conduta, desde que ele não acarrete danos materiais nem
morais para os outros. A decisão de acompanhar a maioria não produz necessariamente
tais danos e, por isto mesmo, seria incoerente qualificá-la como imoral. Contudo, não
podemos deixar de con-siderar tais pessoas como despersonalizadas e carentes de senso
crítico [e se isto é um juízo de valor, é um juízo de valor psicológico ou existencial, mas
não moral].
É a visão de mundo do “Maria-vai-com-as-outras”. Mas se a maioria caminha
cega-mente na direção do abismo, deve você fazer o mesmo? O condicionamento da
própria ação ao comportamento da maioria – ou ao que se supõe que ele seja – pode
levar a raciocínios extremamente perversos. “Se a maioria pratica a famosa Lei de
Gérson. E isto tanto pode ser uma generalização correta, caso baseada numa pesquisa de
opinião pública, quanto uma “ estatística subjetiva”, caso baseada em observações
restritas aos relacionamentos pessoais e profissionais, procurando levar vantagem
(ilícita) em tudo, por que não fazer o mesmo e evitar o risco de ser visto como um
otário?”. Isto não quer dizer que a maioria sempre proceda de forma imoral, nem que
esteja sempre errada, mas sim que é sempre preferível agir da forma que consideramos
correta - ainda que estejamos equivocados e independentemente de ela estar ou não de
acordo com a maioria - a simplesmente segui-la, sem se indagar seriamente se o que ela
faz é moralmente correto ou não.
Elster entende que geralmente não há dificuldade em o beneficiador saber qual o
interesse do beneficiado, ou seja: saber se o que pretendemos fazer em relação a ele
constitui para ele um bem. Mas casos há em que aquilo que supomos ser benéfico para
ele, não é, e aquilo que não supomos, é. Deslocando-se novamente do plano individual
para o social, Elster faz uma aguçada observação:

O interesse expresso poderia refletir uma preocupação excessiva com


o presente, enquanto que nós, doadores, queremos melhorar sua vida
como um todo. Tal paternalismo [os itálicos são de Elster] é
relativamente fácil de justificar quando a relação é literalmente aquela
de pai para filho, porém mais difícil quando os beneficia-dos são
adultos com direitos civis plenos, inclusive o direito de votar. Dar
vales-alimentação em vez de dinheiro é um exemplo. Se os
beneficiados tivessem votado por esse modo de transferên-cia, seria
uma forma não-objetável de autopaternalismo (...), mas não é assim
que as decisões são tomadas. Elas são tomadas pela burocracia
previdenciá-ria. (Elster, 1994, p.77).

[obs.: No Brasil, tanto os vales-alimentação como os vales-transporte


acabaram se transformando em moeda, ou seja: são oferecidos e
aceitos na compra dos mais diferentes serviços e mercadorias. Em
geral, pensamos que fornecer ajuda em espécie é sempre preferível a
salários indiretos e outras formas semelhantes. Basicamente por duas
razões: (1) evita a intermediação da burocracia – reduzindo custos e
evitando desvios de verbas e (2) concede ao beneficiário o direito de
escolher como aplicar seu dinheiro].
Comentando a passagem citada acima, Elster afirma que há dois impor-tantes
fatores em jogo: De um lado, algo indispensável para o auto-aperfeiçoamento dos
indivíduos: a liberdade de escolha, ainda que seja para fazer escolhas erradas [obs.
nossa: não só de um ponto de vista epistemológico e pedagógico, como também de um
ponto de vista moral, a melhor maneira de aprender é mediante tentativas e erros]. De
outro lado, há a presunção de que os indivíduos são os melhores juizes de seu próprio
interesse [obs.: o que não quer dizer que os julguem sempre bem, mas que – por terem
acesso direto ao mesmo – estão mais qualificados para julgá-lo]. A isto, Elster
acrescenta uma observação oportuna:

O paternalismo, mesmo quando mal-orientado, está preocupado com o


bem-estar do beneficiado. Dar presentes também pode, entretanto, ser
uma técnica de dominação e manipulação. Pode servir aos interesses
do doador contra os – e não através dos – interesses dos beneficiados.
(Elster, 1994, p.77).

Se A. Rand rejeitou como imoral toda e qualquer variação daquilo que chamou
“a ética do altruísmo”, Elster – restringindo-se ao domínio da teoria da ação e
procurando evitar uma inadvertida passagem do ser para o dever ser – procurou avaliar
tanto o egoísmo como o altruísmo do estrito ponto de vista das suas boas ou más
conseqüências, tanto para os indivíduos como para a sociedade. Procedendo assim,
reconheceu a existência de diferentes formas de altruísmo e de egoísmo, algumas
podendo gerar boas e outras más conseqüências.
Tal como Rand, Elster admitiu que o altruísmo costuma gozar de boa fama e o
egoísmo de má fama. Mas quando o comparamos com algumas outras motivações, ele
pode parecer positivamente benevolente. Pessoas motivadas por coisas consideradas
vícios – inveja, rancor, ciúme, etc. – podem ser levadas a uma tentativa de superar os
outros. Abrem-se a partir daí duas alternativas: (1) o caminho difícil de fazer melhor
que os outros, que consiste em melhorar o próprio desempenho e (2) o caminho fácil,
que consiste em perturbar a competição [obs.: por suposição, uma competição sadia e
leal, feita dentro de regras preestabelecidas e estáveis].
Elster admite que ter prazer no infortúnio dos outros é provavelmente mais
comum que promovê-lo ativamente, mas às vezes as pessoas se desviam do seu
caminho para prejudicar os outros, sem pretender ganhos diretos para si mesmas. [obs.:
E este é um dos muitos exemplos que questionam seriamente o pressuposto da teoria
padrão da decisão, segundo o qual os indivíduos sempre decidem empregando a razão. [
vide a este respeito Tuch-man (1984) e Schick (1997)]. Elster ilustra sua afirmação com
um interessante exemplo: quando um bem não pode ser dividido entre os reclamantes -
por exemplo: a custódia de uma criança - uma resposta bastante comum é: “Se não
posso tê-la, ninguém a terá” (Elster, 1994, 78-9).[obs.: Talvez este tenha sido o
pensamento da falsa mãe que, quando Salomão ordenou ao soldado dividir com sua
espada a criança em duas partes e dar a cada reclamante uma, não abriu sua boca para
dizer coisa nenhuma - contrariamente à verdadeira mãe, que disse preferir dá-la à outra
mulher a vê-la morta].
Em uma nota de pé de página, Elster admite que o prazer experimentado no
infortúnio dos outros, não envolvendo nenhum ganho para aquele que o experimenta – a
não ser, é claro, a própria satisfação sádica – coloca uma difícil aporia para a teoria da
escolha racional. Suponhamos que eu prefira o estado x, no qual seus desejos são
frustrados, ao estado y, no qual são satisfeitos. Se me for oferecida uma oportunidade de
frustar seus desejos, devo aproveitá-la, ainda que isto me traga algum tipo de prejuízo
ou transtorno? Se não o fizer, serei racional? Ou estarei lidando racionalmente com um
desejo irracional, ao recusar-me a agir a partir dele? (Elster, 1994, p. 79). [obs.: Pode-se
alegar que o indivíduo decidirá conforme a opção capaz de lhe proporcionar maior
benefício e menor custo. Mas o problema é que não poucas pessoas experimentam mais
prazer no insucesso alheio do que no seu próprio sucesso]. Elster conclui seu
pensamento fazendo uma penetrante observação sobre o egoísmo:

O egoísmo funciona melhor, entretanto, quando combinado com uma


porção módica de honestidade. A honestidade não deve ser
confundida com altruísmo. Mantenho minha promessa para com você,
não porque me preocupe com o seu bem-estar, mas porque me
preocupo com a minha reputação de pessoa honrada. (Elster, 1994, p.
79).

Mantendo o mesmo padrão de discurso, Elster parte de uma observação de


conduta no plano estritamente individual, na direção do plano social.

A competição desenfreada no mercado pode coexistir com nor-mas de


honestidade e cumprimento das promessas [obs.: E não vemos por que
não estender isto ao cumprimento de contratos]. A não ser
constrangido por normas sociais e códigos mínimos de honra, o
egoísmo se transforma em oportunismo. É uma criatura feia, não
menos desagradável que a inveja em aparência e conseqüências. Se as
sociedades tradicionais, carregadas de inve-já, são permeadas de
acusações de bruxaria [obs.: ou permeadas de qualquer outro
expediente escuso destinado a elimi-nar concorrentes econômicos e/ou
inimigos políticos ou pessoas, como foi o caso da Inquisição], muitas
sociedades em transição. [obs.: e não vemos por que não incluir aí
socieda-des subdesenvolvidas ou “em desenvolvimento”, para estar de
acordo com o vocabulário “politicamente correto” da ONU] são
sujeitas a oportunismo, corrupção e cinismo desenfreados [ obs.: E
qualquer semelhança com o Brasil 2000 é mera coincidência]. (Elster,
1994, p.79).

Contrariamente a alguns que vêem a ética e o mercado como um casal


divorciado por radical incompatibilidade de gênios ou como a água e o azeite –
substâncias que nunca se misturam – Elster não considera ser impossível o
entrosamento de ambos ou, ao menos, uma forma de coexistência pacífica. Desse modo,
Elster encerra o capítulo do referido livro sem tematizar a questão do altruísmo e do
egoísmo no domínio específico da ação econômica, porém deixando uma importante
ponto de partida para uma tematização da mesma.
De nossa parte, pensamos que a idéia de que o mercado gera condições
favoráveis para que seus agentes expressem seus piores vícios e deformações morais,
não é nova nem está restrita a países de incipiente cultura institucional e econômica.
Laura L. Nash inicia um interessante livro sobre ética empresarial pondo em destaque
como epígrafe a seguinte passagem: “Leitor, suponha que você seja um homem de
negócios. Agora, suponha que você tem um caráter insensível e ganancioso. Mas eu
estou sendo redundante”. Logo abaixo, ela observa que ...
A atividade de ganhar dinheiro sempre teve uma aliança meio
desconfortável com o senso particular de moralidade das pessoas. Nos
dois últimos séculos, os jornais populares têm publicado com
regularidade piadas sobre a ética nos negócios – a epígrafe acima é
uma paráfrase da descrição de um congressista feita por Mark Twain
[obs.: Considerar um congressista como “homem de negócios” é uma
afirmação que só parece fazer sentido, caso se tenha em mente um
mercado político, tal como proposto por J. Buchanan (1975) e a
Escola da Public Choice da Universidade de Virgínia]. (Nash, 1993,
p.3).

A referida autora completa seu pensamento dizendo:

Muitos executivos hoje em dia expressam um cinismo parecido com


relação à relevância do questionamento moral para a prática gerencial.
Por diversas razões, que vão desde a eterna ganância até os modos
muito diferentes pelos quais tendemos a pensar em administração e
moralidade, a ética e os negóci-os têm parecido, com freqüência, se
não completamente contraditórios, pelo menos completamente
distantes. Mesmo aqueles que defendem a noção de que a integridade
dos negócios pode ser um ideal atingível, tendem, contraditoriamente,
a deixar a exploração dos dilemas éticos a cargo da consciência
particular de cada gerente. (Nash, 1993, p.3)

Contudo – como admite em seguida Nash – “nos últimos dez anos a empresa
america-na detonou a muralha da China que tradicionalmente separava a discussão dos
problemas gerenciais da moralidade pessoal. Anos atrás, um pequeno número de líderes
empresariais excepcionais estavam interessados em questões de ética empresarial, hoje,
porém, há um número crescente deles preocupados com a elaboração de códigos de
conduta corporativos”.
Nash observa que grandes empresas como a Johnson & Johnson, a IBM, a
Goldman Sachs, a Hewlet-Packard, a Ford, a 3M, a Wall-Mart e muitas outras “estão
enfatizando que altos padrões pessoais de conduta são um ativo importante [ os itálicos
são nossos] tão valioso economica-mente quanto aquele outro bem intangível e
igualmente ilusório chamado “clientela” (ou “ponto comercial”)”. (Nash, 1993, p.4).
Assim como – pensamos nós – baixos padrões pessoais de conduta acabam gerando,
direta ou indiretamente, em curto, médio ou longo prazo, prejuízos morais e materiais
tanto para os funcionários como para a própria empresa. Infere-se daí que, se o lucro
obtido licitamente deve ser considerado moral, a boa moralidade deve passar a ser
considerada lucrativa.
Isto teria de ser apreciado mais aprofundadamente, de modo a evitar a falsa
impressão de que se trata de uma visão fria e superficialmente “utilitarista”. De qualquer
modo, pensamos que os princípios da ética negativista – tal como brevemente
apresentados e discutidos ao longo deste trabalho – podem ser adequadamente aplicados
a qualquer ética particular, quer se trate da empresarial, da médica, da científica ou de
qualquer outro código de conduta profissional.
Evidentemente, não se trata de uma aplicação mecânica e sem mediações, mas
sim de uma cuidadosa articulação de princípios universais com problemas particulares.
Uma ética universal, incapaz de atender a essas exigências dos diver-sos domínios da
ação humana, corre o sério risco de se tornar completamente ineficaz; uma ética
particular, incapaz de se nortear pelos princípios de uma ética universal, corre o sério
risco de ficar atolada no mero casuísmo.
No que diz respeito especificamente à ética empresarial, pensamos que ela não
deve se basear no altruísmo, entendido no sentido forte de conduta autenti-camente
desinteressada – a filantropia e outras formas de benefício não devem ser exigidas de
ninguém; só podem ser autenticamente praticadas, caso espontaneamente assumidas
pelos que as praticam, seja por amor ao próximo ou por uma obrigação moral
livremente auto-imposta. Não se pode obrigar ninguém a amar ninguém, pois a
obrigação imposta a partir de fora, caso fosse possível, destruiria a essencial
espontaneidade do ato de amar.
Trata-se portanto de uma questão de opção pessoal cuja valoração apresenta uma
sutil assimetria: Deve-se elogiar aquele que se mostra disposto a se sacrificar em
benefício dos outros e a abrir mão de seus bens e interesses – pois a generosidade é a
mais bela das virtudes humanas. Mas não se pode censurar aquele que não se mostra
disposto a fazer tais coisas, simplesmente porque não se pode censurar ninguém por não
querer exercer uma conduta cujo valor moral é inteiramente dependente da
espontaneidade do agente.
A ética empresarial tampouco deve se basear no egoísmo, entendido no sentido
forte de buscar unicamente os interesses pessoais, sem conceder a mínima atenção aos
interesses alheios. Como observou muito bem Dewey (1997, p. 231), a finalidade do
agente deve ser sua auto-realização. Ocorre que, em determinadas circunstâncias, a
melhor maneira de efetuá-la consiste em dar atenção às necessidades alheias. Para
exemplificar essa oportuna observação, recorremos ao caso dos gerentes das empresas
que, fazendo o cálculo da relação custo-benefí-cio, chegaram à conclusão de que pagar
um plano de saúde para seus funcionários não resulta-va em aumentar despesas, porém
em reduzi-las.
Pode-se fazer a suposição de que esse tipo de ação não passa de uma forma de
egoísmo esclarecido. Apesar de o benefício prestado aos funcionários possa ser
considerado apenas um meio através do qual a empresa atinge um benefício para si
própria, não se pode negar que ambas as partes acabam sendo beneficiadas, ainda que o
beneficiador não aja movido pelo puro altruísmo, mas sim pela compreensão racional de
que seus interesses não podem ser alcançados sem atender aos interesses daqueles que
cooperam com ele na persecução de um fim comum. Em uma empresa bem-
administrada, o sucesso de cada um concorre para o suces-so da empresa e o sucesso
desta deve concorrer para o de todos.
Por exemplo: quando os índices de crescimento da empresa ultrapassam os
previstos, seus funcionários devem ser receber gratificações por produtividade e, se
possível, correspon-tes ao grau de contribuição feito por cada um. Mas para que isto não
se torne unilateral, é imprescindível seus funcionários compre-enderem que, em
situações de crise e de redução dos lucros, eles devem aceitar restrições e sacrifícios
pessoais, de modo a ajudarem sua empresa a superar suas dificuldades, pois todos estão
dentro do mesmo barco. Se os funcionários têm direito a alguma forma de participação
nos lucros, devem ter o dever de assumir alguma forma de participação nos prejuízos.
Diante disso e de outras coisas peculiares à vida corporativa, devemos continuar
admitindo que a ética empresarial deve se caracterizar como um egoísmo esclarecido?
Ou como uma inteligente conjunção de interesses em que deve prevalecer um bom
padrão de conduta e a reciprocidade entre as partes interessadas, em nome de um bem
comum? E considerando que uma empresa é uma comunidade dentro da sociedade, seu
padrão teria validade para a sociedade como um todo? Estas são interessantes
indagações que, infelizmente, não podem ser respondidas satisfatoriamente nos limites
deste artigo.
Contudo, podemos adiantar que nossa resposta é não. Concordamos inteiramente
com a distinção feita por F. Hayek (1960) entre o que ele denominou de nomocracia e
teleocracia. A organização de uma empresa é de caráter teleocrático, uma vez que está
voltada para a consecução de um pequeno número de finalidades a serem conquistadas
(e além disso, como já dissemos, todos os seus membros devem participar na
consecução das mencionadas finalida-des, uma vez que estão em busca de um bem
comum). Por sua vez, a organização da sociedade é de caráter nomocrático. Ela não
pode prescindir de regras claras e estáveis voltadas para os desempenhos dos seus
membros. Daí a necessidade de leis capazes de coibir condutas prejudiciais ao outros.
Todavia, a organização social não pode ser considerada uma teleocracia, uma
vez que seus membros buscam um conjunto heteróclito de finalidades e é difícil
conceber uma finalidade comum a todos, a não ser a busca daquilo que cada um
considera ser a (sua) felicida-de. Daí Hayek dizer que não cabe falar em um bem
comum a todos os membros da sociedade, a não ser o estado de direito, pois é
justamente ele que estabelece as regras de comportamento necessárias para que cada
qual busque sua finalidade própria e não seja injustificadamente tolhido nos seus cursos
de ação. [ e lembremos que só se justificam restrições às condutas dos indivíduos
quando estas mesmas representam danos (físicos, patrimoniais ou morais) ou risco de
danos das mesmas categorias para o outro].
Há um pensamento extremamente simplista que costuma proceder do seguinte
modo: Considerando que, em sociedades extremamente complexas como a nossa, as
comunidades existentes estão dentro dela, então todas as regras de comportamento
(éticas e/ou jurídicas) válidas para a sociedade têm de ser igualmente válidas para toda e
qualquer comunidade encravada nela. Algumas até podem ser, mas não todas.
Supondo que se trate de uma sociedade democrática, todos os representantes do
povo têm de ser escolhidos mediante eleições em que todos os cidadãos manifestem sua
preferência através do voto secreto. O mesmo não deve ser feito em comunidades
dotadas de característi-cas peculiares – como é o caso das comunidades universitárias e
de centros de pesquisa, pois se teorias científicas forem submetidas à votação popular,
corremos o sério risco de distorcer gravemente o conhecimento científico e fazer uma
aplicação torta do adjetivo “democrático”.
Universidades e centros de pesquisa, por sua peculiar natureza, devem ser
comunidades hierárquicas e elitistas, não no sentido de que alguns dos seus membros
gozem de privilégios, nem que outros tenham de acatar ordens de seus superiores (como
costuma ocorrer em comunidades religiosas e militares), mas sim porque o que está em
jogo é uma meritocracia do saber, e o saber - embora seja sempre uma conquista
individual - é dependente da orientação daqueles que já alcançaram graus mais elevados
na hierarquia do conhecimento, que se faz pelo trabalho de muitos em um sentido
historicamente acumulativo.
Talvez, ninguém tenha expressado isto melhor do que Isaac Newton: “Se pude
ver tão longe, é porque subi nos ombros de verdadeiros gigantes” [Referia-se às grandes
conquistas científicas dos seus antecessores históricos – a saber: Galileu, Copérnico e
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