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O MITO DE PROMETEU E PANDORA – A CRIAÇÃO DO HOMEM E

DA MULHER
The Myths of Prometheus and Pandora – the creation of man and woman
Elaine C. Prado dos Santos1 (Universidade Presbiteriana Mackenzie- UPM)
Professora Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo.
Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie, desde 1988.
Vinculada ao CCL, Centro de Comunicação e Letras.
Resumo:
Segundo algumas versões míticas, Prometeu, um urânide, criou, do barro, o
primeiro homem. Como ele havia roubado o fogo sagrado dos deuses para insuflá-
lo em sua criação, foi-lhe enviada a primeira mulher, a belíssima Pandora, criada
pelos deuses, trazendo aos homens os piores males. Pretende-se, com este
trabalho, apresentar, como leitura do imaginário, o mito de Prometeu e Pandora,
por meio de duas obras clássicas - os Trabalhos e os dias, de Hesíodo e as
Metamorfoses, de Ovídio - bem como demonstrar as imagens simbólicas pelas
quais o mito desenvolve a história essencial do gênero humano, ou melhor, a
história do homem e da mulher, estabelecendo, por fim, uma relação com sua
história contemporânea.
Abstract:
According to some mythical versions, Prometheus, a uranid, created, out of
clay, the first man. As he had stolen the sacred fire from the gods to give life to his
creation, the first woman, the beauty Pandora, was sent to him, bringing the evil to
men with her. This presentation intends to present the myths of Prometheus and
Pandora as readings from the imaginary, by means of two classic works – Works
1Professora Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo. Docente da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, desde 1988. Vinculada ao CCL, Centro de Comunicação e Letras.
and Days, by Hesiod and The Metamorphosis, by Ovid, as well as
demonstrating the symbolic images through which the myth develops the essential
history of the human gender, that is, the history of men and women, establishing a
relationshiop with their contemporary history.
Na Antigüidade helênica, o mito de Prometeu foi tratado em quatro obras:
Protágoras, de Platão; Prometeu, de Ésquilo; Teogonia, os Trabalhos e os dias, de
Hesíodo. Para se entender, segundo notas de Brandão (1997, p.167), como a arte
enriquece, amplia, transfigura e, não raro, desfigura o mito, seria necessário fazer
uma leitura da tragédia de Ésquilo, Prometeu acorrentado, em que o mito é
apresentado de uma forma mais ampla e poética. Entretanto, nosso foco de
pesquisa está centralizado nas obras de Hesíodo e nas Metamorfoses de Ovídio.
Segundo diversas versões, Prometeu foi aquele que criou o homem do
barro da terra, mas semelhante versão não é confirmada em Hesíodo. Prometeu, o
filho de Jápeto, antes da vitória de Zeus, já era considerado um benfeitor da
humanidade, o que lhe causou um enorme mal, por ter enganado por duas vezes a
Zeus, o pai dos deuses. Segundo a Teogonia (v.535-536), como os deuses
desconfiassem dos homens, protegidos por Prometeu, houve uma querela entre os
divinos e os homens. Para acabar com essa querela entre imortais e mortais, era
necessário que se fizesse uma oferenda de um sacrifício a Zeus. Prometeu,
querendo enganar a Zeus para beneficiar os mortais, dividiu um boi enorme em
duas porções: a primeira continha as carnes e as entranhas, cobertas pelo couro
do animal; a segunda, apenas os ossos, cobertos com intensa gordura do mesmo.
Zeus escolheu exatamente a porção que continha ossos e gordura, a qual era
destinada aos mortais. Sentindo-se ultrajado, com o coração pleno de ódio,
investiu contra os homens a privação do fogo, ou seja, simbolicamente, a privação
da inteligência de tal forma que os homens se imbecilizaram (Trab. 47-50).
Tanto na Teogonia, quanto nos Trabalhos e os dias, não há indícios da
criação do homem, feito de barro por Prometeu. No entanto por meio dos versos
do poeta latino Ovídio (I a.C.), poeta das Metamorfoses, pode-se depreender a
idéia da Antigüidade greco-romana a respeito da criação do mundo, pois conforme
2 Ante mare et terras et, quod tegit omnia, caelum
Vnus erat toto naturae uultus in orbe,
Quem dixere chaos (Met. I, 5-7)
3 Sic erat instabilis tellus, innabilis unda,
Lucis egens aer; nulli sua forma manebat
Obstabatque aliis aliud, quia corpore in uno
Frigida pugnabant calidis, umentia siccis,
Mollia cum duris, sine pondere habentia pondus.
Hanc deus et melior litem natura diremit; (Met. I, 16-21)
o poeta, todas as coisas tinham um único aspecto a que se dava o nome de
Caos, onde se mesclavam os elementos:
“Antes do mar e das terras e do céu, que cobre todas as
coisas, a natureza tinha no mundo uma única face, a qual
chamaram de caos.” 2
Nas Metamorfoses, o caos designa a confusão inicial de todas as coisas,
nomeando o estado primitivo do universo e a construção. Desta forma, Ovídio
afirma, ao descrever o caos: quem dixere chaos , que tanto terra e mar, quanto
outras coisas não estão claramente separados ainda um do outro, pois tudo ainda
tinha uma única aparência: unus uultus. O caos era uma massa informe e confusa,
onde jaziam latentes as sementes das coisas. Para Jaa Torrano (1995, p.43), o
Kháos, em Hesíodo, é a força que preside à separação, ao fender-se, dividindo-se
em dois, uma vez que primeiro nasceu Caos, depois a Terra (Teog.116-117), que
primeiro pariu igual a si mesma o Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
(126-127).
Segundo afirmações do poeta latino, o mundo foi criado a partir da
confusão e da luta dos elementos (Met. I 16-21), pois quando um deus e a
natureza intervieram colocaram um termo a essa discórdia, separando a terra do
mar e o céu de ambos:
“Assim a terra era instável, o mar inavegável, o ar tinha
necessidade de luz: nada conservava sua própria forma, uma
coisa se opunha às outras, porque em um só corpo o frio
combatia o calor; a umidade, a seca; o macio, o duro; o sem
peso, o pesado. Um deus acabou com esta luta e a natureza
tornou-se melhor”.3
4
Natus homo est; siue hunc diuino semine fecit
Ille opifex rerum, mundi melioris origo,
Siue recens tellus seductaque nuper ab alto
Aethere cognati retinebat semina caeli;
Quam satus Iapeto mixtam pluuialibus undis
Finxit in effigiem moderantum cuncta deorum; (Met.I,78-83)
Nas Metamorfoses, nesse ponto, ao lado da natureza, para instaurar a
ordem universal, há uma interferência de uma divindade anônima (Met. I,21), a
qual Ovídio não nomeia. Um demiurgo (deus sive natura, quisquis fuit ille deorum,
mundi melioris origo, mundi fabricator, ille opifex rerum) separou as diversas partes
do mundo, colocou a ordem no caos inicial, porém segundo o poeta, quisquis fuit
ille deorum, (Met. I,32) (Um dos deuses, quem quer que seja), pois não se sabe
qual deus tratou de empregar seus bons ofícios para arranjar e dispor as coisas na
Terra. Assim a vida realmente começou a surgir, exatamente quando Ille deorum
separou a terra do céu. O demiurgo, que se percebe, posteriormente, é Prometeu,
mas não é apenas aquele que dá ordem às coisas, ele se apresenta como o
artista, o opifex rerum, que modela o homem, sua obra, pois era necessário um
animal mais nobre, sendo assim foi feito o homem.
“Nasceu o homem: ou o fez com a semente divina o criador das
coisas, origem de um mundo melhor, ou a terra, recente há
pouco afastada do alto éter, reprimia as sementes do seu irmão
céu. Quando o filho de Jápeto, com as ondas das chuvas, a
misturou e modelou, à imagem dos deuses”. 4
Pelos versos acima, não se sabe se o criador o fez de materiais divinos, ou
se na Terra, há pouco separada do Céu, ainda havia algumas sementes celestes.
No entanto, pode-se afirmar que o opifex rerum realiza um ato de caelatura, pois
Prometeu cria o homem à imagem divina para contemplar o divino, o homem vem
do barro: mistura de terra e água, porém carrega sementes divinas do céu,
sementes ígneas: cognati ... semina (Met.I,81) de tal forma que o homem se torna
uma parte do divino. É notável que caelum deixa de ser apenas aquele que cobre,
que oculta todas as coisas, para tornar-se uma obra-prima, a qual é admirada pelo
5 Trabalhos e dias de Hesíodo, tradução, comentários de Mary Camargo Neves Lafer.
homem, que possui um porte ereto, de maneira que, enquanto os outros
animais têm o rosto voltado para o chão, o homem levanta os olhos para os céus,
contemplando as estrelas (Met. I, 85-86). O homem, para Ovídio, é o animal mais
sagrado, sanctius, que faltava para dominar, dominari, os outros por meio de uma
mente superior, mentis altae (Met. I, 76-77). Por fim o homem é o artefato, a
criatura que gradualmente se torna o artífice nas eras metálicas,
conseqüentemente vem para rivalizar com os deuses em suas habilidades e
técnicas; entretanto, suas tentativas para rivalizar com o divino ou até para
reivindicar a herança divina não produzem resultados felizes, como se vislumbra
no mito de Faetonte, que, ao tentar dirigir o carro do Sol, quase destrói o mundo
pelo fogo.
Em Ovídio, Prometeu após misturar um pouco de terra com água, formou o
homem à semelhança dos deuses, enquanto os outros animais têm a cabeça
voltada para o chão, somente o homem a ergue para o céu. Já o poema didático
de Hesíodo, os Trabalhos e os dias, tem como finalidade mostrar a necessidade
do trabalho e da justiça; ensinar os trabalhos da terra, apontando as épocas em
que é conveniente realizá-los. Tanto o trabalho quanto a justiça estão intimamente
ligados e jamais poderão separar-se, caso não haja o primeiro, com certeza
haverá a violência, ou seja, a injustiça:
“Por trabalhos os homens são ricos em rebanhos e
recursos
e, trabalhando, muito mais caros serão aos imortais.
O trabalho, desonra nenhuma, o ócio desonra é!”
(v.309-311)5
O trabalho, para Hesíodo, é penoso, todavia é o único caminho para fugir
da miséria, sua lei é fundamentada numa razão metafísica, ou seja, no mito de
Pandora. O poema os Trabalhos e os dias segue exatamente esta divisão:
Introdução: (versos 1-10) que se compõe de uma invocação às Musas da
Piéria e a Zeus, guardião da justiça, concluindo com a finalidade máxima da obra:
dizer a seu irmão Perses a verdade.
1. Primeira parte (versos 11-382): elogio do trabalho e da justiça. Segundo
Brandão (1997, p.164), existe uma força moral que
empurra o homem para o trabalho: é a emulação; mas há outra, que o
afasta do mesmo: a inveja. Essas duas tendências, sob uma ótica
alegórica, são apresentadas por Hesíodo como as duas Lutas,
cifradas na Éris, a Emulação, a Discórdia (versos 11-41).

O trabalho se torna um preceito imposto pela vingança divina de tal forma


que o mito de Prometeu e de Pandora explica exatamente a origem dessa lei,
assim como todas as desgraças que atormentam o homem (v.42-105). Sendo
assim, a necessidade da justiça é demonstrada pelo mito das Cinco Idades, pois
somente a dedicação ao trabalho e à justiça assegura a prosperidade nesta vida e
a recompensa na outra.
2. Segunda parte (versos 383-694): trabalhos, agricultura e navegação. O
poeta apresenta como a riqueza pode ser adquirida não só por
meio da agricultura, mas também por meio da navegação, uma
vez que o mar está tão próximo do camponês grego.
3. Terceira parte (versos 695-828): conselhos morais e religiosos. Para o
poeta Hesíodo, tanto a justiça quanto o trabalho são sustentáculos
para a prosperidade, mas tudo depende, em primeiro lugar, da
escolha de uma boa esposa e em segundo lugar, deve-se
obedecer aos deuses, conforme já havia sido transmitido pela
tradição (versos 695-764).

Hesíodo acredita no trabalho e na justiça; pois para ele o trabalho tem um


papel apaziguador, capaz de dar a cada um o suficiente, conseqüentemente a
felicidade. Pode-se notar um papel moralizador no trabalho (v. 311), pois ele é
dura necessidade para o homem, o qual deve ganhar o pão com o suor do seu
rosto, tendo, como recompensa, a aprovação dos deuses.
Em outros mitos como em Hesíodo, a perda da felicidade originária constitui a
punição de uma culpa provocada pelo homem; em Vergílio, nas Geórgicas, ao
contrário, o próprio Pai (Pater ipse ) deseja eliminar o Torpor, que parece ser um
mal, nec torpere graui passus sua regna ueterno (Verg. Geo. I, 124). Na verdade,
não quer punir uma culpa, pois instiga o homem a trabalhar para sobreviver, para
ter suas próprias coisas. Para Hesíodo, a perda da idade áurea é punição por
culpa do homem. Os homens na idade áurea viviam como deuses, nem a velhice
lhes pesava, todos os bens eram para eles; a terra dava o fruto abundante.
"Primeiro de ouro a raça dos homens mortais
criaram os imortais, que mantêm olímpicas moradas.
eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;
como deuses viviam, tendo despreocupado coração,
apartados, longe de penas e misérias; nem temível
velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,
alegravam-se em festins, os males todos afastados,
morriam como por sono tomados; todos os bens eram
para eles; espontânea a terra nutriz fruto
trazia abundante e generoso e eles, contentes,
tranqüilos nutriam-se de seus pródigos bens." ( v. 109-119 )
Segundo Lafer ( 1991, p. 57 ), frente à resistência do irmão, Hesíodo discorre
sobre a necessidade humana do trabalho, e é nesse relato, cheio de indignação,
que se inicia o grande elogio do trabalho. Surge, desta forma, a alegoria das Lutas
como o primeiro passo em direção à defesa da vida justa e da vida de trabalho
entre os homens. Para Hesíodo, o trabalho é a base para a justiça entre os
homens; e tanto a defesa quanto a reiteração da necessidade do trabalho se
fazem por motivos ligados à sobrevivência material.
"Oculto retêm os deuses o vital para os homens;
senão comodamente em um só dia trabalharias
para teres por um ano, podendo em ócio ficar;
acima da fumaça logo o leme alojarias,
trabalho de bois e incansáveis mulas se perderiam." ( v. 42-46 )
Zeus, sentindo-se irado e traído pela atitude de Prometeu, resolveu
esconder o que era vital para os homens, ou seja, o fogo. No entanto, o filho de
Jápeto roubou uma centelha do fogo celeste, entregando-o aos homens,
reanimando-os de seu estado de imbecilidade. Imediatamente uma praga foi
lançada por Zeus, a ele e a todos os homens.
"grande praga para ti e para os homens vindouros!
Para esses em lugar do fogo eu darei um mal e
todos se alegrarão no ânimo, mimando muito este mal." (v. 56-58)
E assim Zeus ordenou a seu filho, Hefesto, que modelasse a belíssima Pandora,
mulher ideal e semelhante às deusas. No mito, a irresistível Pandora, castigo dos
céus, é a primeira mulher modelada em argila e animada por Hefesto, o qual, para
torná-la fascinante, recebeu a colaboração magnífica de todos os deuses. Atena
lhe deu o dom da tecelagem e uma vestimenta majestosa; Afrodite lhe
proporcionou o dom da beleza e da arte da conquista; Hermes, o mensageiro dos
deuses, encheu-lhe o coração de artimanhas; as Graças adornaram-lhe com
belíssimos colares de ouro e as Horas a coroaram com flores. Por fim, Hermes lhe
ofereceu o dom da palavra, chamando-a de Pandora, que significa a detentora de
todos os dons, um presente de todos os deuses. O dom divino que veio dos céus
para punir à humanidade com a desgraça.
"......................................................................Fala
o arauto dos deuses aí pôs e a esta mulher chamou
Pandora, porque todos os que têm olímpia morada
deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão." (v.79-82)
Zeus, satisfeito com tal obra-prima, pediu a Hefesto que enviasse Pandora, como
um presente, a Epimeteu, irmão de Prometeu. Encantado com a figura feminina,
Epimeteu não resistiu e recebeu seu presente: a primeira mulher. Até então, os
homens não precisavam trabalhar para viver, apenas viviam harmoniosamente
com os deuses. No entanto, com este presente divino, surge a necessidade do
trabalho, pois quando Pandora, por curiosidade feminina, abriu o presente de
núpcias, um jarro trazido do Olimpo, espalhou todas as calamidades e desgraças
que até hoje atormentam os homens. Imediatamente, por recomendação de Zeus,
Pandora tampou o jarro, onde permaneceu a Esperança presa junto às bordas do
jarro.
Pandora é, ao mesmo tempo, bem e causa da desgraça para os homens,
ela representa o início da degradação da humanidade. Conforme Brandão (1997,
p.168), Pandora, simbolizando todas as mulheres, é um flagelo instalado no meio
dos mortais, mas algo maravilhoso, revestido pelos deuses de atrativos e de
graça. Raça maldita, mas imprescindível ao homem (Teog. 585-591). É com
o mito de Prometeu e Pandora que Hesíodo justifica a necessidade do trabalho,
segundo Lafer (1991, p.64), como uma das contingências humanas, surgida
devido à resposta dada por Zeus a Prometeu, pois este o enganara. Ao esconder o
fogo, o homem precisa trabalhar para subsistir.
No mito Pandora e Prometeu, o trabalho aparece como tema central, sua
necessidade advém da vontade de Zeus. O trabalho aparece como conseqüência
do conflito entre Zeus e Prometeu. Se a mulher não tivesse erguido a tampa do
jarro, segundo Vernant (1973, p. 29), em que estavam encerrados os males, os
homens teriam continuado a viver como antes, sem sofrimento do trabalho pesado
e sem as doenças dolorosas que trazem a morte:
"Antes vivia sobre a terra a grei dos humanos
a recato dos males, dos difíceis trabalhos,
das terríveis doenças que ao homem põe fim;
mas a mulher, a grande tampa do jarro alçando,
dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares." ( v.90-
95)
Subsiste, porém, a Esperança, pois a vida não é totalmente obscura para os
homens, uma vez que os mesmos encontram os bens misturados aos males.
Na narrativa das Cinco Idadess: de ouro, de prata, de bronze, dos heróis e de
ferro, a Justiça é demonstrada como objeto central, pois só vivem os seres que a
respeitam.
"Tu, ó Perses, lança isto em teu peito:
A Justiça escuta e o Excesso esquece de vez!
Pois esta lei aos homens o Cronida dispôs:
que peixes, animais e pássaros que voam
devorem-se entre si, pois entre eles Justiça não há;
aos homens deu Justiça que é de longe o bem maior;
pois se alguém quiser as coisas justas proclamar
sabiamente, prosperidade lhe dá o longevidente Zeus;
mas quem deliberadamente jurar com perjúrios e,
mentindo, ofender a Justiça, comete irreparável crime;
deste, a estirpe no futuro se torna obscura,
mas do homem fiel ao juramento a estirpe será melhor." (v.274-285)
Para Hesíodo, é preciso honrar os deuses:
"Mas tu, disto afasta inteiramente teu ânimo insensato,
se podes, oferece sacrifícios aos deuses imortais
sacra e imaculadamente e queima pernis luzidios;" ( v. 335-337 )
Vergílio faz uma recomendação similar a que Hesíodo faz :
In primis venerare deos. ( Geo. I, 338 )
E assim, para Hesíodo, o trabalho é o caminho para o homem:
"Se nas entranhas riqueza desejar teu ânimo
assim faze: trabalho sobre trabalho trabalha." ( v. 381-382 )
Para Brandão (1997, p.169), as raças, no mito das Idades, parecem suceder-se
segundo uma ordem de decadência progressiva e regular. A humanidade,
inicialmente, vivia um estado paradisíaco, no entanto, se foi degenerando e
decaindo até atingir a idade de ferro, em que o poeta lamenta viver, pois até a
Vergonha e a Justiça abandonaram a terra, porque tudo se resume em maldade.
Cada uma das Idades recebe o nome de um metal, cuja hierarquia se ordena do
mais ao menos precioso: ouro, prata, bronze, ferro. O surpreendente é que
Hesíodo intercala entre as duas últimas: a idade dos heróis, que não possui
correspondente metálico.
Consoante afirmações de Brandão (1997, 170), as cinco idades, de cunho histórico
ou religioso, não traduzem apenas a decadência do homem, a partir de Prometeu
e de Pandora, mas acima de tudo a necessidade do trabalho e o dever de ser
justo. Em suma, Hesíodo apresentou o mitologema dentro de um esquema
trifuncional: primeiro, Ouro e Prata, onde há o predomínio da Justiça; segundo,
Bronze e Heróis, onde reina a Violência; terceiro, Ferro, onde existe a
ambigüidade, coexistência dos contrários: o bem se contrapõe ao mal, o homem
se opõe à mulher, o nascimento à morte. Momento em que o mundo vive
condenado á anarquia, à desordem, à infelicidade.
Conforme Brunel (1997, p. 785), o relato de Hesíodo tem uma função etiológica,
pois explica a miséria da condição humana e ensina o respeito dos deuses, mas
possui uma conclusão, sobretudo negativa, numa perspectiva de decadência e
nostalgia da idade de ouro. Prometeu é o benfeitor da humanidade, que lhe
causou a desgraça, cuja sorte é concebida em termos de queda e decadência,
sem fazer qualquer apologia da revolta: a lição de Hesíodo é a submissão à
vontade divina.
O Prometeu de Ésquilo não é mais o benfeitor primordial da Teogonia, pois foi ele
quem libertou os homens da obsessão da morte e os fez saber o que é a
esperança, além de dar-lhes o fogo que os conduzirá a produzir as diversas artes.
Para Brunel (1997, p.786), observa-se, em Ésquilo, uma considerável ampliação
do mito ao celebrar o progresso e a grandeza do homem num Prometeu iniciador
da civilização, das artes e das técnicas. Ao conceder a inteligência e o livre-arbítrio
aos homens, o Prometeu de Ésquilo não lhes ensina a revolta contra os deuses,
mas ela se torna possível da mesma forma a possibilidade da concórdia e
harmonia.
As imagens míticas concernentes à gênese do homem, conforme Diel (1991, p.
222), estão enraizadas no fenômeno biológico do desenvolvimento adaptativo das
instâncias psíquicas que ultrapassam o inconsciente animal (consciente,
supraconsciente, subconsciente). Desta forma, a história que precede esta etapa
da evolução é simbolizada, na Teogonia, pelos sucessivos reinados de Urano,
Crono e Zeus. O mito de Prometeu se torna uma continuação e uma amplificação
da Teogonia, pois retoma o relato da luta entre as figuras simbólicas, divindades e
titãs, a partir da constituição do reinado de Zeus, que é o momento exato do
advento do ser consciente.
Afirma-se, por conseguinte, que o mito de Prometeu conta a história do
despertar da humanidade. Por ser um titã, Prometeu simboliza a revolta contra o
espírito, simbolizado por Zeus. Embora ele não seja um dos titãs filhos de Urano,
que representam, na Teogonia, as forças selvagens da natureza, ele é um
descendente tardio dos Titãs, representando uma forma mais evoluída da
oposição ao espírito, ou seja, a revolta do desejo terrestre da matéria animada.
Prometeu representa o princípio da intelectualização. Conforme o dicionário
mítico etimológico, o nome Prometeu é formado de pró, “antes de, por
antecipação” e de mêthos, “ver, observar, pensar, saber”, com acréscimo do sufixo
–éus, que é freqüente nos antropônimos. De qualquer forma, Prometeu é derivado
de promethes, “previdente, precavido”, ou seja, “o que vê, percebe ou pensa
antes” (BRANDÃO,1992, p.328). Afirma-se que Prometeu significa o pensamento
previdente.
Para modelar sua obra, Prometeu serve-se da terra lodosa. A terra é
símbolo dos desejos terrestres, mas para dar vida à sua criatura, o Titã recorre ao
princípio espiritual, dirige-se ao Olimpo, onde está guardado todo o princípio de
vida. Logicamente que Prometeu não consegue trazer a luz do Olimpo, mas vai
trazer o fogo sagrado, mesmo que seja roubado.
Consoante palavras de Diel (1991, p.224), a região olímpica representa o
ideal evolutivo, o fim supremo, em direção ao qual tende o desejo essencial, ou
seja, à espiritualização. Prometeu deu vida ao homem de barro com a ajuda do
fogo roubado; no entanto, tal fogo simboliza o intelecto reduzido às satisfações dos
desejos múltiplos, contrários à vontade de Zeus.
O castigo pelo roubo do fogo não é porque Zeus ficou irado com Prometeu,
mas porque o espírito se opõe à banalização. Segundo Diel (1991, p.224), para
compreender o sentido profundo da revolta do Titã-Intelecto contra o espírito,
simbolizado pelo ladrão do fogo que é trazido aos homens, significa entrever o
mais claramente possível as conseqüências da intelectualização e de sua
tendência ao esquecimento do sentido da vida.
Assim, o fogo se torna o representante do intelecto, não somente porque
permite representar a espiritualização, mas também representar a perversão. No
plano real da história da humanidade, a descoberta do fogo desempenha um papel
crucial ligado à eclosão do intelecto tanto sob uma forma positiva quanto negativa.
Todo esforço para a mudança do mundo em função das necessidades corporais
do homem tem sua origem no domínio do fogo.
No entanto, o fogo também leva à destruição e a um desencadeamento
perverso, conseqüência nefasta tanto da revolta de Prometeu quanto do rapto do
fogo, simbolizados pela história de Prometeu e de Pandora. A mulher
criada, artificialmente, pelos deuses, é o castigo descido do céu. Sendo assim,
Pandora, como mulher, simboliza os desejos terrestres que levam o homem,
esquecido do espírito, à sedução banal. Pandora traz consigo o jarro que contém
um presente destinado a quem se deixar seduzir. O jarro, para Diel (1991, p.228),
é símbolo do subconsciente, pois encerra todas as formas de perversão, auxiliado
pela consciência cega de Epimeteu. Os dois, Pandora e Epimeteu, se casam e no
dia das núpcias, a tampa do jarro é erguida, saindo por ele todos os males que são
espalhados sobre a humanidade. Pode-se dizer que há uma relação análoga entre
o par Pandora e Epimeteu e o par Adão e Eva.
Entretanto, o homem acorrentado aos grilhões da banalização pode libertar-
se por sua própria força evolutiva, como um dia já fizera Hércules, criatura de
Prometeu, mas homem-herói, vencedor simbolicamente divinizado, consoante
palavras de Diel (1991, p.231). Hércules venceu a banalização, libertando o
intelecto banalizado. Desta forma, há uma reconciliação entre Zeus e Prometeu,
logo as conseqüências do rapto do fogo são apagadas e o fogo se converte em
chama purificadora. Simbolicamente, Prometeu, o intelecto arrependido de sua
revolta, ocupa seu lugar entre as divindades.
Em suma, todo o percurso mítico de Prometeu simboliza a história essencial
da humanidade: homem e mulher em sua marcha histórica. Segundo Diel (1991, p.
233), Prometeu é o símbolo da humanidade, ao representar o caminho que conduz
da inocência animal (inconsciente), através da intelectualização (consciente) e do
perigo de seu desvio (subconsciente), até a eclosão da vida mais elevada
(supraconsciente): Olimpo. Por fim, Prometeu representa a própria história da
humanidade não somente por meio da tendência à perversão, representada pelo
rapto do fogo, mas também pela esperança de se elevar a um caminho mais puro:
ao sublime, ao divino.
BIBLIOGRAFIA:
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VERNANT, J. P. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. São
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
VIRGILE. Les Géorgiques. Texte établi et traduit par Saint-Denis. Paris: Société d’édition Les
Belles Lettres, 1968.

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