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De todas as acusações feitas a Espinosa, a de Imoralista talvez seja a mais óbvia.

Mas,
se ela é justa em alguma medida, precisamos entender em que sentido essa justeza se
dá, pois na maioria das vezes o termo imoral é movido apenas como uma ofensa. É por
isso que, para esclarecer, preferimos usar imoralista no lugar de imoral.
Sabe-se que é impossível considerar Espinosa um mundano, movido pelas paixões, em
busca de honra e riqueza. A vida do filósofo atesta essa impossibilidade: ele tinha um
pequeno ofício, não tinha mais do que uns pares de roupas e dedicava sua vida à
reflexão e ao conhecimento. Por causa dos riscos que corria, ele vivia em reclusão e
mantinha apenas um pequeno círculo de amigos íntimos. Assim, qualquer um que o
acuse de imoralidade, não sabe bem do que está falando.
Para exemplificar, podemos tomar o começo do Tratado da Correção do Intelecto,
onde Espinosa denuncia que se há algum bem supremo, ele não está nas coisas
cotidianas, pois a experiência o ensinou que em si mesmas elas não contém nem bem
nem mal. Ou seja, a busca precisa ser empreendida em outro lugar.
Com efeito, as coisas que ocorrem mais na vida e são tidas pelos homens
como o supremo bem resumem-se, ao que se pode depreender de suas obras,
nestas três: as riquezas, as honras e a concupiscência . Por elas a mente se vê
tão distraída que de modo algum poderá pensar em qualquer outro bem. ”
– Espinosa, Tratado da Correção do Intelecto
Não só a biografia como bibliografia de Espinosa impede que se aceite a ofensa de que
ele era um inconsequente. Ora, por que então que o acusaram de imoralista? Em que se
sentido podemos dizer que Espinosa não tinha moral?

Esse ponto é esclarecido à medida que entendemos a diferença entre Ética e Moral.
Uma ordem moral do mundo ou sistema moral de pensamento é aquele que estabelece
regras universais para a ação. A filosofia moralista é aquela que trabalha com
universais como a verdade, a lei, a perfeição; bem como seus opostos, a falsidade, o
proibido, o imperfeito e etc.
Ilya Ibraev
Enquanto a Ética, no entendimento de certa tradição filosófica, é o tipo de pensamento
que considera a ação a partir de si mesma. Na falta de uma instância superior e externa,
os critérios de juízo éticos são intrínsecos ao agente. Assim, não há uma regra que
sirva como fundamento de nenhum modelo universal, nenhum imperativo categórico,
nenhuma verdade inquestionável.
A Ética contempla o perspectivismo, a crítica, a finitude, a multiplicidade, a
diversidade… é uma maneira mais aberta de se pensar. Uma visão ética de mundo
promove uma razão leve, que não tenta encaixar o mundo em seus moldes, mas
procura encontrar as medidas certas para se relacionar com ele.
Na terceira parte da Ética, seu principal livro, Espinosa desarticula todos os sistemas
morais ao fazer uma matemática dos afetos. Como eles funcionam? Como fazê-los
funcionar de modo que gerem mais alegrias do que tristezas? Ele não escreve para
instituir a lei: não há linha que não possa ser cruzada. Há apenas o bom-jeito e o mau-
jeito. “Se você fizer isso é provável que aconteça isso”, tudo está resumido no modo
como você se relaciona. O ignorante acusa e sofre as consequências; o sábio entende,
decifra, mede, e age.
Se existe uma lei, esta é a de Deus, não dos homens. A questão é que Deus confunde-
se com a natureza, então não há como desobedecê-lo, tudo que fazemos é sua vontade,
só temos que aprender o melhor jeito de fazê-lo então. Deus nada julga, ele não é um
soberano. Da perspectiva da natureza, não há erro, nem falta, nem imperfeição. É aqui
que começamos a entender por que Imoralista torna-se um insulto.
Ao suspender os critérios absolutos, a filosofia de Espinosa incita à experimentação,
pois ela adota a postura geométrica para avaliar o mundo. Um geômetra não lamenta
que uma elipse não seja um círculo; O filósofo espinosista não julga uma tristeza por
não ser alegria. Ele simplesmente pergunta “como isso funciona?”, “o que é isso que
eu sinto?”. E da mesma maneira que um geômetra define suas figuras pela razão de
produção, só descobriremos como funcionam os afetos depois de aprendermos a
produzí-los.
Ninguém pode entrar nesse processo de descoberta das alegrias sem experimentar. A
filosofia espinosista é imoralista no sentido em que os critérios de bem e mal são
colocados após as vivências singulares. Não há, portanto, uma cartilha definindo as
regras, dizendo o que pode e o que não pode. Não há mandamentos. Pensem o quão
absurdo eram essas ideias em meados de 1600. Espinosa escreveu: “Não queremos
algo porque é bom, mas é bom porque queremos”!
A Ética faz uma verdadeira revolução com a Moral. Não há anterioridade na
descoberta do que é bom e do que é ruim. Ou seja, bem e mal não estão acima da
existência, mas junto dela, como bom e ruim. É por isso que a boa filosofia não presta
para dar conselhos, porque tudo o que ela faz é apontar um caminho incerto dentre
inúmeros possíveis.
Tudo o que se pode fazer é avaliar as coisas como índice de sua própria verdade.
Imoralista é a postura de alguém que, antes de mais nada, abre mão de avaliar as coisas
pelo seu ajuste ou desajuste a um modelo exterior a ela, pois sabe que sua razão não é
medida de todas as coisas, que seus valores falam mais de si mesmo do que do mundo.
É por isso que, aos ouvidos de um moralista, o nome de Espinosa é já um insulto.
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