Você está na página 1de 4

AGORA É CONCORRÊNCIA TOTAL

Na disputa pelo bolso do consumidor, os competidores mais agressivos podem vir


de onde as empresas menos esperam.

Por Cristiane Correa (Revista Exame)

Não muito tempo atrás, concorrência era um termo bem definido no mundo dos
negócios. Não era preciso fazer muito esforço para saber quem eram os
concorrentes de uma montadora de automóveis, de uma construtora de prédios de
apartamentos ou de um restaurante de comida rápida. Se um executivo da GM
quisesse ter sucesso, bastava derrotar Volkswagen, Fiat ou Ford. Para o dono da
construtora Tecnisa, era suficiente deter empresas como Gafisa e Inpar, algumas
de suas principais rivais. Já o franqueado do McDonald's precisava se preocupar
com outras lanchonetes e restaurantes por quilo da vizinhança ou, no máximo, com
uma ou outra padaria que entrasse no ramo de comida rápida. Nos últimos anos,
porém, a concorrência tornou-se um fenômeno muito mais complexo.

No atual cenário, produtos e serviços não brigam apenas com outros da mesma
categoria. Em última análise, o que realmente interessa é a disputa por uma fatia
do bolso do consumidor. A panóplia de escolhas à disposição dos compradores é tão
ampla que, na prática, hoje todos brigam contra todos. É GM contra Tecnisa,
McDonald's contra Telefônica, o restaurante por quilo contra Microsoft. Bem-vindos
à era da concorrência total.

A renda per capita do brasileiro cresceu 5% nos últimos cinco anos

Há duas razões para a emergência desse fenômeno. A primeira não é nova. Trata-
se, inclusive, de uma constatação bastante simples. Como o bolso do consumidor
tem um limite -- nos últimos cinco anos a renda per capita cresceu algo como 5%
no Brasil -- , ele é obrigado a fazer escolhas. Compra um celular ou um brinquedo
para o filho no Dia das Crianças? Investe num plano de previdência privada ou arca
com a prestação de um imóvel? Presenteia a filha que entrou na faculdade com um
carro ou com um notebook? Se gastar dinheiro com uma opção, faltará para a
outra. Nada mais lógico, portanto, que as empresas se preocupem com o gasto do
consumidor de maneira global e que encarem como concorrente qualquer entidade
que tire dinheiro do bolso dele -- até a Receita Federal. Mas a segunda razão para a
irrupção da concorrência total, absolutamente nova, é a verdadeira explosão de
opções, na forma de produtos e serviços inéditos, provocada pela inovação
tecnológica e pelas comunicações, que avançam a uma velocidade sem
precedentes. "Em menor grau, o fenômeno já existia", afirma Cynthia Zaclis
Rabinovitz, professora da Business School São Paulo. "Mas o avanço da tecnologia
acelerou muito o processo." Num mundo de telas planas, lan houses e celulares
sofisticados, o consumidor tem escolhas de compra numa quantidade jamais vista.

Inversão de jogo

Em 1997, as receitas das montadoras no Brasil somaram 30 bilhões de reais


o dobro das operadoras de telefonia

Em 2003, as telefônicas faturaram 24 bilhões de reais


41% acima das montadoras
Antes, um executivo treinado para pensar na concorrência por meio de categorias
fixas podia dar-se ao luxo de esperar as inovações ganharem corpo e constituírem
mercados de vulto, até surgirem no seu radar como rivais. Não mais. As categorias
ainda são uma espécie de mal necessário, importantes para dar às empresas
alguma medida sobre seu sucesso, mas são freqüentemente deslocadas pela
velocidade do ambiente de negócios. "Na Unilever, os executivos já são ensinados a
encarar a prestação da Casas Bahia como concorrente do sabão em p", afirma o
executivo Laércio Cardoso, que deixou a Unilever no Brasil para ser diretor da
empresa na Índia. Tome ainda o exemplo dos planos de previdência, que já têm
mais de 6,2 milhões de participantes -- quase o dobro do número registrado cinco
anos atrás. Em média, as contribuições mensais giram em torno de 300 reais.
"Muita gente que no passado investia em imóvel para a aposentadoria agora
investe em planos de previdência", diz Osvaldo do Nascimento, presidente da
Associação Nacional de Previdência Privada. Por tabela, as instituições financeiras
acabaram se tornando concorrentes das construtoras. "Meu problema não são
competidores como a Gafisa ou a Cyrela", afirma Romeo Busarello, diretor de
marketing da construtora Tecnisa. "São os planos de previdência privada do Itaú e
da AGF".

Apesar de sentir a competição, o executivo não é capaz de dizer quantos imóveis


deixa de vender por causa da concorrência com os planos de previdência. E não é o
único. A maioria das empresas ainda não preparou estratégias para se defender.
"Muitas nem perceberam a mudança no conceito de concorrência", afirma Ana
Claudia Fioratti, diretora da LatinPanel, instituto que pesquisa hábitos de consumo.
O fenômeno é tão novo que não há estudo consolidado sobre o tema, embora ele
seja cada vez mais fundamental para a sobrevivência das empresas. Especialistas
afirmam que os setores nos quais a concorrência total está mais presente são
aqueles em que a inovação é maior.

Nenhum produto pôs a antiga ordem tão em xeque quanto o celular. "Ele mudou a
dinâmica do mercado", diz o consultor Fernando Fernandes, da Booz Allen
Hamilton. Com o passar do tempo, o celular deixou de ser apenas um objeto de
desejo para se tornar uma despesa fixa na vida do consumidor. "Muita gente que
antes podia encarar a prestação de um carro hoje gasta em TV a cabo, internet e,
principalmente, celular", diz Sérgio Habib, presidente da Citroën do Brasil. Na Vivo,
a maior operadora de celular do país, os clientes podem baixar jogos, receitas de
culinária e até trailers de filmes de Hollywood. A venda de toques de celular com
base em trechos de músicas conhecidas não pára de crescer. Em 2004, os usuários
da Vivo fizeram mais de 300 000 downloads de um toque inspirado numa música
do conjunto mineiro Skank. No mesmo período, o grupo vendeu 120 000 CDs.
Hoje, os melhores celulares já são também um aparelho de música portátil, como o
iPod da Apple.

Aos poucos, a linha divisória que separa o celular de outras formas de entreteni
mento vai desaparecendo. "Quando olho para a Sony, ora vejo um concorrente, ora
vejo um cliente", diz Luís Avelar, vice-presidente de marketing e inovação da Vivo.
Para tentar conquistar o bolso do consumidor, a Vivo mantém uma equipe de 40
pessoas que só fazem pensar em inovações que gerem receita. E outras empresas
também tentam competir na área das operadoras. No final de 2004, a Mattel,
fabricante da boneca Barbie, lançou uma versão em que o produto vem
acompanhado de um aparelho capaz de enviar mensagens de texto. A Estrela, que
produz a Susi, fechou uma parceria com a Vivo e colocou no mercado uma boneca
com um celular de brinquedo que funciona como uma espécie de walkie-talkie.
"Como o celular virou um objeto de desejo da criançada, a saída foi incorporar
alguns elementos aos brinquedos", diz Aires José Leal Fernandes, diretor de
marketing da Estrela.
Entenda a concorrência total

Veja como empresas de diferentes setores disputam o bolso do consumidor

Bancos
Planos de previdência privada

Montadoras
Prestação do automóvel

Redes de TV
Mensalidade da TV paga

Alimentação
Contas de restaurante

Telefônicas
Download de música no celular

Entretenimento
Compra de CDs

Moda
Compra de roupas

Saúde
Mensalidade da academia de ginástica

Ensino
Mensalidade escolar

Construtoras
Prestação da casa própria

Como reagem as empresas quando um concorrente surge de onde menos esperam?


Para a Kodak, que viu o mercado de fotografia ser invadido pelos celulares com
câmera, a saída foi aprender com o intruso. A primeira lição foi que também é
possível para a empresa invadida entrar em novos mercados. Desde o início da
década, a Kodak resolveu atacar o mercado de impressão de imagens. "Até 2007,
devem existir 1 bilhão de celulares com câmeras fotográficas em todo o mundo",
diz Richard Boyes Ford, diretor da linha de câmeras digitais da Kodak para a
América Latina. "Ao entrar no mercado de impressão, também participamos desse
jogo."

A segunda lição, válida principalmente para mercados de baixa renda, diz respeito
diretamente ao bolso do consumidor. Se o objetivo é tirar dinheiro dele, é
fundamental tentar facilitar a compra por meio de estratégias financeiras. Em
outubro de 2004, a Kodak implementou um sistema de financiamento para
revendedores que prevê o parcelamento das máquinas em até dez prestações --
desde que a vantagem seja repassada ao consumidor. O efeito foi imediato: no
primeiro mês de funcionamento do sistema, a venda de câmeras digitais aumentou
600%.

A terceira lição na conquista do bolso do consumidor é tentar transformar


produtos, cuja compra é pontual, em serviços, que se convertem em receitas
contínuas. Os executivos da Multibrás, por exemplo, formaram uma equipe para
pensar em possibilidades de crescimento. Sob a orientação da consultoria
Strategos, do americano Gary Hamel, surgiu um novo negócio: a locação de
purificadores de água. "A sacada foi conseguir estabelecer um relacionamento de
longo prazo com o consumidor", afirma Emerson Valle, diretor da Multibrás. Ao
optar por um modelo que pressupõe um pagamento mensal por um contrato de
prestação de serviço, a Brastemp se torna uma despesa fixa. Ainda é cedo para
saber se iniciativas como essa vão prosperar. Ou quanto os fabricantes de
brinquedos podem resistir ao avanço dos celulares. É inegável, porém, que a
concorrência tradicional faz parte do passado.

Você também pode gostar