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SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO

ORGANIZAÇÃO

Eduardo F. Chagas
Hildemar Luiz Rech
Raquel Vasconcelos
Vilson da Mata
SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO

3
EDIÇÕES
UFC

© 2012 Copyright by os autores

CAPA/PINTURA E PROJETO GRÁFICO/GRAPHICS EDITORS


Raquel Célia Silva de Vasconcelos

APRESENTAÇÃO
Lígia Regina Klein

EDITORAÇÃO/DESKTOP PUBLISHING

COMISSÃO CIENTÍFICA/SCIENTIFIC COMMITTEE:


Eduardo Ferreira Chagas
Hildemar Luiz Rech
Lígia Regina Klein

NORMALIZAÇÃO DE TEXTO/ TEXT NORMALIZATION

REVISÃO/ REVIEW

IMPREESÃO/PRINTING

Todos os direitos reservados .....

________________________________________________________________________________________________________

CHAGAS, Eduardo F., RECH, Hildemar Luiz, VASCONCELOS. Raquel


Célia Silva de e MATA, Vilson Aparecido da

Subjetividade e Educação/organizado por Eduardo Ferreira


Chagas, Hildemar Luiz Rech, Raquel Célia Silva de Vasconcelos
e Vilson Aparecido da Mata. Fortaleza: Edições UFC, 2012.

208p.

ISBN:

1. Filosofia 2. Subjetividade 3. Educação. I Título

CDU

4
Sumário

06 Apresentação
Lígia Regina Klein

14 “Quem não conheceu as obras dos Antigos tem vivido se o he er a eleza”:


Hegel e a proposta neo-humanista de educação
Marcos Fábio Nicolau

26 O Pensamento de Marx Sobre a Subjetividade


Eduardo Ferreira Chagas

43 Trabalho, Subjetividade e Educação em Marx


Vilson Aparecido da Mata

58 A Lógica da Exceção na Reflexão Política de Walter Benjamin


Tereza Castro Callado

72 Mímesis e ritual: Performance do Corpo e Linguagem


Simbólica (elementos para re-criação cultural)
Raquel Célia Silva de Vasconcelos

87 Os livros e os brinquedos no pensamento de Walter Benjamin


Conceição Ribeiro Guimarães

98 Slavoj Zizek: Real, Fantasia, Objetos Sublimes da Ideologia, Ato Político e Educação
Hildemar Luiz Rech

123 Reflexões sobre a Sociedade Tecnicamente Administrada (Capitalista)


e suas Correlações com a Educação em Adorno
Pedro Rogério Sousa da Silva

137 Educação e Subjetividade em Theodor W. Adorno


Maria Socorro Gomes

146 Metafisica da vontade de poder e maquinação em Martin Heidegger


Homero Luis Alves de Lima

161 Formação Discursiva da Plenitude em Educação:


desconstruindo a sagrada condição do homem
Karina Míriam da Cruz Valença Alves

178 Empreendedorismo, Concorrência e Educação:


faces da governamentalidade neoliberal e da biopolítica contemporânea
Sylvio Gadelha

193 Educação Profissional: a normalização biopolítica da subjetividade produtiva


Samuel Brasileiro Filho

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Apresentação

Lígia Regina Klein1

O livro que ora temos a honra e a satisfação de apresentar aos leitores trata de uma
questão absolutamente candente no debate contemporâneo, com inequívoca repercussão
no campo educacional: a subjetividade.
O tema se impõe, seja porque a subjetividade se reveste de uma importância não
desprezível na interpretação das conquistas e das vicissitudes do gênero humano,
merecendo maior ênfase nas teorizações orientadas para uma perspectiva
revolucionária, seja porque seu tratamento encontra, nas perspectivas reformistas ou
francamente reacionárias, um privilégio caracterizado por um claro esvaziamento do seu
conteúdo.
Com efeito, basta um breve exemplo para realçar sua relevância: Marx (1982,
p.202), ao precisar a categoria “trabalho em geral”, patenteia que o processo de
trabalho, que está na base da mais consistente concepção de homem, envolve
imaginação, vontade, atenção e, inclusive, prazer, fruição:

No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes


idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o
material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha
conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de
operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é
um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a
vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso
do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o
trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa,
que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das suas
próprias forças físicas e espirituais.

Trata-se, entretanto, de tema áspero, oferecendo dificuldades inauditas aos que


dele se aproximam insuficientemente armados.
Uma dificuldade de vulto reside na necessidade de tratar da subjetividade sem
perder de vista, dialeticamente, seus determinantes objetivos. Ao meramente
contrapormos subjetividade e objetividade como esferas excludentes, sem atentarmos

1
Licenciada em Letras e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná, mestre e doutora em
Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atua como professora e pesquisadora no
Curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.
Coordena o Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo/UFPR.
para sua unidade ontológica, ou ficamos nos infecundos limites do materialismo vulgar,
ou bem descambamos para um deletério idealismo.
Neste sentido, Marx e Engels alertam que:

La producción de las ideas y representaciones, de la consciencia, aparece al


principio diretamente entrelazada com la actividad material y el comercio
material de los hombres, como el lenguaje de la vida real. Las
representaciones, los pensamientos, el comercio espiritual de los hombres se
presentam, todavia, aquí, como emanación directa de su comportamiento
material. Y lo mismo ocorre com la producción espiritual, tal y como se
manifiesta em la lenguaje de la política, de las leyes, de la moral, de la
religión, de la metafísica, etc., de un pueblo. (MARX y ENGELS, 1972, p.
25-26).

Entretanto, sobre a dificuldade mencionada acresce a condição de alienação posta


pelo modo de produção capitalista, cuja determinação máxima – a mercadoria – unifica-
se na sua expressão monetária – o dinheiro –, equivalente de toda mercadoria, que se
corporifica como objeto por excelência, a galvanizar os recônditos da subjetividade
humana.
Marx, não raro acusado de não tratar da subjetividade, é quem nos dá a chave para
a compreensão atual desse espinhoso tema, ao nos apresentar o dinheiro como “o
alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida do homem e os meios de
subsistência”, que não só mediatiza a vida do indivíduo, como também mediatiza, para
ele, a existência dos outros homens. O dinheiro é, assim, sob as leis objetivas do
capitalismo, a outra pessoa. (MARX, 1989, p. 230, grifos do autor).
Comentando brilhantes passagens de Goethe e de Shakespeare sobre a natureza do
dinheiro, o autor de O Capital expõe contundente reflexão, que nos permitimos
reproduzir, a despeito de longa, para preservar a integridade do pensamento marxiano:

O que para mim existe através do dinheiro, aquilo que eu posso pagar, isto é,
o que o dinheiro pode comprar, sou eu, o próprio possuidor do dinheiro. O
poder do dinheiro é o meu próprio poder. As propriedades do dinheiro são as
minhas – do possuidor – próprias propriedades e faculdades. Aquilo que eu
sou e posso não é, pois, de modo algum determinado pela minha própria
individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher.
Por conseguinte, não sou feio, porque o efeito da fealdade, o seu poder de
repulsa, é anulado pelo dinheiro. Enquanto indivíduo, sou coxo, mas o
dinheiro fornece-me vinte e quatro pernas; portanto, não sou coxo; sou um
homem detestável, indigno, sem escrúpulos e estúpido, mas o dinheiro é
objeto de honra, por conseguinte, também o seu possuidor. O dinheiro é o
bem supremo, e deste modo também o seu possuidor é bom. Além disso, o
dinheiro poupa-me ao esforço de ser desonesto; por consequência, sou tido na
conta de honesto; sou estúpido, mas o dinheiro constitui o espírito real de
todas as coisas: como poderá o seu possuidor ser estúpido? Ademais, ele
pode comprar para si as pessoas talentosas: quem tem poder sobre as pessoas
inteligentes não será mais talentoso do que elas? Eu, que por meio do

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dinheiro possuo tudo o que o coração humano ambiciona, não possuirei todas
as capacidades humanas? Não transformará assim o dinheiro todas as minhas
incapacidades no seu contrário?
Se o dinheiro é o vínculo que me liga à vida humana, que liga a sociedade a
mim, que me une à natureza e ao homem, não será ele o laço de todos os
laços? Não poderá ele soltar e unir todos os vínculos? Não será ele, portanto,
o meio universal de separação? Constitui o verdadeiro meio de separação e
união, a força galvano-química da sociedade. (MARX, 1989, p. 232, grifos
do autor).

Ademais, na sua vocação alienada e alienante, o dinheiro tem o poder de


perverter e inverter as qualidades humanas e naturais, capaz de estabelecer a
fraternidade entre os incompatíveis, posto que assume, nesta sociedade, a condição de
síntese objetiva de todas as qualidades humanas, não se permutando com uma específica
faculdade humana, mas com todo o mundo objetivo, nas suas dimensões humana e
natural.
Entender a subjetividade humana implica, pois, conhecer a constituição do
homem, na interação entre o orgânico e o inorgânico. Se é verdadeiro que o homem é
criatura de si mesmo, ele o é por aquilo que produz e o que produz existe como uma
realidade objetiva, externa a ele, mas que, no entanto, integra o sujeito, integrando assim
a sua subjetividade. A condição alienada dos sujeitos é a grande questão da
contemporaneidade, nesta sociedade de classes em que se intensificam, por um lado, a
produção social e, por outro, a apropriação privada. Se o ser social, como gênero, é
produtor e detentor de uma riqueza extraordinária – e entenda-se por riqueza o conjunto
dos recursos historicamente produzidos para expandir as capacidades da espécie – o
mesmo não ocorre com o indivíduo, a quem é negada a incorporação dessa riqueza na
sua condição de existência cotidiana. Em outros termos, a sua individualidade é pobre, é
carente em relação ao que é seu próprio gênero. Contribuindo, com o seu trabalho, para
o progresso do gênero – progresso material e espiritual -, ele é mantido nos limites da
espécie, posto que a riqueza – tudo aquilo que é constitutivo do gênero - dele se
encontra separada, seccionada, cortada. Só a posse do dinheiro logra sua re-ligação com
o gênero.
Evidente, entretanto, que as causas dos males do mundo não estão no dinheiro,
que já existiu em outras sociedades, sem o conteúdo que hoje detém. Conhecer e
combater essas causas implica uma incursão pelos meandros do capitalismo, essa forma
de organização da sociedade que reduz tudo à mercadoria e transforma todas as relações
constitutivas do humano em um grande e universal mercado. Nesse mercado, todas as

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trocas são mediadas pelo dinheiro e “no dinheiro se apagam tôdas as diferenças das
mercadorias, justamente porque êle é a forma equivalente comum delas tôdas” (MARX,
1983, p. 49).
Em outros termos, o trabalhador, com o seu trabalho, faz progredir as
capacidades da espécie de socar, levantar, separar, triturar, rasgar, juntar, arranhar, etc.
desenvolvendo os mais variados instrumentos, ferramentas e máquinas; faz progredir a
visão da espécie, desenvolvendo, óculo, microscópios, telescópios, lentes diversas, a
televisão; faz progredir a capacidade de marcha e transporte da espécie ao domesticar o
cavalo, o camelo, ao inventar a roda, ao desenvolver a charrete, o trenó, a carruagem, o
automóvel, o trem, o avião, o navio; faz progredir a capacidade de voz e audição da
espécie, inventando a escrita, o telégrafo, o rádio, o telefone; faz progredir a capacidade
de pensar da espécie, inventando os signos, a linguagem, a língua escrita, os códigos em
geral; faz progredir as capacidades de julgamento, de interpretação, de gozo, etc., da
espécie, ao inventar e desenvolver diferentes formas de representação, que vão do
simples rabisco mal traçado de um desenho bruto ao requinte das artes em geral – a
música, o teatro, a literatura; faz progredir, na espécie, a capacidade de intervenção na
natureza, desenvolvendo o conhecimento, a ciência e a tecnologia. E assim,
cansativamente, poderíamos arrolar inúmeros outros exemplos de como o trabalho
criador aumenta as possibilidades da espécie, transformando-a naquilo que conhecemos:
o gênero humano. Entretanto, sob o capitalismo, a riqueza do gênero é separada dos
produtores e criada já com destinação ao mercado. Lá, somente se torna acessível pela
mediação do dinheiro, que se obtém ou pela venda de força de trabalho ou pela
exploração do trabalho excedente de outrem.
Desnecessário comentar a obviedade de que a força de trabalho, em tendo um
valor de uso que transcende seu valor de troca, é explorada ao máximo no seu valor de
uso, e retribuída apenas pelo justo valor de troca, ou seja, pelo valor necessário à
recomposição da energia consumida. Daí a imensa desigualdade, para o trabalhador,
entre a riqueza produzida e a riqueza consumida por ele. Daí a imensa diferença nas
possibilidades de desenvolvimento da individualidade e da subjetividade dos sujeitos.
Este desnudamento da forma capitalista do ser social nos obriga a transcender as
quimeras relativas a uma suposta subjetividade natural, que precisa ser preservada em si
mesma para “desabrochar”, a supostas “tendências” naturais que, se respeitadas, ou seja,
deixadas intocadas, incontaminadas de vida, comporiam uma subjetividade melhor.

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Ademais, vale lembrar que, ao tudo converter em mercadoria, o capital
necessariamente igualiza todas as coisas enquanto mercadoria. Assim, rompe com
qualquer fronteira entre o justo e o injusto, o saudável e o pernicioso, o belo e o feio, o
ético e o antiético, o corrupto e o incorruptível. É o que explica a impossibilidade de
qualquer avanço ou solução ética dos tempos atuais, como bem ilustra a magistral
“digressão” marxista, sob o título “Concepção apologética da produtividade de toda
profissão”, onde o autor demonstra como, sob o capital, o criminoso é um sujeito de alta
produtividade, absolutamente necessário ao sistema. O texto é longo e citamos apenas
pequenos excertos, convidando o leitor a prosseguir a leitura, na fonte:

Filósofo produz idéias, poetas poesias, pastor prédicas, professor compêndios


e assim por diante. Um criminoso produz crimes. Se mais de perto
observarmos o entrosamento deste último ramo de produção com a sociedade
como um todo, libertar-nos-emos de muitos preconceitos. O criminoso não
produz apenas crimes, mas também o direito criminal e, com este, o professor
que produz preleções de direito criminal e, além disso, o indefectível
compêndio em que lança no mercado geral “mercadorias”, as suas
conferências.
[...] o criminoso produz também toda a polícia criminal, beleguins, juízes e
carrascos, jurados, etc., e todos aqueles diferentes ramos que constituem
outras tantas categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem
capacidades diversas do espírito humano, criam novas necessidades e novos
modos de satisfazê-las. Só a tortura suscitou as mais engenhosas invenções
mecânicas e ocupou na produção de seus instrumentos muitos honrados
artífices.
[...] o criminoso produz uma impressão com gradações morais e trágicas
dependentes das circunstâncias, e assim presta um “serviço” ao despertar os
sentimentos morais e estéticos do público. Não só produz compêndios sobre
direito criminal, códigos penais e portanto legisladores penais, mas também
arte, literatura, romances e mesmo tragédias, tais como Schuld de Müllner,
Raüber (Salteadores) de Schiler, Édipo de Sófocles e Ricardo III de
Shakespeare. (MARX, 1987, p. 382-383, grifos do autor).

Eis que, abandonar as fantasias da moral burguesa – “impotência posta em


ação”, dizia Marx – e enfrentar as raízes das assombrosas impertinências da alienação
constituem condições para uma aproximação consequente do tema, o que envolve,
necessariamente, uma clara disposição crítica. Efetivamente, sem o aporte de uma
perspectiva que questione os fundamentos da sociedade contemporânea, dificilmente se
alcançará o cerne de um tema que, seguramente, está na base de qualquer reflexão
educacional.
Esse esforço encontrará sua recompensa na contribuição à superação de
condições objetivas em que impera a alienação. Um vislumbre de como será uma

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subjetividade liberta podemos apreender no retrato das assembleias dos operários
socialistas franceses, traçado ainda por Marx:

Quando os artífices comunistas se reúnem, seu objetivo é, em primeiro lugar,


a instrução, a propaganda, etc. Mas, ao mesmo tempo, uma nova necessidade
desperta neles, a de ter comércio com seus semelhantes, e, o que havia
parecido um meio, torna-se um objetivo. Os resultados brilhantes que esse
movimento prático deu podem ser observados nas assembleias dos operários
socialistas franceses. Fumar, beber, comer, etc., não são mais os meios para
estarem reunidos, não são mais laços. A comunhão, em seu círculo, a
conversação, cujo objetivo não é ainda senão comunhão, lhes bastam. Em
seus lábios, a fraternidade humana não é uma frase, mas uma verdade, e, dos
rostos que o trabalho tornou rudes, emana toda a beleza do humano. (Marx,
1946, p. 282).

Os leitores atentos hão de observar que, nos capítulos que compõem o presente
livro, o enfrentamento do tema geral que os une se faz por essa via da segura superação
dos limites do positivismo e do idealismo. Esta coletânea, inegavelmente, coloca e
avança para o entendimento de questões da maior relevância. O leitor que nela
mergulhar, vai emergir, à frente, com uma consciência mais aguda das condições de
produção da subjetividade no mundo contemporâneo. Por todas essas razões, entendo-a
mais do que recomendável. Seus autores, com evidente competência, transitam por
vários aspectos da questão em tela, articulando-a, ainda, com os problemas mais
significativos da educação.
O capítulo que abre a coletânea, “Quem não conheceu as obras dos Antigos tem
vivido sem conhecer a beleza”: Hegel e a proposta neo-humanista de educação, de
Marcos Fábio A. Nicolau, analisa a incursão de Hegel pelo debate pedagógico,
destacando a presença da pedagogia no seu sistema, inobstante a inexistência de obra
específica sobre o tema, em seu sistema da ciência e avança proposta de se atentar para
a fecundidade de Hegel no enfrentamento contemporâneo da crise da educação.
Eduardo F. Chagas desenvolve, no capítulo “O Pensamento de Marx sobre a
Subjetividade”, uma instigante reflexão sobre a relação entre subjetividade e
objetividade, em Marx, a partir de um cotejamento de sua crítica à filosofia especulativa
de Hegel e ao empirismo da economia clássica.
O terceiro capítulo, de autoria de Vilson Aparecido da Mata, sob o título
“Trabalho, Subjetividade e Educação em Marx”, apresenta uma rigorosa imersão no
pensamento marxista, em busca de sua concepção de subjetividade. A partir da
refutação das críticas que apontariam o determinismo econômico e a submissão da
subjetividade à atividade econômica na obra de Marx, aponta a indispensável apreensão

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da totalidade para adequado tratamento da questão da subjetividade no referido
pensador.
O capítulo que se segue, intitulado “A lógica da exceção na política de Walter
Benjamin”, da lavra de Tereza de Castro Callado, enfrenta a difícil questão da
moralidade e da legalidade, a partir do conceito de estado de exceção de Walter
Benjamin.
Raquel Célia Silva de Vasconcelos lança-se a uma instigante articulação entre as
categorias de ritual, em Peter McLaren, e mimese em Walter Benjamin, no quinto
capítulo deste livro, sob o título “Mimese e Ritual: performance de um corpo e a
linguagem simbólica na re-criação cultural”. Apresenta-nos fundamentação para a
ideia de que o corpo é expressão de resistência e de renúncia às práticas repressoras em
curso na sociedade.
Slavoj Zizek é o autor que Hildemar Luiz Rech toma como objeto de seu estudo,
no capítulo sexto - “Real, Aparelho, Fantasia, Interpretação e Objetos Sublimes da
Ideologia, conforme Slavoj Zizek”. A ideologia, a política e a educação na perspectiva
zizekiana, são temas de seu qualificado texto.
O sétimo capítulo – “Os Livros e os Brinquedos no Pensamento de Walter
Benjamin” - mais uma vez retoma o pensamento de Walter Benjamin, pela pena de
Conceição Ribeiro Guimarães, que analisa o tratamento que o pensador frankfurtiano
concede aos livros e brinquedos.
“Reflexões sobre a Sociedade Tecnicamente Administrada (Capitalista) e suas
Correlações com a Educação em Adorno” compõe o capítulo assinado por Pedro
Rogério Sousa da Silva, que analisa criticamente as relações entre a racionalidade
técnica e a educação, sob a perspectiva teórica de Theodor Adorno.
As teorizações frankfurtianas de Adorno são novamente objeto de reflexão no
capítulo de autoria de Maria Socorro Gomes: Educação e Subjetividade em Theodor W.
Adorno”. A autora investiga, com bastante propriedade, a inserção de Adorno na obra
freudiana, argumentando sobre sua importância na formulação de propostas
educacionais que se proponham levar em consideração a subjetividade.
Homero Luís Alves de Lima assina o capítulo “Metafísica da Vontade de Poder
e Maquinação em Martin Heidegger”, em que expõe uma instigante confrontação entre
Heidegger e Nietzsche, em torno do pensamento calculador.
“Formação Discursiva da Plenitude em Educação: desconstruindo a sagrada
condição do homem” foi o desafiador título que Karina Mirian da Cruz Valença Alves

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atribuiu ao capítulo de sua lavra. Nele, a autora analisa a constituição de uma nova
formação discursiva, por ela denominada de “formação discursiva da plenitude”,
calcada em um "reencantamento" do mundo que se caracteriza pela religação homem-
natureza e se institui como fundamento para a ação no presente.
Sylvio Gadelha assina o capítulo “Empreendedorismo, Concorrência e
Educação: faces da governamentalidade neoliberal e da biopolítica contemporânea”,
em que aproveita um tema bastante atual na economia e, inclusive, na educação - o
empreendedorismo – confrontando-o com o caráter concorrencial das relações
econômicas, em sua manifestação nos debates educacionais.
Sob o título “Educação Profissional: a normalização biopolítica da
subjetividade produtiva”, Samuel Brasileiro Filho se debruça sobre o contexto histórico
da transição da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial para, com apoio em
Marx e Foucault, realizar um estudo sobre as condições de existência da subjetividade
produtiva e suas implicações com a relação trabalho e a educação.
O conjunto dos artigos, unificados pelo foco na subjetividade e educação,
descortina um generoso veio de relevantes questões a serem enfrentadas pelos teóricos e
educadores brasileiros, ao mesmo tempo que indica um itinerário de abordagens e, a
leitura o confirmará, apresenta-nos um trajeto extremamente fecundo já realizado pelos
autores, aos quais não falta conhecimento e sobejam qualidades críticas. Assim, só
posso concluir apostando na certeza de que os leitores encontrarão, na sua leitura, a
mesma satisfação que tive em aprender com tão consistentes pesquisadores.

Curitiba, março de 2012.

Referências

MARX, Karl.Trechos Escolhidos sobre Filosofia. Rio de Janeiro: Calvino, 1946.

__________. O Capital, Livro I. São Paulo: DIFEL, 1982.

__________. O Capital, Livro 2, vol. 3. São Paulo: DIFEL, 1983.

__________. Teorias da mais valia. O Capital, Livro 4, Volume 1. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1987.

__________. Manuscritos Económico-Filosóficos. Lisboa/Portugal: Edições 70,1989.

__________e ENGELS, F. La Ideologia Alemana. Montevideo: Ediciones Pueblos


Unidos/ Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1972.
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“Quem não conheceu as obras dos Antigos tem vivido sem
conhecer a beleza”: Hegel e a proposta neo-humanista de educação.

Marcos Fábio A. Nicolau

Ciente da falta de um tratamento específico do problema pedagógico no sistema


hegeliano, busco encontrar nos Discursos (1809-1815) a apreensão de um modelo
educacional cujo autor crê ser apto a formar o homem. Para tal, o filósofo assumirá a
pedagogia neo-humanista proposta por I. Niethammer, sob a qual estenderá suas
reflexões quanto a Bildung (formação cultural), elaboradas na, então recentemente
publicada, Fenomenologia do Espírito (1807). Porém, para compreender sua
perspectiva sobre a educação, deve-se antes apreender o cenário vivenciado por Hegel
neste período, pois, cabe salientar, sua vinda a Nüremberg e o exercer de tais funções se
devem ao convite de seu amigo e protetor I. Niethammer, que já fora o responsável por
sua temporada em Bamberg (1807-1808), como redator do Bamberger Zeitung, e que,
ao assumir o posto de Conselheiro Escolar Central para a confissão protestante, convida
Hegel para exercer as funções de professor e diretor do Ginásio de Nüremberg.
Em discurso proferido em 1809, por ocasião do fim de seu primeiro ano à frente
do Ginásio de Nüremberg, Hegel afirmara que o bom funcionamento dos povos
pressuporia dois ramos primordiais: 1. uma boa administração da justiça e, 2. bons
centros de ensino, pois, segundo Hegel, “em nenhum outro âmbito os indivíduos
percebem e sentem os efeitos de forma tão rápida e imediata” (HEGEL, 2000, p. 73). Se
nos lembrarmos do que o filósofo diz em suas Lições de Filosofia do Direito, em nota
ao §153, compreenderemos bem o que tem mente:

Diante da pergunta de um pai sobre a melhor maneira de educar eticamente


seu filho, um pitagórico deu a resposta (que é também colocada na boca de
outros): quando tu fazes dele um cidadão de um Estado de boas leis.
(HEGEL, 2010, p. 172)

A proposta hegeliana de uma educação para a cidadania perpassa toda sua obra,
e, diferentemente da proposta original de Rousseau, no Emílio, Hegel vê na educação o


Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em
Filosofia do ICA/UFC. Atualmente é Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação Brasileira da FACED/UFC. E-mail: marcosmcj@yahoo.com.br.

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objetivo de superar o estado de natureza. Só a formação e a educação fazem do homem
o que deve ser: um ser que se realiza na ruptura com o natural.
Em seus discursos como reitor do Ginásio, Hegel nunca deixou de salientar a
função social da educação, nem a participação do Estado na mesma. Em seus discursos
Hegel tinha a dupla intenção de expor, aos representantes do Estado e aos pais e
responsáveis, o que fora o ano escolar, bem como apresentar seu parecer sobre a questão
educacional. Para isso, se utiliza dos fatos, comprovando com os resultados suas
perspectivas. Neste discurso proferido em 1809, aproveitando o fato do recém-criado
Ginásio de Nüremberg ter completado seu primeiro ciclo escolar, Hegel analisa como se
dá o processo educacional, em seus avanços e dificuldades, pois “dado que a coisa
mesma acaba de surgir pela primeira vez, sua substância constitui, todavia, o objeto da
curiosidade e da reflexão pensante” (HEGEL, 2000, p. 74). Ao defrontar o impacto
social que dito centro de estudos causou sobre a sociedade nüremberguiana, o filósofo
busca articular em suas idéias o projeto proposto a tal instituição, apresentando-o e
justificando-o.
A defesa hegeliana dos estudos clássicos é um dos principais tópicos do discurso
de 1809:

O espírito e a meta de nosso Centro é preparação para o estudo culto, e


certamente uma preparação que está cimentada sobre os gregos e os romanos.
Desde alguns milênios este tem sido o solo sobre o qual se assentou toda
cultura, desde o que tem germinado e com o que tem permanecido em
conexão permanente. [...] toda arte e toda ciência tem brotado daquele solo.
(HEGEL, 2000, p. 74-75)

Na verdade, Hegel faz disso mais que um desejo, pois para ele esse é um
elemento necessário a um processo de formação, sendo sua afirmação uma verdadeira
constatação, pois “todo novo impulso e consolidação da ciência e da cultura tem aberto
seu caminho mediante o retorno à Antiguidade.” (HEGEL, 2000, p. 75). Convicto disto,
Hegel irá criticar aqueles que propõe rechaçar e eliminar os estudos clássicos, alegando
certa insuficiência e desvantagens dos princípios e instituições antigas, louvando o
Governo Prussiano por sua “sabedoria” que, “elevando-se por sobre este recurso
aparentemente fácil, responde de forma verdadeira às necessidades da época ao pôr o
antigo em uma nova relação com o conjunto e, desta forma, conservar o essencial do
mesmo, que por sua vez o muda e o renova” (HEGEL, 2000, p. 75).

15
A defesa hegeliana do estudo de línguas clássicas, grego e latim, vêm ao
encontro deste ideal. Dessa forma, reclama o fato de o latim ser tido como um estudo
“extra”, ministrado apenas em centros expressamente para isso, e não como parte mais
essencial do estudo culto, pois para Hegel o estudo do latim era o “único meio de
formação superior oferecido a quem não queria permanecer no ensino geral, totalmente
elementar” (Ibidem). Segundo Hegel, o ensino do latim era primordial a quem quisesse
obter os conhecimentos que são “úteis para vida civil, ou que são válidos em e para si
mesmo” (Ibidem); ora, as línguas clássicas não constavam como um “meio formativo”
no tempo de Hegel.
Porém, neste período defendia-se que seria o trato da própria língua nacional que
deveria ser cultivado, em lugar do latim, pois “se fez valer o sentimento de que não
pode considerar-se como formado um povo que não pode expressar em sua própria
língua todos os tesouros da ciência e mover-se livremente nela com qualquer conteúdo.”
(Ibidem). Ora, tal sentença é demonstrada por Hegel em seu próprio sistema (Cf.
HEGEL, 1993), mas reconhece que existem certos termos científicos que somente são
compreensíveis e legitimados em uma determinada língua e tradição – o que será
percebido em trabalhos como os de Scheleimacher. A riqueza do latim e do grego, bem
como de todas as línguas antigas, somente pode ser descoberto se estudado e lido no
original, o que põe o problema da tradução no “olho do furacão”:

Esta intimidade, com a qual nos pertence a língua própria, está ausente
daqueles conhecimentos que só possuímos em uma língua estranha; ditos
conhecimentos se encontram separados de nós mediante um muro divisório
que não lhes permite ser verdadeiramente familiares ao espírito. (HEGEL,
2000, p. 75-76)

Logo após essa reflexão, Hegel voltará a louvar o governo, responsável, na sua
visão, pelo “aperfeiçoamento das escolas alemãs”, posto cumprir aquilo que entende
como sendo a função da escola:
1. Proporcionar a todos os meios para aprender o que lhe é essencial como
homens e o que lhes é útil para sua condição social (Cf. HEGEL, 2000, p. 76), ou seja, o
ideal de uma educação para todos, equitativa. Uma verdadeira justiça como equidade na
educação, para usar a expressão de Rawls. A escola, assim, assume a função social,
servindo
àqueles que até agora se haviam visto privados de algo melhor, lhes acaba
garantido dessa forma; e aqueles que para conseguir algo melhor que o
insuficiente ensino geral somente podiam tomar mão do mencionado meio

16
formativo, estes se lhes tem feito menos necessário podendo ser substituído
mediante conhecimentos e habilidades mais adequados (HEGEL, 2000, p.
76).

Dessa forma a escola pode ser considerada como responsável pelo progresso
social e, como dirá em seu discurso proferido em 1811, pela qualificação dos
funcionários públicos.
2. Outra função escolar é o ensino das “ciências e a consecução de habilidades e
práticas mais elevadas”, o que será efetivado pelo Real Institüt.
3. Por fim, a conservação do “estudo das línguas antigas”.
Hegel defende uma liberdade intelectual no Ginásio, dando possibilidade para os
diversos campos do saber desenvolverem suas pesquisas:

A verdadeira liberdade e o vigor característicos de uma organização consiste


em que os diferentes momentos contidos nela aprofundem-se em si mesmos e
se constituam como sistemas completos, nos quais realizem conjuntamente
sua tarefa e venham desenvolvê-la sem inveja nem temor, e em que todos
novamente sejam não mais que partes de um grande conjunto. (HEGEL,
2000, p. 77)

A harmonia proposta por Hegel aos setores, ou, como ele denomina, momentos,
nos dá uma boa visão do Hegel reitor/administrador, além de evidenciar sua leitura
dialética da realidade. A realidade tida como o âmbito da contradição, tem nas
instituições e seus setores as partes constituintes de seu todo, no qual se encontra
apreendida a sociedade civil. No âmbito escolar, a liberdade de pensamento surge como
condição sino qua non da Bildung, por isso a ênfase hegeliana na autonomia das
ciências, ou momentos, vislumbradas nesse processo. Porém, tal processo necessita de
bases concretas em seu erigir-se, fundamentação que Hegel encontrará no domínio das
línguas clássicas: o grego e, principalmente, o latim.
Já respondendo à possível contra-argumentação, o filósofo concede toda
importância à língua materna, expressando-se nos seguintes termos:

Parece uma exigência justa a que a cultura, a arte e a ciência de um povo


repousem sobre seus próprios pés. Não temos de pensar a respeito de nosso
Iluminismo e dos progressos de todas as artes e as ciências que tem vindo
substituir as formas infantis dos gregos e dos romanos, que se tem liberado de
seus andadores podendo repousar sobre um fundamento e solo próprios? As
obras dos antigos poderiam conservar em todo momento o valor que lhes
atribui, maior ou menor, porém deveriam acabar convertidas em uma série de
lembranças, de curiosidades eruditas de caráter ocioso, dentro do âmbito do
meramente histórico, que caberia aceitar ou não, porém que não poderiam

17
constituir sem mais o fundamento e o começo de nossa formação espiritual.
(HEGEL, 2000, p. 78)

Em seguida, porém, explicita a defesa das línguas clássicas:

Porém, se aceitamos como válido que em geral se tem de partir do excelente,


então a literatura grega, de um modo especial, e, depois também a latina, hão
de constituir, e permanecer como tais, os fundamentos dos estudos
superiores. A perfeição e a excelência dessas obras deve constituir o banho
espiritual, o batismo profano, que conceda a alma sua primeira e imborrável
tonalidade e cor a respeito do gosto e da ciência. E para esta iniciação não é
suficiente um conhecimento geral de caráter externo, dos Antigos, senão que
devemos nos entregar a eles de corpo e de alma para aspirar sua atmosfera,
suas representações, seus costumes, inclusive, se se quer, seus erros e
prejuízos, para familiarizarmo-nos com este mundo – o mais belo que existiu.
Assim como o primeiro paraíso foi o paraíso da natureza humana, assim este
é o mais elevado, o segundo paraíso, o do espírito humano que se mostra em
sua naturalidade, liberdade, profundidade e serenidade mais belas, tal como a
noiva sai de seu quarto. A primeira magnificência selvagem no Oriente acaba
circunscrita pelo esplendor da forma e atemperada em ordem à beleza; sua
profundidade já não reside na confusão, na aflição ou na arrogância, senão
que se manifesta em uma claridade imperturbada; sua serenidade não é um
jogo infantil, senão que se difunde sobre a melancolia que conhece a dureza
do destino, porém sem ser desviada por ela da liberdade sobre si e da medida.
Creio que não exagero quando digo que quem não conheceu as obras dos
Antigos tem vivido sem conhecer a beleza. (HEGEL, 2000, p. 78)

Vê-se nesse relato a paixão hegeliana pela Antiguidade e a importância que esse
período possui em seu pensamento, sendo imprescindível tal contato para a formação da
bela alma. Porém, Hegel não deixa de considerar tais estudos como uma propedêutica à
ciência, já que sempre se deve começar pelo mais excelente.
Hegel ressalta a importância do estudo das línguas clássicas mostrando a
insuficiência que a tradução representa:

A língua é o elemento musical, o elemento da intimidade, que desaparece na


tradução – o fino aroma através do qual a simpatia da alma se oferece ao
gozo, porém sem o que uma obra dos Antigos só tem um sabor semelhante ao
de um vinho de Rhin que se tenha evaporado. (HEGEL, 2000, p. 80)

Para Hegel o estudo dos Antigos é uma imposição do destino – o Absoluto assim
fora desvelado na cultura –, e se alguém reclamar dos esforços que se deve dispensar a
tal estudo, o que o tornaria desencorajante, que este cobre contas do próprio destino que
não legou tal saber universal em nossa língua materna. (Cf. HEGEL, 2000, p. 80).
Hegel expõe no Discurso de 1809, quase que exclusivamente, a estrutura basilar
a partir da qual erige o currículo proposto no Ginásio, essa é a função que o estudo dos
antigos assume em tal projeto pedagógico.

18
Para Hegel, a Bildung, é o resultado do processo de desenvolvimento do espírito:
o Espírito Absoluto, ao longo do processo histórico, compreende a si mesmo e a
natureza, tornando-se livre, ou seja, autoconsciente.2 Do mesmo modo, o homem, que é
espírito e matéria, torna-se espírito completo – livre – mediado por uma teoria da
educação (Erziehung), a qual tem por objetivo a Bildung. Assim, para Hegel, o homem
culto é aquele que sabe conferir a tudo o selo da universalidade: “um homem cultivado
em geral não tem limitado de fato sua natureza a algo particular senão que a tem
capacitado para tudo” (HEGEL, 2000, p. 89). Não é, pois, o que se conhece, mas como
se conhece e, assim, a Bildung dá a forma do pensamento. E essa é a forma por meio da
qual o espírito torna-se consciente de si mesmo ao constantemente superar o imediato
estado natural, corporificado no objeto que se lhe antepõe e no qual se aliena (Cf.
HEGEL, 2000, p. 81). Sendo assim, esse processo toma, então, a subjetividade imediata
– um estado natural sem mediação, indeterminado em si mesmo, mera singularidade, ou
individualidade – para, do exterior, conduzi-la à subjetividade mediatada – isto é, ao
homem educado ou cidadão –, determinada pela racionalidade que se manifesta no
Estado (Staat)3, ou naquilo que Hegel denominou o Espírito de um Povo (Volksgeist).4
Nesse sentido, formação é um processo em que há a presença constante de uma
angústia de aperfeiçoamento e mudança – pois é inconclusiva. Mas é característico do
homem culto o fato de estar em um processo reflexivo, imerso em um conhecimento
voltado para si mesmo e que não se deixa instrumentalizar.
Por isso o processo educativo proposto por Hegel em sua compreensão do
problema pedagógico somente se pode dar na experiência vivida pelos indivíduos, no
espírito do povo. Não sendo esse processo de formação “um tranqüilo prolongar de uma
corrente” (HEGEL, 2000, p. 80), uma vez que o verdadeiro educador do povo são suas

2
Como bem afirma na Fenomenologia do Espírito: “A tarefa de conduzir o indivíduo, desde seu estado
inculto até ao saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de considerar o indivíduo
universal, o espírito consciente-de-si na sua formação cultural.” (HEGEL, 2001, p. 35).
3
Cf. HEGEL, 2010, p. 212-272, § 257-286. O estado hegeliano é o momento em que o indivíduo supera o
quadro constituído pelo egoísmo generalizado para se elevar à universalidade da cidadania. Enquanto a
família constitui uma comunidade que amalgama naturalmente as pessoas que a integram, a sociedade
civil-burguesa atomiza os indivíduos, separa-os, pulveriza-os, coloca-os uns contra os outros, torna-os
autônomos, mas danifica a dimensão comunitária, própria do humano. É no Estado como comum-unidade
que os indivíduos se reintegram, voluntariamente, numa opção madura e refletida, como cidadãos: a
liberdade, guiada pela razão, os leva a reconhecer e assumir essa necessidade. Cf. KONDER, 1991, p. 62-
63. Por isso, nas palavras de Hegel, “O Estado é a efetividade da idéia ética”. (HEGEL, 2010, p. 229, §
257)
4
Ao analisar a Bildung hegeliana, Gadamer afirma que: “A formação como elevação à universalidade
épois uma tarefa humana. Exige um sacrifício do que é particular em favor do universal. O sacrifício do
particular, porém, significa negativamente: inibição da cobiça e, com isso, liberdade de seu objeto
(Gegenstand) e liberdade para sua objetividade”. (GADAMER, 1999, p. 52).

19
experiências, pelas quais o Espírito se manifesta na história, o processo educativo em
seus âmbitos escolar e familiar torna-se, necessariamente, processo formal e
complementar. Assim, reconhecer que a criança e o jovem são subjetividades imediatas
que precisam ser conformadas à eticidade própria do espírito do povo, se configura, na
visão de Hegel, como uma proposta reconhecidamente fundamental ao processo
educacional. Se a educação escolar só pode ser inicialmente disciplina formal, uma vez
que deve ajustar, de maneira externa, cada singularidade à eticidade do povo, devemos
reconhecer a experiência histórica vivenciada por um determinado povo em suas
tradições, em sua cultura, como um dos principais elementos do processo educacional.
Isso é, em uma perspectiva hegeliana, uma necessidade do humano.
Hegel defende a possibilidade de a racionalidade guiar a consciência crítica para
que as situações de fragmentação sejam desveladas e, assim, pela práxis transformadora
o homem possa formar-se, construir o poder de pensar, agir e falar autonomamente
(autoconsciência). A concepção de dever para consigo mesmo (Cf. HEGEL, 1989, p.
310-316), fundada por Kant, de um sujeito ativo, que assume uma reivindicação de
responsabilidade total mas acrescenta o elemento dialógico, intersubjetivo, como
constitutivo, também será contemplada na proposta hegeliana (Cf. GADAMER, 1999,
p. 48-49). Sendo a maioria das propostas pedagógicas nos séculos XVIII-XIX uma
espécie de ressonância do projeto kantiano do Sapere aude!5 Pensa-se um sujeito com a
liberdade e poder de fazer frente às fragmentações impostas à formação do indivíduo, e
capaz de transformar situações de alienação, opressão e ignorância. Em tal proposta a
dignidade humana é constitutiva, o homem possui valor intrínseco, é fim em si mesmo
(Cf. KANT, 1974, p. 228-229).
As reflexões filosófico-educacionais hegelianas se voltam criticamente sobre os
modelos sociais e educacionais promotores de formação fragmentária, refletindo sobre
os caminhos para a Bildung. Para Hegel a pedagogia é a arte de fazer éticos os homens,
levando-os a romper com o natural, transformando essa sua primeira natureza em uma
segunda natureza, de caráter espiritual – o que marca sua crítica a sistemas pedagógicos
como o de Rousseau, formas de “educação negativa”, pois em Hegel o natural é
transcender esse estado de natureza.
Nesse sentido, encontramos em Hegel uma educação voltada para um processo
de auto-conscientização, na qual o homem possa fazer-se a partir de um projeto

5
“Ouse saber!”, famosa expressão latina utilizada por Kant para expressar o ideal da Aufklärung.

20
universal, marcado pelo retorno a si mesmo do Espírito Absoluto, que é proposto de
forma racional e livre. O ser humano é inconcluso, e enquanto inconcluso precisa
humanizar-se, o que abre a possibilidade de ser livre, de construir-se a si mesmo, mas,
ao mesmo tempo, o torna um ser responsável por si mesmo, pois nele o projeto
hegeliano de desvelamento do absoluto se efetiva. Por isso, uma educação que busca
promover a autoformação do educando precisa educar para a auto-responsabilidade. Nas
palavras de Hegel:

Porém, para que o ensinamento oferecido na escola produza seus frutos


naqueles que estudam, para que eles realizem realmente progressos mediante
o mesmo, sua própria aplicação pessoal resulta tão necessária como o próprio
ensinamento [...]. Pois o aprender, enquanto mero receber e translado da
memória, constitui um aspecto sumamente incompleto do ensino (HEGEL,
2000, p. 90).

Ao falarmos em educação para o exercício racional da formação humana, não


entendemos racionalidade como racionalidade instrumental6, mas a pensamos,
juntamente Hegel, enquanto totalidade, como um poder de criticidade e esclarecimento.
Como a razão em Hegel é absoluta e histórica, as lições das experiências humanas
devem estar aliadas à racionalidade. A vivência das tendências sensíveis, desde que
concordem com a razão, pode representar experiências de formação. Tal perspectiva é
assumida no gênero literário criado por J. W. von Goethe (1749-1832), o
Bildungsroman, romance de formação, onde é colocada no centro a questão da
formação do indivíduo, o desenvolvimento de suas potencialidades sob condições
históricas concretas. Desse gênero surge como principal referência Os anos de

6
Segundo Wellmer: “Uma forma de racionalidade que caracterizam [...] pela confluência de
racionalidade formal e racionalidade instrumental. A racionalidade formal se exterioriza no impulso de
produzir sistemas, unitários e sem contradições, de ação, explicação e conhecimento. Segundo Adorno e
Horkheimer, essa força da razão é capaz de instaurar unidade e consistência, ao que se refere o conceito
de racionalidade formal, surge das condições básicas de todo pensamento conceitual: na medida em que o
pensamento, o uso da linguagem, estão vinculados à lei de não contradição – considerada quase como
núcleo de racionalidade necessariamente operante em todas as culturas enquanto formas de interação
simbólica mediada –, já se instala em todas as realizações cognoscitivas e modos de operar dos homens,
desde seu começo, essa pressão que os força a estabelecer consistência e ordem sistemática no saber e no
fazer. A razão, encadeada à lei de não contradição, já está encarada desde sempre para a racionalização
formal e a sistematização do saber e do fazer. «Pensar, en el sentido de la ilustración, es producir orden
científico y unitario, y deducir conocimientos factuales a partir de principios, ya se interpreten éstos como
axiomas arbitrariamente establecidos, ideas innatas, o abstracciones de grado superior... Las leyes lógicas
instauran las relaciones más generales en el seno del orden, y lo definen. La unidad se halla en la
unanimidad. El principio de contradicción es el sistema in nuce... La razón nada aporta sino la idea de
unidad sistemática, el elemento formal de un sólido sistema conceptual»''. La difícil tesis de Adorno y
Horkheimer es entonces que racionalidad formal, en último término, significa lo mismo que racionalidad
instrumental, esto es, una racionalidad «cosificadora» que apunta al control y manipulación de procesos
sociales y naturales. (WELLMER, 1993, p. 139-140)

21
aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796), que traz no capítulo VI as “Confissões
de uma bela alma” (Cf. GOETHE, 2006, p. 347-404), capítulo possuidor de um caráter
largamente autônomo, um verdadeiro processo de formação, que expressa bem a
compreensão da Bildung nesse espaço intelectual que é a Alemanha nos tempo de
Hegel.
Por isso, a educação para a racionalidade não pode suprimir as experiências
sensíveis. O que propomos a partir de Hegel, nesse sentido, é a formação para a
autodeterminação inteligente da vontade, ou seja, a conformação da vontade particular
para com a vontade universal, o que envolve guiar-se por princípios racionais e pelas
tendências que concordam com a razão, a fim de que a vontade não permaneça
determinada por impulsos ou por coações externas. Por isso o processo educativo é a
tomada de consciência da necessidade de limitar meus impulsos para me realizar como
ser ético:

Já a formação geral se encontra, enquanto sua forma, em conexão mais


estreita com a formação moral; pois não devemos limitar esta a alguns
princípios e máximas, a uma honra geral, uma benevolência, e uma
disposição honesta, senão que temos que pensar que só o homem formado em
geral pode ser também um homem formado eticamente. (HEGEL, 2000, p.
94)

A educação promotora da formação cultural é a que promove a formação da


totalidade do humano, o que além da capacitação técnico-científica, envolve formação
política, ética e estética (Cf. HEGEL, 2000, p. 89-90). A compreensão de Hegel de que
o espírito universal requer que cada indivíduo se ultrapasse enquanto vivente, enquanto
desejo impulsionado pela matéria que ele também é, para vir a ser espírito completo,
universal, que sabe quais são as suas necessidades e, por isso, sabe conter-se, limitar-se,
é a compreensão do próprio processo educativo. A Bildung não é, de fato, algo que
ocorre apenas nas escolas, uma vez que é a expressão necessária da eticidade do espírito
do povo, pois

O trabalho de formação do indivíduo não é um assunto exclusivamente


pedagógico, mas também filosófico: trata-se de educá-lo para a
universalidade que o espírito engendrou no movimento de formação da
perfectibilidade do gênero humano. Nesse processo formador, cada indivíduo
deve passar por diversas etapas que modelaram o homem segundo um plano
de realização histórica do espírito. (RAMOS, 2003, p. 43-44)

22
Assim, o papel da escola é o de manter e desenvolver a eticidade, contribuindo
com a formação do indivíduo em conjunto com a sociedade e a família. Ora, essa
necessidade hoje suscitada pela escola da participação da família e da sociedade civil na
formação do aluno nos leva a compreensão hegeliana da necessidade da idéia do Estado
(Cf. HEGEL, 2010, p. 229, §257).
Para Hegel, o homem educado efetiva a universalidade que se objetiva
completamente no Estado composto por homens livres – conscientes de suas
necessidades, e, portanto, capazes de se auto-limitar, e aqui entra a relevância do
problema pedagógico.7 Mas, como supracitado, somente no Estado o homem tem
existência racional. Toda educação procura fazer com que o indivíduo não continue
sendo algo subjetivo, mas que se faça objetivo no Estado. A verdade é a unidade da
vontade geral e da vontade subjetiva; e o universal está nas leis do Estado, nas
determinações universais e racionais. Por isso, aplicar tal perspectiva no processo
escolar, surge como o principal desafio que Hegel enfrentara em Nüremberg: a partir do
processo de formação educacional e cultural, interiorizar o universal após a recordação
da trajetória da sua constituição. O indivíduo precisa pedagogicamente ser preparado
para fazer seu o saber e elevar-se à universalidade da cultura, paradigma da condição
humana. Sendo a vida moral a essência do Estado, e este a unificação da vontade
universal com a subjetiva, tem-se que a vontade é uma atividade e o princípio pelo qual
se estabelece a vida social. Daí o Estado ser indivíduo espiritual, o qual, como um todo
orgânico, não é apenas a sociedade política.
Mas note-se que a vida do Estado implica a necessidade da cultura formal e, por
conseguinte, do nascimento das ciências, assim como de uma poesia e uma arte culta em
geral. Estas atividades humanas formais necessitam ser cultivadas nas escolas, o mesmo
se dando com a filosofia, que é o pensamento do pensamento. Uma vez que o
pensamento universal é destruidor, mantendo apenas o princípio do espírito – a
liberdade –, tem-se que a tarefa educativa é a que destrói a subjetividade imediata para
que a universalidade do pensar siga seu curso – alienação determinada pelo espírito do
povo. Mas esse não é um percurso infinito, pois tem um fim, que é o voltar-se para si
mesmo. Daí a tese hegeliana de que todo indivíduo necessita percorrer em sua formação
distintas esferas, as quais fundamentam seu conceito de espírito e se formam e

7
Ramos chamará a atenção para esse aspecto da proposta hegeliana, afirmando que “o hegelianismo
legitima uma ação pedagógica conservadora marcada pela disciplina e pela autoridade”. (RAMOS, 2003,
p. 41-42).

23
desenvolvem cada uma por si, independentemente, em uma determinada época. A
educação escolar é, então, a forma da cultura (Kultur) e o homem educado-formado é o
que vive a universalidade da cultura.
O grande desafio da educação – e, ao mesmo tempo, o seu enigmático paradoxo
–, consiste em conciliar dois pólos aparentemente irreconciliáveis: a liberdade e a
autoridade. O espírito juvenil irrequieto, que se encontra em nossas escolas, deve ser
coibido, na visão de Hegel, por um ardil pedagógico, conduzido através dos estudos
literários clássicos à compressão da eticidade que tem seus princípios no espírito do
povo grego e romano (cf. HEGEL, 2000, p. 74). O que suscita a seguinte questão: até
que ponto nosso sistema educacional conduz seus alunos a esse contato com as fontes
de nossa civilização ocidental? Buscando dar ao processo da Bildung uma base sólida,
Hegel ratifica a ação do governo que se predispõe, quanto à educação, em responder,
como fora mencionado acima, da forma mais verdadeira às necessidades da época,
pondo o antigo em uma nova relação com o conjunto (Cf. HEGEL, 2000, p. 75). Tal
reflexão nos impõe pensar a proposta hegeliana como uma relevante crítica a nosso
sistema educacional, ainda que não seja possível realizá-la aqui, pelas limitações que
nos impõe a estrutura de um capítulo. No entanto, fica aqui registrada a necessidade de
compreender, através dos conceitos de processo educativo (Erziehung) e formação
cultural (Bildung) de Hegel, quais os conteúdos de uma eficaz prática docente, que deve
ser problematizada antes da mera aplicação de métodos pedagógicos. Embora esteja
referindo-se estritamente ao ensino de filosofia, a crítica de Hegel encontrada em um
parecer sobre O Ensino de Filosofia nos Ginásios, de 1812, pode muito bem ser
estendido à própria ação pedagógica, por isso concluímos com essa sua denúncia, que
marca bem sua posição quanto ao problema pedagógico:

Segundo a mania moderna, sobretudo da pedagogia, não importa tanto


instruir-se no conteúdo da filosofia quanto aprender a filosofar sem conteúdo;
isto significa mais ou menos: é preciso viajar sempre, sem chegar a conhecer
as cidades, os rios, os países, os homens, etc. (HEGEL, 1989, p. 371)

Referências

HEGEL, G. W. F. Escritos Pedagógicos. Trad. Arsenio Ginzo. México/Madrid/Buenos


Aires: Fondo de Cultura Económica, 2000.

24
_____________. Propedêutica Filosófica. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70,
1989.
_____________. Fenomenologia do Espírito. 2 vol. Tradução de Paulo Menezes com
colaboração de Karl-Heinz Efken. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

_____________. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e


Ciência do Estado em Compêndio. Tradução, notas, glossário e bibliografia de Paulo
Meneses et alli. São Paulo: Loyola; São Leopoldo: UNISINOS, 2010.

GADAMER, H.-G. Verdade e Método – traços fundamentais de uma hermenêutica


filosófica. 3ª ed. Tradução de Flavio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999.

GINZO, A. Hegel y el problema de la educación. In: HEGEL, G. W. F. Escritos


Pedagógicos. Trad. Arsenio Ginzo. México/Madrid/Buenos Aires: Fondo de Cultura
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GOETHE, J. W. Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister. Tradução de Nicolino


Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006.

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. In:


________. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural,
1974 (coleção Os Pensadores).

KONDER, L. Hegel – A Razão Quase Enlouquecida. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

RAMOS, C. A. A Pedagogia de Hegel e a ação formadora da alteridade cultural. In:


Revista de Filosofia, Curitiba, v.15 n.16, p. 41-55, jan./jun. 2003.

SUARÉZ, R. Nota sobre o Conceito de Bildung (Formação Cultural). In:

KRITERION, Belo Horizonte, nº 112, Dez/2005, p. 191-198.

WEBER, J. F. Autoridade, singularidade e criação: sobre o problema da formação


(Bildung) em Sobre o Futuro de nossos Estabelecimentos de Ensino, de Nietzsche. In:
Educ. Soc., Campinas, vol. 29, n. 103, p. 515-532, maio/agosto 2008.

25
O Pensamento de Marx Sobre a Subjetividade

Eduardo F. Chagas*

A questão da subjetividade no pensamento de Marx permanece, ainda hoje,


amplamente inexplorada, sendo, inclusive, tratada, por determinadas correntes no
interior do pensamento marxista, de forma preconceituosa, como uma questão
secundária a ser desconsiderada.8 Alguns autores apontaram-na como uma deficiência,
tendo em vista que, para estes, há na obra de Marx um forte traço economicista e
determinista, à medida que ele compreende os mecanismos internos, as atividades da
consciência, como um fenômeno secundário, mero reflexo das determinações materiais,
das relações de produção, inviabilizando, assim, uma reflexão rica e complexa sobre a
subjetividade humana. Tais posições se baseiam, de forma apressada, em algumas
passagens na obra de Marx, particularmente em A Ideologia Alemã (Die deutsche
Ideologie) (1845-1846), em que ele afirma que é a vida que determina a consciência, e
não o contrário, e no Prefácio (Vorwort) à obra Para a Crítica da Economia Política
(Contribuição) (Zur Kritik der politischen Ökonomie) (1859), em que ele reafirma tal
posição, dizendo que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao
contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência.”9 Ser um ser social quer
dizer aqui não mais vida em geral, abstrata, mas uma qualidade de vida, a vida social
humana. E o ser social, que determina a consciência, está, por sua vez, condicionado
pelo modo de produção, pela vida material. Isto foi interpretado por aquelas “posições
críticas” como uma debilidade no pensamento de Marx, levando a um rude objetivismo,
a um mecanicismo entre a esfera da produção da existência (determinante) e a esfera da
subjetividade, das ideias e da consciência (determinada), sem uma ideia de unidade ou
de práxis como mediação entre o material (o econômico) e o espiritual, entre a base e a
superestrutura. Na verdade, essa crítica feita a Marx é, ao meu ver, insatisfatória, pois
ela se baseia em um suposto objetivismo marxiano ou em conceitos metafóricos,

*
Doutor em Filosofia; professor da graduação e da pós-graduação do Curso de Filosofia da Universidade
Federal do Ceará (UFCE) e colaborador do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação
(FACED) da UFC.
8
Cf. SILVEIRA, Maria Lídia Souza da. Algumas notas sobre a temática da subjetividade no âmbito do
marxismo.In: Revista Outubro, Nº. 7, 2002, p. 103.
9
MARX, K. Vorwort zur Kritik der politischen Ökonomie. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA).
Berlin: Dietz Verlag, 1983, v. 13, p. 9.

26
infraestrutura e superestrutura, tomados a partir de um fator determinante diante dos
demais, que são arbitrários e falhos (imprecisos) para explicar a especificidade dos
momentos como partes de um todo. E isto não pode ser atribuído a Marx, tendo em
vista que ele não considera a produção material e a produção espiritual como dois
momentos cristalizados, estáticos, mas sim como dois instantes que se operam ao
mesmo, como partes integrantes da totalidade social. Marx deixa claro isto, ao dizer, nas
Teorias da Mais-Valia (Theorien über den Mehrwert), que há uma conexão entre a
produção intelectual e a material e que esta última não deve ser considerada “como
categoria geral, mas em forma histórica determinada. [...] Se não se concebe a própria
produção material em sua forma histórica específica, é, então, impossível compreender
o que é determinado em sua produção espiritual correspondente e a ação recíproca entre
ambas.”10 Portanto, não há em Marx uma supervalorização do aspecto sócio-econômico
em relação à dimensão da “superestrutura”, ou seja, para Marx não se trata de uma
valorização, em que uma é mais importante do que a outra, ou em que uma é
determinante e ativa e a outra determinada e passiva, mas de uma recíproca influência
de uma sobre a outra.11
Marx não compreende a subjetividade como um mero produto do econômico, e
sim como um componente inseparável dos processos de formação da vida humana. O
seu pensamento não pode ser reduzido a um objetivismo, a um mero determinismo
econômico, unilateral, visto que a objetividade é impensável sem uma íntima
correspondência com a subjetividade. Não há, para ele, objeto sem sujeito, como não há
sujeito sem objeto. Nenhum dos polos dessa relação, sujeito e objeto, é posto como um
dado a priori; eles se constituem na relação. Quer dizer, Marx não considera o
indivíduo humano apenas no seu caráter objetivo, determinado, mas em seu vir-a-ser. E
é nesse vir-a-ser, nesse processo, que se criam novas formas de objetivação que
possibilitam, por sua vez, novas formas de subjetivação.12 O que Marx quer mostrar é,
na verdade, que a subjetividade não é nem uma instância própria, autônoma,
independente, abstrata, nem posta naturalmente, dada imediatamente ao indivíduo, mas
construída socialmente, produzida numa dada formação social, num determinado tempo

10
. MARX, K. Theorien über den Mehrwert. In: MARX/ENGELS Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag,
1965, v. 26.1. p. 257.
11
Cf. BERINO, Aristóteles P. Elementos para uma teoria da subjetividade em Marx. Dissetação de
Mestrado. Niterói/RJ, 1994 (mimeo).
12
Cf. SILVEIRA, Paulo e DORAY, Bernard. Elementos para uma teoria marxista da subjetividde. São
Paulo: Vértice, 1989. Cf. também BERINO, Aristóteles P. Op. cit., p. 11.

27
histórico. Portanto, a sua reflexão sobre a subjetividade não pode deixar de lado, por
exemplo, uma análise da sociedade capitalista que a forja.
Não há, todavia, uma obra específica de Marx acerca da subjetividade, mas, no
conjunto de seus escritos, desde suas primeiras reflexões até as formulações mais
amadurecidas, há passagens, elementos básicos, constitutivos, para uma teoria da
subjetividade. Penso que ele refletiu, sim, em diversos momentos, sobre a subjetividade
humana, momentos esses que podem ser evidenciados, entre outras, nas seguintes obras:
Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução (Zur Kritik der
hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung) (1844), A Questão Judaica (Zur Judenfrage)
(1844), Manuscritos Econômico-Filosóficos (Ökonomisch-philosophische Manuskripte)
(1844), Teses sobre Feuerbach (Thesen über Feuerbach) (1845-1846), A Ideologia
Alemã (Die deutsche Ideologie) (1845-1846), O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Der
achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte) (1852), os Fundamentos (Grundrisse)
(1857-1858), Para a Crítica da Economia Política (Zur Kritik der politischen
Ökonomie) (Prefácio) (1859) e O Capital (Das Kapital) (1867). Ao longo de sua obra,
Marx desenvolve elementos constitutivos para se entender a subjetividade humana,
como: 1. a subjetividade não como autônoma, abstrata; 2. a subjetividade não como
dada naturalmente, imediatamente ao indivíduo; 3. a subjetividade como construída
historicamente; 4. a importância da presença da subjetividade na construção, na
transformação, na apreensão e na interpretação cognitiva do mundo. E para entender a
subjetividade no âmbito da sociedade capitalista, Marx nos dá diversos conceitos, como:
ilusão, trabalho, estranhamento, “base” e “superestrutura”, ideologia, ocultação,
inversão e fetichismo da mercadoria.
Nos primeiros textos de Marx é muito importante os conceitos de ilusão,
fragmentação e cisão, que eram também centrais no pensamento de Ludwig Feuerbach.
Para este, o homem é, na modernidade, um ser fragmentado, separado de sua essência, e
é, precisamente, essa separação que se explica o processo subjetivo da fé, da crença
religiosa. Esta Feuerbach vê como um produto da subjetividade humana marcada pela
cisão entre sua essência, o gênero, o universal, e sua existência singular, individual.
Como o homem não pode efetivar, na sua existência singular, o gênero, o universal, ele
o projeta para fora de si, num ser exterior a ele (= em Deus). Resulta daqui que o objeto
(o homem) torna-se sujeito, e o sujeito (o gênero, Deus) torna-se objeto, pois não foi
Deus que criou o homem, mas o homem quem criou subjetivamente Deus à sua imagem
e semelhança. Mas, na religião, essa verdade antropológica não é evidente, pois o que

28
aparece é uma inversão: Deus como sujeito (como criador), e o homem como predicado
(como criatura). A pretensão de Feuerbach é inverter essa inversão e mostrar que a
discórdia, a oposição, entre Deus (o divino, o sagrado) e o homem (o humano, o
profano) é ilusória, porque o conteúdo da religião é inteiramente humano. Portanto, o
homem só tomará consciência que Deus é uma projeção de sua subjetividade, de sua
própria essência subjetiva, tomada de forma absoluta, quando converter a teologia em
antropologia.13
Embora também, para Marx, o homem, na modernidade, encontre-se isolado,
separado de sua essência, esta não é, para ele, uma essência subjetiva, tal como o é para
Feuerbach. Isto Marx deixa claro na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel – Introdução, quando ele afirma que a essência do homem é “o mundo do
homem”, a sua sociedade. E, nas 6ª e 8ª Teses sobre Feuerbach, enfatiza ele que a
essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo, como uma generalidade
interna, muda, nem é dada naturalmente, mas sim uma construção do próprio homem a
partir do conjunto das relações sociais. Neste sentido, Marx não se limitará, como fê-lo
Feuerbach, a criticar a religião como necessidade subjetiva da ilusão, desconsiderando a
base material que a produz, ou seja, a miséria do mundo real “que necessita de
ilusões.”14 Marx pretende aqui estabelecer uma relação indissociável entre a base real (a
sociedade) e as criações subjetivas resultantes dessa base, por isto, para ele, o
enfrentamento das ilusões subjetivas não pode dá-se a partir de soluções imaginárias ou
fantásticas, postulando uma felicidade ilusória num mundo melhor, numa outra vida,
pois enquanto a raiz social (a sociedade) da fragmentação, da mutilação humana, não
for superada, a dor, o sofrimento subjetivo não pode ser aliviado, sossegado.
Numa outra obra ainda de juventude, A Questão Judaica, Marx polemiza com
Bruno Bauer, para quem a base da fragmentação humana e das ilusões religiosas seria o
Antigo regime (o Estado religioso), no qual o homem encontra-se mutilado entre a sua
vida singular e o seu ser genérico, universal. Para Bauer, a solução para a fragmentação
humana e para as ilusões subjetivas seria a política democrático-burguesa, que, ao
garantir a cidadania e a liberdade, reintegraria o universal à singularidade de cada
indivíduo numa particularidade histórica. Marx mostra, contra Bauer, que o Estado

13
Cf. BERTRAND, Michele. “O homem clivado – A crença e o imaginário”. In____: Elementos para
uma teoria marxista da subjetividde. Op. cit., p. 16. Veja também CHAGAS, Eduardo F. “Religião: O
homem como imagem de Deus ou Deus como imagem do homem.” In: Formação Humana: Liberdade e
Historicidade. Fortaleza: Edições UFC, 2004, Coleção Diálogos Intempestivos, v. 16. p. 86-105.
14
Marx, K. Zur Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung. In: MARX/ENGELS, Werke
(MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1957, v. 1, p. 379.

29
moderno, longe de suprimir, eleva ao máximo a fragmentação humana, como também
aparece como religioso, embora ele seja profano e laico. No Estado moderno, a
universalidade, a genericidade, localiza-se na cidadania, nos direitos humanos, mas não
permite ao sujeito fragmentado reencontrar a sua unidade, pois a universalidade
presente nele não é concreta, efetiva, mas abstrata, formal. No Estado moderno, o
sujeito é reconhecido como cidadão, como um ser universal, mas esta idealidade
universal está separada, abstraída, de sua existência real e particular. Diz Marx: “Onde o
Estado político alcançou seu verdadeiro desenvolvimento, o homem leva, não só no
pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla vida – celeste e
terrestre – a vida na comunidade política, em que ele vale como ser comunitário, e a
vida na sociedade burguesa, em que ele é ativo como homem privado.”15 “No Estado
[...], onde o homem vale como ser genérico, ele é o membro imaginário de uma
soberania quimérica, está despojado de sua real existência individual e repleto de uma
universalidade irreal.”16 O Estado moderno faz abstração do homem real e só o satisfaz
de forma imaginária, abstrata. Tal Estado não pode, pois, suprimir as raízes da
fragmentação e da ilusão humana; ele é, antes, a fonte da religiosidade, à medida que ele
aparece, agora, como uma comunidade ilusória, como um universal abstrato, tal como o
Deus cristão, como um ser ilimitado, todo poderoso, sem o qual o sujeito não pode
subsistir.
Como objeção a uma possível teoria da subjetividade em Marx, muitos autores
destacam ainda a seguinte passagem de Para a Crítica da Economia Política: “O
resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor nos
meus estudos, pode ser formulado resumidamente assim: na produção social da sua
vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua
vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de
produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva
uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas de consciência
determinadas socialmente. O modo de produção da vida material condiciona em geral o
processo de vida social, político e espiritual. [...] Com a transformação da base

15
MARX, K. Zur Judenfrage.In: MARX/ENGELS Werke (MEGA),Berlin, Dietz Verlag, 1957, v. 1. p.
354-355.
16
Ibid., p. 355. Sobre a crítica de Marx à política liberal-burguesa e ao Estado moderno, cf. também
CHAGAS, Eduardo F. “A crítica da política em Marx”. In___: Trabalho,Filosofia e Educação no
Espectro da Modernidade Tardia. Fortaleza: Edições UFC, 2007, p. 67-82.

30
econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez.
Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a
transformação material, que se pode constatar fielmente na ciência natural, das
condições econômicas de produção e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam
consciência deste conflito e o conduzem até o fim. Assim como não se julga um
indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se pode julgar tão pouco uma época
tal de transformação pela sua consciência, mas, pelo contraio, deve-se explicar a esta
consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças
sociais produtivas e as relações de produção.”17 É preciso esclarecer que as referências
de Marx, nesta passagem, aos conceitos de “base econômica” e “superestrutura”
apontam para questões de método, e não para uma suposta supremacia mecânica da vida
material sobre a vida espiritual. Sua intenção é demarcar seu método18 como distinto do
método empirista da economia política, que parte, sim, do real, mas permanece no seu
nível simples, aparente, empírico-imediato, sem, contudo, cair, por outro lado, no
método especulativo-hegeliano, que concebe o real apenas como um resultado da
atividade de conceber, como um produto do pensamento, fechado e concentrado em si
mesmo. E, embora faça valer a prioridade ontológica desse real ante ao real construído
só idealmente, abstratamente no pensamento, Marx não nega, de maneira nenhuma, o
momento em que o real, a partir do próprio real, deva ser reconstruído pela
subjetividade (pelo pensamento) como concreto pensado. Portanto, ao dizer que o ser
social determina a subjetividade (a consciência), Marx não quis dizer que a
subjetividade (a consciência) é uma atividade secundária, já que, para ele, é,
precisamente, a partir da consciência das circunstâncias em que a vida é produzida, que
o sujeito reconstrói, transforma e apreende o mundo e adquire para si a sua liberdade.
Também em O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), vê-se referências de
Marx à relação entre a base econômica e a superestrutura. Sobre isto diz ele o seguinte:
“Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais de existência
ergue-se toda uma superestrutura de sensações, ilusões, modos de pensar e visões de
vida distintas e peculiarmente formadas. A classe inteira cria-os e forma-os a partir das

17
MARX, K. Vorwort zur Kritik der politischen Ökonomie. Op. cit., p. 8-9.
18
Sobre o método de Marx, cf. CHAGAS, Eduardo F. “O Método Dialético de Marx: investigação e
exposição crítica do objeto.” In: Síntese – Revista de Filosofia. Belo Horizonte, v. 38, nº 120, 2011, p.
55-70.

31
suas bases materiais e das relações sociais correspondentes”19. Marx designa aqui como
superestrutura os preconceitos, as ilusões, as convicções, os princípios, ou seja, a visão
de mundo de uma classe social, o seu modo de pensar, criado a partir de suas condições
materiais de vida. A superestrutura não pode, neste sentido, ser compreendida, tal como
no Prefácio à obra Para a Crítica da Economia Política, como um mero reflexo da base
econômica, já que ela constitui um campo complexo em que se formam os símbolos, os
valores, os sentimentos, as ideias, as imagens, as representações, nas quais uma dada
sociedade é reconhecida. E é através dessas representações, no âmbito “superestrutural”,
que os indivíduos assumem seus interesses, expressam a maneira de enxergar a sua
existência na sociedade, a consciência que eles têm das condições reais da sua
existência, não ocultando, pois, os seus interesses, as suas reais motivações. “O que os
[os lojistas] fazem representantes da pequena-burguesia é que eles não ultrapassam na
cabeça os limites dos quais esta não ultrapassa na vida; que eles, portanto, são
teoricamente impulsionados para as mesmas tarefas e soluções, para as quais o interesse
material e a posição social impulsionam, na prática, aquela [a pequena-burguesia]”.20 Os
burgueses e pequenos burgueses defendem ideias que não ultrapassam o mundo do
capital, e quando almejam transformações, estas se dão via democracia liberal-burguesa,
dentro dos limites das instituições sociais existentes.
O problema é que o sujeito trabalhador, que faz parte do mundo do trabalho, tem
uma representação de sua existência, uma compreensão de sua vida, que não
corresponde à sua real circunstância, justamente porque tal representação não expressa a
sua existência e o seu mundo, mas a existência e o mundo do burguês, a “visão de
mundo” do capital. Por isso, diz Marx: “E assim como na vida privada se distingue
entre o que um homem pensa e diz de si próprio e o que ele realmente é e faz, assim nas
lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as imaginações dos partidos de
seu organismo efetivo e de seus interesses efetivos, sua representação de sua
realidade”.21 Ou ainda:“A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo
sobre o cérebro dos vivos. E, precisamente, quando estes parecem ocupados em
revolucionar a si e as coisas, em criar algo que ainda não existe, é precisamente nestas
épocas de crise revolucionária que eles evocam temerosamente em seu favor os espíritos
do passado, pedem emprestados os seus nomes, as suas palavras de guerra, a sua

19
MARX, K. Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA).
Berlin: Dietz Verlag, 1960, v. 8, p. 139.
20
Ibid., p. 142.
21
___., p. 139.

32
roupagem, para, neste venerável disfarce tradicional e com esta linguagem emprestada,
representar a nova cena na história universal”.22 Mas “A revolução social do século XIX
não pode tirar a sua poesia do passado, mas apenas do futuro. Não pode começar
consigo mesma antes de se desfazer de todas as superstições do passado. As revoluções
anteriores precisaram das reminiscências da história universal, para se anestesiarem de
seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX tem que deixar os mortos enterrarem
os seus mortos, para chegar ao seu próprio conteúdo. Lá, a frase ultrapassava o
conteúdo; aqui o conteúdo ultrapassa a frase”.23 Longe de negar a subjetividade, Marx
dá-lhe importância central no processo de transformação24. Para que haja emancipação,
revolução social, é necessária não só uma transformação das condições materiais, mas
também da subjetividade humana que, para agir crítico e emancipadamente sobre o
mundo, terá que renunciar as referências, as imagens, do passado que não ultrapassam a
ordem social do capital.
No que se refere à subjetividade em Marx, a partir de uma suposta determinação
da base econômica sobre a superestrutura ideal, é importante citar ainda A Ideologia
Alemã (1845-1846). Nesta obra, inicialmente, Marx e Engels criticam os neohegelianos,
principalmente Bruno Bauer, Max Stirner e Ludwig Feuerbach, pelo fato de admitirem a
autonomização da consciência e de defenderem a modificação do mundo a partir tão-
somente da negação subjetiva das ilusões da consciência. Assim se expressam Marx e
Engels: “Os ideólogos jovens hegelianos são, apesar de suas frases que pretensamente
„abalam o mundo‟, os maiores conservadores. Os mais jovens dentre eles encontraram a
expressão correta para a sua atividade, quando afirmam que lutam apenas contra
„frases‟. Eles esquecem, apenas, que opõem a estas frases nada mais do que frases, e
que eles, quando combatem apenas as frases deste mundo, não combatem, de forma
22
___., p. 115.
23
___., p. 117.
24
A crítica de Marx, em 1845-46, ao materailismo de Feuerbach é, entre outras questões, porque este
deixou de lado a atividade subjetiva humana. Na primeira Tese ad Feuerbach, afirma Marx: “A
insuficiência principal de todo materialismo até os nosso dias (o de Feuerbach inclusive) é que o objeto, a
realidade, a sensibilidade foi tomado apenas sob a forma de objeto ou de intuição; mas não como
atividade humana sensível, como práxis, não subjetivamente.”. Cf. MARX, K. Thesen über Feuerbach.
In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1958, v. 3. p. 533. E em A Ideologia Alemã,
Marx evidencia, de forma mais articulada, que Feuerbach tem o mundo como algo já constituído, estático,
imutável, a-histórico, desconhecendo as modificações que a subjetividade implementou nele: Feuerbach
“não vê que o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada imediatamente da eternidade, uma coisa
sempre igual a si mesma, mas antes o produto da indústria e do estado em que se encontra a sociedade, e,
na verdade, no sentido de que ele é um produto histórico, o resultado da atividade de toda a uma séria de
gerações”. E mais adiante enfatiza Marx: “que Feuerbach, em Manchester por exemplo, vê apenas
fábricas e máquinas, onde há cem anos atrás havia apenas rodas de fiar e teares manuais”. Cf. MARX, K.
Die deutsche Ideologie. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA). Berlin: Dietz Verlag, 1958, v. 3, p. 43 e
44.

33
alguma, o mundo real existente.”.25 Para Marx e Engels, ao contrário, o ponto de partida
para a transformação efetiva do mundo não está na atividade isolada da consciência,
mas nas condições materiais dos indivíduos, condições estas dadas pelo trabalho, pela
produção de seus meios de vida. E são nessas condições materiais, reais, de produção da
existência que os indivíduos formam a sua consciência, a sua visão de mundo. Como
eles afirmam: “Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc.,
mas os homens reais, ativos, como eles são condicionados por um desenvolvimento
determinado de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a eles corresponde até
chegar às suas formações mais amplas. A consciência nunca pode ser outra coisa senão
o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo real de vida. Se em toda ideologia
os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara obscura,
é porque este fenômeno deriva do seu processo histórico de vida, da mesma maneira
que a inversão dos objetos na retina deriva imediatamente do seu processo físico de
vida.”26 Marx e Engels designam aqui como ideologia a consciência invertida, a
consciência fracionada do mundo, tal como a inversão das imagens na câmara escura,
isto é, a totalidade das formas de consciência social que inverte a relação entre ela e as
contraditórias condições de produção da existência, tomando a si mesma como condição
geradora do mundo, e não o contrário. Mas, como dizem eles: “Não é a consciência que
determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de
consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo, que
corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se a
consciência apenas como a sua consciência”.27
Embora as formas de ideologias - que se expressam através das instituições
criadas pelo homem para a sua organização social, como as formas jurídicas, políticas,
religiosas, artísticas ou filosóficas - sejam formas de consciência apartadas do mundo,
que deixam de corresponder à base material de sua existência, de sua própria criação,
isto é, esferas superestruturais que não permitem ao indivíduo uma consciência crítica,
coerente, acerca das condições sociais existentes, nem das contradições da realidade,
conservando e reproduzindo, assim, a ordem social estabelecida, elas têm, na verdade,
seu fundamento não em si mesma, na consciência apartada do mundo, mas na base
material da sociedade. Por isso, Marx e Engels dizem que a visão de mundo

25
MARX, K. Die deutsche Ideologie. Op. cit., p. 20.
26
Ibid., p. 26.
27
___., p. 27.

34
predominante, as ideias dominantes, são as ideias produzidas pela classe hegemônica e
expressam, sim, as condições materiais, através das quais essa classe realiza seu
domínio. Assim, expressam-se eles: “As ideias da classe dominante são, em cada época,
as ideias dominantes, isto é, a classe, que é o poder material dominante da sociedade, é,
ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante. A classe, que tem à sua disposição os
meios para a produção material, dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a
produção espiritual, de modo que a ela estão, assim, ao mesmo tempo, submetidas em
média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As ideias
dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as
relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que
precisamente tornam uma classe dominante, portanto, as ideias de seu domínio. Os
indivíduos, que constituem a classe dominante, têm, entre outras coisas, também
consciência, e, por conseguinte, pensam; à medida que eles dominam como classe e
determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a
sua extensão, e, portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como
produtores, de ideias; que regulam a produção e a distribuição das ideias do seu tempo,
que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época.”.28 Essas ideias
hegemônicas, propostas pelas classes dirigentes, são apresentadas para toda a sociedade
como um ideal comum, pertencentes a todos.
Dando sequência às bases de uma teoria da subjetividade no pensamento de
Marx, é importante citar aqui também Os Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844),
nos quais se pode perceber a influência do trabalho na constituição da subjetividade
humana. Nesta obra, Marx, ao tratar da categoria trabalho, toma-a, inicialmente, como
uma categoria fundante da produção e reprodução da vida humana – a atividade
primária, necessária e natural do homem. Precisamente, o que especifica a essência de
um ser vivo é a forma como vive, produz e reproduz sua vida. Marx afirma: “No modo
da atividade vital encontra-se o caráter inteiro da espécie, seu caráter genérico, e a
atividade consciente livre é o caráter genérico do homem.”29 A atividade dos demais
animais se reduz exclusivamente ao consumo dos objetos de suas próprias necessidades
imediatas. Essa forma de atividade, mesmo a mais deslumbrante, é repetição instintiva e

28
___., p. 46.
29
MARX, K. Ökonomisch-philosophische Manuskripte. In: MARX/ENGELS Werke (MEGA). Berlin:
Dietz Verlag, 1990, v. 40, p. 516. Sobre a diferença entre alienação e estranhamento nos Manuscritos de
1844, cf. CHAGAS, Eduardo F. “Diferença entre alienação e estranhamento nos Manuscritos Econômico-
Filosóficos (1844), de Karl Marx”. In: Revista Educação e Filosofia. Uberlândia: Universidade Federal
de Uberlândia, Junho/Dezembro de 1994, v. 8, n.º 16, p. 23-33.

35
quase mecânica, e, por isso, norteada apenas a uma necessidade específica, restrita e
impulsionada de acordo com a própria estrutura orgânica. Frisa Marx: “Na verdade, o
animal também produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, o castor,
a formiga etc. Mas só produz o que necessita imediatamente para si ou para sua cria;
produz unilateralmente [...]; o animal produz apenas sob o domínio da necessidade
física imediata [...]; ele produz apenas para si mesmo [...]. O animal forma apenas
segundo a medida e a necessidade da espécie a que pertence”.30 Tais operações
deslumbrantes não constituem, segundo Marx, trabalho, pois são realizadas sem
pressupor um momento subjetivo, sem um fim subjetivo, sem uma teleologia, sem uma
idealidade, tal como acontece com o trabalho humano. O trabalho não é um simples
fazer fortuito, mecânico e restrito, mas uma atividade voltada para um fim, que é uma
determinação da subjetividade humana, uma atividade livre e consciente, subordinada à
vontade, pois o sujeito, antes de fazer, constrói subjetivamente sua obra, imprimindo
nela o projeto que tinha a priori na sua subjetividade31. Através do trabalho, o sujeito
manifesta-se como ser genérico, suplanta a atividade muda dos animais, produz sua
existência, cria a consciência de que é um ser social e, assim, atinge a existência de um
ser universal e livre. Por isso, o sujeito só se constitui como ser universal e livre à
medida que é sujeito de uma atividade livre e consciente. Mas o que fundamenta o ser
genérico do sujeito é, precisamente, o trabalho, que, nas condições da sociedade
capitalista, torna-se estranhado.
Marx evidencia quatro conexões em que se apresenta o trabalho estranhado: 1. a
do sujeito com seu produto, 2. do sujeito com sua atividade produtiva, 3. do sujeito com
sua vida genérica e, por fim, 4. do sujeito com outros sujeitos. Marx mostra que, na
produção burguesa, o produto, resultado da objetivação do trabalho, deixa de ser, para o
sujeito, seu próprio ser objetivado, para ser apenas um objeto estranho que o enfrenta e
escraviza. O objeto produzido pelo sujeito – seu produto – opõe-se a ele como ser
estranho, volta-se contra seu produtor e passa a dominá-lo. O sujeito exterioriza suas
qualidades subjetivas no objeto, põe sua vida nele, porém, agora, esta não lhe pertence,
mas ao objeto. Assim, quanto mais objetos o sujeito produzir, tanto menos pode dele se

30
MARX, K. Ökonomisch-philosophische Manuskripte. Op. cit., p. 517.
31
Cf. MARX, K.: “Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha supera mais
de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele
constrói em sua mente sua construção, antes de construí-la em realidade. [...], ele imprime igualmente ao
material a sua finalidade, pois ele sabe que ela determina o modo e a maneira de seu fazer como lei e a ela
ele subordinar a sua vontade.” . (MARX, K. Das Kapital. In: MARX/ENGELS, Werke (MEGA). Berlin:
Dietz Verlag, 1962, v. 23, p. 193).

36
apropriar e mais se subjuga ao domínio de seu produto; “quanto mais formado o seu
produto, tanto mais deformado o trabalhador, quanto mais civilizado o seu objeto, tanto
mais bárbaro o trabalhador.”32 A essa objetivação estranhada corresponde uma
subjetivação estranhada, pois a perda do objeto produzido, da produção dos meios
necessários à própria produção, enfim, de tudo o que significa produção pelo trabalho
humano, não é só material, mas recai também no mundo interior, na subjetividade
humana. Há, pois, uma inversão de valores: um empobrecimento da subjetividade, uma
desvalorização do sujeito diante de uma valorização da coisa, de um enriquecimento do
objeto, do produto do trabalho.
À medida que o produto é estranho ao sujeito, a própria atividade produtiva se
lhe torna alheia; o próprio trabalho se converte em atividade externa, que lhe produz
deformação e unilateralização. Por isso, o sujeito só pode sentir-se em si fora do
trabalho, porque neste está fora de si; agora, sua realização evidencia-se nas funções
puramente animais – comer, beber, procriar etc. Nessas condições, o elemento humano
torna-se animal e o animal, humano. Desse modo, quando o sujeito se confronta com o
trabalho estranhado – como uma atividade não típica de sua espécie, não própria de seu
gênero – o seu ser genérico (tanto no que diz respeito à sua natureza física como às suas
faculdades espirituais específicas) converte-se num ser alheio a ele próprio. De fato, o
trabalho, como atividade livre e consciente, que especifica a genericidade do sujeito e o
distingue do animal, é-lhe negado e se transforma em simples atividade de subsistência
e contraposta aos demais seres humanos. Nessa atividade específica, que é repetitiva,
fatigante e negadora da essência humana, o sujeito, assegura Marx, “não se afirma,
portanto, em seu trabalho, mas nega-se a si mesmo; não se sente bem, mas infeliz, não
desenvolve livremente nenhuma energia física e espiritual, mas mortifica sua physis
[seu corpo] e arruína seu espírito.”33 Afastado de seu ser genérico, da vida de sua
espécie, o sujeito, como mercadoria, como força de trabalho, restringe-se a uma
existência corpórea, biológica, preso às condições mais elementares e menos
desenvolvidas de sua própria espécie, ou seja, àquelas condições de sobrevivência
imediata e de reprodução física.
O que se considera com relação ao estranhamento do sujeito ante ao seu produto,
à sua própria atividade e à sua vida genérica, evidencia-se também na relação dele com
os outros sujeitos. Diz Marx: “quando o homem está frente a si mesmo, defronta-se a

32
MARX, K. Ökonomisch-philosophische Manuskripte. Op. cit., p. 513.
33
Ibid., p. 514.

37
ele o outro homem.”34 Trata-se aqui do estranhamento interno ao próprio sujeito, que
implica num estranhamento intersubjetivo, isto é, numa relação estranhada do sujeito
com outros sujeitos. O sujeito, reduzido à força de trabalho, à mercadoria, relacionando-
se com outros sujeitos, vistos também como coisas, meramente como sujeitos físicos, é
isto o princípio que conduz as relações intersubjetivas, inter-humanas, nas quais se
expressa o estranhamento dos próprios sujeitos. Mas, se “o produto do trabalho me é
estranho e enfrenta-me como um poder estranho, a quem pertence ele então? Se minha
própria atividade não me pertence, mas é uma atividade estranhada, forçada, a quem ela
pertence então? A um outro ser que não eu. E quem é esse ser? Os deuses?”35. Este
outro ser a quem pertence o produto do trabalho é, na verdade, também um sujeito, um
outro sujeito que não o trabalhador, ou seja, o capitalista. Este momento evidencia-se,
por um lado, pelo fato de que certo número de sujeitos produz para outros e, por isso,
não tem o controle sobre o produto de seu próprio trabalho; por outro, pelo fato de um
número reduzido de sujeitos – os capitalistas - que não trabalham, apropriarem-se do
produto alheio. Desse modo, podemos dizer que tanto os trabalhadores quanto os
capitalistas são estranhos um em face do outro; contudo, as consequências são diversas:
o estranhamento para o sujeito trabalhador evidencia-se como miséria, sofrimento e
desumanização, enquanto, para o sujeito capitalista, como riqueza, deleite e satisfação.
Se o trabalho estranhado afasta do sujeito o produto de seu trabalho, a
reconciliação do sujeito com o objeto de sua atividade dá-se, nessas condições, através
da posse, do dinheiro. E o sujeito mesmo expressa seu ser não em si, mas fora de si, no
ter, na posse do dinheiro. Também os seus afetos, carinho, desejo, amor, para com os
demais sujeitos se afirmam apenas no dinheiro. Como diz Marx: “o que o dinheiro pode
comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do
dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são as minhas – de seu possuidor -
qualidades e forças essenciais. Aquilo que eu sou e posso não é, portanto, de modo
algum determinado por minha individualidade. Eu sou feio, mas posso comprar para
mim a mulher mais bela. Portanto, eu não sou feio, pois o efeito da feiúra, sua força
repelente, é anulado pelo dinheiro. Eu – segundo minha individualidade – sou coxo,
mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés; eu não sou, portanto, coxo; eu sou
um ser humano mau, sem honra, sem escrúpulos, sem espírito, mas o dinheiro é

34
___., p. 517-518.
35
___., p. 518.

38
honrado e, portanto, também o seu possuidor.”36 Já a ausência de dinheiro tem o
significado humano de o ser não ser sem o ter, ou seja, de o ser não ter em si qualquer
objetivo, pois, “se não tenho dinheiro para viajar, não tenho necessidade alguma, isto é,
nenhuma necessidade efetiva e que se realize para viajar. Eu, se tenho vocação para
estudar, mas não tenho dinheiro algum para isto, não tenho nenhuma vocação para
estudar, isto é, nenhuma vocação efetiva, verdadeira ”37 Nessas condições, em que o
mundo humano é apropriado pelo dinheiro, pela posse, o sujeito torna-se estranho à sua
própria sensibilidade. Pois, quando ele vê um objeto e almeja tê-lo em sua vida, fica
sensível apenas na possibilidade de tê-lo para si como capital, de utilizá-lo ou possui-lo
diretamente. Por exemplo: “O comerciante de minerais vê apenas o valor mercantil, mas
não a beleza e natureza peculiar do mineral; ele não tem sentido mineralógico algum”.38
Assim, para Marx, o capitalismo, a fim de aumentar a produção de capital, de satisfazer
a sua objetividade por acúmulo de riqueza, reduz o ser ao ter, as necessidades humanas
em necessidade de possuir dinheiro, empobrecendo, assim, o sujeito em suas faculdades
intelectuais, subjetivas.
A relação de propriedade privada, isto é, do sujeito com ela, implica uma
apropriação limitada da vida. Os objetos somente são tidos como do sujeito na condição
exclusiva de pertencimento como propriedade. Os sentidos do sujeito, físicos e
intelectuais, deixam de expandir, quando restritos às delimitações impostas pela posse.
Por isso, diz Marx: “A suprassunção da propriedade privada é, pois, a emancipação
completa de todas as qualidades e sentidos humanos; mas ela é esta emancipação
precisamente porque esses sentidos e qualidades tornaram-se humanos, tanto subjetiva
quanto objetivamente. O olho tornou-se olho humano quando seu objeto se tornou um
objeto humano, social, proveniente do homem para o homem”.39 Portanto, os sentidos
tornam-se humanos, quando os sentidos do sujeito encontram nos seus objetos uma
satisfação liberta da propriedade privada e passam a refletir o trabalho como uma
atividade cooperativa, de mútuo intercâmbio, que não condiciona o sujeito trabalhador
ao estranhamento do produto do trabalho. Neste caso, os objetos do trabalho deixam de
ser cobiçados como propriedade para adquirirem uma nova forma, em que se
confirmam as forças essenciais, as capacidades subjetivas do sujeito, a fim de lhe
satisfazerem plenamente.

36
___., p. 564.
37
___., p. 566.
38
___., p. 542.
39
___., p. 540.

39
A temática da subjetividade humana pode ser apreendida também nos
Grundrisse e em O Capital. Na primeira obra, Marx parte da produção material,
socialmente determinada, e demonstra que ela é um todo orgânico, dinâmico, uma rica
totalidade de relações diversas, na qual seus momentos constitutivos, a distribuição, a
troca e o consumo, estão concatenados entre si, formando unidade sintética, embora
contraditória: a produção oferece, na forma material, o seu objeto, isto é, os elementos
materiais do consumo, pois sem objeto não há consumo. A produção determina, porém,
não só a forma objetiva, como também subjetiva do objeto, isto é, ela não só fornece o
objeto material à necessidade do consumidor, como também “cria subjetivamente” o
consumidor, a sua necessidade, ao determinar o modo, a forma específica em que o
objeto deve ser consumido. Como diz Marx: “A fome é a fome, mas a fome que se
satisfaz com carne cozida, comida com faca e garfo, não é a mesma fome que devora a
carne crua com ajuda da mão, da unha, do dente.”40 Do mesmo modo: “O objeto de arte
– tal como qualquer outro produto – cria um público sensível à arte e capaz de desfrutar
a beleza.”41 Portanto, a produção cria não só um objeto para o sujeito (para o consumo),
mas também um sujeito para o objeto, ao determinar o modo de consumir o objeto e a
necessidade no sujeito desse objeto (o apetite, o desejo do consumo). E o consumo é o
móbil que impulsiona a produção, que põe em movimento o processo produtivo, à
medida que ele produz a necessidade de um novo objeto, de uma nova produção. Entre
a produção e o consumo situa-se a distribuição, que não pode ser uma repartição
coletiva, igualitária, dos produtos, porque ela não é independente, e sim determinada
inteiramente pela estrutura da produção, que é privada, particular. Nesse sentido, a
distribuição dos produtos é determinada pela forma da produção (privada), da
distribuição dos instrumentos de produção (privados) e da função (capital e trabalho)
dos membros da sociedade na produção. Do mesmo modo, a troca não é independente e
indiferente à produção, e, se a produção é privada, a troca também o é. Portanto,
produção, distribuição, troca e consumo são elos de um todo único; eles não são
idênticos nem exteriores um ao outro, mas momentos diferentes, embora recíprocos, no
interior de uma unidade, de uma totalidade orgânico-dialética.
Na obra indicada, os Grundrisse, Marx diz que o que especifica a sociedade
capitalista é o valor de troca, o capital, e este determina o nexo da sociedade, o convívio

40
MARX, K. Grundrissen der Krtik der polistischen Ökonomie”. In: MARX/ENGELS Werke (MEGA).
Berlin: Dietz Verlag, 1983, v. 42, p. 27.
41
Ibid., p. 27.

40
social entre os sujeitos, fazendo com que estes assumam a forma de coisa. Diz ele: “A
dependência mútua e generalizada dos indivíduos reciprocamente indiferentes forma a
sua conexão social. Esta conexão social está expressa no valor de troca [...], isto é, num
universal, no qual toda individualidade, toda particularidade, é negada e cancelada.” 42 E
mais: “O caráter social da atividade, tal como a forma social do produto e a participação
do indivíduo na produção, aparece aqui como algo estranho e com caráter de coisa
frente aos indivíduos; não como seu estar reciprocamente relacionados, mas como seu
estar subordinados a relações que subsistem independentemente deles e nascem do
choque dos indivíduos reciprocamente indiferentes. O intercâmbio geral das atividades
e dos produtos, que se converte em condição de vida para cada indivíduo particular e é
sua conexão recíproca com os outros, aparece a eles próprios como algo estranho,
independente, como uma coisa. No valor de troca, o vínculo social entre as pessoas
transforma-se em relação social entre coisas; a capacidade pessoal, em uma capacidade
das coisas”.43 Marx destaca aqui a indiferença, o alheamento, como a característica
particular do sujeito na sociedade capitalista. É o capital, o valor de troca, o dinheiro,
que medeia as relações sociais, eliminando as diferenças sociais dos sujeitos ou
tornando-as indiferentes. Essa indiferença entre os sujeitos, na sociedade capitalista, é
uma consequência do modo de produção capitalista que elimina não só as
determinações particulares em relação aos sujeitos e as diferenças qualitativas dos
produtos, das propriedades, dos atributos particulares das coisas (cor, cheiro, peso etc.),
isto é, daquilo que distingue materialmente os valores de uso particulares das coisas,
tornando-as meras mercadorias, como também as formas específicas do trabalho útil-
concreto, reduzindo-os, assim, a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano
abstrato.44 Portanto, nas condições do capitalismo, o sujeito se determina como força de
trabalho, como mercadoria, como coisa. E como coisa, as relações entre os sujeitos se
transformam em relações entre coisas; cada um é indiferente ao outro, está separado dos
demais, levando o sujeito a um completo isolamento social, a uma ausência de
sociabilidade.
Um texto importante sobre a subjetividade reificada é, precisamente, “O Caráter
Fetichista da Mercadoria e o seu Segredo”, publicado em O Capital. Investigando o

42
___., p 90-91.
43
___., p 91.
44
Sobre a distinção entre trabalho útil-concreto e trabalho abstrato em Marx, cf. CHAGAS, Eduardo F.
“A natureza dúplice do trabalho em Marx: Trabalho útil-concreto e trabalho abstrato.” In: Revista
Outubro, nº. 19, 2011, p. 61-80.

41
fetichismo da mercadoria, Marx observa que o caráter “místico”, “enigmático”, da
mercadoria não provém de seu valor de uso, mas da forma do valor, do valor de troca.
Assim ele descreve o fenômeno do fetichismo da mercadoria: “O mistério da forma
mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as
características sociais de seu próprio trabalho como características objetivas dos
produtos do trabalho mesmo, como qualidades naturais sociais destas coisas, por isso,
também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação
social de objetos, que existe fora deles. Por meio desses quiproquós os produtos do
trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, sensíveis e suprasensíveis. [...] É apenas
a relação social determinada dos próprios homens, tomada aqui por eles como a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas.” “Já que os produtores somente entram em
contato social mediante a troca dos produtos de seu trabalho, também as características
especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. [...]
Por isso, aos últimos [aos produtores], as relações sociais entre seus trabalhos privados
aparecem como o que elas são, isto é, não como relações imediatamente sociais entre
pessoas em seus próprios trabalhos, mas, pelo contrário, como relações reificadas entre
as pessoas e relações sociais entre as coisas.”45 Marx enfatiza, aqui, a condição trágica
da subjetividade no mundo, pois, no processo produtivo de mercadorias, cria-se uma
objetividade que anula os próprios sujeitos. Marx destaca a presença de uma
objetividade sem subjetividade, ou de uma subjetividade mutilada, esvaziada, para qual
a realidade aparece como um mundo exterior; quer dizer, o sujeito desconhece o mundo,
a sua própria atividade, as condições pelas quais se produzem a sua própria existência,
percebendo o mundo, a existência real, como fora dele, externa e alheia a ele, e não
como um produto de seu próprio trabalho, de sua própria subjetividade. Marx vê aqui o
anúncio da “morte” do sujeito, pois, nessas condições fetichizadas, os sujeitos enquanto
sujeitos são abolidos e se tornam coisas vivas (de ordem mercadológica), e os produtos
de seu trabalho, as mercadorias, aparecem como atributos de si mesmas, autonomizadas,
dotadas de um poder sobrenatural, ocultando, assim, a sua origem, a sua fonte, isto é, o
trabalho social que as fundamenta.

45
MARX, K. Das Kapital. Op. cit., p. 86-87.

42
Trabalho, Subjetividade e Educação em Marx

Vilson Aparecido da Mata

Introdução

A questão da subjetividade é candente na atualidade e uma leitura dos clássicos


sobre o tema é capaz de esclarecer algumas questões que carecem de melhor
aprofundamento e discussão. Para este texto, procurar-se-á utilizar o referencial de
Marx a fim de contribuir com o debate sobre a subjetividade e a educação. Entre as
muitas “acusações” que se fazem a Marx, duas se destacam: a primeira delas é em
relação ao suposto determinismo econômico do autor alemão; a segunda é que, por
conta deste determinismo, ele desconsideraria a subjetividade ao conceber o homem
como “produto do meio”.
Em uma sociedade em que há contradição entre trabalho e capital, ou seja, entre
trabalhadores e proprietários dos meios de produção, a questão da subjetividade impõe-
se à análise. A especialização contínua da força de trabalho, a produção planificada Just
in time, o desenvolvimento de tecnologias capazes de tornar o próprio corpo humano
mais cibernético, as tecnologias da informática, a comunicação em tempo real, etc.,
contrastam com o avanço da miséria, da pobreza, do embrutecimento dos sentidos, da
violência e da fratura entre indivíduo e sociedade. Se, por um lado, jamais se produziu
tanto e com tamanha eficiência, por outro, nunca houve tantos seres humanos vivendo
nas mais abjetas condições.
Para o desenvolvimento do tema, o texto foi organizado como segue: a
organização do texto será a seguinte: na primeira parte, discute-se a questão do
determinismo econômico em Marx, explicando suas bases e demonstrando a
infelicidade e o equívoco desta “acusação”; na segunda parte, a questão da subjetividade
será analisada, tomando as obras de Marx e dos autores da tradição marxiana; por fim,
na terceira parte, serão expostas reflexões a respeito da relação entre trabalho,
subjetividade e educação.


Professora da Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Mestre em Fundamentos da Educação pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação da UEM, Área de concentração em Fundamentos da
Educação. Doutorando em Educação Brasileira da FACED/UFC. E-mail: vdamata@hotmail.com

43
O Fator Econômico

Marx teria sido um defensor do determinismo do fator econômico sobre a vida


humana. O homem seria, segundo tal tese, pura e simplesmente um reprodutor das
exigências econômicas, reduzido ao patamar de relações em que o dinheiro dita as
normas de convivência e as ambições humanas.
Esta é uma acusação inverídica. Antes de tudo, é preciso compreender que Marx
analisou, em sua obra, a Economia Política, que, essencialmente, é algo diferente da
economia conforme a concebemos na atualidade. A Economia Política foi uma ciência
da qual a própria burguesia, em vias de ascensão na Inglaterra, utilizou-se a fim de
fundamentar as conquistas do “homem livre”, em contraposição às concepções
medievais e absolutistas. Entre os pensadores mais eminentes da Economia Política,
estão Adam Smith e David Ricardo.
Para a Economia Política, mesmo alinhada com os interesses da burguesia
ascendente, todo movimento econômico da sociedade é resultado e resultante das ações
políticas. O desenvolvimento do capital não pode ser efetivado sem a implementação do
desenvolvimento econômico, mas também não é possível sem o desenvolvimento de
uma política que represente os interesses da classe dos proprietários privados dos meios
de produção. A Economia Política constituiu-se, assim, no estandarte de uma nova
ordem social, representando, do ponto de vista científico, os interesses de uma classe
social que se apresentava como revolucionária. Para Marx, o econômico diz respeito à
produção dos meios que garantem a existência. Em última instância, aquilo que define o
humano e o modo como satisfaz suas necessidades fundamentais é o fator econômico,
entendido como a produção dos meios de existência, nas palavras do próprio autor:

As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas.


Adquirindo novas forças produtivas, os homens transformam o seu modo de
produção e, ao transformá-lo, alterando a maneira de ganhar a sua vida, eles
transformam todas as suas relações sociais. O moinho movido pelo braço
humano nos dá a sociedade com o suserano; o moinho a vapor dá-nos a
sociedade com o capitalista industrial. (MARX, 2009, p. 125).

O que Marx quer dizer quando se refere ao modo de produção? Ele fala dos
indivíduos reais, sua ação, suas condições materiais de existência, as que já se
encontram prontas ou as que os próprios homens constroem. (MARX e ENGELS,

44
2007). O modo como o ser humano estabelece sua relação simbiótica com a natureza
não garante somente sua reprodução física, mas também sua produção cultural,
histórica, social, econômica e, por conseguinte, subjetiva. Sendo ação teleológica, a
atividade produtiva do homem é essencialmente subjetiva na medida em que, como ser
genérico, aquilo que ele é depende fundamentalmente do modo como produz e o modo
como produz depende da natureza, ou, das condições materiais de existência.

A produção de idéias, de representações, da consciência, está, em princípio,


imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio
material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar,
o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação
direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção
espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da
moral, da religião, da metafísica, etc. de um povo. Os homens são os
produtores de suas representações, de suas idéias e assim por diante, mas os
homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado
desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele
corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência
(bewusstsein) não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente
(bewusste Sein), e o ser dos homens é o seu processo de vida real. (MARX E
ENGELS, 2007, p. 93-4).

As idéias, representações e a consciência são inevitavelmente ligadas à base


material. Elas são emanações diretas do comportamento real, subjetivo, humano. A
partir daí, a complexa relação do homem com a natureza é a chave para a compreensão
da sua produção intelectual (formação da subjetividade), representada pela linguagem,
pelas leis, pela política, pela moral, pela religião, pela metafísica, etc. A construção da
subjetividade (consciência, linguagem, intelectualidade, sensibilidade) constitui a
expressão das atividades e das ações, que são determinadas e determinantes, causas e
causadoras, transformadas e transformadoras. Só é possível aceitar o contrário se se
supor a existência de um espírito absoluto e a-histórico.
Ao refletir sobre a economia, o desenvolvimento de forças produtivas, o trabalho
como fundamento ontológico do ser social, Marx não está se referindo ao movimento
financeiro do capital, mas às forças produtivas que dão origem à sociedade, não se deve
compreender, por força produtiva, apenas o trabalho assalariado, que é uma forma
histórica do trabalho, mas a capacidade do homem de antecipar na mente aquilo que
quer ver realizado no mundo material. O pensamento humano é também uma força
produtiva, assim como as instituições sociais criadas pela humanidade. Se o modo como
as forças produtivas estão organizadas na atualidade respondem ou não aos problemas
sociais, é outra questão.

45
Subjetividade, Trabalho e Alienação

Nesta parte do texto, discute-se a segunda “acusação” que se faz a Marx: do seu
suposto determinismo econômico emanaria a falta de sensibilidade do filósofo para com
as questões relativas à subjetividade. É fato que Marx não se ocupou de um tratado
sobre a subjetividade, mas teceu muitas reflexões que tornam possível entender que o
autor alemão não apresenta a subjetividade de acordo com as concepções clássicas, e
isto leva ao equívoco de se julgar inexistente, nele, reflexões sobre o tema. Para pontuar
a diferença, expõe-se duas concepções clássicas de subjetividade e, após, o pensamento
de Marx sobre o tema.
A primeira das concepções clássicas é a escolástica, que entende o subjetivo
como designação do ser, atuante e determinante, conforme a vontade e o arbítrio do
sujeito em relação ao ser representado, ou, o objeto. O homem é o ser subjetivo, criado à
imagem de Deus e dotado por Ele de poder sobre todas as coisas representadas no
mundo material. O homem, pelo seu arbítrio, teria o poder e a permissão divina para
agir sobre o mundo, mudá-lo ao seu talante, retirar dele, ainda que à força, os meios de
que necessita para viver. Não se entende, na concepção escolástica, a subjetividade
como simbiose do homem com a natureza, mas como domínio.
Outra concepção clássica, iluminista e metafísica, entende que o “subjetivo”
designa o que se encontra no sujeito como sujeito cognoscente. Neste caso, o subjetivo
é o representado e não o real ou substancial. O subjetivo é o ser capaz de conhecer,
entender, perscrutar e dominar. A representação do ser cognoscente está na razão que a
tudo desvenda. A subjetividade, então, passa a ser entendida de duas maneiras: ou ela é
a característica do ser do qual se afirma algo, ou do próprio ser que afirma. A diferença
de significado obedece ao fato de que, num caso, a relação considerada é a relação
sujeito-predicado e, no outro caso, é a relação sujeito cognoscente - objeto do
conhecimento. Do ponto de vista desta concepção, uma realidade é substancial porque
emergem dela certas propriedades que lhe são inerentes. Por isso, a realidade
substancial é sujeito, e sua característica é a “subjetividade”. O sujeito é um sujeito
humano individual e o seu ponto de vista é um ponto de vista particular.
Para as concepções clássicas, as manifestações e elementos especificamente
humanos não colocam o ser humano no mundo, mas antes, o separam dele, constituem
uma muralha entre o homem e o mundo. Esta muralha está no entendimento de que a

46
subjetividade humana não depende da natureza, do mundo material, para seu
desenvolvimento e complexificação. Por outro lado, também aparta o homem dos
demais homens, uma vez que, desconsiderando a externalidade como determinante,
desconsidera também os demais seres humanos, que são externos ao indivíduo. A
essência humana é considerada como independente da forma societária porque não
necessita que outros seres humanos influam no desenvolvimento dos talentos e gostos,
sentimentos e sensibilidade do indivíduo, a subjetividade seria atemporal.
O entendimento de Marx sobre tais questões é bem diferente. A subjetividade
não se apresenta como algo natural e centrado unicamente no indivíduo atomizado e
cindido com a totalidade das relações sociais e históricas, mas é produto social, porque
se desenvolve junto com a cooperação entre os homens, é a relação que se estabelece
com tudo aquilo que está à volta. Não pode haver, para Marx, uma consciência pura,
apartada da simbiose com a natureza e com a cooperação entre os homens e, portanto,
não pode haver subjetividade que aparte o homem do mundo, pois ela só se torna
subjetividade humana na relação com o mundo e com os outros homens: “Desde o
início, portanto, a consciência já é um produto social, e continuará sendo enquanto
existirem homens”. (MARX e ENGELS, 2007, p. 35).
Em outras palavras, a subjetividade em Marx não é a qualidade exclusiva do
sujeito cognoscente, ou aquilo que diz respeito unicamente ao sujeito: qualidades
pessoais, de ordem afetiva, arbitrária e relativa. Em Marx o sujeito cognoscente não se
desvincula das condições objetivas, históricas, que são constituídas no movimento das
forças produtivas. A subjetividade não é um dado a-histórico, uma essência atemporal
do sujeito, mas uma qualidade desenvolvida em interação com a totalidade das relações
sociais em determinado tempo, em determinado lugar.

[...] mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio


materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os
produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida
que determina a consciência. No primeiro modo de considerar as coisas,
parte-se da consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que
corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se
considera a consciência apenas como sua consciência. (MARX e ENGELS,
2007, p. 94).

O desenvolvimento de um determinado modo de produção está ligado a um


determinado modo de cooperação entre os homens, um determinado modo de organizar
os talentos e potencialidades; temperamentos e caráter de cada indivíduo; a fim de

47
melhor garantir a satisfação das necessidades e carências. A premissa fundamental é a
atividade vital, a partir dos seres humanos e seu processo de desenvolvimento real,
teleologicamente concretizado. Esta é a base sobre a qual se deve compreender a
construção da subjetividade: na vida real começa a consciência real.
A subjetividade é, então, material e histórica. Aquilo que é humano é o mundo
material que minha época produziu. Não existe uma essência eterna, a-histórica e
independente da forma societária. Se a subjetividade é histórica, então ela é transitória,
o que é humano em uma determinada época pode não ser considerado assim em outra.
O que é subjetivo tem de ser a unidade do sujeito com toda a sociedade (usufruto dos
bens produzidos pela sociedade). Tudo aquilo que é produzido pela sociedade humana é
humano, até mesmo as desumanidades produzidas em determinados períodos, são obra
humana. A subjetividade em Marx é a compreensão de que tudo aquilo que é produzido
historicamente constitui a essência humana (meios de produção, bens, técnicas,
conhecimentos, arte, cultura, educação). A essência do homem é social, aquilo que o
homem faz e como ele faz o constrói como humano, é sua ontologia.
Com isso, temos uma relação clara entre trabalho e subjetividade. Se a atividade
produtiva do homem é sua ontologia, se ela só pode existir em interação e simbiose com
a natureza, se a partir desta interação e simbiose o ser humano desenvolve os meios de
produção e sua própria história, então, a partir do trabalho, entendido aqui como
categoria especificamente humana, a subjetividade é constituída e constituinte da
essência humana. O trabalho é a capacidade humana de, por sua ação consciente,
transformar o mundo natural em coisas não naturais que satisfazem necessidades e
carências, mas é também transformação do próprio ser que transforma, pois o mundo
natural impõe ao homem que se modifique.
Mudar o meio natural é condição de existência para o homem, que o faz através
de mediações (instrumentos) que constrói utilizando os próprios elementos já dispostos
na natureza. Essas mediações são potencializações do humano, aumentam a força, o
alcance, a velocidade, etc. O homem não se relaciona com a natureza de forma imediata,
mas de forma mediada, produzindo suas relações com os outros homens também de
forma mediada. O ser humano necessitou transformar elementos da natureza em
instrumentos de sua vontade, “desse modo, faz de uma coisa da natureza órgão de sua
própria atividade, um órgão que acrescenta a seus próprios órgãos corporais,
aumentando seu próprio corpo natural, apesar da Bíblia”. (Marx, 2008, p. 213). O
trabalho é a transformação permanente da natureza pelo homem. Cada produto do

48
trabalho, cada invenção, é extensão e potencialização das capacidades humanas. A partir
delas, o homem passa a distinguir-se da natureza. Contudo, permanece natureza.
Por sua limitação biológica, o homem obrigou-se a conhecer as leis da natureza,
e, ao produzir potencializações de suas capacidades atribuiu funções não naturais às
coisas da natureza, criou a tecnologia. Utilizar instrumentos, conscientemente, para
aumentar força, velocidade, visão, etc., é coisa que nenhuma outra espécie faz tal como
o homem. Tecnologia é expansão das capacidades humanas, só se efetiva pela
transformação da natureza. Além disto, a fragilidade do indivíduo faz com que ele
precise, também, da cooperação. A constituição do homem pelo trabalho põe como
exigência a cooperação, criando a necessidade da comunicação, da linguagem.

Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só


em cada indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo
a executar operações cada vez mais complexas, a se propor e alcançar
objetivos cada vez mais elevados. O trabalho mesmo se diversificava e
aperfeiçoava de geração em geração, estendendo-se cada vez a novas
atividades. À caça e à pesca veio juntar-se agricultura e, mais tarde, a fiação e
a tecelagem, a elaboração de metais, a olaria e a navegação. Ao lado do
comércio e dos ofícios apareceram, finalmente, as artes e as ciências; das
tribos saíram as nações e os Estados. Apareceram o direito e a política e, com
eles, o reflexo fantástico das coisas no cérebro do homem: a religião.
(ENGELS, 2004, p. 24-5).

Com Engels pode-se afirmar que o trabalho funda o mundo dos homens, não é
possível a este relacionar-se com a natureza sem produzir materialmente sua existência,
sem prover para si a satisfação de necessidades fundamentais. Agindo sobre a natureza,
desenvolve um conjunto de conhecimentos que pode ser extrapolado para outras coisas
necessárias. A cada nova construção, cria-se o novo e criam-se novas necessidades. A
materialidade do trabalho é o elemento essencial que desenvolve a práxis e, através
dela, relações sociais e, a partir delas, a cultura, a arte, a filosofia, a educação, produtos
necessários e inevitáveis, em última instância, do trabalho.
A partir do trabalho, foi possível refinar os membros e a sofisticação dos
sentidos. (ENGELS, 2004). No primeiro caso, o ser humano foi capaz de criar extensões
do corpo: o machado, a lança, o arco e a flecha, por exemplo, potencializaram o alcance
e a força dos membros humanos, transformando o homem de caça em caçador. A força
humana foi expandida e, com ela, a potencialidade humana de planejar e agir, de sentir e
fazer, de entender as forças da natureza e a si mesmo.
No segundo caso, os sentidos humanos e os órgãos dos sentidos, fundamentais
para a formação da subjetividade, foram aperfeiçoados pela influência do trabalho,

49
elevando-os a níveis que nenhum outro ser pôde alçar (LEONTIEV, 1978). O olho
humano vê mais coisas em um objeto do que o olho de qualquer outra criatura; o ouvido
humano diferencia e dá sentido a sons como nenhum outro na natureza; o paladar
humano tornou-se extremamente sensível; o olfato humano é capaz de identificar odores
os mais variados e o tato ganhou sentidos e significações que não existem para os
demais animais. Pelo trabalho, pela cooperação, pelas potencializações criadas
socialmente, as capacidades do ser humano tornaram-se mais complexas. A mediação
da cultura humana tornou também mais complexa a subjetividade humana:

O sentido musical do homem só é despertado pela música. A mais bela


música nada significa para o ouvido completamente amusical, não constitui
nenhum objecto, porque o meu objecto só pode ser a confirmação de uma das
minhas faculdades. Portanto, só pode existir para mim na medida em que a
minha faculdade existe para ele como capacidade subjectiva, porque para
mim o significado de um objecto só vai até onde chega o meu sentido (só tem
significado para um sentido que lhe corresponde). Por conseqüência, os
sentidos do homem social são diferentes dos do homem associal. Só através
da riqueza objectivamente desenvolvida pelo ser humano é que em parte se
cultiva e em parte se cria a riqueza da sensibilidade subjectiva humana (o
ouvido musical, o olho para a beleza das formas, em suma, os sentidos
capazes de satisfação humana e que se confirmam como faculdades
humanas). (MARX, 1989, p. 199).

Marx explica o indivíduo e a subjetividade como expressão do ser social. Os


órgãos da individualidade (audição, tato, paladar, olfato, visão) são resultado da
apropriação humana da natureza, da relação homem-natureza. Mas só se tornam mais
complexos na relação com os demais seres humanos, com a sociedade e a cultura
desenvolvida pelas gerações de homens e mulheres que trabalham em cooperação,
tornando o mundo mais humano. A apropriação das objetivações das gerações
anteriores, das habilidades e funções que não tinha ao nascer, fez o homem aprender a
ser homem, a produzir suas potencialidades socialmente, pelo trabalho.
É a sociedade que produz a capacidade de inventar o navio, o avião, o trem. Por
esta razão, quando a propriedade privada dos meios de produção exclui frações
humanas do gozo livre desses bens, o que resulta são homens mutilados, expropriados
de uma força que lhes é vital. (KLEIN, 2007). Se, na sociedade humana, há propriedade
privada, retiram-se os avanços criados socialmente de uma significativa parcela da
humanidade. Quando há apropriação privada, há brutalização e alienação daqueles que
estão apartados das conquistas históricas. A propriedade privada tornou-nos tão
estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando é utilizado. Os
sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos os
50
sentidos, pelo sentido do ter. (MARX, 1989). O ser humano reduziu-se a esta absoluta
pobreza subjetiva a fim de produzir toda riqueza exterior. Marx revela tal pobreza ao
falar da sociedade do nosso tempo:

Trata-se do tempo em que as próprias coisas que, até então, eram


transmitidas, mas jamais trocadas, oferecidas, mas jamais vendidas,
conquistadas, mas jamais compradas – virtude, amor, opinião, ciências,
consciência etc. –, trata-se do tempo em que tudo, finalmente, passa pelo
comércio. O tempo da corrupção geral, da venalidade universal ou, para
expressá-lo em termos de economia política, o tempo em que todas as coisas,
morais ou físicas, tornando-se valores venais, devem ser levados ao mercado
para que se aprecie o seu mais justo valor. (MARX, 2009, p. 48).

A ferrenha crítica de Marx à sociedade capitalista deve-se, entre outras coisas,


ao fato de que tudo é reduzido ao seu valor de troca, a sua venalidade, e, portanto, tudo
pode se reduz a um equivalente universal (dinheiro), até aquilo a que não se pode
atribuir valor, como a virtude, o amor, etc. Com o autor alemão, pode-se compreender
que, na sociedade da propriedade privada, as coisas produzidas socialmente são
separadas dos indivíduos, mutila o sujeito e produz a consciência humana como
separada do conjunto da sociedade. A consciência alienada é mutilada e mutilante, é
distanciada daquilo que humaniza e reproduz os males sociais.
Esta lógica cria uma sociedade que produz desigualdade, a despeito do discurso
da igualdade, ou do respeito às diferenças. A sociedade da venalidade universal
transformou os sentidos humanos em sentidos do ter, as potencialidades humanas em
mercadorias. O homem tornou-se desumano e alienado das potencialidades que foram
produzidas socialmente. A subjetividade humana determinada como valor de mercado,
determinada pelo movimento do capital, não é uma premissa de Marx, mas objeto de
sua mais aguda crítica, de seu mais atento escrutínio e de sua mais profunda negação.

Formação Humana, Educação e Subjetividade

As idéias de Marx a respeito da subjetividade são atuais e candentes. Não se


trata, em hipótese alguma, de uma concepção que despreza ou condiciona o ser humano
ao mero movimento econômico do capital, mas, ao contrário, eleva o homem a ser que
se constrói na medida em que constrói sua própria história no mundo. A subjetividade
não se desenvolve à revelia da sociedade e do tempo histórico.

51
A partir das reflexões feitas até aqui, pode-se entender que o trabalho é vida:
vida porque é intercâmbio e simbiose do ser humano com a natureza e com os demais
seres humanos; é vida porque por ele os homens produzem e reproduzem genericamente
a espécie humana; é vida porque a cada necessidade satisfeita pela ação teleológica dos
homens, novas necessidades desenvolvem-se e novas ações se tornam indispensáveis; é
vida porque, através da transmissão dos conhecimentos acumulados por uma geração à
geração mais jovem, o trabalho humano torna-se acumulativo, mais complexo e cria a
sociedade e as relações sociais.
No decorrer dos séculos, o processo de transformar o mundo e transformar-se a
si mesmo levou o ser humano a construir a civilização, a fundar o mundo humano a
partir do trabalho. A riqueza produzida pelo trabalho tendo como fonte primeira a
natureza não é, simplesmente, riqueza material ou monetária, é também riqueza
espiritual, pois o trabalho resulta em coisas que vão muito além de sua finalidade
imediata, que é prover o sustento. O trabalho humano cria também: a cultura, a arte, a
filosofia, a religião, a educação.
Entendida no contexto das múltiplas determinações que compõem o homem, a
educação é essencial para a manutenção, aperfeiçoamento e transformação das
civilizações. Em diferentes momentos, a transmissão do acúmulo de conhecimentos por
uma geração à próxima assumiu diferentes formas, contudo, sua função permaneceu
sempre a mesma. O único aspecto da educação que independe da forma societária é
exatamente a sua função de formar adultos capazes de operar a manutenção da
sociedade. O produto da atividade humana, seja material, intelectual ou ideal, exprime e
reflete o seu saber fazer, a sua capacidade produtiva. A cada nova geração, o acúmulo
do conhecimento necessário é transmitido.
A progressiva complexificação dos modos de produção desenvolveu práticas
sociais também mais complexas, exigindo que instituições com a função específica de
transmitir o conhecimento acumulado se formassem, e, depois, se especializassem; o
tempo destinado à educação das gerações mais jovens aumentou; conhecimentos
específicos sobre o modo como funciona a natureza e a sociedade ganharam
importância, foram constituídos os diferentes ramos científicos e, a partir deles, a
educação ganhou função formal de transmissão dos conhecimentos cientificamente
importantes para a produção. “Esta relação entre o progresso histórico e o progresso da
educação é tão estreita que se pode sem risco de errar julgar o nível geral do

52
desenvolvimento histórico da sociedade pelo nível de desenvolvimento do seu sistema
educativo e inversamente”. (LEONTIEV, 1978, p. 267).
Cada geração, além de recriar o mundo de objetos, idéias e moral da geração
anterior, avança construindo novos objetos, tendo novas idéias e aprimorando a moral.
Formal ou informalmente, os conhecimentos acumulados no curso de uma vida são
transmitidos aos mais jovens, que, então, podem avançar, rejeitar, reformular,
aperfeiçoar e retransmitir o acúmulo histórico dos conhecimentos. Antes de tudo, a nova
geração chega a um mundo já repleto de significados, culturalmente desenvolvido até os
limites das forças produtivas historicamente constituídas. Cabe ao mais jovem
apropriar-se daquilo que se tornou importante o suficiente na civilização para
cristalizar-se e permanecer. Somente após a apropriação dos produtos sócio históricos
de sua civilização é que a geração mais jovem terá condições de avançar, quer pela
concordânca quer pela divergência.
A educação, como necessidade fundamental do homem, também está conectada
com a produção e reprodução dos meios de existência. Toda sociedade necessita
reproduzir os elementos que garantem sua manutenção, bem como aqueles que
introduzem as transformações. Quando os meios de produção são transformados pela
ação humana, as relações sociais também sofrem mudanças. São os homens ativos,
reais, que produzem e reproduzem uma forma societária. Neste sentido, a consciência
do homem individual só pode ser forjada em sua relação social. Contudo, o modo como
a sociedade se produz e reproduz é historicamente determinado pelo desenvolvimento
de suas forças produtivas.
A subjetividade é forjada socialmente. Isso significa que, embora ela seja, de
fato, individual, só se constitui como tal na relação social, que é inevitavelmente
histórica e cultural. Ao desenvolver sua produção, os homens produzem um modo de
pensar, este pensar é também um produto do trabalho humano que, uma vez criado pela
relação social do trabalho volta-se para o próprio trabalho a fim de modificá-lo,
transformá-lo, torná-lo mais complexo. A ação viva do ser humano sobre o mundo é
que desenvolve suas potencialidades, e são os indivíduos reais, históricos, que
determinam os modos como as novas gerações deverão ter seus potenciais, caráter e
inclinações formados para dar continuidade à forma societária vigente.
Todas as mediações produzidas historicamente são objetos a serem aprendidos e
ensinados. Apropriar-se de potencializações eleva a capacidade humana, eleva o ser
humano. O papel da educação está exatamente na elevação do ser humano pela

53
apropriação das mediações, dos instrumentos do pensamento, do refinamento dos
sentidos, do conhecimento das leis da natureza, da capacidade de expressar e comunicar
sentimentos e ideias aos demais homens, enfim, a educação é o campo que deveria
contribuir para a formação de indivíduos subjetivamente mais humanos. Entretanto, em
uma sociedade baseada na sociedade privada, a consequência é a desigualdade em todas
as esferas da vida humana. Quando há apropriação privada sobre o produto do trabalho
social, a desigualdade no gozo das conquistas humanas torna, por um lado, alguns
homens ricos (não só materialmente, mas também culturalmente e, como consequência,
subjetivamente) e, por outro lado, uma multidão de trabalhadores expropriados em
homens pobres (também não só materialmente, mas culturalmente e subjetivamente). A
educação torna-se reforçadora da condição de desigualdade entre os homens. Para Marx
(1989), os sentimentos e paixões do homem são verdadeiras afirmações ontológicas do
ser, que, porém, só se afirmam na medida em que o objeto se torna objeto sensível, que
constitua característica viva da existência humana e que também os sentimentos sejam
afirmações do outro:

Suponhamos que o homem é homem e que sua relação com o mundo é


humana. Então, o amor só poderá permutar-se por amor, a confiança com a
confiança, etc. Se alguém deseja saborear a arte, terá de tornar-se uma pessoa
artisticamente educada; se alguém pretende influenciar os outros homens,
deve tornar-se um homem que tenha um efeito verdadeiramente estimulante e
encorajador sobre os outros homens. Cada uma das suas relações ao homem
– e à natureza – tem de ser uma expressão definida, correspondendo ao
objeto da vontade, da sua vida individual real. Se alguém amar, sem por sua
vez despertar amor, isto é, se o seu amor enquanto amor não suscitar amor
recíproco, se alguém através da manifestação vital enquanto homem que ama
não se transforma em pessoa amada, é porque o seu amor é impotente e uma
infelicidade. (MARX, 1989, p. 234-5).

A subjetividade é produzida e produtora daquilo que o homem faz e de como o


faz. Nesta relação, produto e produtor estão entrelaçados num abraço que dura enquanto
houver humanidade. A formação humana pela educação, seja formal, não formal ou
informal, é determinada e determinante das condições objetivas, históricas, construídas
a partir do desenvolvimento social das forças produtivas. A subjetividade individual não
é desprovida dos elementos históricos que dão a ela significação, sentido, validade e
qualidade. Quando há desigualdade, quando há apropriação privada sobre o produto do
trabalho social, então, a subjetividade humana é fragmentada e os potenciais humanos
tornam-se limitados pela relação social da exploração do trabalho. Na sociedade da
propriedade privada dos meios de produção e do trabalho assalariado, para se garantir a

54
vida, deve-se permutar trabalho por alimento diariamente, pois sem alimento, a vida
desvanece e morre. Nesta lógica, se o trabalho é mercadoria, e se essa mercadoria é o
que garante a vida, então a vida do trabalhador é mercadoria: “[...] „para que a vida do
homem seja uma mercadoria, deve então admitir-se a escravatura‟. Por conseguinte, se
o trabalho é uma mercadoria, surge como mercadoria da mais miserável espécie”.
(MARX, 1989, p. 116).
Sendo o trabalho uma mercadoria da mais miserável espécie, a venda da força de
trabalho torna-se a condição existencial do trabalhador, que se torna, ele mesmo, uma
mercadoria embrutecida na lógica imposta pelo mercado de trabalho. Na atualidade, a
brutalização da vida e a cisão entre o indivíduo e aquilo que o faz humano tornou-se tão
profunda, tão perigosa à própria ordem social, que a educação passou a ser tida e vista
como o instrumento capaz de transformar a sociedade.
Embora seja uma instituição fundamental à superação da alienação e à conquista
da emancipação humana, a educação não é suficiente para redimir a sociedade das
mazelas constituídas historicamente. Se por um lado, é capaz de identificar as limitações
e contradições sociais do capitalismo, por outro lado, opera em favor da manutenção das
instituições existentes, sugerindo a emancipação na liberdade de escolha e na melhor
adequação ao mercado de trabalho.

Assim, além da reprodução, numa escala ampliada, das múltiplas habilidades


sem as quais a atividade produtiva não poderia ser levada a cabo, o complexo
sistema educacional da sociedade é também responsável pela produção e
reprodução da estrutura de valores no interior da qual os indivíduos definem
seus próprios objetivos e fins específicos. As relações sociais de produção
reificadas sob o capitalismo não se perpetuam automaticamente. Elas só o
fazem porque os indivíduos particulares interiorizam as pressões externas:
eles adotam as perspectivas gerais da sociedade de mercadorias como os
limites inquestionáveis de suas próprias aspirações. É com isso que os
indivíduos “contribuem para manter uma certa concepção do mundo” e para
a manutenção de uma forma específica de intercâmbio social, que
corresponde àquela concepção do mundo. (MÉSZÁROS, 2007, pp. 263-4).

Tomada isoladamente, como instituição capaz de transformar a sociedade toda, a


educação passa a ser idealizada como redentora dos valores que a sociedade deixou de
realizar. Quanto mais profunda a separação entre idealidade e realidade, maior o clamor
por uma educação/formação „moral‟ do homem. Isolada, a educação só pode ser tida
como formação técnica do trabalhador para ingressar no mercado de trabalho, mantendo
a concepção capitalista do mundo e forjando uma subjetividade embrutecida, de
sentidos adormecidos para aquilo que humaniza. A concepção da educação como

55
redenção social parte da mesma base material cujas manifestações procura denunciar,
criticar e negar: a ordem social da propriedade privada dos meios de produção. Ao
perceber a alienação do homem a partir do ponto de vista do capital, a educação não tem
condições de propor sua superação a não ser no quadro dos postulados morais mais
gerais e na conformação reformista do Estado capitalista, procurando melhorá-lo ou
humanizá-lo.
Assim, o enriquecimento da subjetividade na direção da humanização do homem
é também uma tarefa educacional, porém, apenas quando esta tarefa assume o caráter de
ruptura profunda. Nos limites da modificação política ou do clamor moral pela melhoria
das capacidades técnicas do trabalhador, a educação reforça e alimenta a desigualdade e
a formação de uma subjetividade pobre, incapaz de superar a atomização do indivíduo,
de entender o homem como ser genérico, de superar as mazelas sociais e, por fim,
contribuindo para manter a concepção de mundo interiorizada na sociedade do capital.
A transcendência das relações sociais alienadas só pode ser concebida no quadro geral
das relações sociais construídas, não apenas em uma de suas formas. A formação de
seres humanos subjetivamente ricos é impossível no contexto que pressupõe a
brutalização dos sentidos e a cisão do indivíduo com a sociedade civil. Enquanto houver
a propriedade privada e a expropriação da maior parte da humanidade daquilo que
humaniza, a subjetividade permanece em xeque.

Referências

ENGELS, Friedrich. Sobre o Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em


Homem. IN: ANTUNES, Ricardo (ORG). A Dialética do Trabalho: escritos de Marx e
Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 13 a 34

KLEIN, Lígia Regina. Fundamentos para uma Proposta Pedagógica para o Município
de Campo Largo. Campo Largo, PR: PM/SED, 2007.

LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte,


1978.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Lisboa: Editora Alfa-Ômega,


s/d.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Lisboa; Edições 70, 1989.

MARX, Karl. O Capital: o processo de produção do capital. Vol. I, Livro 1. Rio de


Janeiro; Civilização Brasileira, 2008 (25ª. Ed.)

56
MARX, Karl. Miséria da Filosofia: resposta à filosofia da miséria, do Sr. Proudhon.
São Paulo: Expressão Popular, 2009.

MÉSZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2007.

57
A Lógica da Exceção na Reflexão Política de Walter Benjamin

Tereza de Castro Callado

O rei é o mais justo (dikaiotatos).


O mais justo é o mais legal (nominotatos).
Sem justiça ninguém pode ser rei,
mas a justiça é sem lei (aneu nomou dikaiosyne).
O justo é legítimo
e o rei, que se tornou causa do justo,
é uma lei viva (nomos empsychos)”
Tratado de Diotogene parcialmente conservado por Stobeo)

A Lógica da Exceção na Reflexão Política de Walter Benjamin

Em 1920 aparece o ensaio de Walter Benjamin Zur Kritik der Gewalt que antecipa, por
12 anos o que aconteceria ao ordenamento jurídico da República de Weimar. As
oscilações daquele sistema parlamentar são visíveis na substituição incessante de
primeiros ministros. O panorama caótico generalizado da inflação, do desemprego, do
descrédito da juventude em relação ao futuro, na verdade a desilusão radical em relação
ao século, é caracterizada pela “volta silente das trincheiras”, na Primeira Guerra, dos
soldados, sem nenhuma experiência a comunicar. Esses sintomas, acrescidos à
frustração de uma revolução proletária que não realizou sua síntese dialética, mas sem
que cessasse de ameaçar, na ótica de segmentos da comunidade católica, uma nova
erupção, levaram a Alemanha a encontrar saídas no doutrinamento que teve como
estofo a pureza da raça ariana. O massacre ideológico concluído pelo totalitarismo na
monstruosidade da “solução final” foi o espólio deixado como herança por esse estado
de exceção fatídico, se for possível resumir em poucas palavras o panorama da
deliquescência moral em que naufragou uma civilização em seu estágio avançado. Não
sabemos de que forma, mas essa hecatombe já tinha sido pressentida inconscientemente
pelo pensador Walter Benjamin, quando, em 1920, se decide a “prevenir” sobre a
ambiguidade do termo Gewalt, que em língua alemã tanto pode significar poder como


Professora de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. Pós-Graduação em Munique-Alemanha.
Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutora em Literatura pela Universidade
de São Paulo (USP). Dirige o “Grupo de Pesquisa Walter Benjamin e a Filosofia Contemporânea”.
Editora de Cadernos Walter Benjamin, acessível no site: http://www.gewebe.com.br/cadernos.htm

58
violência. Benjamin vai buscar explicações para os sintomas que condicionaram aquele
ambiente político em uma psicologia de massas do fascismo para compreender sua
extensão no culto da personalidade, nas noções falsas de heroísmo de guerra e no
caráter dogmático que tomaram de assalto os comandos alastrando-se para o resto da
população esmagada pelo medo e tendo que sublimá-lo na ovação. E conclui que a
degradação que vitimou o sistema legislativo de Weimar só poderia ser explicada em
suas raízes míticas. Portanto o foco da análise sobre o poder derivado do mito deve
repousar sobre a relação do direito com a violência. A análise de Benjamin sobre a
decadência dessa instituição incide no trânsito entre meios e fins, que nem o direito
natural nem o direito positivo conseguem contornar. Isso leva Benjamin a decidir-se por
uma análise à luz da filosofia da história. O ensaio, traduzido para o português por Willi
Bolle, com o título enfático de Crítica da violência, crítica do poder, mostra, já no seu
início, a necessidade de um olhar acurado sobre a interferência do direto em relações
éticas. Enquanto o direito natural busca legitimar os meios pela justiça dos fins, a lei
positiva alcança à justiça dos fins pela legitimidade dos meios (BENJAMIN, 1986, p.
160). Ao filósofo, além da necessidade de se perguntar: “mas serão os meios do poder
sempre justos?” resta a interrogação sobre o que existiria por trás da palavra
“legitimidade”, levando-nos a duvidar se essa instância – a da legitimidade - garantiria
a justiça. De qualquer forma, inicialmente, a violência, diz o filósofo, só pode ser
encontrada na esfera dos meios, não na dos fins (im Bereich der Mittel, nicht der Zweck
aufgesucht werden kann).46 Para investigar o desenvolvimento de ambos os direitos,
Benjamin recorre à filosofia da história do poder, para a qual a crítica à violência pode
ser definida como a apresentação de suas relações com o direito e a justiça (Recht und
Gerechtigkeit).47 Sobressai-se nessa leitura um calafrio que perfura o nosso
entendimento, pois trata-se da violência do sistema jurídico, que deveria ter em foco o
caráter “sagrado da vida”. Na análise sobre ele são auscultados em princípio os meios,
ficando em aberto “ironicamente” o questionamento “se a violência como princípio é
moral (sittlicht) mesmo como meios para fins justos (zu gerechten Zwecken)” 48 quando
ela tenta descredenciar a lei. Encontra-se na análise da ilação meios e fins o tom
premonitório do ensaio com relação aos fatos funestos que vitimaram a constituição de

46
Cf. Walter Benjamin. “Zur Kritik der Gewalt” in: Aufsätze, Essays, Vorträge-Gesammelte Schriften,
Band II, 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1991, S. 179-203.
47
“Die Aufgabe einer Kritik der Gewalt lässt sich als die Darstellung ihres Verhältnisses zu Recht und
Gerechtigkeit umschreiben.” Walter Benjamin. Opus cit. S. 179.
48
“Offen blieb immer noch die Frage, ob Gewalt überhaupt, als Prinzip, selbst als Mittel zu gerechten
Zwecken sittlich sei”. Benjamin. Opus cit. S 179

59
Weimar e o povo alemão, a partir da assinatura, por Hitler, do decreto para a proteção
do povo e do estado (Verordnung zum Schutz von Volk und Staat ) em 28 de Fevereiro
de 1933. Esse ordenamento caracterizado como medida “provisória” e que perdurou 12
anos feriu a constituição de Weimar e a dignidade do país, na medida em que sua
instituição era legislar em causa espúria. De tudo isso se pode deduzir a falácia da
norma transbordando da subjetividade sob o pretexto de “salvaguardar o povo alemão”.
Aparte o absurdo da afirmação de que o direito natural não vê nenhum problema no uso
da violência, por exemplo, no caso em que foi aplicada à Revolução Francesa, e onde a
violência é justificada como “um produto da natureza”, resta ainda a ironia. Benjamin
lembra que no direito natural as pessoas abrem mão do próprio poder para entregá-lo ao
poder do Estado, pois na realidade o indivíduo, antes de firmar seu contrato, como
adverte Espinoza, o realiza pelas leis do bom senso e da razão, por possuir um poder
que na realidade exerce de fato (jede beliebige Gewalt, die er de facto innehabe) para
dele abdicar em favor da comunidade. Alerta Benjamin que a filosofia darwinista
mostra, a partir do dogma da violência da natureza - reconhecida pela história natural -
apenas um pequeno fosso a transpor até o dogma abstruso da filosofia do direito,
“segundo o qual todo poder adequado só a fins naturais é, por isso mesmo, também
legítimo.” 49
Mas Benjamin não deixa de observar outra força ao lado do poder mítico.
Trata-se do poder puro – divino – ao qual subjaz a existência do homem. Ao contrário,
“a institucionalização do direito entre os homens”, é também “institucionalização do
poder e nesse sentido um ato de violência” Portanto, enquanto “a justiça é o princípio de
toda instituição divina de fins, o poder (Macht) é o princípio de toda institucionalização
mítica do direito” 50 Onde o sistema jurídico atua, fica claro o uso do direito como uma
brecha para a manutenção do poder. O direito seria uma oxigenação do poder, digamos
assim, na medida em que as restrições de um poder avassalador se concretizariam na
concessão a outrem de um direito. Quando esse ato se realiza dissolve-se o pacto com o
nomos da terra, e abandonada se vê a justiça (dikê), uma vez que ela não se auto-
apresenta na coerção: “o espírito é liberal. Ele não suporta coação externa nem
adaptação de seus resultados aos caprichos de um poder qualquer. (HORKHEIMER,
1983, p. 141). Essa observação que não deixa de ter sua lógica primorosa não deve se
entusiasmar com a plenitude de seus efeitos, é o que pensa também Horkheimer quando

49
“...dass jene Gewalt, welche fast allein natürlichen Zwecken angemessen, darum auch schon
rechtmässig sei.” Walter Benjamin. Opus cit S. 180
50
Walter Benjamin. “Crítica da Violência, crítica do poder” in: Documentos de Cultura documentos de
barbárie (Trad. e Org. Willi Bolle), São Paulo, Cultrix, 1986. p. 172.

60
complementa o pensamento na frase seguinte: “todavia o espírito não está separado da
vida da sociedade, não paira sobre ela”. Essa desarticulação bem colocada visa menos a
uma crítica social do que a abstração de um pensamento que elegeu o espírito como
liberdade, selando com essa afirmação a atuação da razão na história. Para concluir a
crítica continua o filósofo com seu argumento: “que construção teórica por mais
equivocada que seja, não pode preencher o requisito de exatidão formal?” Portanto a
manifestação abstrata da lei e sua adequação ao ato interpretativo deixa claro o caráter
hesitante da constituição do poder que precisa estar oculto para se efetivar. A guerra é
concebida como um arquifenômeno do poder instituinte do direito, quando se torna
notório que esse poder é a garantia do poder em si. São concedidos direitos ao vencido
mesmo quando o adversário vencedor dispõe do mais amplo poder, o que significa que
o direito é uma concessão feita pelo poder, de onde se pode concluir que o direito não
nasceu da liberdade, como diz expressamente Horkheimer em Teoria crítica, teoria
51
tradicional. Podemos acrescentar à afirmação do fundador da Zeitschrift für
Sozialforschung a resposta de que o direito nasceu do poder. Pois mesmo o direito
cedido ao vencido é uma forma de perpetuação do poder através do artifício ilusório da
concessão – uma manifestação de superioridade que humilha. Ao contrário, a
manifestação do poder divino encontra-se no poder educativo em sua forma perfeita,
fora da alçada do direito: passar pela existência é a maneira divina de educar. O poder
mítico – “em sua forma arquetípica como manifestação dos deuses” - institui o direito,
mas o poder divino o destrói, pois os limites impostos por aquele são arrebentados por
este. O poder mítico, através de sua filha dileta - a ideologia - abre um abismo entre o
ser e a existência para preenchê-la com a fantasmagoria da metrópole moderna gerida
pelo capital e o lucro (BENJAMIN, 2006). Aqui também, como no sistema jurídico,
atuam as engrenagens fantasmagóricas do mito ocultando as paixões. No direito uma
delas produz a culpa. Por ser derivado do poder mítico o direito impõe-se entre os
viventes, produzindo culpa e seu antídoto – a penitência para provar sua eficácia no
mundo das pessoas.52 Enquanto o poder mítico através do direito “exige sacrifícios”, o

51
Max Horkheimer. Teoria Crítica, teoria tradicional (Trad. Edmar Afonso Malagodi e Ronaldo Pereira
Cunha), São Paulo, Cultrix, 1983. P. 141.
52
“O desencadeamento do poder jurídico remonta (...) ao processo de culpa da vida pura e natural, o qual
entrega o ser humano inocente e infeliz à penitencia, com a qual “expia” sua culpa – e também absolve o
culpado, não de uma culpa, mas do direito. Pois com a vida termina a dominação do direito sobre os
vivos” Tanto isso é verdade, que aquele que atenta contra o próprio corpo, no ato suicida, não é julgado.
“O poder mítico é poder sangrento sobre a vida, sendo esse poder o seu fim próprio, ao passo que o poder
divino é um poder puro sobre a vida toda, sendo a vida o seu fim”. Walter Benjamin. Crítica da violência
crítica do poder (Trad. Willi Bolle) Opus cit. p. 173.

61
poder divino os “aceita”. Essa constatação prova que o direito não possui existência em
si, mas se utiliza da existência dos homens para se articular, pois o mal não possui
objeto. Ao contrário, o poder divino, é “insígnia e chancela”, possui a distinção de
“absolver a culpa”. Com a reflexão sobre o poder mítico do ordenamento jurídico
Benjamin não tem dúvida de que “a solução de conflitos é um princípio possível” e
53
exemplifica esse fenômeno nas relações entre as pessoas particulares. As leis da
espontaneidade e da afetividade são vinculadas a uma postura que prescinde do contrato
e da interferência de qualquer norma institucionalizada. Para Benjamin “a norma é
desqualificada enquanto instância crítica”. A normatização que o direito exige
estabelecendo limites e os circunscrevendo desafia o caráter da justiça (dikê). O
reestabelecimento do equilíbrio, após a infração, era concebida, em tempos arcaicos,
como leis não escritas: o homem pode transgredir esses limites, sem o saber e assim
ficar sujeito à penitência, o que é distinto da punição. Com esse estofo os antigos
construíram o gênero trágico. A essa ordem da concepção antiga do destino que vitima
o ignorante, Hermann Cohen chamou de “conhecimento inescapável”. Talvez tenha sido
esse desconhecimento que sujeitou Édipo a descoberta de sua tragédia na “solidão
gélida” de seu ser. Tal armadilha não poupou Édipo da penitência. Com certeza essas
raízes míticas da culpa foram fortes suficientes para ilustrar a necessidade de uma lei
escrita, a partir de então “entendida como uma rebelião contra o espírito dos decretos
míticos”,54 pelo menos é assim que o direito institucionalizado nos faz crer. A reflexão
crítica sobre o par direito e violência tem como objetivo desenvolver o conceito de
exceção (Ausnahmezustand) que também é vinculado ao direito, ou tem no direito sua
inclusão-exclusão. Essa categoria política cara à modernidade está relacionada a outras
duas teorias, imprescindíveis às articulações significativas que tangenciam o enfoque
benjaminiano, uma simultânea ao aparecimento do ensaio e outra interpretativa. A
primeira delas é a de Carl Schmitt, a posterior, de Giorgio Agamben. Reagindo a
assertiva do primeiro em que “soberano é aquele que decide em um estado de

53
“será que a solução não-violenta de conflitos é em princípio possível? Sem dúvida. As relações entre
pessoas particulares fornecem muitos exemplos. Um acordo não violento encontra-se em toda parte, onde
a cultura do coração deu aos homens meios puros para se entenderem. Aos meios legítimos e ilegítimos
de toda espécie – que são todos, expressão da violência – podem ser confrontados como meios puros os
não-violentos. A atenção do coração, a simpatia, o amor pela paz, a confiança e outras qualidades a mais
são seu pressuposto subjetivo. Sua manifestação objetiva é determinada pela lei (...) de que meios puros
não sirvam jamais a soluções a soluções imediatas, mas sempre a soluções mediatas.” Walter Benjamin.
Opus cit, p. 168.
54
Walter Benjamin. Crítica da violência… Opus cit. p. 172.

62
exceção”,55 a teoria da soberania de Benjamin o supera, na medida em que adapta à
análise o embasamento de uma reflexão política (teológica), pois o autor da teologia
política56 aborda o problema da soberania em função da forma jurídica e da doutrina,
embora ele observe que esse método formalista possa despertar a aspiração de “subtrair
a especulação jurídica a mudanças de situação política, para alcançar a objetividade
científica através do estudo formal das questões problemáticas.” Tanto Benjamin como
Schmitt, como bons leitores de Jean Bodin, desconhecem as razões para quaisquer
considerações sobre a normatividade da política, a não ser para Benjamin que esse
ordenamento possua as “razões”, com as quais ele não concorda, de uma “estrutura
mística da autoridade”, como nos alerta Montaigne. Desse fato parece derivar o
decisionismo schmittiano, quando confunde decisão e soberania. Benjamin concorda
com Schmitt quanto à afirmação de que a categoria da soberania parte da decisão, mas
se Schmitt acredita na validade do Direito, para Benjamin todo Poder, enquanto meio, é
ou instituinte ou mantenedor de um Direito que é violência e essa violência advém do
poder Mítico.57 Para Schmitt, o conceito de político tem uma origem no par amigo-
58
inimigo (hostilis) que a filosofia política de Benjamin supera. Pois o autor de
Ursprung des deutschen Trauerspiels não deixa de vislumbrar a questão da
possibilidade do que a política venha a ser, o que faz de forma especial neste livro, na
análise interpretativa do conteúdo de verdade da arte no Trauerspiel. Aquela estética
funciona como uma historiografia inconsciente da mentalidade do tempo, deixando
vislumbrar o fenômeno de uma soberania política liberta dos condicionamentos da
moral luterana e seu rigor, quando desconsidera o espaço mítico da pregação da função
sacrossanta dada por Deus ao rei para substituí-la por uma ação de outra natureza.
Nessa emancipação consegue ver no homem comum – o súdito - um semelhante. E essa
reviravolta na ordem institucionalizada do absolutismo barroco, que desloca a
percepção para outro ângulo desfigura o Direito Constitucional da época. Sua prescrição

55
“Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet.¨ Carl Schmitt. Politische Theologie – vier
Kapitel zur Lehre von der Souveränität. Berlin: Duncker & Humblot, 1996. S.13
56
Carl Schmitt. Politische Theologie –vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. Berlin: Duncker &
Humblot, 1996. 72 Seiten.
57
“Alle Gewalt ist als Mittel entweder rechtsetzend oder rechtserhaltend”. Benjamin cita Erich Unger
para falar da essência do sistema jurídico advinda do poder mítico: “Não reivindicando nenhum desses
dois atributos...” ou seja, se o direito , renuncia a qualquer validade (Wenn sie auf keines dieser beiden
Prädikate Anspruch erhebt, so verzichtet sie damit selbst auf jede Geltung). Walter Benjamin. Zur Kritik
der Gewalt, Opus cit. S. 190
58
“Carl Schmitt uses the language of friendship and enmity to convey the essence of the political as apart
from the economic, social, and religious aspects of life”. Frank Vander Valk. Decisions, Decisions:Carl
Schmitt on Friend and Political Will. Rockfeller College Review, Volume 1, Nº 2. P. 38

63
para o ato de governar consistia na instalação - com poderes ditatoriais - de um estado
de exceção por ocasião de um conflito civil religioso do tempo da Reforma, onde só se
via, no nível pragmático desse ordenamento, a insubmissão da figura régia e portanto
seu assenhoramento (Herrlichkeit) incondicional. A infração benjaminiana a este status
quo se dá no domínio psicológico de um inconsciente que transfigura os privilégios
daquela ordem social corrigindo as imperfeições do domínio rígido da norma. O
soberano abre um estado de exceção na alma. Sua inclinação ao outro é antes um
registro de uma auto configuração da própria interioridade do que submissão e sujeição
ao inferior. Assim é infringido e superado o estado de exceção ditatorial do absolutismo
barroco. A estrutura que ele exige se condiciona à prática da solidariedade. É sua
ausência, no Trauerspiel que leva o príncipe a indecisão (Unentschlossenheit), apesar de
saber que sua função é decidir. Ele sucumbe ao abismo entre esses dois polos. A
designação por Deus para exercer seu domínio sobre o reino não se compatibiliza com a
pequenez de sua condição de mortal, descoberto no olhar que lança à própria
interioridade, onde o confinamento da alma é exacerbado. Impossibilitado de decidir
pelas leis prescritas no Direito Constitucional, é nesse espaço que habita a loucura.
Incapacitado pela falta de experiência em lidar com os fatos, se torna vítima da própria
aspiração ao trono, conduzindo a si mesmo e o reino à catástrofe. Essa estrutura
realçada pelas pinceladas gritantes do cenário barroco não deixa de impressionar pelo
ato de julgamento histórico, o que inocenta a transparência política do drama de
Calderón de la Barca, nesse sentido superior ao Trauerspiel – quando o soberano
lançando mão de artifícios internos, salva o reino da catástrofe com a compaixão
(Mitleid). Nesse paralelo entre as duas concepções escorrega a “legitimidade” do
sistema jurídico do principado barroco, apenas formalmente hábil pra generalizações. A
percepção política de Benjamin o constrange a um outra ordem: é a indissociabilidade
da moral na mão que dirige, que prova a capacidade de governar - o que não ocorre em
Carl Schmitt, que continua insistindo na separação entre Política e Moral. Em Benjamin
a vontade estará a serviço da moral que tem sua sede em um voluntarismo divino
59 60
exercido pelo homem através da sua frágil força messiânica. Emitido do passado

59
O fenômeno do tzim tzum descrito por Isaac Luria representa o fenômeno da criação do mundo, que
acontece quando a irradiação da luz divina contida em um vaso gigante, o fragmenta em mil pedaços
deixando ao mundo a tarefa da recriação, momento em que Deus recua, para legar essa responsabilidade
ao homem. “Para os cabalistas da escola de Luria tzimtzum não significa a concentração de Deus em um
ponto mas sua retirada de um ponto.” Essa ideia do descentramento tem uma repercussão valiosa nas
reflexões de Benjamin com relação a constituição de uma nova totalidade, da qual deve participar

64
em um index misterioso que impele à salvação, o apelo é recepcionado pela frágil força
messiânica (eine schwache messianische Kraft). Esse apelo “não pode ser rejeitado
impunemente. O materialista histórico sabe disso”. Apoiado na convicção de que as
épocas de decadência não perduram, a articulação memória-esperança acolhida da
mística judaica testemunha uma sintonia entre as gerações: “alguém na terra está a
nossa espera”. É possível observar o itinerário freudiano do inconsciente incluído como
método. Nessa óptica uma época distante pode ser a pré-história de um tempo atual, que
deverá atender a um apelo à salvação (Erlösung), construindo com ele o verdadeiro
estado de exceção (den wirklichen Ausnahmezustand). Para Schmitt a racionalidade
jurídica ou institucional própria do catolicismo romano determina-se por assentar no
desempenho rigoroso do princípio da representação,61 exemplificada na mais elevada
figura do vaticano. 62Para Benjamin a transgressão a essa lei se dá quando a frágil força
messiânica que sobrevive em cada homem advindo do poder puro, poder de Deus,
dispensa a representação. É nesse ponto que sua teoria recepciona Lutero. O recorte que
essa análise pretende fazer na tese do estado de exceção o evidencia em conjunto com a
reflexão gnoseológica defendida na Vorrede, Prefácio do Trauerspielbuch - Noções
preliminares para uma crítica do Conhecimento - onde é defendido um método com
vistas à exigência de construção de uma outra tematização para a política,
compreendida lato sensu. Com vistas à possibilidade de uma ação política para a
63
salvação (Erlösung) da humanidade o filósofo judeu-alemão propõe a articulação de
uma coincidência entre ato moral e ato racional, conjugados à sensibilidade e ao
entendimento para realçar o valor do singular e o respeito à diferença que negam a
subjetividade. O deslocamento da posição do sujeito é feito ao se recorrer aos próprios
condicionamentos de sua aparição, na consciência esclarecida, sob o olhar crítico de
alguns filósofos contemporâneos da fenomenologia do espírito de Hegel, como Schlegel

também o isolado e o periférico. Gershom Scholem. A Mística Judaica (Trad. Dora Ruhman et allii), São
Paulo: Perspectiva, 1972, p. 263.
60
Emitido do passado em um índex misterioso que impele a salvação o apelo é recepcionado pela frágil
força messiânica. Ele não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso. Walter
Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte” – Tese 2 in: Illuminationen, Frankfurt am Main: Suhrkamp
Verlag, 1977. S. 252.
61
“Von der mittelalterlichen Fähigkeit zur Bildung repräsentativer Figuren – der Papst, der Kaiser, der
Mönch, der Ritter, der Kaufmann – ist sie in der Gegenwart das letzte vereinsamte Beispiel, von den vier
letzten Säulen, die ein akademiker einmal aufzählte (englisches Oberhaus, preussicher Generalstab,
französische Akademie ud Vatikan) sicher die letzte; so einsam dass, wer in ihr nur äussere Form sieht,
mit epigrammatischem Spott sagen muss, sie repräsentiere überhaupt nur noch die Repräsentation. Cf.
Carl Schmitt. Römischer Katholizismus und politische Form. Stuttgart: Klett-Cotta, 2002.
62
Cf. Carl Schmitt. Catolicismo romano e forma política (tradução Alexandre Franco de Sá), Lisboa:
Hugin Editores, 1990, p. 10.
63
Walter Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte” Tese 3 in: Illuminationen, Opus cit. S. 252

65
e Novalis. Simultaneamente à legitimação do sujeito lógico, analítico, transcendental, a
óptica autocrítica da filosofia do século XVIII observa que este já se achava destinado à
fragmentação. A lucidez desafiadora de Benjamin ao renunciar a uma categoria de
sujeito vai optar pelo desenvolvimento do particular, onde a força de sua unidade
interfere com o respeito às diferenças, na visualização da possibilidade de uma prática
política. O fenômeno dessa neutralização deve desarticular a política de
homogeneização e dos códigos de calculabilidade do sistema, na medida em que o
tempo homogêneo e vazio (homogene und leere Zeit)64da história oficial seja rompido
em um agora (Jetztzeit) messiânico.65A constituição de uma nova totalidade a partir da
ideia e não do elemento cognitivo objetificante do conceito se dá com base nas
observações sobre a crise de um universal extraído da média para assegurar o caráter
de demonstrabilidade do conceito, pois ele desconhece a verdade uma vez que os seus
métodos de indução e dedução “degradam as ideias em conceitos na medida em que as
colocam em um continuum pseudologico66 que não atende às pressões da contingência,
da fragmentação e da imprevisibilidade que caracterizam o cotidiano. Em segundo lugar
a categoria política da exceção se veicula a uma reação ao estado de exceção negativo
vivido na realidade dos anos 20 e 30 da Alemanha Social-Democrata, ou seja, está
relacionado à catástrofe do período entre-guerras, dominada pela incógnita quanto ao
destino do povo judeu. Assim o filósofo nos convida a exercitar o verdadeiro estado de
67
exceção na tese 8 de Über den Begriff der Geschichte, procedimento que elege um
outro parâmetro para uma teoria política, levando em conta a intelecção e a decisão
soberana na práxis de uma resistência, na política de convivência, mas com o olhar à
estrutura do modus vivendi com base nas contingências do poder experimentado e
apreendido da história. O motivo da opção de Benjamin por uma política lato sensu,
argumenta o filósofo, consiste na ameaça à sobrevivência frente ao impacto de forças
emergentes obscuras sob a aparência de legalidade instaladas na lei e que aceleraram o
desmoronamento da Constituição de Weimar. Para resistir ao totalitarismo que fez
Weimar sucumbir à subjetividade, a crítica de Benjamin direciona-se ao recurso
normatizador da lei positiva, pois reconhece na norma, uma vez estabelecida, a
perpetuação da violência em imanência com o poder mítico cuja ameaça paira sobre o
direito desde sua fundação. Da constatação desse fato Benjamin é levado a avaliar o

64
Walter Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte” Tese 14 in: Illuminationen, Opus cit. S. 258.
65
Walter Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte” Tese 14 in: Illuminationen, Opus cit, S. 258.
66
Walter Benjamin. Origem do Drama Barroco Alemão. Opus cit. p. 65
67
“Über den Begriff der Geschichte” Tese 8 in: Illuminationen, Opus cit. S. 254

66
caráter mítico do código “legiferante”, elegendo, enquanto método, a dialética na
imobilidade (Dialektik im Stillstand). Observa que a síntese da fundação idealista não
consegue mais contornar o peso das vicissitudes em épocas de maior domínio
ideológico. Essa tirania advinda de um método que se baseia no princípio da
negatividade, não existe mais em um mundo de onde a crítica foi expatriada, e onde a
realidade é concebida na lei de antinomias e oposições. Benjamin investiga, na história
política, a confirmação da possibilidade de se governar sem o amparo da norma viciada
do direito, que sucumbe ao fenômeno de mera codificação do cânone. E descobre no
século XVII vestígios de sua existência. Agamben confirma os cuidados do filósofo
alemão, encontrando, na pesquisa sobre o direito romano o espaço de um estado de
exceção exercido em uma situação emergencial por quelconque68 disposto a salvar,
frente a uma catástrofe, os seus semelhantes, conceito este extensivo, em Benjamin, a
alteridade e disposto em nível teológico-político. Os dispositivos para sua afirmação,
Agamben vai encontrar no conceito político de iustitium do direito romano onde
auctoritas e potestas são colocadas lado a lado, instância essa que deve “suspender o
direito através do senatus consultum ultimum e a consequente proclamação do
iustitium.” Para Benjamin a autoridade foi substituída pelo poder, inscrito sobre o
emblema e a convenção reguladora do comportamento, uma vez distanciados os
critérios de justiça baseados na espontaneidade e nas leis da afetividade que constroem a
convivência, através dos bons hábitos e da atenção. E por outro lado o princípio da
competência que assegurava a autoridade é substituída hoje pelo autoritarismo. Uma vez
perdido o elo com o compromisso desfazem-se os laços de coração no espaço das
interações. Esses elos se encontravam na experiência acumulada na tradição e passada
de geração a geração, sedimentando o inconsciente, até desabrochar na expressão de um
conhecimento para lidar com a realidade, em forma de sabedoria, que por sua vez
concretizaria a competência de onde provinha todo o sentido da autoridade. A falência
atual da autoridade, com o fim da Experiência (Erfahrung) deixa um vazio
levianamente preenchido pelo espírito autoritário nos totalitarismos modernos – dique
contra a reminiscência (Eingedenken) nas contingências da aceleração atual propiciada
pela máquina. Uma vez fragilizada a memória, se desvanecem os traços de um passado
que poderia se atualizar em forma de experiência. É lamentável que a tradição não tenha
legado à modernidade a experiência (Erfahrung) acumulada ao longo dos tempos e

68
Giorgio Agamben. La Comunità che viene, Turin: Giulio Einaudi Editore, 1990.

67
transmitida aos mais jovens pelos mais velhos na forma de um conselho: “a
reminiscência funda a cadeia da tradição que transmite os acontecimentos de geração a
geração.” Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Benjamin considera “a
memória, a mais épica de todas as faculdades”.69 A reminiscência é o registro do que
passou, o rastro das vivências absorvidas pela construção histórica da singularidade de
cada povo, que fazem do “narrador a figura na qual o justo se encontra consigo
mesmo”.70 Benjamin considera igualmente a sabedoria “o lado épico da verdade” 71uma
vez que ela tem a capacidade de agregar as camadas do que é edificante na
representação do pensamento de cada época. Uma vez perdidos esses elos com a
tradição, se dilui a força da arte de narrar e enfraquecido se torna o patrimônio cultural a
que as gerações posteriores poderiam recorrer. O soberano barroco do Trauerspiel
vivencia esse dilema. A alegoria de que Benjamin lança mão para exemplificar esse
transtorno – precisa ser compreendida como armadura da modernidade: o exemplo é
extraído da incapacidade de decifrar as vicissitudes históricas, quando frente à situação
emergencial das guerras de religião, o homem se deixa abater pela pressão da fatalidade
(Verhängnis) sucumbindo ao próprio poder ou quando é incapaz de defender-se das
investidas do cortesão intrigante, descreve o Trauerspiel (drama enlutado do século
XVII barroco). A incapacidade do estadista para conduzir o reino é o resultado da
fragilidade a que se expôs devido à falta de conhecimento e de experiência em saber
lidar com os fatos. A dialética na imobilidade, ao contrário, poderá sanar esse impasse,
tornando possível, com base na transformação da dinâmica histórica em ação política,
pela experiência, alcançar a estabilidade do reino. Esses dados descobertos pelo
trabalho filológico de Benjamin no Trauerspiel não podem ser negligenciados na
tentativa de refletir a exceção (Ausnahmezustand). Sua relação direta com o conceito
político de soberania desenvolvido no Trauerspielbuch (Origem do Drama Barroco
Alemão) leva às últimas consequências a falência da lei quando inscrita como mera
convenção. Pensando com Deleuze que “a soberania não reina a não ser sobre aquilo
que ela é capaz de interiorizar”, podemos complementar o comentário do que
significaria o estado de exceção construído por Benjamin, para dialetizar a política
totalitarista de opressão e medo, a política dos vencedores (Herrschenden). Nesse caso
precisamos levar em consideração as contingências históricas da formação da teoria da

69
Walter Benjamin. “O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” in: Magia e Técnica,
Arte e Política (Trad. Sérgio Paulo Rouanet), São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 210.
70
Walter Benjamin. Idem, p. 221.
71
Walter Benjamin. Idem, p. 201.

68
soberania segundo o livro da dramaturgia barroca (Trauerspielbuch), por ocasião da
fixação, no portal da catedral de Wittemberg das teses de Lutero que protagonizam o
momento reformista, e pelo rigor que se seguiu à divulgação da condenação da ação
caridosa, mobilização concebida caoticamente por uma ordem enviesada, que Benjamin
irá contestar afirmando que o mal não se encontra na ação e sim no conhecimento que é
posse: “o modo de existência mais autêntico do mal é o saber, e não a ação”. 72 Para
Benjamin o Mal reside na miragem de uma espiritualidade absoluta”, pois o espírito não
pode existir no mundo real senão através da matéria que ele hostiliza. Sua função é
concebida nas próprias coisas do mundo, na medida em que ele se integre a elas para a
doação ao outro, pela palavra, na ordem da nomeação – essa esfera da verdade visada
pela linguagem. Benjamin propõe a filosofia imergir no “pormenor do conteúdo
material”, pois é nas coisas pequenas que a vida saltita com sua “indestrutibilidade”.
Lutero enganara-se ao frustrar o objeto da caridade, para fazer realçar a fé. Ele não
conseguir visualizar o valor da exceção. O luto que percorreu o espírito advindo dessa
iniciativa de rompimento com o sagrado, tem sua antítese na ilusão de liberdade. Na “
ilusão de autonomia” e de “infinito” transparece o abismo vazio do Mal. Isso explica
porque é próprio da virtude, só possível na alma corporal do homem, ter um modelo a
sua frente – Deus. A exceção representa a salvação instalada em uma fissura na
catástrofe contínua. Ela é construída com a argamassa que a poesia revolucionária de
Baudelaire utiliza para atacar a barbárie das convenções de sua época, demolindo os
quadrantes que contabilizam no relógio da metrópole, o tempo cronológico da opressão,
para instalar o instante oportuno do Kairós, aberto para a prática política. A exceção é o
estofo da narrativa que sabe conciliar a experiência de cada época, de forma
descontínua, no inconsciente e com essa sabedoria abrir a possibilidade de libertar o
pensamento . Se para Descartes a reflexão era aprisionada nas cadeias (catenas) de
razões, no desenrolar axiomático do método dedutivo, a cadeia de reflexões sobre a
modernidade se deixa romper abruptamente para emancipar o pensamento do “preceito
doutrinário imperativo”. O claro-escuro do barroco, ao invés de obnubilar o
pensamento, o torna mais nítido pelo contraste. Enquanto o excesso de luz do
Esclarecimento provoca a hipnose instantânea ou a vertigem, o lusco-fusco da arte
seiscentista conduz à verdade da imagem. Na moldura desse contraste aparecem os
momentos únicos que fazem a exceção para transformá-la em instância de redenção. A

72
Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão. Opus cit. p. 253.

69
exceção é a política das minorias, dique contra o estabelecido que não se renova, é o
encontro dos desamparados com uma saída. A exceção existe para manter a
indestrutibilidade da existência, por isso é rompimento com o status quo, quando a
desconstrução tem lugar no intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça e a
73
desconstrutibilidade do direito, diz Derrida. A exceção é possível com a experiência
do impossível, quando desorienta por incomodar o estabelecido. Nesse caso a
desconstrução que ela inaugura na estrutura do direito e da lei se chama justiça. 74

Referências

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CALLADO. Tereza de Castro. “O comportamento ex-officio do Estadista na teoria da


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http://www.gewebe.com.br/cadernos.htm

DERRIDA, Jacques. Força de Lei- o fundamento místico da autoridade (Tradução de


Fernanda Bernardo), Porto: Campo das Letras Editores S.A. 2003.

PALMIER, Jean-Michel. Walter Benjamin – Lumpensammler, Engel und bucklicht

73
Jacques Derrida. Força de Lei - o fundamento místico da autoridade (Tradução de Fernanda Bernardo),
Porto: Campo de Letras, 2003. p. 26.
74
Jacques Derrida, idem.

70
Männlein – Ästhetik und Politik bei Walter Benjamin, Übersetzt im Auftrag der
Hamburger Stiftung zur Förderung von Wissenschaft und Kultur, Suhrkamp, 2009.

REICH. Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo (Trad. Maria da Graça Macedo),


São Paulo, Martins Fontes, 2001.

SCHMITT. Carl. Politische Teologie – vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität,
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Lisboa: Hugin Editores Ltda, 1990.

_____________. Römischer Kathotizismus und politische Form, Stuttgart: Klett-Cota,


Fünfte Auflage, 2008.

SCHOLEM, Gershom. A cabala e seu simbolismo (Trad. Hans Borger e J. Guinsburg,


São Paulo, Perspectiva, 1988.

__________________. A Mística Judaica (Trad. Dora Ruhman et allii), São Paulo,


Perspectiva, 1972

WEIGEL. Sigrid. Walter Benjamin – Die Kreatur, das Heilige, die Bilder, Frankfurt am
Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2008.

71
Mímesis e Ritual: Performance do Corpo e Linguagem Simbólica
(elementos para re-criação cultural)

Raquel Célia Silva de Vasconcelos

As reflexões de Peter McLaren sobre o ritual e de Walter Benjamin sobre a


mimese (mímesis), a partir das esferas da cultura e da sociedade, propõem transcender
os processos de observação e se inscrevem na ordem do simbólico, da comunicação e da
cultura.
Benjamin analisa a mimese como um mecanismo que possibilita a apropriação da
cultura e das tradições burguesas, facilitando, através da linguagem, sua legitimação
mediada pelo adulto. E, no entanto, ele também aponta que a mimese, praticada pela
criança sem a intervenção direta do adulto, facilita a criança mergulhar na criação e re-
criação sempre que ela retorna as coisas. Ele percebe que o Iluminismo retoma a
mimese numa perspectiva de controle social e cultural para fazer valer o ethos de quem
está no centro das decisões. A mimese é utilizada como pressuposto de locação da
ideologia a partir do paradigma burguês de significação simbólica da cultura atrelada à
linguagem oriunda do ethos legitimador do processo de legalização da sociedade
burguesa.
Benjamin salienta a importância da mimese, não como mero decalque da
realidade, mas como uma re-criação da vida porque corresponde à ação histórica e,
nesse sentido, a obra de arte se torna a possibilidade da re-criação. O desenvolvimento
da mimese converge com a origem da linguagem que emerge na infância através do
despertar da faculdade mimética, cuja função é estabelecer a comunicação da criança
com o mundo.
Para McLaren, o processo de dominação e a resistência dos alunos se dão através
dos rituais e práticas que estão presentes nas relações dentro da escola. Ele propõe aos
pesquisadores e educadores uma leitura profunda do conceito de ritual para que possam
compreender como se dá o controle sócio-cultural no interior das escolas, muitas vezes,
alimentado pelo currículo proposto.


Mestra em Filosofia e doutoranda da FACED/UFC, bolsista Demanda-Social/Capes. Integra o grupo de
Pesquisa Walter Benjamin e a Filosofia Contemporânea e o Projeto PROCAD – CAPES: 137/2007-
“Biopolítica, escola e resistência: infância e resistência para a formação de professores” do Eixo Filosofia
da Diferença, Antropologia e Educação. Bolsa Demanda Social Capes. raquelcsvasconcelos@gmail.com

72
Assim, os rituais praticados no espaço escolar demonstram forças antagônicas: de
um lado, os professores que insistem em impor conteúdos vazios de significados para os
alunos; e do outro lado, os alunos com rituais de resistência diante dessa imposição.
Para McLaren (1992, p. 33), a cultura é um sistema de símbolos, uma vez que, “a
cultura é uma construção que permanece como uma realidade consistente e significativa
através da organização abrangente de rituais e sistemas simbólicos”.
Fica perceptível que mimese e ritual são tratados pelos autores como fenômenos
que permeiam a vida social do homem. Do ponto de vista dos autores, esses fenômenos
devem ser vistos como elementos básicos do próprio processo de socialização e
aprendizado, porque permitem a identificação e o sentimento de integração social.
E nesse sentido, a mimese e o ritual são habilidades que permitem ao homem o
reconhecimento do grupo e de si mesmo por meio da vivência compartilhada nos
códigos de comunicação, de comunhão, de gestos e das experiências de semelhanças.
Enquanto fundamento simbólico, eles concebem e carregam a própria memória social
porque possibilitam registrar, na memória individual e coletiva, os valores e hábitos que
registram um comportamento apreendido e repleto de significados compartilhados por
todos.
Assim, quando se analisa a aprendizagem que se dá através dos comportamentos
mimético e ritualístico, a reflexão dos autores remete às práticas pedagógicas, situando-
as para além dos espaços (escolas e centros de aprendizagem) formais de aprendizagem.
Para eles, a aprendizagem entre jovens e crianças se dá em qualquer espaço, porque o
corpo é responsável pelos processos cognitivos, construído na ação corporal como
dimensão das práticas sociais.
Para os autores, o corpo humano, sobretudo nas fases da infância e da juventude,
se expressa através de gestos e de movimentos que possibilitam a comunicação e a
comunhão das experiências de semelhança presentes no grupo. E nesse sentido, o corpo
é a expressão de resistência e de renúncia às práticas repressoras que através da cultura,
como observa McLaren (1992, p. 32), impõe rituais “inter-relacionados e sistemas de
rituais” à ação social. E para Benjamin, as ações miméticas constroem o mundo
simbólico, material, prático e corporal na constituição do saber.

73
A mimese (mímesis75) e os fenômenos que permeiam a aprendizagem significativa
como re-criação cultural

Walter Benjamin em, A doutrina das semelhanças (Lehre vom Ähnlichen),


analisa a mimese enquanto categoria antropológica, cujo princípio é o aprendizado
criativo e diferenciado que se dá através da linguagem enquanto possibilidade de
apreensão simbólica do mundo. Benjamin a concebe [concebe a mimese como um “bem
mimético” por participar na elaboração de conceitos produzidos a partir da semelhança
que estabelecem com os objetos aos quais se referem e, sobretudo, na produção de
semelhança entre os conceitos, ou seja, a mimese é primordial para produção de
“semelhanças não-sensíveis”,
A presença da mimese no processo civilizatório foi primordial, sobretudo, na fase
de transição do nomadismo ao sedentarismo. Do ponto de vista histórico, o homem
sempre usou a mimese para facilitar uma relação empática com as forças naturais e, por
meio dela, manter uma harmonia com a natureza através da relação subjetiva entre
homem e natureza como condição de possibilidade de realização da convivência em
comunidade. A percepção que os antigos tinham dos fenômenos naturais conduziu-os,
na Modernidade, à elaboração racional mais refinada da própria existência e, este
refinamento, por sua vez, só foi possível com a evolução dos sentidos onto e
filogenético que delimitaram a elaboração racional da linguagem.
E nesse sentido, o corpo humano é o núcleo original da produção de semelhanças,
uma vez que, consegue expressar na dança, no gesto, na fala e na imaginação, uma
dimensão da linguagem que só foi possível seu refinamento com a evolução dos
sentidos onto e filogenético. Esses sentidos aguçaram a percepção humana a tal ponto
que não seria possível qualquer elaboração conceitual de apreensão do mundo e da vida
na contemporaneidade. O corpo como instrumento de representação e expressão
constitui as relações miméticas do homem com o mundo e com a vida. Para Benjamin, a

75
A mímesis é o princípio teórico básico na criação da arte que se dá na relação de configuração e/ou
aproximação por semelhança do homem com o objeto propiciando a representação do mesmo. Sua
origem remonta à Grécia quando foi desenvolvido por Platão e Aristóteles. Na Modernidade ela é
discutida por diversos autores: Benjamin, Adorno, Derrida, Blumemberg, Arbosgast Schmitt, Jean-Pierre
Vernant e tantos outros. Embora a mímesis seja estudada por muitos autores, meu enfoque está centrado
na análise de Benjamin, que salienta a importância da semelhança produzida pelo homem e estabelecida
através da relação com as coisas e a natureza. Ele não a concebe como mero decalque da realidade, mas
como uma recriação cultural que se dá através da ação histórica, cujo critério de recriação está na obra de
arte.

74
mimese se realiza por meio da “Faculdade Mimética” (Uber das Mimetische Vermögen)
que permite a imaginação romper fronteiras ideológicas.
A Faculdade Mimética permite a identidade entre homem e natureza, quando
valoriza os símbolos no ritual de semelhança porque a mimese facilita uma espécie de
comunicação, que proporciona a cada sujeito abrir-se a outras subjetividades contidas na
natureza mediante um processo de “assimilação ritual”. Este processo se transforma
com a expansão do Iluminismo na Modernidade, tornando a mimese uma relação
desnecessária para o homem compreender a natureza a partir da produção de
semelhanças.
Assim, a eliminação do antropomorfismo pelo Iluminismo ocasiona a extinção
dos rituais miméticos e faz a natureza sair da condição de sujeito ao estado de objeto,
eliminando a mimese. O Iluminismo rompe com o saber popular, responsável pela
comunicação simbólica entre homem e natureza.
Os povos antigos, ao utilizarem a comunicação simbólica, deixavam predominar
na relação homem e natureza a dimensão ontológica de característica direta e
espontânea. Com o Iluminismo, a comunicação do eu com o outro é feita por signos
elaborados pelo sujeito pensante mediado pela linguagem matemática, estabelecendo
uma relação de identidade no âmbito conceitual. Portanto, toda comunicação entre
homem e natureza, para o Iluminismo, ocorre no plano da abstração e isso proporciona
uma relação unilateral absoluta do homem em direção à natureza, o que ocasiona sua
objetivação.
Do ponto de vista histórico, a faculdade mimética tem sua origem vinculada ao
sentido “filogenético” (Phylogenetische Bedung) e “ontogenético” (Ontogenetische
Sinn) presentes na comunicação do homem com o mundo. Ambos são processos de
desenvolvimento e adaptação do homem à natureza, o que proporciona o próprio
desenvolvimento de sua capacidade racional de adaptação ao mundo para própria
sobrevivência. Eles possibilitam ao homem apreender a vida e o mundo através da
ordem simbólica e imaginária, o que facilita a compreensão dessa apreensão na
consciência.
Os sentidos ontogenético e filogenético estendem-se ao estudo do
desenvolvimento do homem e de sua relação com a natureza, que se inicia na
fecundação e se segue na infância, com as brincadeiras e os jogos infantis, estes
funcionam como princípio de constituição da faculdade mimética. Os sentidos

75
ontogenético e filogenético têm a função de aprimorar no homem sua capacidade
compreensiva em relação à natureza e seus fenômenos.
Na dimensão social, a faculdade mimética possibilita a relação de alteridade que
deve se iniciar na infância através das brincadeiras e jogos infantis porque remete à
dimensão social expressa na relação ontológica que a criança estabelece com o adulto
através do brincar. A brincadeira permite a criança transcender a imitação porque
aproxima a criança da percepção lúdica, facilitando a criatividade e a inovação.
Na ideação de Benjamin, “os jogos infantis são impregnados de comportamentos
miméticos, que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas, mas também a
objetos e fenômenos naturais76”. Os jogos facilitam a experiência no aprendizado da
criança e permitem a elaboração da linguagem na fase inicial. Eles são simbólicos e
neles se encontram a origem da linguagem e dos hábitos, despertando a criança para
inclinação de convivência em comunidade. Isto pressupõe que os jogos e as brincadeiras
infantis facilitam a criança produzir semelhanças através da apreensão e conhecimento
das coisas, da natureza e das pessoas, que se dá inicialmente através da mímica e, esta
se desdobra no sentido ontogenético do brincar infantil.
E nesse sentido, o adestramento da atitude mimética, iniciado na infância através
da brincadeira, só pode ser compreendido por meio dos significados ontogenético e
filogenético do comportamento mimético da criança. A ontogênese e a filogênese do
comportamento mimético da criança são co-determinantes para o desenvolvimento da
Faculdade Mimética e, esta, por sua vez, é responsável pela produção da semelhança.

A Faculdade Mimética e a ontogênese e filogênese da linguagem: processos de


assimilação e produção de semelhança extra-sensível

Por certo, pensar o processo de produção da semelhança significa compreender a


manifestação do dom mimético, cuja função é estimular e despertar na criança a
Faculdade Mimética. Sabe-se que, para os antigos, o dom mimético pressupõe a força
de apreensão mimética da semelhança, cuja origem remete ao momento do nascimento,
enquanto fenômeno responsável pelo ajustamento da ordem cósmica, que acontecia no
instante. Daí se atribui ao recém-nascido a plenitude do “dom mimético” por se
manifestar nele o “gênio mimético” no instante do momento do nascimento.

76
BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. IN: Obras escolhidas, Magia e Técnica, Arte e
Política: editora brasiliense, 4ª ed., São Paulo, p. 108.

76
No mundo moderno, dom mimético é atribuído à força mimética da linguagem,
que se torna responsável pela produção de semelhança, sob a influência da Faculdade
Mimética.
Assim, enquanto os antigos imitavam os processos celestes para produzir
semelhança, processos esses, que já continha em si prescrições “para o manejo de uma
semelhança preexistente77” que ocorria na dimensão dos sentidos. Com os modernos, o
próprio conceito de semelhança muda quando a linguagem se torna a principal
produtora de semelhança, cuja co-determinação é da Faculdade Mimética. A linguagem
se torna a produtora de semelhança extra-sensível e, isto pressupõe que a Faculdade
Mimética passa por um processo de metamorfose e, coincidentemente, a própria
consciência do homem moderno.
Do ponto de vista ontogenético, a brincadeira infantil é o principio para o
desenvolvimento da Faculdade Mimética porque através do brincar a criança
experiência suas frustrações e alegrias, manifestando-se assim, o comportamento
mimético, determinante para o aprendizado individual e coletivo. No que concerne o
significado filogenético, a semelhança pressupõe uma determinação externa apreendida
pela Faculdade Mimética que se dá de forma consciente e não consciente. E isso
demonstra que essa faculdade é co-determinante na produção de semelhanças porque
ela é responsável pelas correspondências naturais entre homem e natureza. Trata-se de
correspondências entre subjetividades, ou seja, na sociedade pré-moderna, as relações
que o homem estabelecia com a natureza se davam na dimensão de uma determinação
da natureza, isto é, a natureza também participava dessa relação na condição de sujeito.
Diferentemente do homem moderno, que estabelece com a natureza uma relação de
dominação e controle da mesma.
Assim, a experiência presente na relação homem-natureza foi determinante na
produção da semelhança, conduzindo a humanidade ao processo civilizatório através da
constituição do sentido da existência. E isso demonstra a importância da Faculdade
Mimética nessa produção, propiciando ao homem ler os símbolos presentes no mundo.
E nesse sentido, a Faculdade Mimética só se desenvolve por meio da relação
harmoniosa entre homem e natureza, aproximando-o da origem que se torna o
fundamento para o sentido da própria existência.

77
Idem, p. 109.

77
Como se vê, o sentido de semelhança tornou-se muito mais vasto, no entanto, a
semelhança natural somente assume sua significação decisiva quando a natureza
consegue estimular e despertar a Faculdade Mimética do homem. Para Benjamin, não se
deve esquecer de que houve uma metamorfose das “forças miméticas”, das “coisas
miméticas” e seu objeto com o passar do tempo. E, com a passagem de um século a
outro, a “energia mimética” transitou para a linguagem, que assume o poder de
significação.
Assim, verifica-se que a relação mimética do homem com o mundo transitou para
escrita e para linguagem, cuja função é arquivar as semelhanças não-sensíveis.
Benjamin não concebe a mimese somente numa dimensão semiótica. Mas, numa
dimensão antropológica fundamental, cuja mediação está no sentido e no significado da
existência através da aprendizagem.
Por certo, não houve extinção da Faculdade Mimética, mas uma transformação
porque a apreensão que os antigos faziam das constelações não é a mesma apreensão
dos modernos. Fazia parte da cultura dos antigos imitarem os processos celestes, para o
aprendizado e a virilidade, tanto no aspecto do homem quanto no da comunidade.
Assim, a imitação dos antigos assegurou à “astrologia o seu caráter experimental78”. O
“gênio mimético” como força determinante para os antigos foi atribuído ao recém-
nascido, este possuía a plenitude do “dom mimético”, concebendo o equilíbrio perfeito
à ordem cósmica.
O nascimento seria um entre vários instantes por ser o momento decisivo de
percepção da semelhança, que sempre definiu a origem e o sentido de existência para os
antigos, pois o nascimento representa uma nova vida que se firma na relação de
semelhança estabelecida entre a criança e a mãe, numa dimensão natural de percepção
sensível mediado pela experiência natural.
A onomatopéia é uma prova, ainda presente na linguagem, da existência de uma
relação entre o objeto e a fala, que ocorre através da apreensão da semelhança entre som
emitido pela criança quando balbucia os ruídos dos animais e a palavra. O fim da
onomatopéia pressupõe o fim da produção de semelhança entre conceito e objeto.
Na infância, a onomatopéia significa a imitação dos sons no âmbito da gênese da
linguagem alheia à convenção de signos, aproximando a linguagem de sua essência
presente nas teorias onomatopaicas e, assim, facilita a criança na elaboração das

78
BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. Opus cit., p. 109-110.

78
primeiras palavras. Logo em seguida, a palavra é concebida numa dimensão conceitual,
enquanto identificação a partir da semelhança presente num grupo de seres, coisas e/ou
objetos. À medida que a criança desenvolve a linguagem, ela formula os conceitos a
partir da “semelhança extra-sensível”, cuja elaboração se dá pelo entendimento. Este
possibilita a identificação entre as palavras que não têm nenhuma semelhança, mas que
se dá numa dimensão extra-sensível.
Nas teorias místicas ou teológicas, o conceito de semelhança extra-sensível é
encontrado num grupo de palavras de línguas diferentes. Nesse grupo de palavras,
percebe-se um significado central que não sai do âmbito da “Filologia Empírica79”,
embora, essas palavras agrupadas não tenham entre si a menor semelhança, mas, pode-
se afirmar que o significado central estabelece a relação de semelhança entre elas. As
teorias místicas da linguagem se preocupam em submetem a palavra oral à dimensão
reflexiva e à palavra escrita, ou seja, existe uma preocupação das teorias teológicas em
estabelecer uma relação de semelhança entre o que se fala e o que se escreve.
E nesse sentido, Benjamin observa que a Filologia Empírica esclarece a essência
das semelhanças extra-sensíveis, melhor que a onomatopaica porque a palavra escrita
facilita a, observa Benjamin,

relação entre a imagem escrita de palavras ou letras com o significado, ou


com a pessoa nomeadora. Assim, a palavra beth tem o nome de uma casa. É,
portanto, a semelhança extra-sensível que estabelece a ligação não somente
entre o falado e o intencionado, mas também entre o escrito e o intencionado,
e entre o falado e o escrito. E o faz de modo sempre novo, originário,
irredutível80.

A Filologia traz a experiência mimética da linguagem no campo não sensível


porque estabelece a relação entre a fala e a escrita através do pensamento enquanto
processador da imagem apreendida do objeto, permitindo a experiência “profana” e
“mágica” da palavra escrita e falada. E nesse aspecto, a faculdade mimética fortaleceu a
simetria entre o falado e o escrito, transformando “a escrita ao lado da linguagem oral,
num arquivo de semelhanças, de correspondências extra-sensíveis81”.
Assim, a linguagem se tornou a mais alta aplicação da faculdade mimética quando
recebeu o dom mimético, propiciando a dimensão mágica da linguagem oral e escrita,
cujo fundamento e desenvolvimento permeiam a dimensão semiótica e comunicativa da

79
BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”, p. 111.
80
Idem, p. 111.
81
Idem, p. 111.

79
linguagem. Como afirma Benjamin, “o contexto significativo contido nos sons da frase
é o fundo do qual emerge o semelhante, num instante, com a velocidade do
relâmpago82”. Isto é, a leitura perpassa o domínio da capacidade contemplativa do
homem, pois define a relação de reciprocidade entre a palavra escrita e a linguagem
oral.
Assim, a força mimética presente na linguagem facilita a produção de
semelhanças extra-sensíveis, tornando-a um medium da faculdade mimética que
possibilita a coincidência entre a “leitura mágica” e a “leitura profana” da linguagem.
Essa coincidência se faz no instante de manifestação do espírito, o momento de
clarividência do homem, porque o espírito participa do segmento temporal, fazendo a
semelhança emergir do fluxo das coisas num relampejar por intermédio da faculdade
mimética, momento em que o pensamento intensifica a imagem do objeto.
E dessa forma, a semelhança é captada pelo espírito que fornece à leitura seu
significado mágico e profano, porque a reflexão ocorre por meio da dimensão mágica,
semiótica e comunicativa da linguagem. Somente a reflexão, na concepção de
Benjamin, liberta o homem do mito produzido pelo sonho moderno, responsável pela
instrumentalização da razão.
Por certo, a confiança dos modernos na ciência, que se transforma em tecnicismo,
ajuda na fundamentação do mito moderno que sempre esteve preso à convicção da
realização do conceito moderno de autoconsciência, de autonomia e de liberdade. O
Antropocentrismo conduz a ciência moderna ao controle da natureza que culmina em
sua objetivação, facilitando sua dissecação em laboratório.
Vale ressaltar, a abstração da natureza, das coisas e do próprio homem tem como
pressuposto a auto-afirmação do sujeito transcendental, cuja origem está vinculada ao
sujeito lógico-analítico presente no discurso moderno de uma consciência fragmentada.
E esta se constitui “na medida em que o homem ocidental perdeu sua identidade, assim
como a linguagem capaz de conceitualização e negação foi substituída por uma
linguagem capaz somente de atuar como um instrumento do status quo83”.
A ciência moderna imita a magia dos rituais miméticos dos antigos, quando
objetiva a natureza por meio do sujeito lógico-analítico e transcendental, que destaca o
objeto da realidade e o disseca em laboratório. Embora a ciência moderna utilize o ritual
mimético para estabelecer a relação de identidade (sujeito-objeto), ela o faz a partir de

82
Idem, p. 112.
83
MATOS, Olgária Chain Féres. Os arcanos do inteiramente outro. Opus cit., p. 154 e 155.

80
uma imposição do sujeito lógico-analítico, que forja uma identidade de pressuposto
conceitual. Nesse sentido, o progresso da ciência significa o fim das diversas formas de
manifestação da mimese como possibilidade de realização da verdadeira identidade
através da produção de semelhança entre a palavra fala e palavra escrita.
O homem abandona os ritos sacrificais para permanecer vinculado ao ego,
evitando a dissolução do si, porque o sujeito do conhecimento busca o controle racional
do mundo. Do ponto de vista pragmático, o Iluminismo observa que a astúcia humana é
essencial para tal controle, por ser pragmática, egocêntrica, ordenadora da cultura,
contratual e jurídica. Verifica-se na Modernidade o inumano atuando em todos os
campos do conhecimento. Na História Natural observa-se a relação de imanência entre
natureza e história, substituída pela história do progresso.
Assim, a busca pelo desenvolvimento do espírito absoluto (Hegel) resulta na
subordinação da natureza e da história ao sujeito lógico-analítico transcendental que
prioriza a informação e a comunicação no âmbito das relações intersubjetivas, as quais
anulam a consciência do homem histórico; uma comunicação intencional que distancia
a contemplação da verdade porque tem a pretensão de convencer, manipular e não parte
de relações afetivas.
Na concepção de Benjamin, os fatos não podem ser determinantes na vida do
homem, pois produzem um mundo de opiniões, de imagens vazias de significados. Isto
está presente no Pragmatismo, cuja característica é o poder dos fatos fundamentando as
convicções para a realização de uma vida prática. A relação entre fatos e convicções
deve ter reciprocidade, pois o homem “tem de cultivar as formas modestas, que
correspondem melhor a sua influência em comunidades ativa84”. O Pragmatismo
dificulta as relações afetivas presentes nas convicções por priorizar a velocidade do
progresso determinando a vida e eliminando a memória coletiva quando afasta o homem
da experiência e da tradição.
Na concepção de Benjamin, conhecer pressupõe refletir na realidade precária a
verdade. A moral e o conhecimento burgueses afastaram o homem do processo de
criação da própria identidade, dificultando sua realização pessoal e coletiva. A
burguesia, ao projetar o discurso de emancipação da humanidade pelo viés da economia
apenas desperta no homem o inumano. Do ponto de vista prático, o humanismo não se
efetiva quando se forja, através da cultura, uma identidade entre o homem e a

84
BENJAMIN, Walter. “Posto de gasolina”. IN: Obras escolhidas II, Rua de mão única: Editora
Brasiliense, 5ªed., 3ª reimpressão, 2000, São Paulo, p. 11.

81
mercadoria – deificada pelos modernos aponto de determinar as dimensões moral,
política e social.
E isto leva a crer que a cultura sobrecarrega o homem com os conceitos abstratos
(liberdade, autonomia, identidade e individualidade) criados pela relação de identidade
entre homem e natureza forjada pela consciência burguesa, alimentando a nova barbárie
através da cultura de massa, o que implica na neutralização da praxis social firmada a
partir da relação teoria-pratica, onde a teoria deve se adaptar à realidade e, não o
contrário.
A sociedade moderna elimina a experiência social presente na narrativa da
tradição, facilitando a perda do ethos histórico, sobretudo, com o avanço da técnica que
facilitou o aparecimento do inumano com a fragmentação do homem no interior das
fábricas.
Assim, é necessário perceber que a mimese presente na aprendizagem infantil se
faz de forma espontânea e natural, pois o corpo é gestual, comunicativo e social. E nesse
sentido, retomar a mimese na dimensão do aprendizado significa perceber que a cultura
moderna é mimética e, enquanto tal, ela facilita um maior controle sobre as massas.
Entretanto, é necessário repensar a mimese numa dimensão ontológica de
significado da relação estabelecida entre a criança e as coisas do mundo, bem como na
dimensão da filogênese que se encontra presente na linguagem quando consegue
estabelecer a relação entre a criança e os conceitos, enquanto representação simbólica
do mundo, cuja função é dar sentido e significado à existência.

A escola: espaço de rituais de resistência e dominação

A Tese de Peter MacLaren, em alguns pontos, coincide com o pensamento de


Benjamin quando afirma que a cultura institucionalizada contribui para “o ethos
filosófico da cultura dominante”. Uma vez que “a cultura da escola é informada por
determinantes específicos da classe social, ideologias e estruturas da sociedade
maior85”. Ademais, o processo de dominação cultural e ideológico se firma por meio
dos rituais presentes no espaço escolar.
Em sua tese, Rituais na escola: em direção a uma economia política de
símbolos e gestos na educação, MacLaren está preocupado com a questão de como os

85
MACLAREN, PETER. A educação como um sistema cultural. In: Rituais na escola: Em direção a
uma economia política de símbolos e gestos na educação. p. 33.(manter o mesmo tipo de letra)

82
rituais são utilizados, muitas vezes de forma inconsciente, pelos professores e por toda
estrutura escolar, legitimando uma educação para servidão coletiva ao sistema vigente.
Sua pesquisa reforçou a compreensão de que,

nós somos ritualizadores inveterados [...] Os rituais não estão confinados a


um palco compacto, santuário de igreja ou repartição governamental; na
realidade, a “aldeia global” moderna está repleta de sistemas e rituais novos e
altamente intricados86.

De forma consciente ou inconsciente a sociedade contemporânea é ritualista,


embora o ritual se constitua a partir da ordem determinada pelas convenções sociais.
MacLaren percebe na escola St. Ryan (nome fictício utilizado para determinar a escola
pesquisada) a presença do ritual dominante (ou ideológico) no comportamento dos
professores. Para ele, o ritual dominante se perpetua na escola porque consegue remeter
um significado simbólico à cultura através do paradigma básico subjacente: torna-se
católico ou trabalhador.
Para melhor compreender o conceito de ritual e como o mesmo se realiza no
espaço escolar, Maclaren analisa os principais antropólogos articuladores que estudam
os rituais, Victor Turner e Ronald Grimes, entre outros. É através deles que MacLaren
dá sua definição de ritual, afirmando que se trata de um sistema cultural de
comunicação simbólica, uma constituição de seqüências ordenadas e padronizadas de
palavras e atos, uma expressão realizada por multimeios (verbais e não-verbais), cuja
característica se dá por uma ação performativa.
Assim, os rituais presentes na escola pesquisada representam o fazer e o dizer
repletos de significado ideológico e se firma, muitas vezes, de forma aleatória. Isto
pressupõe que para MacLaren,

O ritual é um evento político e, como tal, é parte das distribuições


objetificadas do capital cultural que é dominante na escola. Os rituais
simbolicamente transmitem as ideologias culturais e sociais; são
transmissores de códigos culturais (informação cognitiva e gestual) 87.

Portanto, os rituais estão presentes no cotidiano escolar utilizados como


instrumentos para realizar uma formação do alunado que atenda aos interessem do
capital. Eles se constituem em atividades naturais desempenhadas pela sociedade fora

86
Idem, p. 70-71.
87
Idem, p. 30.

83
do espaço religioso, ou seja, eles saem do espaço (igrejas, templos e santuários) sagrado
e transitam para o espaço (a escolas, institutos de aprendizagem e outros) profano.
Na dimensão do sagrado, muitas vezes, o corpo, em alguns momentos, não
expressa a real vontade do sujeito, mas no espaço profano esse mesmo corpo é utilizado
com maior liberdade como recurso de fuga ou aceitação da cultura imposta. Na
dimensão do profano, o corpo reage através de gestos e movimentos para estabelecer
uma comunicação e/ou comunhão de aceitação, sobretudo, de resistência.
Nesse sentido, quando a sala de aula se torna um ambiente sagrado e os
professores assumem a imagem de cristo, todas as formas de punição estão presentes
nos gestos dos professores para com os alunos. E estes ao saírem da sala de aula para
ocuparem outros espaços (corredores, pátios, rua e entre outros), saem do mundo da
representação, para se firmarem em si mesmo e no grupo. No espaço profano eles
praticam de fato seus rituais. É justamente nos ambientes fora sala de aula, que os
alunos centram-se em si e/ou no grupo com o qual se identificam. E são nesses
ambientes que o corpo, enquanto instrumento de significação e expressão de palavras e
ações, demonstra resistência.
McLaren denomina de “Estado” a oscilação do corpo em busca de identificação
consigo e com o grupo, transitando entre os espaços sagrado e profano. Dividindo-o em
“Estado de esquina de rua” – os alunos assumem seus valores culturais e sociais, eles
afirmam seu caráter, mostrando quem são em si; “Estado de estudante” – nesse
momento, os alunos incorporam um comportamento que atenda a coerção dos
professores; “Estado de santidade” - é a ocasião que os alunos assumem a postura de
santidade na missa e nas orações, demonstrando devoção; e o “Estado do lar” – nesse
estado os alunos se identificam com seus valores, crenças sócio-culturais, pois estão no
lar junto da família onde comungam experiências semelhantes.
McLaren através dos Estados reafirma seu conceito de ritual, e que, dependendo
do estado em que se encontram os alunos, os rituais podem ser a única saída para
estabelecer a resistência, cuja função é trazer a tona como determinados conteúdos
aplicados na escola determinadas posturais dos professores em sala de aula não
correspondem à realidade dos alunos.
Com isso, os rituais de resistência expressam através do corpo os gestos, os
movimentos, a comunicação e a imaginação dos alunos, o que demonstra que o corpo é
o espaço de fuga. São alunos oprimidos por um currículo que impõe uma educação
formal de exclusão social por se tratar de estrangeiros que desembocam em um país que

84
vende a imagem de uma nação democrática. E numa democracia de fato todos que ali se
encontram têm os mesmos direitos: exercer atividades diferentemente do que seus pais
estão acostumados a fazer, terem carreira promissora na profissão que escolherem e não
serem vistos como estrangeiros, mas membros da nação.
No entanto, o dia a dia na escola demonstra que não é bem assim, sobretudo,
quando se pensa no conteúdo exigido no currículo escolar que alimenta a diversidade
cultural, escamoteando as diferenças, eliminando a formação de alunos críticos. Uma
vez que, os alunos não participam com criatividade e participação das aulas, eles são
meros reprodutores de saberes estabelecidos. Contrapondo-se a isso, McLaren propõe o
ensino de arte e de teatro como forma de expressar a criatividade e produzirem novos
rituais de emancipação para um aprendizado constituído a partir de experiências
concretas, facilitando aos alunos uma apreensão significativa da própria existência e de
sua relação com o mundo cultural.
É esse o aspecto positivo do ritual, porque ele cria alternativa de ruptura com a
hegemonia na sala de aula, permitindo aos alunos refletirem com criticidade acerca da
realidade, facilitando sua apreensão e compreensão. E nesse aspecto, é necessário
perceber qual a finalidade dos rituais e para quem está a serviço. Para os autores aqui
analisados, o agir social e cultural é determinado pelos paradigmas estabelecido
conforme grupo, através de uma dinâmica que busca conservar ou transformar a
sociedade. Isto pressupõe que os processos miméticos e ritualísticos produzem imitação
e representação, adaptando o homem ao mundo através da representação de si mesmo e
do grupo.

Considerações finais

Trazer a discussão a respeito da mimese e do ritual implica afirmar que o homem


participa como re-criador do próprio símbolo, uma vez que o símbolo facilita a relação
de significado e aceitação junto ao grupo social. E é nesse processo de re-criação que o
homem se vê pertencente a si mesmo e ao conjunto de significado presente no ritual e
na mimese, conduzindo-o à apreensão da memória individual e coletiva, firmando a
própria identidade.
A reflexão de Benjamin sobre a mimese e de McLaren acerca dos rituais presentes
na escola contribui para os fundamentos da própria sociabilidade humana e da
importância na dimensão do simbólico como condição de possibilidade de realização da

85
comunicação no grupo social. Ambos percebem que a aprendizagem se realiza no
domínio do gesto e da manifestação do corpo no primeiro momento de aquisição do
saber.
Nesse sentido, a mimese e o ritual nascem das relações interpessoais,
evidenciando que os processos cognitivos sensório-motores estão diretamente ligados
aos processos sociabilizadores, o que permite afirmar: mimese e ritual se escrevem na
ordem de uma saber corporal que se constrói no agir.
Os autores acreditam que o ritual e a mimese presente na escola agem como
agentes produtores de significado e sentido para cultura imposta, mas também podem se
tornar dispositivos que apontam poder da resistência.

Referências

BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. IN: Obras escolhidas I, Magia e


técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed., 10
reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996, 253p.

GEBAUER, Günter e WULF, Christoph. Mimese na cultura: agir social, rituais e jogos
e produções estéticas. Tradução: Eduardo Triandopolis. 1ª ed. São Paulo: Annablume,
2004.

MACLAREN, Peter. Rituais na escola: em direção a uma economia política de


símbolos e gestos na educação. Petrópolis: Vozes, 1992.

86
Os livros e os brinquedos no pensamento de Walter Benjamin

Conceição Ribeiro Guimarães

Introdução

A escolha de Walter Benjamin como objeto deste trabalho se deu pela percepção
da relevância de seu pensamento para a contemporaneidade e, em especial, na obra
Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação. Este trabalho, fruto da leitura de
Benjamin, consta de uma análise bibliográfica cujo objetivo é apenas elucidar sua
concepção acerca do ser criança através dos livros infantis e dos brinquedos, como
também se coloca como crítica do teórico à influência do racionalismo na educação das
crianças, crítica ao capitalismo que influenciou a produção de objetos ligados à infância.
O pensamento benjaminiano é atual e, como tal, pode dar sua contribuição para
uma vivência pacificadora, em que as pessoas possam contribuir para uma sociedade
diferente, onde a criança, o adulto e o idoso tenham espaço. A sociedade atual tem
muito o que aprender com o pensamento de Walter Benjamim em relação à convivência
humana, mas, sobretudo, na maneira de ver, respeitar e cuidar das crianças.

O que nos ensinam os velhos livros infantis

Os livros infantis escritos nos séculos XVII e XVIII tornaram-se verdadeiras


obras de arte, por todo o cuidado e dedicação que os autores dispensavam às ilustrações,
às cores. Estas características eram por si só suficientes para atraírem as crianças para o
mundo de magia e encantamento. Mas o livro infantil não vislumbrava só as crianças,
os adultos também eram atraídos para essa experiência. Benjamim (1984) enfatiza em
seus escritos sobre a cultura da criança e a importância de boas e requintadas obras
infantis, como também fala de um episódio curioso de sua época, referindo-se a um
colecionador de livros infantis. A propósito, assim se expressa o pensador:

Quando Karl Hobrecker (1924) há 25 anos começou sua coleção, os livros


infantis antigos eram usados como papel de embrulho. Ele foi o primeiro a
lhes abrir um asilo, onde estivessem a salvo, por um tempo determinado, da


Graduada em Filosofia PUC/PR; Especialista em Filosofia Social UECE. Mestranda em Educação
Brasileira/ UFC. E-mail: cecaribeiro2008@hotmail.com

87
fábrica de papel. É possível que entre os milhares de livros que lotam suas
estantes algumas centenas encontram-se apenas com ele, como último
exemplar.88

O livro infantil alemão começou a sua história com o Iluminismo, que o colocou
à prova utilizando-se dos livros como canais de formação humanitária, buscando educar
a criança tendo como referência o adulto. Com influência do Iluminismo, o livro infantil
tornou-se, nos seus primeiros decênios, moralista e edificante, variando entre a
doutrinação (moral) e a interpretação dos seus significados. Esses livros não
responderam as expectativas da criança, pois estes tolhiam a sua possibilidade
inventiva, criativa, como também não despertavam sua curiosidade. A criança não se
sentindo atraída por eles rejeita-os, pois ela tem o controle sobre o brinquedo e a
brincadeira e sabe o que quer.
Walter Benjamin critica as obras infantis inadequadas, que não são produzidas
levando em conta o mundo da criança, a magia, o encantamento e a sutileza, e que não
dão espaço para criatividade e imaginação. Mas o filósofo também reconhece os
escritores que fazem do livro infantil uma obra de arte, dentre esses Benjamin destaca:
Bilderbuch (1819), Livro de gravuras para crianças. Esta obra é composta de doze
volumes, com centenas de gravuras em cobre, coloridas. Neste contexto de
aprimoramento e dedicação ao mundo infantil, citamos também os contos de fadas, as
canções, o livro folclórico e a fábula. As crianças agilmente entenderam a mensagem,
deixando de lado o direcionamento de pedagogos racionalistas.
Foi significativo o fato de que o século XIX, em razão do avanço do
conhecimento, sacrificou muitos bens culturais do século anterior; no entanto, o livro
infantil não sofreu perdas, nem quanto ao texto, nem quanto às ilustrações. Contudo,
percebemos que, após 1810, deixaram de surgir obras tão finamente bem feitas,
elaboradas, com todo o aprimoramento como as Fábulas de Esopo, obra bastante
elogiada por Walter Benjamin.
O encanto do livro infantil do século XIX não é em relação ao refinamento do
texto e das imagens coloridas, pois isto faz parte do seu passado; mas seu encanto, em
geral, deve-se pelo registro de uma época em que a antiga manufatura confronta-se com
o início de novas técnicas. Com a Revolução Industrial, vieram também novos
instrumentos para a produção e para a comunicação, novos paradigmas surgiram e a

88
BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo, Summuns. 1984.
Pág. 49-50.

88
sociedade mudou seu enfoque em que a arte e os aprimoramentos das obras deram lugar
ao aspecto técnico, num retorno ao aspecto racional, sem ter a devida preocupação com
a idade, com o significado que este deveria ter para a criança. Não é pelo fato da criança
pequena ainda não ter densidade lógica, pensamento abstrato desenvolvido e capacidade
elaborativa, que se deva infantilizá-la preconceituosamente. O trato com as crianças
também deve ter em conta critérios éticos.
Segundo Benjamin, o livro infantil do século XIX ainda continuou com o
propósito de impressionar, de chamar atenção da criança por motivos que os adultos
achavam interessante, envolvendo, inclusive, o colorido e as ilustrações. No intuito de
atrair as crianças, Andersen (1875) escreve uma história em que fala sobre um
determinado livro. Nele, tudo estava vivo. Os pássaros eram ativos, cantavam e os
homens andavam, saíam do livro e falavam. Contudo, ele não capta o que tem de mais
essencial aqui, pois não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que
contempla; pelo contrário, a própria criança é que as penetra na história envolvendo-se
num momento de grande contemplação e criatividade.
Diante disso, a partir do livro ilustrado, a criança vence a parede ilusória da
superfície das narrativas ficcionais, e, entre tapetes e bastidores coloridos, penetra em
um palco onde acontece o conto de fadas em um mundo encantado, adornado de cores,
móvel, onde a cada instante as coisas mudam de lugar. A criança é acolhida como
companheira e co-autora da obra.
Ao criar histórias, as crianças agem livremente sem se deixarem censurar pelo
sentido. Benjamin nos fala das muitas vantagens que uma criança tem ao se deparar
com as possibilidades criativas:

Que se indiquem quatro ou cinco palavras determinadas para que sejam reunidas em
uma frase curta, e virá à luz a prosa mais extraordinária: não uma visão panorâmica
do livro infantil, mas um indicador de caminhos. De repente as palavras vestem seus
disfarces e em um piscar de olhos estão envolvidas em batalhas, cenas de amor e
brigas. Assim as crianças escrevem, mas assim elas também lêem seus textos 89.

A xilogravura em preto e branco, como técnica reprodutiva da arte, da qual


Benjamin se debruça em outra obra, também tem seus efeitos, a reprodução moderada e
em prosa chamam atenção da criança. Por terem um conteúdo discreto, essas ilustrações
despertam nela a palavra. Ao descrever as imagens com palavras, a criança o faz de fato

89
Ibid. p. 55-56

89
com rabiscos. Essas ilustrações, por sugerirem algo, despertam a imaginação da criança,
que cria asas. E aquela projeta então sua fantasia no jogo. Com as ilustrações, ela
aprende ao mesmo tempo a língua e a escrita.
Benjamin critica, também, o excessivo racionalismo usado nos livros infantis e
sua maneira de tratar as crianças. Segundo o autor, o valor autêntico desses livros
infantis, quais sejam: simplicidade, grafismo (foco na imagem), ilusão, não está
adequado à pedagogia racionalista, em razão de sua falta de dramaticidade e rigor
cognitivo, próprios dessa visão.
Nas ilustrações, nos desenhos das páginas dos livros infantis, a criança cria seus
personagens, não apenas imitando-os, mas assumindo-os de fato. Para ela, eles existem
mesmo. Benjamin (1984) nos informa que nos desenhos-enigma a criança percebe o
“ladrão”, o aluno “preguiçoso” ou o professor “escondido” de uma forma menos
sistemática, mais caprichosa e vivaz.
Na primeira metade do século XIX, Renner, desenhista gráfico, publicou em
Nuremberg uma sequência de 24 folhas que apresentavam as próprias letras através de
disfarces, por assim dizer: “F aparece sob o disfarce de um franciscano, P como
professor, C como camponês. Este jogo despertou um prazer tão grande que até hoje se
pode topar com esses velhos motivos, em todas as variantes possíveis.”90
Tal interesse, porém, se voltou mais tarde para um jogo em que palavras, letras ou
até mesmo frases eram representadas através de desenhos, sinais, sílabas ou letras que
se desejasse dar destaque ou eliminar para formar qualquer outra palavra ou frase, que
recebeu o nome de Rebus. A euforia anterior, então, foi logo silenciada, contestada,
intimada a morrer, pois o Rebus veio e de maneira cativante dava o seu recado atraindo
centenas de crianças.
Benjamin (1984) questiona os livros infantis porque não respeitam, não levam em
consideração a capacidade imaginativa e fantasiosa da criança, o que lhe permite criar e
construir conhecimento. A imaginação, portanto, tem um papel de suma importância na
constituição do conhecimento. O autor critica os critérios vulgares que criam um muro
entre fantasia e realidade, ou entre paixão e razão. Para o senso comum, imaginação e
fantasia são irreais, não se ajustam à realidade, carece de valor prático e de
racionalidade. Essa afirmação pode ser refutada quando aceitamos que a imaginação,
sendo a base de toda a atividade criadora, manifesta-se por igual em todos os aspectos

90
Ibid., p. 56

90
da vida cultural, favorecendo a criação artística cultural, científica e técnica, além de
favorecer o desenvolvimento humano. Sendo assim, tudo o que nos rodeia e que tenha
sido criado pela mão humana, toda a cultura, tudo é produto da criação e imaginação do
homem.
Na experiência da criança não há barreiras, nem limites entre a imaginação e a
realidade. A maneira singular com que a criança é capaz de enfrentar o mundo objetivo
nos permite uma melhor compreensão do processo da ação criadora no homem. Na
infância, a imaginação, a fantasia, o brinquedo não são atividades que apenas dão
prazer. Para a criança, o brinquedo satisfaz uma necessidade; por conseguinte, a
imaginação e a atividade criadora são para ela, efetivamente, partes integradoras de
regras do convívio com a realidade. A brincadeira faz a ponte entre o real e o imaginário
e ajuda a criança a revelar-se como pessoa.
Em seus jogos, as crianças podem até reproduzirem muito de suas experiências do
dia a dia, mas as atividades infantis não consistem na mera reprodução, pois quando
elas brincam, reelaboram criativamente, combinando-as entre si e edificando com elas
novas possibilidades de interpretação e representação do real, de acordo com suas
necessidades, seus desejos e suas paixões.

Os velhos brinquedos despertam sentimentos

Os velhos brinquedos tinham grande importância para as crianças. Estas muitas


vezes ajudavam a criá-los, pois o material usado em sua confecção era de fácil acesso e
manuseio. Sobre este assunto, Walter Benjamin narra a exposição de velhos brinquedos
no museu distrital de Brandenburgo, de Berlin. A exposição se deu em uma sala de
tamanho médio, pois ela foi organizada em vista de produtos de tamanho natural, como
bonecas, trenzinhos elétricos quilométricos, cavalos de madeira. Mas não foram
expostos só brinquedos no sentido estrito do termo, mas também muitos objetos que
estariam ligados a esse campo. Em outro espaço do local, juntaram-se jogos de
sociedade, blocos de construção, pirâmides de natal, livros, ilustrações e outros. Todos
esses detalhes, em geral um tanto insólitos, proporcionaram um conjunto muito mais
vivo do que se fosse uma exposição sistematicamente rígida. A mesma mão que
organizou a sala podia ser percebida no catálogo, o qual tinha um texto coerente, cheio
de indicações precisas sobre cada um dos objetos que faziam parte da lista, e ainda mais

91
informações exatas quanto à idade, produção e difusão de grupos inteiros de
brinquedos.
Nessa exposição, onde havia uma diversidade de atrações infantis, o soldadinho
de chumbo foi o mais pesquisado. Não só os soldadinhos podiam ser vistos, como
também outras figurinhas de chumbo burguesa, dispostas em cenas de gênero. Em
Berlim, a sua fabricação floresce tardiamente: durante o século XVIII, a
comercialização dos produtos do sul da Alemanha ficava a cargo dos comerciantes de
ferragens. A partir desse fato, conclui-se que o comerciante de brinquedos propriamente
dito surge lentamente ao final de uma dedicada especialização comercial. Ao lado
destes outros brinquedos, foi criada como monumento construído de açúcar e figura de
pão de mel, a boneca de confeitaria, conhecida ainda hoje pelos contos de Hoffmann
(1818).
Paralelo aos brinquedos citados anteriormente, as crianças podiam se divertir com
humor em brincadeiras como o teatro mecânico de marionetes e outras que causavam
suspense e, muitas vezes, até medo nos pequenos. E dando continuidade ao universo
lúdico, tinham as caixas escuras, dioramas, mirioramas e panoramas, cujas imagens
eram produzidas, em sua grande maioria, em Augsburgo. Com todos esses atrativos, o
material ilustrativo encontrado no sótão de uma escola distrital feito para surdos-mudos
foi o que atraiu um número significante de pessoas a ponto da sala de exposição ficar
sempre cheia, pois sua dramaticidade impressionava e passava uma sensação de
realidade, criando um efeito aterrorizador nas pessoas.
Todas essas atrações já citadas servem de estímulo para o adulto assim também
como as cenas da família reunida ao pé da árvore de natal, onde vemos, por exemplo, o
pai brincando com o brinquedo que acaba de dar ao filho. Não se trata de uma regressão
ao mundo infantil, quando o adulto se vê tomado de um impulso para brincar. Com
certeza brincar significa sempre libertação. Ao brincar, as crianças criam para si um
pequeno mundo próprio; porém, o adulto que se vê acuado por uma realidade
desafiadora, ameaçadora, sem perspectivas de solução, liberta-se das mazelas do mundo
através da reprodução miniaturizada. Com a banalização de uma vida insuportável, o
interesse por jogos e brinquedos cresceu após o final da I Guerra Mundial.
Para Benjamin, há um grande equívoco na maneira como a sociedade do século
XVIII concebia a criança, pois esta era vista como um ser humano em dimensão
reduzida, como um protótipo de gente. Podemos ter a ilusão de que o século XX deu um
passo muito à frente, mas o que se vê é que este reluta em aceitar as crianças como

92
pequenos seres humanos e além de que passa uma visão distorcida e alienante delas,
sem considerar que seres sociais determinados historicamente, num espaço de tempo,
interagindo, influenciando e sofrendo influência do meio que vivem.
Continuando a reflexão sobre o brinquedo nos escritos de Benjamin, ele narra a
história cultural dos brinquedos. Em seus primórdios, eles não foram feitos por
fabricantes especializados, mas nasceram nas oficinas de entalhadores em madeira,
fundidores de estanho e outros materiais que julgavam certo utilizá-los. Seguindo a lei
da manufatura, antes do século XIX, a produção de brinquedos era dividida em várias
indústrias, pois cada uma era incumbida de fabricar aquilo que competia a seu ramo.
Aqui já vemos claramente a influência do capitalismo na produção dos brinquedos.
Na Alemanha do século XVIII, quando começaram a florescer os primórdios de
uma fabricação especializada, as indústrias entraram em conflito contra os limites
colocados pelas corporações. Estas queriam impedir que o próprio marceneiro pintasse
suas bonequinhas; para a fabricação de brinquedos de diversos materiais, impunham às
indústrias a dividirem entre si os trabalhos mais simples, isto fazia com que o produto
encarecesse muito. Contudo, percebe-se que a venda e a distribuição de brinquedos não
era no começo função de comerciantes especializados.
Era comum encontrar brinquedos de madeira com o marceneiro, como também o
soldadinho de chumbo com o caldeireiro, figuras de doce com o confeiteiro, bonecas de
cera com o fabricante de velas. Mas o mesmo não ocorria com o comércio
intermediário, que assumia o papel de grande distribuidor. Em Nuremberg, apareceu a
primeira editora. Naquela cidade, os exportadores deram início à compra de brinquedos
que vinham das manufaturas da cidade, e, sobremaneira, da fabricação doméstica do
entorno da cidade de Nuremberg, para serem distribuídos entre os pequenos comércios.
Nesse mesmo período, com as mudanças ocorridas pela Reforma, muitos artistas
foram obrigados a direcionarem sua produção para objetos artesanais que tinham
demanda, pois até então produziam para a Igreja. Com isso, eles substituíam as grandes
obras por objetos de arte menores, os quais eram mais fáceis de serem adquiridos. Deu-
se, desse modo, a esplêndida difusão de coisas minúsculas, as quais traziam muita
alegria, festa para as crianças ao se depararem com as estantes de brinquedos; já os
adultos se alegravam nas salas de arte. Com toda essa efervescência da difusão do
artesanato de coisas minúsculas em Nuremberg, foi favorecido o predomínio dos
brinquedos alemães no mercado mundial, o que é comprovado até hoje.

93
Considerando a história do brinquedo em sua totalidade, percebemos que o
tamanho, o formato, tem muita importância a qual nem sempre imaginamos. Contudo,
na segunda metade do século XIX, quando se acentua a decadência dessas coisas
pequenas, percebe-se como os brinquedos tornam-se maiores, vão deixando para o
passado o elemento discreto, minúsculo e agradável. A criança ganha, com isso, a
possibilidade de ter sua estante de livros e de brinquedos em seu quarto; pois os antigos
livros, em virtude do tamanho, eram necessários muitos volumes. O mesmo ocorre com
os brinquedos, pelo tamanho minúsculo que tinham, era necessária a presença da mãe
de maneira mais efetiva, de modo a acompanhar mais intimamente as brincadeiras dos
filhos. O brinquedo se emancipa, impõe-se com o requinte da industrialização
avançando. Aquele se libera do controle da família, tornando-se cada vez mais estranho
das crianças e de seus pais.
Os brinquedos modernos apresentam uma falsa simplicidade, na qual manifesta o
autêntico desejo de reconquistar a afinidade com o primitivo, com a maneira de
fabricação doméstica. Porém, sabemos que hoje a perspectiva de existência dessas
coisas minúsculas de outrora, feitas, sobretudo, de madeira, são raras. O material usado
nos brinquedos antigos foi sendo substituído por outros.
Interpretando, a seu modo, a sensibilidade infantil, os adultos imaginam para as
crianças bonecas de bétula ou de palha, berços de vidro ou navios de estanho. Madeira,
ossos, tecidos, argila representam nesse mundo criativo materiais mais importantes, os
quais já eram usados em tempos antigos, quando brinquedo significava o elo que a
produção tinha no seu processo que aproximava pais e filhos. Com o tempo, vieram os
metais, o vidro, papel, alabastro. Tudo era feito com esmero, com luxo até, mas em
contrapartida, os brinquedos tinham uma existência fugaz.
Mas a história do brinquedo não nos esclarece só a respeito do material usado na
confecção, seu significado para a criança, mas também o que filosoficamente
precisamos saber: o naturalismo não deixava perspectiva em fazer valer o verdadeiro
rosto da criança que brincava. Hoje, temos esperança de superação efetiva desse
equívoco essencial para o reconhecimento da criança enquanto sujeito de suas
brincadeiras, pois esse equívoco passava como verdade a ideia de que o conteúdo
imaginário do brinquedo determinava a brincadeira da criança, mas na verdade acontece
o contrário, é a criança quem determina a brincadeira conforme seu desejo e
necessidade. Por exemplo, a criança quer puxar algo então se torna um cavalo, quer

94
brincar com a areia torna-se um padeiro, quer brincar com pedras e folhas e torna-se
cozinheiro etc.
No entanto, não podemos ver o brinquedo, seu conceito só pelo espírito da
criança. Esta não vive só, isolada, mas faz parte de um povo e de uma classe social. Da
mesma forma, os brinquedos, não têm vida independente, autônoma, pois suas vidas
não significam em si mesmas, mas é utilizando-se do diálogo mudo com aqueles, que
acontece a comunicação da criança com o povo. Nesse diálogo, a criança passa a sua
maneira de responder e ver a realidade que lhe cerca. Brincar não é um fato isolado, sem
consequência, mas tem repercussão na vida da criança e da sociedade onde vive. Por
suas implicações na vida das pessoas, na sociedade, brinquedos, jogos são temáticas
atuais nos debates e não apenas coisa do passado.
Nas pesquisas, nas observações feitas em obras expostas no museu alemão de
Munique, no museu de brinquedos de Moscou, retratam que o interesse por brinquedos
autênticos está sendo despertado. Bonecas com traços realistas, época em que os adultos
se valiam de supostas necessidades infantis para satisfazer as próprias necessidades
pueris, chega ao fim; bem como o individualismo expresso no artesanato e a imagem de
criança apresentada pela psicologia individual, os quais formavam uma força, foram
rompidos internamente. Simultaneamente a essa realidade, foram dados os primeiros
passos para o rompimento com a influência da psicologia e do esteticismo. O artesanato
popular e a concepção do mundo infantil querem ser aceitos como configurações
efetivas.
Tanto o mundo da percepção infantil como os seus jogos estão marcados de todos
os lados pelos vestígios da geração mais velha, com os quais ela se defronta no seu dia a
dia, quer seja nos momentos de brincadeiras ou não. Por exemplo, o brinquedo, mesmo
quando não imita os instrumentos dos adultos, é confronto, na verdade, não tanto da
criança com os adultos, mas destes para com as crianças. E são os próprios adultos que
dão à criança os seus primeiros brinquedos, de certo modo impositivamente como
objetos de culto. O que só mais tarde, com a força da imaginação e criatividade,
transformam-se em brinquedos.
É equívoco se pensar que são as crianças movidas pelas suas necessidades que
determinam a sua forma de brincar e os seus brinquedos. O mundo adulto é imposto ao
da criança, haja vista que as bonecas até o século XIX vestiam-se com trajes de adultos.
Isso demonstra que a criança não era respeitada no seu mundo, não era concebida e
tratada como criança. Para fundamentar o que foi dito, citamos Philippe Ariès (1978):

95
Assim, partindo do século XV, em que a criança se vestia como os adultos,
chegamos ao traje especializado da infância, que hoje nos é familiar... O que
é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres. As
crianças do povo, os filhos dos camponeses e dos artesãos, as crianças que
brincavam nas praças das aldeias, nas ruas das cidades, ou nas cozinhas das
casas continuaram a usar o mesmo traje de adulto.91

O mundo ideal era o mundo dos adultos, no qual o educador tinha que formar a
criança ideal, à semelhança daquele. A criança era vista como um ser em miniatura, sem
nenhuma autonomia, pois os valores impostos às crianças são todos pertencentes ao
mundo adulto. Enfim, a criança não é vista como um ser histórico que produz cultura,
que pensa, que sente as maravilhas que a vida oferece, como também sente as lacunas,
dor, fome, frio, violência etc. Mas a criança tem a sua subjetividade, ela quebra toda a
imposição adulta, desviando a função do brinquedo dada pela sociedade e na
brincadeira impõe a sua, pois brinca com o brinquedo como acha melhor e, através dele,
dá sua resposta ao seu entorno. Por exemplo, com um pedaço de papel ela habilmente
cria um avião. A criança não se inibe pelo autoritarismo dos adultos, mas, de maneira
criativa, inventiva ela diz não usando o que de melhor sabe fazer: brincar.

Consideração Finais

Como educadores, devemos buscar elementos que venham acrescentar qualidade


fazendo a diferença no exercício, não só da profissão, mas também nas relações com as
crianças, com o nosso entorno. O pensamento de Benjamin é atual e como tal pode
contribuir para uma vivência harmoniosa onde as pessoas possam somar sua
colaboração para um mundo melhor que possibilite à criança, ao adulto e ao idoso um
espaço próprio e aberto à convivência de uns com os outros. Que apesar dos exageros da
tecnologia, do virtual, as pessoas vivam a experiência, sintam cada momento das suas
vidas, deem tempo para ouvir a outra em profundidade.
Sabe-se que, nas brincadeiras, as crianças repetem e, nessa repetição, elas se
renovam. Por isso, as brincadeiras são sempre pertinentes, pois a criança volta a criar
para si o que já foi vivido. Como também no contato com os livros infantis, as crianças
não se cansam de ouvir ou ler as mesmas histórias, os mesmos contos, mas isto tem
sabor de novo, é um renovar constantemente. Os brinquedos e as brincadeiras

91
Philipe Arèis, História da criança e da família. Rio de Janeiro, Guanabara, 1978. p. 51

96
possibilitam à criança desenvolvimento da sua subjetividade, pois ela brinca de acordo
com sua capacidade criativa, fazendo do brinquedo o que deseja, ou seja, a criança tem
o controle sobre o brinquedo e a brincadeira. Como o pensamento de Benjamim não é
fechado, a reflexão sobre esta temática continua atual em nossos dias.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência da história. Belo


Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara,


1978.

BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo:


Summus, 1984.

_________________. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:


Brasiliense, 1987, Vol. 1.

_________________. Obras escolhidas. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense,


1987, Vol. 2

GHIRALDELLI, Júnior, Paulo (org.). Estilos em Filosofia da Educação. Rio de


Janeiro: DPS Editora, 2000.

JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin.


Campinas, São Paulo: Papirus, 2000.

KIMMERLE, Gerd. Denegação e Retorno: uma leitura metodológica de “Para além do


Princípio de Prazer”, de Freud. Piracicaba. São Paulo: Editora Unimep, 2000

97
Slavoj Zizek: Real, Fantasia, Objetos Sublimes da Ideologia,
Ato Político e Educação

Hildemar Luiz Rech

Ainda que uma ideologia não seja falsa, quanto a seu conteúdo positivo e
consciente, ela pode manter sua função ideológica, pois o que importa realmente não é o
conteúdo afirmado como tal pelo Sujeito do enunciado, mas o modo como este
conteúdo se relaciona com a postura subjetiva inconsciente envolvida em seu próprio
processo de enunciação. Desse modo, estamos no espaço da ideologia quando este
conteúdo, seja ele falso ou verdadeiro, é funcional a uma relação de dominação ou
exploração social não transparente, cuja eficácia situa-se justamente no caráter oculto de
sua lógica de legitimação. Ademais, a ideologia também funciona como uma forma de
regular certa distância do encontro com o Real, com a Coisa (Zizek 1996A).
Já no que tange ao campo social, a crença, longe de ser um estado puramente
mental, é sempre encarnada em nossa atividade social efetiva. Ou seja, a crença sustenta
a fantasia que regula o funcionamento libidinal da realidade social (Zizek, 1996B).

Uma breve explicação sobre dois conceitos psicanalíticos: O Real e a Coisa

Para Zizek, o Real não pode ser confundido com a realidade, pois esta é
construída simbolicamente, enquanto que o Real – mesmo que imanente ao Simbólico –
é o resto que excede o simbólico, é o próprio princípio da distorção da realidade, enfim
é núcleo traumático oculto que não pode ser simbolizado, mas que não cessa de deixar
sua marca traumática nos furos da realidade simbolizada. O Real, portanto, não é
nenhuma espécie de substancialidade consistente que aparece como pano de fundo da
realidade, mas funciona muito mais como um núcleo traumático vazio que deixa a
própria realidade – de modo incontornável mediada simbolicamente – distorcida e
incompleta. Desse modo, o Real é o espectro do fantasma, que em si mesmo distorce a


Doutor em Ciências Sociais pelo IFCH da UNICAMP/SP e pela Universidade de Manchester,
Inglaterra. Professor associado III no Depto. Fundamentos da Educação e no Programa de Pós-Graduação
em Educação na FACED-UFC. Pesquisador nos Programas PROCAD/CAPES e do LABOR/UFC.
Integrante da linha de pesquisa e ensino “Filosofia e Sociologia da Educação”, no eixo Filosofia, Política
e Educação.

98
nossa percepção da realidade. Ademais, em seu nível mais radical o Real lacaniano, na
interpretação de Zizek, é o X desmentido e repudiado, em nome do qual nossa visão da
realidade é anamorficamente distorcida: ele é a Coisa (Ding) – o objeto primordial
perdido – à qual o acesso direto não é possível e, ao mesmo tempo, o obstáculo que
impede esse acesso direto, ou seja, ele é a Coisa que foge à nossa compreensão e a tela
distorcedora que nos faz deixar de ver a Coisa. Em termos mais exatos, o Real, em
última análise, é a própria mudança de ponto de vista, do primeiro para o segundo lugar
na observação, que parece quase como uma antinomia kantiana que não pode ser
resolvida em uma „síntese dialética‟ mais elevada, mas que, ao contrário, eleva a
sociedade à Coisa-em-si inacessível. (Cf. Zizek, 2008, p.43-44; e 2011, p.139-140).
Entretanto, numa segunda abordagem, segundo Zizek, devemos apenas observar
como essa antinomia radical, que parece impedir nosso acesso à Coisa, já é a própria
Coisa, visto que a característica fundamental da sociedade de hoje é o antagonismo
inconciliável entre a totalidade e o indivíduo. Isso significa que, em última análise, a
condição do Real é puramente paralática e, como tal, não substancial: não tem em si
nenhuma densidade sólida, é apenas a lacuna entre dois pontos de vista, perceptível
apenas na passagem de um ao outro. O Real paralático, portanto, opõe-se à noção-
padrão (lacaniana) do Real como aquilo que “sempre volta a seu lugar”, ou seja, como
aquilo que continua o mesmo em todos os universos (simbólicos) possíveis; o Real
paralático é antes aquele que explica a própria multiplicidade de aparências do mesmo
Real subjacente – não é o núcleo rígido que persiste como o Mesmo, mas o osso duro
do conflito, o núcleo oculto traumático que pulveriza a mesmice numa miríade de
aparências. Num primeiro passo, o Real é o núcleo rígido impossível que não podemos
confrontar diretamente, mas só pela lente de uma miríade de ficções simbólicas, de
formações virtuais. Num segundo passo, esse mesmo núcleo rígido é puramente virtual,
na verdade inexistente, um X que só pode ser reconstruído retroativamente a partir da
miríade de formações simbólicas que é tudo o que realmente há. (Zizek, 2008, p.43-44).
Portanto, o Real intervém por meio da anamorfose. Ou seja, o Real é o núcleo
duro e oculto do antagonismo social que distorce a visão que as pessoas têm do
antagonismo real na sociedade. Ou seja, o Real lacaniano não só é distorcido, como ele
é o próprio princípio da distorção da realidade (Cf. Zizek, 2011, p.290-291).
As teorias das ciências positivas não refletem totalmente a realidade e não são
apenas provadas por fatos, pois os „fatos objetivos‟ aos quais se referem não são a
realidade pré-simbólica, visto que esta é inacessível diretamente, o que significa que não

99
se pode sair do conhecimento e do registro simbólico com a expectativa ingênua de
abordar e entender diretamente a realidade sem a mediação das constelações da
linguagem. Aliás, o núcleo traumático oculto da realidade – que não é a positividade do
Real inacessível fora do Simbólico – é totalmente inerente ao Simbólico, pois é sua
fissura ou impossibilidade imanente. Ou seja, o Real não é a realidade substancial
transcendente que, de fora, perturba o equilíbrio simbólico, mas ele é o obstáculo
imanente, a pedra no caminho do próprio Simbólico (Zizek, 2011, p.319-320).
Conforme Zizek (2011), no registro do Real não falta nada, pois a falta é
introduzida pelo Simbólico. É por isso que a negatividade não é o Real a minar o
Simbólico de fora para dentro, mas o próprio Simbólico, o processo de simbolização
com sua violenta abstração, com sua redução da riqueza da experiência ao traço unário
(freudiano), significante que comporta a negatividade. Lacan inclusive se inspira em
Hegel ao lembrar que a palavra é o assassinato da coisa (sache) que ela designa. Enfim,
a forma elementar de negatividade não é o excesso de experiência além da
simbolização, mas a própria lacuna que separa a simbolização da realidade vivenciada.
O Real lacaniano é mais reducionista que todas as estruturas simbólicas: nós o
tocamos quando subtraímos de um campo simbólico toda a riqueza de suas diferenças,
reduzindo-o a um mínimo de antagonismo. Isso se deve a esse estatuto “minimalista” –
puramente formal e insubstancial – do Real, em que, para Lacan, a repetição precede o
recalque. Não é que, primeiro, recalcamos um conteúdo traumático e, depois, por
sermos incapazes de lembrá-lo e, portanto, de esclarecer nossa relação com ele, esse
conteúdo continua a nos perseguir, repetindo-se de forma disfarçada. Se o Real é a
diferença mínima, então a repetição (que estabelece essa diferença) é primordial; a
primazia do recalque surge com a “reificação” do Real numa Coisa (Ding) que resiste à
simbolização – só então vemos que o Real excluído/recalcado insiste e repete-se. O
Real, primordialmente nada mais é do que a lacuna que separa a Coisa de si mesma, a
lacuna da repetição. (Ver Zizek, 2011, p.320-321).
Aqui ainda cabe observar que a Coisa, que é o núcleo do Real, está na origem da
constituição do psiquismo. O nó entre Real e Simbólico é análogo ao nó que existe entre
Lei e desejo, ou seja, a Coisa está na origem da instituição da Lei, enquanto Lei da
palavra que não se resume à proibição, mas também envolve a lei positiva que ordena o
desejo como verdade parcial, a partir da castração (do recalcamento).
Por outro lado, na última fase de sua produção teórico-psicanalítica, Lacan
define a “pulsão de morte” como o próprio sistema simbólico que opera de forma

100
autônoma, ignorando a realidade; finalmente, a “pulsão de morte” é concebida como o
Real que resiste à simbolização, o Real permanece imanente ao Simbólico, como seu
âmago traumático inerente: não há Real sem Simbólico, é o surgimento do Simbólico
que introduz na realidade a lacuna do Real. (Zizek, 2011, p.320).
Por outro lado, conforme as interpretações costumeiras e mais recorrentes sobre
a teoria lacaniana referente à idéia de a Coisa (das Ding) é que, com base em Freud,
esta é o objeto originário para sempre perdido da espécie humana, e que é visto como
algo distinto do objeto perdido da história individual de cada sujeito, o objeto causa do
desejo, designado por Lacan de “objeto pequeno a”. Este último poderá ser
reencontrado de alguma forma nos diversos objetos substitutos do desejo, constituídos
ao longo da vida de cada sujeito, mas, no fundo destes objetos substitutos reaparecerá
incessantemente a Coisa originária perdida para sempre da espécie humana. No
seminário VII, Lacan destaca que apesar de ser inassimilável, a Coisa serve de
referência para o desejo, na medida em que permite ao aparelho psíquico atentar para o
mundo das percepções. Enfim, a Coisa – que é algo vazio e apanhado como um furo na
subjetividade – funciona como índice de exterioridade ou da realidade (Zizek, 2006).
Segundo Zizek (2006, p.84-85), cabe chamar atenção para o fato de que a
visualização usual sobre a teoria de Lacan é de que ela tem um traço transcendentalista.
Ou seja, nesta perspectiva enfatiza-se que, segundo Lacan, a entrada na Ordem
simbólica comporta uma castração simbólica ou um recalcamento traumático, o que
significa que o objeto primitivo do desejo se perde, transformando-se numa coisa
impossível e ausente, que está para sempre perdida, a ponto de todo objeto empírico do
desejo com que nos deparamos ser apenas um mero substituto suplementar do objeto
primário perdido. Ou seja, a tese recorrente – mas problemática segundo Zizek – sobre
Lacan é que o próprio fato da subjetividade significa que o objeto do desejo se perde e
que a ilusão imaginária do sujeito, que se impõe aí, consiste precisamente na
possibilidade de recuperar o objeto perdido, como forma de não aceitar o trauma da
perda. Portanto, é aí que, segundo esta perspectiva de análise, se impõe a ilusão de
tornar o „Real impossível‟ possível, o que resultaria assim em uma suspensão da
impossibilidade primordial de encontrar a Coisa (Ding). É também aí, contra todas
essas tendências relativamente enganosas, que aparece a tese de diversos estudiosos
lacanianos, segundo a qual temos de aceitar a perda primitiva como um a priori, pois,
confrontar diretamente o Real da Coisa seria uma experiência incestuosa e
autodestrutiva, insuportável e dolorosa demais pelo fato de o Real ser o Outro

101
traumático ao qual nunca se pode responder adequadamente. Assim, a idéia de Real
pressuposta aqui, é a do Real como impossível, no sentido da grande ausência: ele
sempre nos falta, é um vazio básico, e a ilusão é que podemos recuperá-lo, mas isto é
impossível porque o Real é traumático demais para ser encontrado e é por isso que
temos que aceitar a perda primitiva como um a priori. Porém, para Zizek esta é uma
tese problemática, embora não teoricamente errada (Zizek, 2006).
Para Zizek, o verdadeiro foco do Real lacaniano é que a idéia de “pulsão de
morte” que está aí presente não pode ser interpretada nesses termos transcendentais, ou
seja, em termos de uma perda a priori em que os objetos empíricos nunca coincidem
com das Ding, a Coisa – com a lógica do Real como inexoravelmente impossível, uma
idéia do objeto inatingível, marcado por um funcionamento do desejo estruturando-se
em torno de um vazio primordial, ou seja, em termos de uma perda a priori em que os
objetos empíricos do desejo não coincidem jamais com a Coisa (das Ding). Porém,
conforme Zizek, além de aceitar a lacuna entre o vazio da Coisa e o objeto contingente
que vem preenchê-la, é preciso considerar que a cisão não está entre a realidade
empírica e a Coisa impossível, mas que o objeto do desejo está cindido nele mesmo, ou
seja, a questão é que o objeto é ele mesmo e, ao mesmo tempo, é outra coisa: “A
questão é que os objetos da pulsão são esses objetos privilegiados que, de algum modo,
são um duplo deles mesmos. Lacan se refere a isso como la doublure [ o avesso, a outra
face]. Há uma espécie de distância segura, mas é uma distância segura dentro do próprio
objeto: não é a distância entre o objeto e das Ding” (Zizek, 2006, p.86).

Quando o “para-si” da ideologia atua no cerne da realidade extra-ideológica

Na contemporaneidade, como observa Zizek, em sua obra “Eles não sabem o


que fazem: o sublime objeto da ideologia” (1992), apesar das declarações disseminadas
de que vivemos um período histórico pós-ideológico, a ideologia não desapareceu do
cenário político. Ao contrário, é por causa do seu sucesso que a ideologia pôde
aparentemente ser descartada no cerne da opinião política hoje mais aceita.
Na sociedade do capitalismo contemporâneo os novos meios de comunicação de
massa e eletrônico-cibernéticos facilitaram a penetração de conteúdos simbólicos, de
marketing e de propaganda com substrato ideológico em todos os poros da sociedade,
conduzindo ao enfraquecimento do próprio peso da ideologia, de modo que hoje os
indivíduos não agem mais prioritariamente em função de suas crenças e convicções,

102
sendo que a reprodução do sistema se dá muito mais via sujeição osmótica às premissas
da sociedade de consumo e do espetáculo, e via eficácia da coerção e da aplicação das
normas legais e de controle estatais adequadas aos interesses do capital globalizado.
Nestas circunstâncias as coisas ficam bem mais opacas e embaralhadas, pois um campo
obscuro, em que a realidade torna-se indistinguível da ideologia, impõe-se, de modo que
o “para-si” da ideologia entra em ação no cerne da realidade extra-ideológica.
Este novo quadro sócio-econômico, político e cultural, contudo, não significa a
emergência de uma realidade que aponta para o desaparecimento da ideologia, pois os
mecanismos de coerção econômica e de coação da norma legal sempre mobilizam e
materializam crenças que são implicitamente ideológicas. Assim, por exemplo, o direito
à inviolabilidade da propriedade capitalista implica a crença de que isso é um
pressuposto inquestionável para o pleno funcionamento da sociedade. Ademais,
segundo Zizek (1996A), a forma de consciência reflexiva que se adéqua à chamada
sociedade “pós-ideológica” do capitalismo tardio continua a ser, strictu sensu, um
comportamento ideológico, pois implica uma série de pressupostos ideológicos sobre a
relação entre os “valores” e a “vida real”, necessários à reprodução das relações sociais
existentes. Assim, a atitude cínica, que se mostra indiferente frente às expressões
ideológicas mais patéticas, preferindo dar importância apenas às suas motivações
consumistas, utilitaristas e hedonistas, não escapa deste tipo de incidência ideológica.
No ambiente capitalista tardio emerge, portanto, um contingente “sui generis” de
fenômenos ideológicos que difere da ideia de ideologia como doutrina explícita – com
convicções e valores articulados sobre as características do homem, da sociedade e do
universo – e que é diferente também da ideologia em sua existência material mediante
as instituições, rituais e práticas que lhe dão corpo. Trata-se, enfim, de uma rede elusiva
e esquiva de pressupostos e atitudes implícitos, quase “espontâneos”, que formam um
momento irredutível da reprodução de práticas “não ideológicas” (econômicas, legais,
políticas, sexuais, etc.), representando a noção marxista de “fetichismo da mercadoria”
um destacado exemplar para este tipo de fenômeno ideológico.
A propósito, segundo Zizek (1996A, p.21):

A noção marxista de “fetichismo da mercadoria” (...) designa, não uma teoria


burguesa da economia política, mas uma série de pressupostos que
determinam a estrutura da própria prática econômica [efetiva] das trocas de
mercado – na teoria, o capitalista agarra-se ao nominalismo utilitarista, mas,
na prática da troca etc., segue „caprichos teológicos‟ e age como um idealista
especulador. Por essa razão, a referência direta à coerção extra-ideológica (do
mercado, por exemplo) é um gesto ideológico por excelência: o mercado e os
meios de comunicação (de massa) estão dialeticamente interligados; vivemos

103
numa „sociedade do espetáculo‟ (Guy Debord) em que a mídia estrutura
antecipadamente nossa percepção da realidade e a torna indiscernível de sua
imagem „esteticizada‟.

O elemento espectral, o Real do antagonismo, o fetichismo da mercadoria, a luta de


classes e a ideologia

Ademais, quando se analisa criticamente a complexidade dos fenômenos


ideológicos contemporâneos, deve ser levado em consideração também o elemento
espectral e o Real do antagonismo que os acompanha, em sua operação puramente
formal que promove o efeito de profundidade da ideologia. Estes fatores, talvez
constituam, segundo Zizek (1996A), a célula elementar ou a expressão mais pura da
ideologia e que tem estreita ligação como o conceito lacaniano de Significante Mestre
(S1), que representa a dimensão verdadeiramente essencial e fundamentalmente
inconsciente, sobre a qual não é preciso fazer nenhuma afirmação positiva, pois o S1 é
um significante sem significado, que, entretanto, de forma desmedida faz parte da
ordem simbólica como tal, obrigando a localização da ideologia na lacuna entre as
afirmações positivas da „cadeia comum de significantes‟ e os lapidares e emblemáticos
„significantes Mestres‟ vazios de significado. Mesmo que não haja nenhuma linha
demarcatória evidente que separe a ideologia da realidade e embora a ideologia já esteja
imperceptivelmente em ação em tudo o que é vivido como realidade, ainda assim se
mantém uma tensão entre ambas que confere uma atualidade à crítica da ideologia.
De outro lado, segundo Zizek (1996A), Karl Marx concebeu a ideologia como
uma máquina radicalmente não espontânea, que distorce de fora para dentro a
autenticidade da nossa experiência de vida. Desse modo, a ideologia só surge quando as
ideias distorcidas perdem seu caráter imediato e são sofisticadamente elaboradas por
„intelectuais orgânicos‟ a fim de servir de legitimação das relações de dominação e de
exploração existentes. Em consequencia, nesta perspectiva, a ideologia propriamente
dita só surge com a divisão do trabalho, a cisão das classes sociais e o estado moderno.
Sob este prisma, a ideologia não brota da „vida em si‟, mas só passa a existir na medida
em que a sociedade é regulada por um Estado atrelado às relações sociais capitalistas.
Ou seja, para Marx, o “fetichismo da mercadoria” não integra o universo da ideologia,
mas mesmo assim, este elemento idolátrico falso, esta fantasia teológica, este “elemento
espectral obsceno”, que acompanha a matéria espiritualizada da mercadoria, enfim, este
universo “sui generis” da mercadoria proporciona o suplemento fetichista necessário à

104
doutrina oficial, sendo a sua base real a idolatria do Bezerro de ouro, o dinheiro,
entronizado ilusoriamente como tendo propriedades especiais e sublimes, independentes
das relações sociais de força, de exploração e de dominação na sociedade.
Por sua vez, também Jacques Derrida, em seu livro “Espectros de Marx”,
apresentou uma importante reflexão ao empregar o termo “espectro” para indicar a
fugidia pseudo-materialidade que subverte as oposições ontológicas clássicas entre
realidade e ilusão. Este aspecto talvez represente o cerne pré-ideológico ou a matriz
formal em que são enxertadas as diversas formações ideológicas, tendo em vista que o
círculo da realidade somente pode ser fechado mediante um estranho suplemento
espectral. Mas, por que o elemento espectral é indissociável da existência da realidade?
A propósito, segundo Zizek (1996A, p.26):

Lacan fornece uma resposta precisa e essa pergunta. [Ou seja,] (o que
vivenciamos como) realidade não é a “própria coisa”, é sempre já
simbolizado, constituído e estruturado por mecanismos simbólicos – e o
problema reside no fato de que a simbolização, em última instância, sempre
fracassa, jamais consegue “abarcar” inteiramente o “real”, sempre implica
uma dívida simbólica não quitada, não redimida. Esse “real” (a parte da
realidade que permanece não simbolizada) retorna sob a forma de aparições
espectrais. Conseqüentemente, não se deve confundir “espectro” com “ficção
simbólica”, com o fato de que a realidade em si tem a estrutura de uma
ficção, por ser simbolicamente (ou como dizem alguns sociólogos,
“socialmente”) construída; as noções de espectro e ficção (simbólica) são co-
dependentes em sua própria incompatibilidade (...). Dito de maneira simples,
a realidade nunca é diretamente “ela mesma”; só se apresenta através de sua
simbolização incompleta e falha. As aparições espectrais emergem
justamente nessa lacuna que separa perenemente a realidade e o “real”, e em
virtude da qual a realidade tem o caráter de uma ficção (simbólica): o
espectro dá corpo àquilo que escapa à realidade – simbolicamente estruturada
(Zizek,1996A, p.26).

Sob esta perspectiva crítica, a aparição espectral, que preenche o buraco do


“Real” em relação à realidade (que como tal nunca é toda), consiste no cerne pré-
ideológico da ideologia. Para que possa emergir aquilo que vivenciamos como “a
realidade”, algo tem que ser “foracluído” dela. Ou seja: “A realidade, tal como a
verdade, nunca é, por definição, „toda‟. O que o espectro oculta não é a realidade, mas
seu „recalcamento primário‟, o X irrepresentável em cujo „recalcamento‟ fundamenta-se
a própria realidade” (Zizek, 1996A, p.26).
A própria elaboração conseqüente do conceito de luta de classes no capitalismo,
por exemplo, nomeia o “real” traumático do antagonismo que impede a realidade social
objetiva de se constituir como um todo fechado em si mesmo:

105
O grande paradoxo da noção de „luta de classes‟ é que a sociedade „mantém-
se coesa‟ pelo próprio antagonismo ou cisão que impede permanentemente
seu fechamento num Todo harmonioso, transparente e racional – justamente
pelo empecilho que mina qualquer totalização racional. Embora a „luta de
classes‟ não esteja diretamente dada (...) como uma entidade positiva, ela
funciona, em sua própria ausência [imediata], como ponto de referência que
nos permite situar qualquer fenômeno social (...), ao concebê-lo como mais
outra tentativa de remendar a brecha do antagonismo entre as classes, de
apagar seus vestígios (Zizek, 1996A, p.26).

Desse modo, a luta de classes faz parte do “Real” porque é “foracluída” do todo
simbolizado, no sentido lacaniano restrito. Ou seja, ela é um empecilho ou uma
dificuldade que origina simbolizações sempre renovadas, mediante as quais não são
medidos esforços para preencher os furos que não cessam de se reinscrever na realidade
a partir deste nó, tentando-se, desse modo, integrar ou domesticar a própria luta de
classes, a fim de evitar seu núcleo traumático. De acordo com esta perspectiva restrita:

A luta de classes não é nada mais do que o nome limite imperscrutável que é
impossível de objetivar, situado dentro da totalidade social, já que ela mesma
é o limite que nos impede de conceber a sociedade como uma totalidade
fechada. Ou [seja], (...) a “luta de classes” designa o ponto em relação ao qual
“não existe metalinguagem”: na medida em que toda posição dentro do todo
social é sobredeterminada, em última instância, pela luta de classes, não está
excluído da dinâmica desta última nenhum lugar neutro de onde seja possível
localizá-la dentro da totalidade social (Zizek, 1996A, p.27).

Desse modo, segundo Zizek (1996A), a situação paradoxal da luta de classes


pode também ser articulada mediante a crucial distinção hegeliana entre Substância e
Sujeito. Assim, a luta de classes envolve o plano social objetivo em nível da Substância,
funcionando, desse modo, apenas como uma indicação secundária de uma contradição
mais basilar neste processo, uma desarmonia incômoda regulada por mecanismos
positivos que independem da luta de classes e que estão relacionados aos problemas
intrínsecos ao desenvolvimento das forças produtivas, sendo que nesta perspectiva a
luta de classes irrompe como uma decorrência da contradição e da inadequação entre o
estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção.
Mas, quando passamos para o nível do Sujeito percebemos que a luta de classes não é o
efeito de um mero processo objetivo, mas já está sempre atuante no próprio cerne desse
processo. Ou seja, o valor da força de trabalho em si não é objetivamente dado, mas
resulta da própria luta de classes e é no cerne desta luta que os capitalistas criam novos
meios de produção com nova base tecnológica, visando reduzir o valor relativo e
absoluto da força de trabalho. Portanto, não é possível isolar nenhuma dinâmica social
objetiva que não implique a presença subjetiva da luta de classes. “A própria „paz‟, a

106
ausência da luta, já é uma forma de luta, é a vitória (temporal) de um dos lados da luta.
[Ou seja], (...) a própria invisibilidade da luta de classes (...) já é um efeito (...) da
hegemonia exercida por um lado da luta” (Zizek, 1996A, p.28).
Por outro lado, ao se considerar a interpretação da luta de classes na perspectiva
lacaniana de um antagonismo social integrando o “Real”, que não faz parte de modo
explícito da realidade social objetiva, emerge a compreensão de que a própria
constituição da realidade social implica o “recalcamento primário” de um antagonismo.
Assim, “... o esteio fundamental da crítica da ideologia – o ponto de referência extra-
ideológico que nos autoriza a denunciar o conteúdo de nossa experiência imediata como
„ideológico‟ – não é a „realidade‟, mas o „Real‟ recalcado do antagonismo” (Zizek,
1996A, p.30). Ou seja, o que emerge das distorções da representação exata da realidade
é o “Real”, o trauma em torno do qual se estrutura a realidade social. Assim: “A
„realidade‟ em si, na medida em que é regulada por uma ficção simbólica, oculta o
„Real‟ de um antagonismo – e é esse „Real‟, foracluído da ficção simbólica, que volta
sob a forma de aparições espectrais” (Zizek, 1996A, p.32).
Em Karl Marx, por exemplo, na análise do “segredo da forma-mercadoria” é
importante o desmascaramento do sentido oculto, por trás da forma-mercadoria, pois o
valor de uma mercadoria não depende do puro acaso de uma interação acidental entre a
oferta e a procura, por exemplo. Mas isto não basta, pois a própria economia política
burguesa clássica já descobrira o segredo da forma-mercadoria. Então o verdadeiro
segredo não é o segredo por trás da forma, mas o segredo da própria forma, sua gênese e
a prática que cria esta forma. Ou seja, a economia política clássica nunca se perguntou:
“Por que esse conteúdo assumiu tal forma particular, isto é, por que o trabalho se
expressa num valor, e por que a mensuração do trabalho por sua duração se expressa na
magnitude do valor produto?” (Sohn-Rethel, apud Zizek, 1996B, p.301).

O alcance universal da forma-mercadoria

Segundo Zizek (1996B), o estudioso que apresentou a reflexão mais


aprofundada quanto ao alcance universal da forma-mercadoria foi Alfred Sohn-Rethel,
integrante da Escola de Frankfurt. Segundo este interprete, não somente a chave da
crítica da economia política, o segredo oculto do valor trabalho, integra a análise formal
da mercadoria, mas também o elemento fulcral da explicação histórica do modo de
pensamento conceitual abstrato e da divisão entre trabalho intelectual e manual, que

107
passou a existir juntamente com ele. Desse modo, nas palavras de Zizek, o esqueleto do
próprio sujeito transcendental kantiano – isto é, a rede de categorias transcendentais que
constitui o arcabouço a priori do conhecimento científico “objetivo” é articulada de
antemão pela própria estrutura da forma-mercadoria. O paradoxo da forma-mercadoria,
esse fenômeno patológico intramundano, em linguagem kantiana, consiste em ela
fornecer-nos uma senha de acesso para solucionar a questão fundamental da teoria do
conhecimento: Como é possível um conhecimento objetivo com validade universal?
Posteriormente, a série de análises de Sohn-Rethel levou à seguinte conclusão:

O método científico (o da ciência newtoniana da natureza) pressupõe um


aparato de categorias, uma rede de noções através das quais ele capta a
natureza; tal aparato já está presente na efetividade social, já está em ação no
ato da troca da mercadoria. Antes que o pensamento pudesse chegar à pura
abstração, a abstração já atuava na efetividade social do mercado. A troca de
mercadorias implica uma dupla abstração: a abstração do caráter mutável da
mercadoria durante o ato de troca e a abstração do caráter concreto, empírico,
sensorial e particular da mercadoria (Sohn-Rethel, apud, Zizek, 1996B,
p.302).

Portanto, o sine qua non da ciência moderna, expresso na quantidade pura, já


estava em ação no dinheiro – essa mercadoria que possibilita a comensurabilidade do
valor de todas as outras mercadorias, a despeito de sua determinação qualitativa
particular –, antes que o próprio pensamento pudesse chegar à idéia de uma
determinação puramente quantitativa. O ato social da troca já havia realizado um
movimento abstrato “puro” mediante a transferência de propriedade das mercadorias,
deixando totalmente intactas as propriedades sensório-concretas do objeto apanhado em
movimento, antes que a física pudesse articular a noção de um movimento puramente
abstrato, ocorrendo num espaço geométrico, independentemente de quaisquer
determinações qualitativas dos objetos em movimento. Ou seja, na efetividade social do
mercado, as moedas sempre foram tratadas como se elas consistissem numa substância
imutável e sublime, em relação à qual o tempo não exerce nenhum poder e que se situa
num contraste antitético com qualquer material encontrado na natureza. A propósito:

O sujeito transcendental, esteio da rede de categorias a priori, confronta-se


com o fato inquietante de que depende, em sua própria gênese formal, de um
processo “patológico” intramundano – um escândalo, uma impossibilidade
absurda do ponto de vista transcendental, na medida em que o a priori
formal-transcendental é, por definição, independente de todos os conteúdos
positivos: um escândalo perfeitamente correspondente ao caráter escandaloso
do inconsciente freudiano, que também é intolerável do ponto de vista
transcendental-filosófico. Ou seja, se examinarmos de perto o status
ontológico do que Sohn-Rethel chama de “abstração real” [das reale
Abstraktion] (isto é, o ato de abstração que opera no próprio processo efetivo

108
da troca de mercadorias), verificaremos ser impressionante a homologia entre
seu status e o do inconsciente, dessa cadeia significante que persiste numa
“outra Cena”: a “abstração real” é o inconsciente do sujeito transcendental, o
suporte do conhecimento científico objetivo-universal (Zizek, 1996B, pp.
302-3).

Segundo Zizek (1996B), o problema de qual é o caráter material sui generis do


dinheiro não foi solucionado por Karl Marx. Aqui evidentemente não se trata da matéria
empírica de que o dinheiro é feito, mas do material sublime, daquele outro corpo
intocável e não degradável que persiste para além do corpo físico. Zizek observa o
seguinte a este respeito:

“Esse outro corpo do dinheiro é como o cadáver da vítima sádica, que suporta
todas as torturas e sobrevive com sua beleza imaculada. Essa corporalidade
imaterial do „corpo dentro do corpo‟ dá-nos uma definição precisa do objeto
sublime, e é somente nesse sentido que a idéia psicanalítica do dinheiro como
um objeto „pré-fálico‟, „anal‟, é aceitável – desde que não nos esqueçamos de
como essa existência postulada do corpo sublime depende da ordem
simbólica [da injunção do „Grande Outro‟]” (Zizek, 1996B, pp.303-304).

Ou seja a injunção de que a moeda deve servir como meio de troca e não como
objeto de uso está estampado no corpo da própria moeda. E a autoridade emitente
assegura a reposição plena do peso e da pureza metálica da moeda quando esta é
atingida pelo desgaste da circulação. “Sua matéria física tornou-se, visivelmente, mera
portadora de sua função social” (Sohn-Rethel, apud Zizek, 1996B, p.304).
A abstração da troca não tem nada a ver com as propriedades efetivas de um
objeto e, como tal, não se trata de uma “abstração do pensamento” que ocorre no
interior do sujeito pensante. A abstração pertinente ao ato de troca é irredutivelmente
exterior e descentrada. Ou seja: “A abstração da troca não é o pensamento, mas tem a
forma do pensamento” (Sohn-Rethel, apud Zizek, 1996B, p.304).
Segundo Zizek, a forma de pensamento apresenta um status ontológico que não
é o do pensamento porque é externa a ele, constituída por uma “Outra Cena”, mediante
a qual a forma já é externamente articulada de antemão. E essa forma, anterior e externa
ao pensamento, é, em suma, a ordem simbólica, que precisamente é “(...) uma ordem
formal desse tipo que suplementa e/ou rompe a relação dual da realidade factual externa
com a experiência interna” (Sohn-Rethel, apud Zizek, 1996B, p.304).
Portanto, a abstração da troca não pode ser concebida como um processo que
ocorre no campo do conhecimento por que a forma de pensamento que envolve a
abstração é anterior e externa ao pensamento, integrando a ordem simbólica.

109
A relação entre a efetividade social da troca de mercadorias e a consciência dela
envolve um paradoxo crucial que consiste no seguinte: o não-conhecimento da realidade
é parte da própria essência dessa relação. Ou seja, se viéssemos a „saber demais‟, a
ponto de ficarmos totalmente cientes do verdadeiro funcionamento da realidade social,
essa realidade se dissolveria.
Essa, provavelmente é a dimensão fundamental da „ideologia‟, pois a ideologia
não é simplesmente uma „falsa consciência‟, uma representação ilusória da realidade;
antes, é essa mesma realidade que já deve ser concebida como „ideológica‟.
Segundo Zizek (1996B, p.305-6):

“Ideológica” é uma realidade social cuja própria existência implica o não-


conhecimento dos participantes, ou seja, a efetividade social cuja própria
reprodução implica que os indivíduos “não sabem o que fazem”.
“Ideológica” não é a “falsa consciência” de um ser (social), mas esse próprio
ser, na medida em que ele é sustentado pela „falsa consciência‟.

Como Marx inventou o sintoma?

De modo semelhante, outra formação cuja consistência e funcionamento implica


um certo não-conhecimento por parte do sujeito é a dimensão do sintoma, pois o sujeito
somente pode gozar com o sintoma se a lógica deste lhe escapa. Tendo em conta isto,
Zizek (1996B) então se pergunta de como podemos definir o sintoma marxista?
A partir de uma perspectiva lacaniana, Marx “inventou o sintoma” mediante a
identificação de uma fissura, de uma assimetria, de um certo desequilíbrio patológico
que desmente o universalismo dos “direitos e deveres burgueses”. Longe de estabelecer
o anúncio de uma realização parcial e ainda inacabada dos direitos e deveres universais,
esse desequilíbrio funciona como o próprio momento constitutivo desse universalismo.
Ou seja, o sintoma, no sentido estrito, é um mecanismo particular que subverte seu
próprio fundamento universal. Como argumenta Zizek, a este respeito:

Esse processo implica, pois, uma certa lógica da exceção: todo Universal
ideológico – por exemplo, a liberdade, a igualdade – é “falso”, na medida em
que necessariamente inclui um caso específico que rompe sua unidade, que
expõe sua falsidade. A liberdade, por exemplo: é uma noção universal que
abrange várias espécies (liberdade de fala e de imprensa, de consciência, de
comércio, [civil] política, etc.), mas também, por uma necessidade estrutural,
uma liberdade específica (a de o trabalhador vender livremente sua força de
trabalho no mercado), que subverte essa noção universal. Ou seja, essa
liberdade é o próprio oposto da liberdade efetiva: ao vender “livremente” sua
força de trabalho, o trabalhador perde sua liberdade – o conteúdo real desse
livre ato de venda é a escravização do trabalhador ao capital. O aspecto

110
crucial é que essa liberdade paradoxal, a forma de seu oposto, é precisamente
o que fecha o círculo das “liberdades burguesas” (Zizek, 1996B, p.306).

O ideal do mercado capitalista que é a chamada “troca de equivalentes”,


apresenta uma lógica de exceção semelhante. A propósito, tão logo que prevalece a
produção para o mercado na sociedade, emerge de modo disseminado um novo tipo de
mercadoria que é a força de trabalho, como resultado da necessidade dos trabalhadores
de a venderem no mercado para a sua própria sobrevivência.
Porém, com essa nova mercadoria a troca de equivalentes torna-se uma negação,
por que a força de trabalho apresenta uma peculiaridade oculta, cujo uso produz a
“mais-valia”, um excedente que ultrapassa o valor contratado da força de trabalho e é
apropriado pelos capitalistas. Como observa Zizek (1996B, p.307) a este respeito:

Aqui temos, mais uma vez, um certo Universal ideológico (o da troca


eqüitativa de equivalentes) e uma troca paradoxal particular (a da forca de
trabalho por seus salários) que, precisamente como um equivalente, funciona
como a própria forma de exploração. O desenvolvimento “quantitativo” em
si, a universalização da produção de mercadorias, promove uma nova
“qualidade”, a emergência de uma nova mercadoria que representa a negação
interna do princípio universal da troca equivalente de mercadorias: em outras
palavras, ela acarreta um sintoma (...), [o ponto de exceção que funciona
como negação interna do princípio universal da troca equivalente de
mercadorias].

Aliás, é com base neste paradoxo que Marx tece uma acerbada crítica à noção
hegeliana da sociedade como uma totalidade racional, apontando o proletariado como o
ponto em que a Razão incorporada na sociedade moderna vigente nutre a sua desrazão.
Ainda no que se refere ao “fetichismo da mercadoria” cabe observar que apenas
em uma primeira aproximação ele é “uma relação social definida entre os homens, que
assume aos olhos deles a forma fantasiosa de uma relação entre coisas”. Em seu
funcionamento efetivo, o valor das mercadorias é uma insígnia de uma rede de relações
sociais que assume uma propriedade quase “natural” de outra coisa-mercadoria que é o
dinheiro. Desse modo, o aspecto central do “fetichismo da mercadoria” não consiste em
uma relação fantasiosa de coisas, mas antes, numa determinada inconsciência
(desconhecimento) da relação entre um elemento particular e uma rede estruturada de
elementos da qual ela é seu elemento paradoxal de articulação. “Aquilo que é realmente
um efeito estrutural, um efeito da rede de relações entre os elementos, aparece como
uma propriedade imediata de um dos elementos, como se essa propriedade também lhe
pertencesse fora de sua relação com os outros elementos” (Zizek, 1996B, p.308).

111
Em sua argumentação sobre o “fetichismo da mercadoria”, Marx observa uma
homologia entre uma mercadoria A e outra mercadoria B, sendo esta somente um
equivalente na medida em que A se relaciona com B “como sendo a “forma da
aparência” de seu próprio valor, somente dentro dessa relação. Zizek emenda a seguinte
observação, introduzindo uma maior complexidade para esta linha de argumentação:

Mas a aparência – e nisso consiste o efeito de inversão que é característica do


fetichismo –, a aparência é exatamente oposta: Aparece relacionar-se com B
como se, para B, ser um equivalente de A não correspondesse a ser uma
“determinação reflexiva” (Marx) de A – ou seja, como se B já fosse, em si
mesmo, equivalente a A; a propriedade de ser “equivalente” parece pertencer-
lhe até mesmo fora de sua relação com A, no mesmo nível de suas outras
propriedades efetivas “naturais” que constituem seu valor de uso (Zizek,
1996B, p.309).

A teoria lacaniana do estádio do espelho apresenta uma forma de elaboração


semelhante. Somente na medida em que outro ser humano oferece a imagem de unidade
ao eu (moi), ou seja, somente quando o eu se refletir num outro é que ele pode chegar à
sua auto-identidade, de modo que a identidade e a alienação são estritamente correlatas.
Retomando aqui a análise do pensamento de Marx, cabe estabelecer uma
ponderação mais clara sobre a sua descoberta da dimensão do sintoma. A relação
Senhor e Escravo, dominante no contexto das relações servis de dominação, passou por
um determinado tipo de deslocamento no capitalismo. A desfetichização das relações
entre os homens ocorreu como se sua efetivação devesse que ser paga com o fetichismo
nas “relações entre as coisas”. Desse modo, desapareceu a transparência imediata das
relações sociais mais cruciais, as de produção. Assim, o lugar do fetichismo apenas se
desloca das relações intersubjetivas e interpessoais para as relações entre mercadorias,
enfim entre os produtos do trabalho. Então, é na maneira como Marx abordou a
passagem do feudalismo para o capitalismo é que ocorre a descoberta do sintoma. A
propósito como argumenta Zizek (1996B, p.310):

Com o estabelecimento da sociedade burguesa, as relações de dominação e


servidão são recalcadas: formalmente, parecemos estar lidando apenas com
sujeitos livres, cujas relações interpessoais estão isentas de qualquer
fetichismo; a verdade recalcada – a da persistência da dominação e da
servidão – emerge num sintoma que subverte a aparência ideológica de
igualdade, liberdade e assim por diante. Esse sintoma, o ponto de emergência
da verdade sobre as relações sociais, são precisamente as “relações sociais
entre as coisas”: “Em vez de aparecer em quaisquer circunstâncias como suas
próprias relações [intersubjetivas], as relações sociais entre os indivíduos
disfarçam-se sob a forma de relações sociais entre as coisas” – aí temos uma
definição precisa do sintoma histérico, da “histeria de conversão” que é
própria do capitalismo.

112
Como a razão cínica deixa intacto o nível fundamental da fantasia ideológica, o
nível em que a ideologia estrutura a própria realidade social

Em sua obra “Crítica da Razão Cínica”, Peter Sloterdijk estabelece a observação


de que o modo dominante de funcionamento da ideologia é cínico, o que tornaria
impossível o clássico método crítico-ideológico. Porém, para Zizek (1996B, p.313):

O sujeito cínico tem perfeita ciência da distância entre a máscara ideológica e


a realidade social, mas, apesar disso, continua a insistir na máscara. A
fórmula, portanto, tal como proposta por Sloterdijk, seria: “eles sabem muito
bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem” [e não a fórmula de
Marx em o Capital: “disso eles não sabem, mas o fazem”]. A razão cínica já
não é ingênua, mas é o paradoxo de uma falsa consciência esclarecida: sabe-
se muito bem da falsidade, tem-se plena ciência de um determinado interesse
oculto por trás de uma universalidade ideológica, mas, ainda assim, não se
renuncia a ela.

Ou seja, o cinismo reconhece e leva em conta o interesse particular que


acompanha a universalidade ideológica, mas mesmo assim ainda encontra justificativas
para conservar a máscara. Portanto, frente à razão cínica já não funciona mais submeter
o texto ideológico a uma leitura ancorada na dimensão do sintoma, pois suas lacunas
desconhecidas já estão conscientes por uma falsa consciência esclarecida, de modo que
não se estabelece mais um confronto com o que ele tem de reprimir para se organizar,
para preservar sua coerência – a razão cínica leva antecipadamente em conta essa
distância, de modo que a própria mentira é vivenciada como verdade.
Contudo, é preciso estabelecer uma distinção entre o sintoma e a dimensão da
fantasia, pois a versão da sociedade pós-ideológica é apressada em demasia em suas
conclusões: “A razão cínica, com todo o seu desprendimento irônico, deixa intacto o
nível fundamental da fantasia ideológica, o nível em que a ideologia estrutura a própria
realidade social” (Zizek, 1996B, p.314).
Desse modo, segundo Zizek (1996B), o clássico caso marxista do “fetichismo da
mercadoria”, mais uma vez é um interessante modelo de análise. Neste caso o dinheiro é
apenas uma incorporação, uma condensação, uma materialização de uma rede de
relações sociais, de modo que o fato de ele funcionar como equivalente universal no
palco de troca de todas as mercadorias é ocasionado por sua posição na trama das
relações sociais. Mas, a função de ser a encarnação da riqueza aparece aos olhos dos
participantes do mercado como se o dinheiro em si, em sua materialidade imediata, já
incorporasse naturalmente a riqueza. Entretanto, temos que considerar que a distorção é

113
constituída no próprio fazer da realidade social. O equívoco da formulação marxista é
que ela ignora uma ilusão, uma distorção que já está em funcionamento na própria
dinâmica da realidade social, no plano do que os indivíduos fazem e não do que pensam
ou sabem estar fazendo:

O problema é que, em sua atividade social, naquilo que fazem, eles agem
como se o dinheiro, em sua realidade material, fosse uma encarnação
imediata da riqueza como tal. Eles são fetichistas na prática e não na teoria. O
que “não sabem”, o que desconhecem, é o fato de que, em sua própria
realidade social, em sua atividade social – no ato de troca de mercadorias –,
estão sendo guiados pela ilusão fetichista (Zizek, 1996B, p.315).

Portanto, é preciso encontrar uma nova maneira de ler a fórmula marxista “disso
eles não sabem, mas o fazem”. É preciso dar-se conta de que a ilusão está em primeiro
lugar do lado da própria realidade, do que as pessoas fazem. Assim, o que as pessoas
desconhecem é a ilusão que estrutura sua atividade social, de modo que sabem muito
bem como as coisas realmente são e funcionam, mas continuam a agir como se disso
não soubessem. “A ilusão, portanto, é dupla: consiste em passar por cima da ilusão que
estrutura nossa relação real e efetiva com a realidade. E essa ilusão desconsiderada e
inconsciente é o que se pode chamar de fantasia ideológica” (Zizek, 1996B, p.316).
Esta é uma fantasia inconsciente que estrutura nossa própria realidade social. É
tendo presente esta dimensão que se pode dizer que a distância cínica é apenas um
modo de permanecer cego para o poder estruturador da fantasia ideológica: mesmo que
mantenhamos uma distância irônica ou sarcástica, mesmo que não levemos a sério as
coisas, mesmo que saibamos que em nossa atividade estamos seguindo uma ilusão,
continuaremos a fazê-la da mesma forma. Se a ilusão estivesse simplesmente pelo lado
do saber a postura cínica seria realmente pós-ideológica, sem ilusões, mas como o lugar
da ilusão está na realidade do próprio fazer mediante o poder estruturador da fantasia
ideológica inconsciente, o processo ideológico se mantém sutilmente vivo. Assim, por
exemplo, as pessoas sabem que sua idéia de Liberdade mascara uma forma particular de
exploração [do trabalho], mas, mesmo assim, continuam a seguir essa idéia de
Liberdade, movidos que são por uma fantasia ideológica inconsciente (Zizek, 1996B).
Por outro lado, cabe aqui ainda ressaltar a objetividade da crença e o poder
subversivo da abordagem de Marx que está na maneira como ele estabelece a oposição
entre as pessoas e as coisas. A propósito, como observa Zizek (1996B, p.317):

114
O sentido da análise de Marx é que as próprias coisas (mercadorias)
acreditam em lugar dos sujeitos: é como se todas as suas crenças,
superstições e mistificações metafísicas, supostamente superadas pela
personalidade racional e utilitarista, se encarnassem nas “relações sociais
entre as coisas”. Os sujeitos já não acreditam, mas as coisas acreditam por
eles.

O ritual ideológico dos gestos repetidos, a crença, a fantasia ideológica e a rede


simbólica intersubjetiva alienante

De maneira muito singular, segundo Zizek (1996B), foi Blaise Pascal quem já
formulou a argumentação de que tão logo se perde a crença a própria configuração do
campo social se desintegra. Desse modo, Pascal antecipou a própria definição lacaniana
do inconsciente como o autômato, a letra morta do significante sem sentido e sem
significado, que inconscientemente leva a mente consigo. Assim, a absurda “máquina”
externa, o automatismo do significante inconsciente, ou seja, a rede simbólica
intersubjetiva alienante em que os sujeitos são apanhados, antes de qualquer convicção
e escolha, imprime um forte condicionamento à interioridade de nosso raciocínio. Por
isso não devemos alimentar enganos e ilusões a respeito de nós mesmos: “Somos tanto
autômato quanto mente (...). As provas convencem apenas a mente; o hábito fornece as
provas mais sólidas, e aquelas em que mais se acredita. [O hábito] dobra o autômato,
que inconscientemente leva a mente consigo” (Pascal, apud Zizek, 1996B, p.318).
A resposta incisiva de Pascal para aquele que tem dificuldades para crer consiste
em sugerir-lhe que se submeta de corpo e alma ao ritual ideológico e deixe de lado a
argumentação racional: “Entorpeça-se repetindo os gestos sem sentido, [faça a
genuflexão e o sinal da cruz, seguindo o costume], aja como se já acreditasse [sem
explicações], e a crença virá por si só” (Pascal, apud Zizek, 1996B, p.320).
Dentro desta perspectiva a Lei é sem sentido em seu modo constitutivo, mas a
sua estrutura inconsciente diz que devemos obedecer a ela, não porque seja justa, sábia
benevolente e civilizadora, mas simplesmente porque ela é a lei, residindo o fundamento
último de sua autoridade em seu processo de enunciação inconsciente: “O costume é a
eqüidade inteira, pela simples razão de que é aceito. É essa a base mística de sua
autoridade. Qualquer um que tente levá-lo de volta a seu princípio original o destruirá”
(Pascal, apud Zizek, 1996B, p.318).
Como observa Zizek (1992), a posição de Pascoal não é equiparável a qualquer
proto-behaviorismo, pois a mensagem mais profunda da diretiva pascalina é que no
momento em que os indivíduos passam a acreditar através das práticas da oração, da

115
genuflexão e do sinal da cruz, eles também verão retrospectivamente que o ato de orar e
de ajoelhar-se foi conseqüência do fato de que eles já acreditavam de alguma forma,
sem que eles soubessem ou tivessem consciência disso. Sob o prisma pascalino,
estabelece-se, portanto, não apenas a importância do conhecimento e da materialidade
das instituições, mas também a relevância da “interioridade” e da prática na constituição
da crença política por si só.
As práticas da crença sob a forma de rituais e costumes, no entanto, só são
efetivas em termos de consolidação da crença, porque um processo de transferência
inconsciente garante a repetição do círculo vicioso da crença.
Argumentando de modo ainda mais preciso a este respeito, Zizek observa:

O que [é recalcado] “(...) não é a origem obscura da Lei, mas o próprio fato
de que a Lei não tem que ser aceita como verdadeira, mas apenas como
necessária – o fato de que sua autoridade é desprovida de verdade. A ilusão
estrutural necessária que move as pessoas a acreditarem que a verdade pode
ser encontrada nas leis descreve, precisamente o mecanismo da transferência
que é a suposição de uma Verdade, de um sentido por trás da realidade
estúpida, traumática e incoerente da Lei. A “transferência” é o nome do
círculo vicioso da crença: as razões por que devemos acreditar só são
persuasivas para os que já acreditam (Zizek, 1996B, p.319-320).

As explicações racionais que ajudam a consolidar as crenças e a obediência aos


mandamentos religiosos só se apresentam para aqueles que já acreditam, de modo que
as razões somente confirmam a crença porque ela já é anteriormente vivenciada e
praticada. Como argumenta Zizek (1996B, p. 319):

A obediência “externa” à Lei, portanto, não é a submissão à pressão externa,


à chamada “força bruta” não ideológica, mas sim a obediência ao
Mandamento na medida em que ele é (...) não compreendido (...) e conserva
um caráter “traumático”, “irracional”: longe de esconder sua autoridade
plena, esse caráter traumático e não integrado da Lei é uma condição positiva
dela. É esse o aspecto fundamental do conceito analítico de supereu: uma
injunção vivenciada como traumática e “absurda” – isto é, que não pode ser
integrada no universo simbólico do sujeito. Mas, para que a Lei funcione
“normalmente”, esse fato traumático de que “o costume é a eqüidade inteira,
pela simples razão de que é aceito” – [que coloca] a dependência da Lei em
relação a seu processo de enunciação [inconsciente], ou, [aponta] (...) seu
caráter radicalmente contingente – deve ser recalcado no inconsciente,
através da experiência ideológica imaginária do “sentido” da Lei, de sua
fundamentação na Justiça, na Verdade.

O caráter externo da máquina simbólica que funciona como um verdadeiro


automatismo significante, como uma aparelhagem maquinal estatal e social, é ao
mesmo tempo o lugar em que o destino de nossas crenças mais sinceras e “íntimas”, é
encenado e decidido de antemão. Quando nos sujeitamos à máquina ou ao aparelho do
116
ritual religioso, por exemplo, de antemão, sem o saber, já acreditamos nas crenças em
jogo. Nossa crença já se materializa no ritual externo inconscientemente, e é
precisamente desde o caráter externo da máquina simbólica que é possível explicar o
status do inconsciente como sendo radicalmente externo – o de uma letra morta. Como
observa Zizek (1996B, p.321): “A crença é uma questão de obediência à letra morta e
não compreendida. Esse curto circuito entre a crença íntima e a „máquina‟ externa
constitui o núcleo mais subversivo da teologia pascalina”.
Na versão pascalina, a máquina simbólica, o automatismo significante, ou o que
seria o “Aparelho ideológico de Estado (Althusser) em uma versão mais moderna,
comporta um vínculo com a interpelação ideológica em Pascal, que permite a
internalização subjetiva do automatismo maquinal, produzindo o efeito da crença
ideológica numa Causa e o efeito de interligação da subjetivação, do reconhecimento da
posição ideológica que cada um ocupa. A propósito, na linha da reflexão pascalina (e
não na versão de Althusser, que não conseguiu discernir adequadamente o vínculo entre
os Aparelhos ideológicos de Estado e a interpelação ideológica, visto que também não
discerniu o que é constitutivo da lacuna entre o Aparelho ideológico e sua
internalização): “Essa „máquina‟ externa dos Aparelhos ideológicos de Estado só exerce
sua força na medida em que é vivenciada, na economia inconsciente do sujeito, como
uma injunção traumática e sem sentido [sem significado]” (Zizek, 1996B, p.321).
A internalização da máquina simbólica, que ocorre por uma necessidade
estrutural, nunca será coroada de pleno êxito, como nos ensina Pascal, pois sempre se
mantém “um resíduo, um resto, uma mancha de irracionalidade e um absurdo
traumático” que se agarra a essa internalização: “Esse resto [espectral], longe de
prejudicar a plena submissão do sujeito à ordem ideológica, é a própria condição dela: é
precisamente esse excedente não integrado de trauma (...) que confere à Lei sua
autoridade incondicional (Zizek, 1996B, p.321).
O sujeito barrado lacaniano ($), antes de ser capturado por uma interpelação e
antes de ser captado na identificação, no reconhecimento/desconhecimento simbólico –
que possibilite a identificação subjetiva com uma grande Causa em correspondência
com o chamamento do “Outro” lacaniano –, ele é captado pelo Outro (a máquina
significante) através de um paradoxal objeto-causa do desejo em meio a isso, (o objeto
pequeno a, para sempre perdido), mediante o segredo supostamente oculto no Outro:
$◊a – a fórmula lacaniana da fantasia. Isso também significa que de acordo com a
concepção fundamental de Lacan, existe a possibilidade de o sujeito adquirir alguns

117
conteúdos, algum tipo de consistência positiva, fora do “Grande Outro” – fora da rede
simbólica intersubjetiva alienante. Essa outra possibilidade é a oferecida pela fantasia,
equacionando o sujeito com um objeto da fantasia. Outro aspecto a ser considerado aqui
é que a fantasia ideológica é uma função que envolve tanto o Imaginário como o Real.
O “Real imaginário” é algo insondável que permeia as coisas com um pedaço do
sublime (Cf. Zizek, 1996B, p.321-322).
A propósito, o Imaginário encontra-se situado ao nível da relação do sujeito
consigo mesmo. É como o olhar do Outro na fase do espelho. Manifesta-se aí uma falta
nesse reconhecimento ilusório de si mesmo. Ademais, cabe considerar que o Imaginário
é a fantasia fundamental que é inacessível à nossa experiência por ser aquela fantasia
que se eleva do espectro fantasmático em que encontramos objetos de desejo. Enfim, o
Imaginário e a fantasia a partir dele projetada nunca podem ser agarrados, porque todo
discurso sobre eles sempre estará localizado no Simbólico.
Por outro lado, aquilo que é chamado de “realidade” também é articulado através
da significação (o Simbólico) e da padronização característica das imagens (o
Imaginário). O que diferencia estes dois registros, visto que ambos funcionam dentro da
ordem da significação, é que, enquanto o primeiro, o Simbólico, é aberto em princípio,
o segundo, o Imaginário, procura domesticar o Simbólico, prendendo-o em torno de
certas fantasias e impondo uma paisagem fantasística peculiar, com seu específico
cunho ideológico, a cada indivíduo.
Por fim cabe ainda destacar que Zizek, distingue entre o Real real (que seria a
Coisa horrenda, a cabeça de medusa, o abismo e a monstruosidade), o Real simbólico
(que seriam, por exemplo, as fórmulas da física quântica não traduzíveis no horizonte da
significação, mas que simplesmente funcionam na abordagem científica) e o Real
imaginário, que designa não a ilusão do Real, mas o Real da própria ilusão. Trata-se
neste último caso não de um Real implacável, mas de um Real frágil que apresenta um
traço elusivo traumático, trágico ou místico totalmente insubstancial, mas que
incomoda, por ser o ponto do Real no Outro. Enfim, nestas três formas de manifestação
do Real: “A questão não é que o Real seja impossível, mas que o impossível é Real”
(Zizek, 2006, p.87-89).

118
Para concluir: ato político e educacional para a emancipação em Slavoj Zizek

Segundo Zizek, o ato político – e em conseqüência, também o ato educativo com


vistas à emancipação – somente pode ocorrer quando o pensamento e a ação do sujeito
se desprendem das coordenadas da rede simbólica alienante, e se atam à atividade
coletiva, traduzindo-se em uma ação educativa e política soberana, sem fixação
institucional imediata às imposições do “status quo” e solto das exigências pragmáticas
de adaptação às diretrizes do poder constituído, as quais tendem a travar a emergência e
a potência de uma linguagem, de um discurso e de uma práxis efetivamente de
emancipação. Assim, o ato político-pedagógico crítico instaura sua própria legalidade,
suspendendo a Lei do poder opressor imperante, abrindo espaços para a criatividade e a
instauração de um processo de emancipação econômico-social, cultural e política.
Esta leitura de Zizek a respeito do ato político (com sua conseqüência
educacional) se apóia sobre a negatividade hegeliano-lacaniana que, a princípio, não
encarna nenhuma substância positiva inicial. Ela, parte, antes da irredutibilidade
negativa do inconsciente que no sujeito se define por resistir aos processos de
identidade e de auto-reflexão. Ou seja, sob este prisma, o sujeito denota uma partícula
de liberdade, que é intrinsecamente política e pedagógica, se encontrando em uma
situação sempre aberta de não adequação plena a seus papéis e identificações sociais.
Sob esta perspectiva é que a negatividade na forma de uma universalidade não
substancial e de não-adequação pode contrapor-se à falsidade da universalização da
política da identidade, veiculada inclusive pelas instituições educacionais adequadas à
ideologia do Capital e ao seu componente político de estabilização. Ou seja: “O ato
político [e educacional] por excelência é justamente a suspensão desse universal
simbólico que nos é dado pelo Capital” (Cherobini, 2007, p.2).
Na linha desta mesma direção argumentativa, ainda no que se refere ao conceito
de ato político [e, em conseqüência, também pedagógico] de Zizek, cabe observar que o
autor não sacraliza o ato em si, ao colocar importância redobrada ao “dia seguinte”, a
maneira como o ato rearticula o quadro de mudança crítica, pois o ato apenas como
ruptura, ou seja, “o ato sem depois”, representaria simplesmente uma pura negatividade
(estéril), não positivada. Para Zizek, trata-se do gesto negativo de criar espaços vazios
como condição de um ato positivo; trata-se, também, sob este prisma, da relação entre
pulsão de morte e sublimação. Em outras palavras, “(...) trata-se da negatividade da
pulsão de morte como condição da sublimação positiva” (Zizek, 2011, p.309).

119
Desse modo, o ato político se reveste de uma verdadeiramente autêntica
radicalidade pedagógica, pois não se trata de uma atividade falsa de impotência política
que se restringe em de fato apenas reproduzir a constelação sócio-simbólica do
capitalismo global existente. E, sob este prisma, todo ato político e pedagógico radical
se localiza além de toda a sua condicionalidade, ou seja, ele é incondicional. Assim, não
se trata de um “ato incondicional” situado fora da história e fora do simbólico, mas
simplesmente de um ato surpreendente que é irredutível ao parâmetro e à moldura das
condições opressivas dadas. Como destaca Zizek (2011, p.311):

Este ato não só está enraizado em suas condições contingentes, como são
essas mesmas condições que fazem dele um ato: o mesmo gesto, realizado
num momento errado – cedo ou tarde demais –, [deixa de ser, ou] não é mais
um ato. Aqui o paradoxo propriamente dialético é que aquilo que torna o ato
“incondicional” é sua própria contingência: se o ato foi necessário, isso
significa que foi totalmente determinado pelas condições, e pode ser
deduzido a partir delas (como versão ótima a que se chegou pelo raciocínio
estratégico, (...). O vínculo entre a situação e o ato político [e pedagógico],
portanto, é claro: longe de determinado pela situação (ou de intervir nela a
partir de um exterior misterioso), os atos são possíveis em razão do não
fechamento ontológico, da incoerência, das lacunas de uma situação.

Para Zizek (2011), o capitalismo contemporâneo está atado de forma abstrata ao


chamado mercado financeiro com seus fetiches que funciona como acelerador pulsional,
fictício e virtual da concentração e centralização capitalista, regulando nestes termos a
vida social, com as trocas humanas produtoras de riqueza material e humana deixando
de ser cada vez mais o centro dinamizador das relações sociais. Dentro desta moldura
perversa de funcionamento do sistema, os desígnios do capital financeiro não podem ser
contrariados. E como a crise do capitalismo tornou-se aguda e permanente, impõem-se
crescentes sacrifícios à grande maioria da população, com cortes drásticos sendo
aplicados em termos de benefícios sociais, de empregos, salários e recursos destinados à
saúde e à educação. O hedonismo consumista presente no capitalismo contemporâneo se
insere em um processo de reprodução das relações sociais que não apenas se ancora na
exploração da força de trabalho visando a extração da mais-valia, mas, ademais se
alimenta de um mais-gozar decorrente do imperativo de gozo obsceno superegóico que
prende a intimidade subjetiva das pessoas à versão imaginária do desejo do “grande
Outro”, ou seja, ao fetichismo da mercadoria como imagem.
Nestes termos nos aproximamos de tempos cada vez mais chocantes e nervosos,
mas com os anestesiados cidadãos consumidores das mercadorias como imagem se

120
portando como verdadeiros sonhadores, na perspectiva freudiana do sonhador
permanentemente em fuga do encontro com a realidade traumática, de modo a pensar
que as coisas podem continuar indefinidamente da mesma forma. Nas condições de
crescente crise sistêmica do capitalismo, somos violentamente pressionados a despertar
de um sonho noturno e diurno que está se transformando em pesadelo (Zizek, 2011).
O capitalismo globalizado contemporâneo, e junto com ele o formato de sua
ideologia e de sua educação sistêmica, anestesiam, paralisam e despolitizam as pessoas
para que elas não abracem um projeto político de sociedade que enalteça a importância
dos bens públicos e sociais coletivos e o espaço público aberto à participação efetiva do
conjunto da população, principalmente dos trabalhadores comuns e dos marginalizados
sociais. Sob este prisma, nas atuais condições de sua alienação e impotência política, as
pessoas antes são capazes de imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
Nos moldes da ideologia cínica atual as pessoas são pouco suscetíveis a crenças
e utopias sociais visualizadoras de um mundo melhor. Ao contrário, preferem ficar
imobilizados em termos da crença nos “outros supostos crer e saber”: as autoridades
políticas, econômico-administrativas, o mercado financeiro e as informações filtradas e
manipuladas da mídia, que acreditam crer e saber por elas. (Zizek, 2010).
A propósito, a democracia, os veículos de comunicação e a educação oficial
aparecem completamente subsumidos às pressões e às razões do mercado, mesmo que
estejamos testemunhando, hoje, que a rota frenética do sistema, com seus crescentes
sintomas sociais patológicos, está se aproximando de um caminho acelerado de
autodestruição. E, desse modo, uma educação com uma perspectiva de emancipação não
pode ficar neutra e alheia a uma ação política que aponte para a ruptura radical com as
coordenadas opressivas inerentes ao funcionamento do sistema capitalismo em crise.
Para finalizar, cabe observar que o ato político e pedagógico de ruptura heróica,
corajoso e alternativo ao “status quo” também só é possível porque de acordo com a
leitura lacaniano-hegeliana de Zizek (1996B, p.324): “Existe uma possibilidade de o
sujeito obter alguns conteúdos, algum tipo de consistência positiva, fora do „grande
Outro‟, fora da rede simbólica intersubjetiva alienante. Essa outra possibilidade é a
oferecida pela fantasia, equacionando o sujeito com um objeto da fantasia”.
Ou seja, o sujeito adquire suas características particulares não apenas por um
mandato simbólico que lhe é imposto por uma rede de relações intersubjetivas da qual
ele faz parte – porque se assim fosse, o sujeito não passaria de um mero vácuo, um
espaço vazio a ser totalmente preenchido pelo conteúdo do “grande Outro” e pelos

121
“pequenos outros”, o que resultaria em uma alienação radical e inexorável do sujeito.
Assim, a espinha dorsal da “realidade de fantasia” do sujeito de alguma forma mantém
uma conexão com o “Real” do desejo do sujeito, dando uma consistência positiva a ele
fora da rede simbólica alienante, assim também abrindo brechas para a emergência de
atos políticos e pedagógicos de liberdade e de superação das cristalizadas formas de
alienação subjetiva e intersubjetiva, enfim de emancipação individual e coletiva, no
plano social, político e cultural.

Referências

CHEROBINI, Demétrio. Internet e possibilidades de emancipação: uma reflexão a


partir do pensamento de Slavoj Zizek (Texto escrito e apresentado na DCG: Novas
Tecnologias e Cibercultura – Julho de 2007).
http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/demetrio.html

ZIZEK, Slavoj. Em Defesa das Causas Perdidas, São Paulo, Boitempo, 2011.

ZIZEK, Slavoj. Como Ler Lacan, Rio de Janeiro, Zahar, 2010.

ZIZEK, Slavoj. A Visão em Paralaxe, São Paulo, Boitempo, 2008.

ZIZEK, Slavoj. “Introdução: O espectro da ideologia”. In: Theodor Adorno [et. al.],
ZIZEK, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia, RJ, Contraponto, 1996A, pp.7-38.

ZIZEK, Slavoj. “Como Marx inventou o sintoma?”. In: Theodor Adorno [et. al.],
ZIZEK, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia, RJ, Contraponto, 1996B, pp.297-331.

ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.

ZIZEK, Slavoj & DALY, Glyn. Arriscar o Impossível: conversas com Zizek, São Paulo,
Martins Fontes, 2006.

122
Reflexões sobre a Sociedade Tecnicamente Administrada (Capitalista)
e suas Correlações com a Educação em Adorno

Pedro Rogério Sousa da Silva*

Questões de Filosofia da Educação em Adorno

No presente estudo, tem-se como objetivo geral analisar criticamente, a partir da


leitura de importantes obras do filósofo alemão Theodor W. Adorno, algumas questões
relacionadas à sociedade tecnicamente administrada (capitalista) e à educação nela
desenvolvida. Outro foco analítico consiste na abordagem dos mais importantes
instrumentos de dominação utilizados nesta sociedade, procurando destrinchar seus
fundamentos e alinhavar algumas de suas consequências deletérias para a formação
cultural do ser humano.
Primeiramente, no que diz respeito ao âmbito educacional, faz-se necessário
esclarecer que Adorno não foi um pensador de formação pedagógica. Mesmo assim,
apresentou algumas conferências e entrevistas que foram de grande relevância à
educação, tais como: Educação após Auschwitz; Educação contra a barbárie;
Educação para a autonomia; e Tabus a respeito do professor. Ainda no que tange a
essa questão, entende-se ser significativo apontar que a maior parte dos escritos de
Adorno se afigura de caráter mais ensaístico do que sistemático, embora sua crítica
filosófica seja sistemática e ele também tenha desenvolvido diversas obras de cunho
sistemático, tais como Dialética Negativa e Dialética do Esclarecimento, este último
em conjunto com Max Horkheimer.
Sua filosofia não se limita a um método, diferenciando-se radicalmente das
abordagens hegemônicas, meramente tecnicistas e positivistas, que se instalaram na
modernidade e em suas teorias herdeiras contemporâneas. Em seus ensaios, Adorno não
compartilha certas normas que se configuram como jogo científico. “Este jogo sempre
configurou ― como diria Spinoza ― o ordenamento das coisas com o mesmo
*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Faced - UFC, bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), desenvolvendo Dissertação no
âmbito da linha de pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação (Filos), orientado pelo Prof. Dr. Hildemar
Luiz Rech.

123
significado das ideias, embora a ordem sem lacunas dos conceitos não se torne jamais
idêntica ao ente” (ADORNO, 1994, p.174).
O ensaio e a própria construção filosófica de Adorno não visam alcançar uma
edificação fechada, dedutiva, como pensava Descartes, ou indutiva como pensara
Bacon. Todavia, trata-se de uma constelação conceitual que se inicia com uma oposição
ao idealismo que se fixou a partir da filosofia de Platão. Para este, o que podia ser
mudado, isto é, o transitório, não era merecedor de crédito para a filosofia. E, portanto,
não poderia fazer parte dela. “Em contraposição, o efeito do modo de Adorno de opor-
se radicalmente ao idealismo advoga em favor do efêmero, por não aceitar essa antiga
iniquidade platônica de anulação do contingente, encontrando-se o motivo novamente
atrelado ao plano conceitual” (ADORNO, 1994, p.175).
A réplica contra isso é que, para Adorno, o fragmentário e o acidental são
decisivos para uma compreensão adequada da realidade e indispensáveis para uma
projeção não petrificada da relação sujeito e objeto. Entretanto, o ensaio e, mesmo, os
aspectos sistemáticos de sua filosofia não procuram captar uma verdade ― sobre as
coisas, os eventos, os objetos, as ações, bem como o mundo e o universo ― que tenha
validade para todos e para todos os tempos. Grosso modo, o autor sempre se mantém
atento ao paradoxal, ao ambíguo e ao transitório na dança ziguezagueante e entrelaçada
dos conceitos com a realidade. E as contingências, deficiências e lacunas, que marcam o
cerne desta relação, respaldam as atitudes atentas ao conceito de não-identidade, tão
caro à dialética negativa de sua filosofia e de seu próprio modo de pensar, sempre
independente de todas as formas cristalizadas e fechadas de captura da verdade
(ADORNO, 1994, p.175-176).
Quanto à formação de Adorno, constata-se que este teve uma educação de
“qualidade”, tendo desenvolvido inúmeras atividades, mais especificamente aquelas de
caráter artístico-cultural. Em termos do seu trajeto pessoal, cabe observar que Adorno
nasceu na cidade de Frankfurt, na Alemanha, em 1903. Seu pai era Oskar Wiesengrund,
um judeu alemão convertido e comerciante de vinhos. Já sua mãe era Maria Calvelli-
Adorno, uma musicista92 de renome (cantora profissional), oriunda de uma tradicional
família católica de Gênova, na Itália.

92
Não podemos deixar de mencionar outra musicista que contribuiu para a densidade estético-filosófica
de Adorno, sua tia Agathe Adorno, uma pianista talentosa (COHN, 1986, p. 8).

124
Para muitos estudiosos, o frankfurtiano era satisfeito por nascer em um ambiente
familiar repleto de cultura ― refinada e erudita. Isso porque pôde, nesta mesma
instituição educacional, a família realizar com facilidade atividades ligadas ao gênero
artístico. É nesse âmbito que surgem os primeiros contatos de Adorno com a arte, com
forte presença do aspecto musical. Porém, não se pode esquecer que também fizeram
parte de sua educação temas problemáticos de ordem histórica e religiosa, assim como a
política e a economia.
Além de filósofo, Adorno dedicou-se a estudar composição e piano em Viena, na
Áustria. Chegou a ser aluno de um célebre artista vienense, Alban Berg (1885-1935),
um músico com grande refinamento no modo de compor, que propôs uma reviravolta
no aparato musical do século XX. Em companhia do mesmo colaborou com a
veiculação da revista Anbruch e ajudou a publicar matérias que abordavam as questões
da música de vanguarda de seu tempo. Mais tarde, Adorno passou a direcionar-se aos
estudos das técnicas de composições de Arnold Schönberg. Tais técnicas referiam-se
aos aspectos atonais do modo de compor, que despertaram certa admiração no filósofo.
Entretanto, a diferente maneira de compor, isto é, o serialismo da escala de doze tons,
fez Adorno romper com o trabalho musical schonberguiano. A propósito, Zuin faz a
seguinte ponderação, enfatizando que o pensamento musical de Adorno estava
mencionando:

antes a dimensão cognitiva que a dimensão expressionista da música. (...) não


interpretava a tonalidade expressionista como produto da subjetividade
emocional [do músico vienense]. Dessa maneira, o filósofo alemão
compreendia que como desenvolvimento de tendências objetivamente
imanentes na própria música, tendências essas que, de formas complicadas e
indiretas poderiam levar a vínculos de tendências sociais (ZUIN, 2008, p.
24). [Grifos meus].

Nesse sentido, essa temática constitui um problema importante no pensamento de


Adorno. Isto porque ele põe o aspecto estético-artístico em destaque. De acordo com
ele, a estética deveria estar no mesmo patamar da filosofia. Desta forma, vai criticar
dois importantes e grandes autores da história da filosofia: Kierkergaard e Hegel. O
primeiro autor, por colocar a estética no plano do irracionalismo e da submissão ética e
religiosa. Já o segundo, por ter colocado a estética em um plano inferior à religião e à
filosofia.
Como se percebe, Adorno confronta-se com essas formas de pensamento,
modificando a hierarquia no que diz respeito ao valor da estética. Sua primazia artística

125
coloca-se como possibilidade de um pensamento criativo e inovador, pois pretende
abordar o entrelaçamento da filosofia com a arte. “Há um estudo em que Adorno
compara o desenvolvimento do conceito na lógica hegeliana com o desenvolvimento
composicional da música de Beethoven” (BUCK-MORSS, 1981 apud ZUIN; PUCCI;
RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2008, p. 269).
Com seu modo distinto de pensar, Adorno consegue fazer um elo entre duas
atividades tão diversas: a música e a filosofia. Sabe-se que ele trabalhou com essa
relação em seus estudos filosóficos e sociológicos ou, ainda, em suas contribuições
estritamente ligadas ao campo estético-artístico. Mas foi como professor em uma
universidade alemã que ele pôde expressar melhor tal entrelaçamento. Junto com Max
Horkheimer, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm, entre outros
pensadores, fez parte do Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisas Sociais), ou
seja, do movimento sócio-filosófico iniciado na Alemanha nos anos de 1920, que, mais
tarde, após a Segunda Guerra Mundial, recebeu algumas alterações, sendo a principal
delas a mudança de nome para Escola de Frankfurt.
A propósito, cabe mencionar que esse movimento não se consolidou como uma
seita ou uma entidade religiosa evangelizadora ― nem mesmo como escola, no sentido
estrito da palavra ―, mas como resultado de um grupo de estudos marxistas que teve
como uma de suas propostas a expansão dos estudos do marxismo, concentrando-se
principalmente nos conceitos de ideologia, fetichismo da mercadoria, coisificação ou
reificação, dominação, alienação, entre outros. Enfim, o que procuravam os integrantes
deste movimento era alcançar uma nova proposta social, em particular uma nova leitura
dos aspectos da política e da economia, da cultura e da educação, em uma época
marcada profundamente pelas imposições avassaladoras do regime93 nazi-fascista e do
capitalismo tardio administrado.
É nesse horizonte que a esfera educacional torna-se significativa, pois ela
apresenta novos rumos para a sociedade capitalista ocidental, uma vez que vai de
encontro às determinações do “politicamente correto”. Trata-se, portanto, de atribuir ao
aspecto educacional uma função que resgate elementos crítico-formativos do ser
humano, isto é, forneça mecanismos para a efetivação do pensamento crítico,
contribuindo para o surgimento e a manutenção de indivíduos autônomos, capazes de

93
Outra forma de regime que apareceu, nesse mesmo período, mas, agora, vinculado ao sistema
socialista, foi o stalinismo soviético.

126
pensar, de julgar e de decidir por si mesmos, contrariamente a uma “danificação dos
sentidos e da vida”94.
Aqui, essa danificação não se refere a nenhuma lesão ou problema mental ou
biológico do homem, mas a um déficit no desenvolvimento sócio-psicológico dos
indivíduos, que provocou a alienação neles. Em outras palavras, gerou a falta de
capacidade para decidir suas ações, o que resultou em prejuízo para a comunidade
(coletivo). Com isso, as pessoas passaram a se comportar de modo infantilizado, não se
mantendo capazes de suportar a distância temporal entre seu desejo e a satisfação deste.
Assim sendo, os indivíduos passaram a buscar, a todo preço, saciar, imediatamente, seus
desejos, embora nunca satisfeitos por completo.
Ainda no que se refere à questão educacional, cabe aqui destacar uma advertência
desse filósofo: não deve ser atribuída à educação a responsabilidade para solucionar as
contradições do sistema capitalista, pois ela, por si só, não consegue dar conta dos
problemas deste sistema socioeconômico, que, por sinal, são inúmeros. Isto porque a
educação, assim como qualquer outra atividade, como o esporte, a cultura ou a arte, está
sujeita ao conjunto infernal de atrocidades do capitalismo (ADORNO, 1995).
De acordo com Adorno, a resposta para um encaminhamento mais promissor da
atividade educacional inicia-se com o descortinar dos pressupostos que dificultam a
formação cultural crítica e criativa, ou melhor, de tudo aquilo que causa alguma
danificação a um educar comprometido com a reflexão e auto-reflexão crítica das
pessoas. A propósito, Wolfgang Leo Maar observa o seguinte a respeito da reflexão de
Adorno no debate radiofônico “Educação - para quê?”, publicado em Educação e
emancipação:

O mundo dos homens é organizado de determinada maneira e é preciso


decifrar as condições e os condicionantes que causam seu modo determinado
de ser. A essência não está “atrás” da aparência, mas é a reflexão da
aparência acerca de seu modo de aparecer de determinado modo, o arranjo
determinado do mundo, a sociedade que é sua própria ideologia. A
emancipação como “conscientização” é a reflexão racional pela qual o que
parece ordem natural “essencial” na sociedade cultural, decifra-se como
ordem socialmente determinada em dadas condições da produção real efetiva
da sociedade (MAAR, 2003, p. 472).

Portanto, as determinações sociais da sociedade tecnicamente administrada estão


nas raízes da barbárie, ou seja, do surgimento e da reprodução de inúmeras mazelas

94
Esses conceitos são tratados por Adorno no texto Fetichismo na música e a regressão da audição,
publicado originalmente em 1938.

127
desta sociedade. Tendo por base este entendimento é que Adorno vai nos dizer que o
primeiro compromisso da educação e de todos que estão envolvidos com ela ―
pedagogos, filósofos, sociólogos, políticos, psicólogos, historiadores, entre outros
profissionais; enfim, todos aqueles que, de alguma maneira, deixam suas contribuições
ou se utilizam do processo educacional ― “precisam evitar que Auschwitz volte a
ocorrer” (ADORNO, 1995, p. 119).
Isto porque Auschwitz foi um acontecimento extremamente trágico, ou seja, foi o
maior campo de concentração (e de extermínio) nazista que operou na cidade de
Oswiecim, na Polônia. Aliás, esse fato passou a ser a imagem do Holocausto. Hoje, ele
é o meio (simbólico) utilizado para enfatizar os aspectos traumáticos e catastróficos por
excelência na Europa, entre o final da década de 1930 e o começo da década de 1940
(SELIGMANN-SILVA, 2003).
Vale ressaltar que esse acontecimento provocou e ainda provoca graves lesões à
humanidade, porque se trata de um problema que afetou a todos e precisa ser
esclarecido e solucionado socialmente. Os horrores resultaram em extermínios, exílios,
torturas, perseguições, discriminações étnicas e racistas, mortes trágicas e violentas,
danos materiais e imateriais e desastres econômicos e políticos.
No entanto, faz-se necessário esclarecer que os prejuízos que Auschwitz deixou
não se restringem às tragédias ocorridas e às dores físicas ou psicológicas infligidas.
Eles foram muito mais além, pelo simples motivo de um elevado número de pessoas
terem sido acometidas pelo desprezo, pela falta de auto-estima e pelo desaparecimento
de sua memória ou de sua recordação. Como consequência, esse problema, por
excelência, se reproduz na falta de memória para estes traumáticos processos históricos
da humanidade, resultando em esquecimento dos males gerados pelas práticas
patológicas do nazismo.
Na concepção de Adorno, se este problema não for profundamente e amplamente
debatido e permanentemente tornado público, ele pode fazer recrudescer a barbárie. No
que tange ao aspecto da educação, em especial na escola, deu-se pouca importância ao
tratamento desta grande barbárie, sendo que o aspecto educacional distanciou-se, cada
vez mais, dessa questão. Nas palavras de Adorno, esse aspecto não cumpriu o que, por
sua vez, havia de mais significativo: ajudar no processo de resistência e de
desbarbarização da humanidade. A prova disso é a pouca consciência dos indivíduos ou
o pequeno número de pessoas informadas e realmente conscientes sobre as terríveis
monstruosidades cometidas em Auschwitz, e isto em uma sociedade dita esclarecida.

128
Razão Instrumental e seu suposto Esclarecimento

No prefácio da Dialektik der Aufklärung (Dialética do Esclarecimento),95


percebe-se uma contradição, quando Adorno e Horkheimer nos fazem refletir sobre
“porque a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está
se afundando em uma nova espécie de barbárie (ADORNO, 1985, p. 11). Nesse sentido,
para os filósofos, trata-se de entender a falsa promessa do capitalismo tardio e de seu
suposto esclarecimento que, desde os primórdios, veiculou a ideia de livrar os homens
da condição de dominados e transformá-los em sujeitos, apesar de sabermos que o preço
foi bastante elevado para a obtenção de algumas “vantagens”. Não obstante, essas
vantagens desembocaram em aspectos contrários. Daí porque o ser humano teve de se
responsabilizar por enormes prejuízos, tais como alienar-se e deixar-se ser explorado
pelo discurso sistêmico-oficial e pelo exercício de sua dominação.
Além disso, e ainda sob esse mesmo ângulo, pode-se verificar, segundo os
mesmos autores, que não é novo o projeto de esclarecimento. Este iniciara desde a
Grécia: o projeto de entronizar a razão em vez do mito. Porém, foi na modernidade,
sobretudo na filosofia de Francis Bacon96 ― fundador da ciência moderna e do
empirismo ―, que essa posição ganhou fortalecimento. Ele criticava demasiadamente a
tradição filosófica aristotélica e sua ciência teórica de caráter especulativo ― em
particular a dimensão de ciência do Órganon de Aristóteles ―, mas não porque
entendesse que o trabalho desse filósofo fosse por ele considerado sem qualidade. A
propósito, sabemos que o filósofo inglês sempre elogiou o pensador grego, uma vez que
era consciente da importância do pensamento aristotélico para o desenvolvimento de
nossa filosofia ocidental. A crítica de Bacon à filosofia de Aristóteles se concentra na
observação da falta de um método de investigação que correspondesse às exigências
científicas, particularmente às de caráter experimental e natural, tais como astronomia,
química, botânica e mecânica (BACON, 1999).
Nesse tocante, é possível perceber que, nos estudos baconianos, há uma atenção
especial às condições de pesquisa e, ainda, à teoria do conhecimento. Seu projeto visava
tornar possível uma restauração da ciência com base no método indutivo anti-

95
Embora esse livro tenha sido escrito por Adorno, em parceria com Horkheimer, toda vez em que,
doravante, for abordado o mesmo no presente texto, será citado apenas o nome do primeiro autor, visto
que é o pensamento deste que é o objeto do presente estudo.
96
Bacon, filósofo inglês (1561- 1626). Mesmo não sendo cientista, teve uma contribuição significativa
para o campo da ciência, através de seu método cientifico: a indução (MARCONDES, 2005, p. 178).

129
especulativo e de entrelaçamento com a técnica. Mas, pode-se perguntar: o que quer
Bacon? A resposta está em estabelecer uma junção entre experiência e razão,
observação da regularidade dos fenômenos e da interpretação dos fatos que partem de
eventos particulares para se chegar a uma efetivação de leis estáveis e seguras,
necessárias e universais. É dessa forma que a ciência pode alcançar o progresso,
segundo esse autor (BACON, 1999).
Com isso, o saber tornou-se poder. Nesse ínterim, “O Homem, ministro e
interprete da natureza” (BACON, 1999, p. 33) distanciou-se de toda e qualquer lei
moral. Segundo Bacon, a moral passou a ser a própria ciência. Sabemos que ela tem o
intuito de substituir os interesses pessoais pela neutralidade das pesquisas científico-
filosóficas. De modo geral, Bacon tem uma preocupação com os problemas ligados a
esses interesses. Por quê? Em primeiro lugar, porque, segundo ele, deve-se buscar a
independência dos fenômenos em relação ao pesquisador que conhece e atua. Em
segundo lugar, é de fundamental importância que o cientista afaste-se da experiência
cotidiana, pelo fato de o autor entender que ela é movida pelos vários significados que
são paradoxais e exprimirem relações subjetivas e próprias dos indivíduos. Por fim,
deve-se identificar as raízes de tais interesses, visto que eles, diria o mesmo autor, estão
sempre atrelados aos ídolos.97
De acordo com esta compreensão pode-se afirmar que os ídolos são os causadores
de imperfeições que tanto provocam interferências à mente humana. Assim, entende-se
que essa forma de agir deve ser evitada, por envolver instrumentos que inibem ou
camuflam a construção do trabalho científico. Ou seja, esses instrumentos atuam
impedindo o acesso ao procedimento eficaz do conhecimento universal e indubitável,
empírico e racional da ciência. Por conseguinte, o novo modelo de cientificidade, o
método indutivo, deve distanciar-se de preconceitos, ilusões e superstições, para tornar-
se uma criança numa “floresta virgem” e que tudo que se faz é descobrir e/ou conhecer
o mundo.
A partir daí, fica evidente a preocupação de Bacon com um método que caminhe
no sentido de aperfeiçoar a ciência. Para ele, tal aperfeiçoamento traria inúmeros
benefícios à vida do ser humano. Trata-se, assim, de uma atitude pensante que se
concretizou em defesa da razão instrumental e da técnica, visando avançar o

97
Os ídolos podem ser de quatro tipos: a) ídolos da tribo; b) ídolos da caverna; c) ídolos do foro ou do
mercado; d) ídolos do teatro. In: BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Editora Nova Cultural,
1999. (Coleção Os Pensadores), p. 40-49.

130
conhecimento científico e colocar o homem no caminho de um saber entendido como
legítimo e correto.
Este modo de pensamento foi fortemente criticado pela Escola de Frankfurt, em
especial por Adorno, quando questionou o suposto uso da imparcialidade e da
objetividade metodológica imposta pelo filósofo inglês. Porém, tudo, de certa forma, já
estava estabelecido por uma tradição científica, teológica ou filosófica, que, em um
sentido mais disseminado, funcionava como prática ideológica de dominação, mesmo
que indiretamente e sem grandes distorções nos procedimentos científicos.
Assim, é enganoso pensar que a ciência fundamenta-se como uma atividade que
não acarreta interesse por algo, como se, com efeito, ela fosse um procedimento
compromissado apenas com a produção de conhecimento. Segundo este prisma,
“haveria uma separação entre sujeito e objeto e ocorreriam resultados que seriam
independentes do desejo ou da condição de quem pesquisa” (CHAUI, 2000, p.281).
Mas essa lógica vai por água abaixo, ou seja, no que concerne ao trabalho do
pesquisador, “sabe-se que ele traz um a priori logo na escolha do seu objeto de
investigação” (CHAUI, 2000, p.281). E, quando procura iniciar um trabalho, também
faz uso de determinado caminho para obtenção de resultados. Não esquecendo, é claro,
de sua expectativa pelos mesmos. E, portanto, pode-se afirmar, a partir disso, que a
suposta neutralização é ilusória, tendo em vista que a realização da atividade científica é
realizada por escolhas e interesses.
Além disso, não se pode esquecer que a prática da ciência é dirigida, de certo
modo, a alguns fins e que estes sempre foram atrelados àqueles que, de alguma forma,
exercem o poder estratégico-econômico ou político-administrativo, tais como os reis e
os nobres, no período iluminista. E, a partir do século XX, pode-se dizer, com
propriedade, que o fazer científico está cada vez mais entrelaçado com esse poder, uma
vez que “é possível constatar as inúmeras pesquisas realizadas a serviço de empresas
particulares e outras financiadas pelo próprio Estado, como no caso dos institutos de
pesquisa e das universidades, em geral” (CHAUI, 2000, p.282).
Eis porque, para Adorno (1985), a partir dessas condições, a ciência passou a ser
inserida pela lógica das forças produtivas de nossa sociedade. Ela provocou
reviravoltas, trazendo modificações para a vida humana, embora nem sempre boas, pois,
na medida em que se tornou instrumentalizada, desembocou no processo em que o saber
teve a pretensão de dar conta da realidade, permitindo que fosse viável a manipulação e
o controle da técnica, a serviço do poder econômico e político instituído.

131
Ora, para o mesmo autor, o que aconteceu, na verdade, foi que o saber-poder
movido pela razão instrumental ― que, de acordo com o sociólogo alemão Max Weber,
rima com o desencantamento do mundo ― tentou desmistificar com seu ceticismo as
inúmeras esferas da vida social, tais como a artística, a científica, a econômica, a ética, a
sexual e a política. Ou seja, aquilo que se tornou numa linguagem matemática um
cálculo infinito não respeitou limites e ultrapassou todas as barreiras, atrelando-se,
sobretudo, à pulsão mortífera dos grandes predadores capitalistas e aos detentores de
poder do mundo administrado (ADORNO, 1985).
Então, em linhas bem gerais, o objetivo do processo de racionalização resultou na
estruturação de um pensamento que age, em última instância, como estado de
dominação, ou seja, como modo de produção e reprodução das estratégias do poder
visando explorar homens e a natureza. Assim, segundo Adorno,

O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para


dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a
menor consideração consigo mesmo, o Esclarecimento eliminou com seu
cautério o último resto de sua própria consciência. [...] O resultado disso,
pode-se dizer, foi que os homens pagaram pelo o aumento de seu poder
que desembocou na alienação sobre o exercício do poder (ADORNO,
1985, p. 20). (Grifos meus).

Para essa razão (racionalidade iluminista) e para seu sistema sócio-econômico


burguês, Adorno não vê nenhum benefício para o desenvolvimento das potencialidades
de emancipação da humanidade. O que se pode ver é a continuação e/ou ampliação de
um período mitológico (crença no progresso e na evolução do conhecimento) que se faz
presente na sociedade industrial como estado catastrófico de dominação social e
econômica.
Em linhas bem gerais, o que essa dominação pretende provocar ao homem é
transformá-lo naquilo que se convencionou chamar de Verdinglichung (consciência
coisificada). Este processo de expressão da consciência é um dos instrumentos que está
a serviço dessa razão social dominadora. Ela é o modo deliberado de atuar na vida dos
sujeitos, pois é através de sua reprodução, associada ao uso de técnicas e de tecnologias
de controle dos processos naturais e sociais, que tudo tem sido reduzido a um estado de
coisas e de pessoas descartáveis, submetidos ao fetichismo da mercadoria com fins
lucrativos.
A propósito, ocorre também uma deformação significativa no campo estético,
com ênfase nos bens artísticos, atingindo, de modo singular, o aspecto musical. Essa

132
atividade sofre uma padronização ― do ritmo, da melodia, da harmonia ―, que
empobrece a sensibilidade e a criatividade humana, estipulando como valor apenas a
veiculação de fetiches musicais em grande escala, falsamente concebidos como
expressão do belo, enquanto instalação de uma parafernália técnica e instrumental.
Ademais, nesse contexto marcado pela disseminação da consciência anestesiada e
petrificada e pela racionalidade instrumental, o que acontece é, basicamente, a
autonomia da técnica sobre os indivíduos. Por isso, Adorno (1995) enfatiza que se deve
ficar atento a essa tendência. Para ele, não se pode desprezá-la, visto que se necessita
pesquisar o motivo desse aparato racional tecnicista que produz facilmente a
tecnicização de sujeitos.
Esta situação é o meio ilusório em que várias pessoas passam a entender que há
um fim em si mesmo. Diante disso, elas podem agir com comportamentos pouco éticos
e bastante instintivos que, muitas vezes, são propícios para práticas de agressividades,
que levam o ser humano a estágios antropologicamente primitivos. Assim sendo,
perdem-se, então, os atos considerados humanos, como se pode verificar no respeito do
relacionamento das pessoas tanto consigo quanto com os outros (ADORNO, 1985).
Nessa direção, o que prevalece são os valores da individualidade e do “mais
gozar” do homem. Ele, assim, esquece que a técnica é uma forma de extensão, isto é,
um procedimento que pode funcionar, em alguns casos, como um alongamento do braço
humano. Daí percebe-se que existe algo de ambíguo com a técnica, tendo em vista que
sua aplicação ganha um destino que já não se dirige em prol de melhorar, de alguma
forma, a vida dos indivíduos; ao contrário, dirige-se como um aparato que está
vinculando-se aos desejos dos que possuem e a usam de forma errática, isto é, sem
nenhuma ética, na contramão dos que visam fornecer um quadro conceitual que respeita
a vida humana e a natureza.
Outra forma de ambiguidade, para não dizer paradoxo, manifesta-se no esporte.
Tal atividade tem duplo funcionamento: por um lado, pode funcionar como um
importante recurso de sublimação do horror barbaresco e, ainda, como uma prática de
atividade física que pode desenvolver inúmeros benefícios para a saúde humana. Mas
também pode ser utilizado, em algumas modalidades, como um instrumento que
promove o aparecimento do sadismo ou do masoquismo, quando se estabelece a
promoção de corpo dócil e do excessivo disciplinamento, da ideologia promotora da
virilidade artificial, para suportar a dor, e do elogio ao objetivo de ser duro consigo e
com os outros. Vale lembrar que essas práticas são utilizadas nos quartéis militares. Mas

133
também são condutas que fizeram parte do “currículo” da educação nazista e, por
consequência, contribuíram como um forte instrumento ideológico favorável à produção
de Auschwitz.
No mesmo âmbito, ocorre também a reprodução, em grande escala, de valores
tipicamente preconceituosos e excludentes. Eles costumam, por exemplo, aparecer nos
gritos de torcidas ― em particular nos hinos de algumas torcidas organizadas de futebol
―, nos mais variados tipos de esportes.
Desse modo, percebe-se que ocorre um modo de proceder que vem deformando a
circulação e a produção destes recursos: a da técnica propriamente dita e a do esporte. A
partir daí, fica evidente a dificuldade de eles contribuírem para uma formação integral e
de emancipação dos indivíduos.
No ambiente contemporâneo, o que se apresenta é a presença de um processo
formativo conservador-reacionário e alienante, atrelado às imposições colonizadoras do
mundo administrado, fetichizado e globalizado que reduz tudo ao princípio do mesmo
ou idêntico. Estas sofisticadas e osmoticamente alastradas práticas de manipulação e de
dominação invadem diferentes aspectos da vida humana, como o artístico, o cognitivo e
o psicológico, sendo veiculadas com mais força pelos meios de comunicação98 de massa
― rádio, televisão e Internet ― e, em muitos casos, até mesmo, no âmbito da educação
formal e/ou não formal.
Neste quadro, o campo sócio-educacional sofre deturpações, pois ocorre uma
produção de conhecimento que, neste ambiente infestado pela razão instrumentalizada,
visa atingir profundamente a educação, com a pretensão de torná-la um mecanismo
meramente a serviço da proliferação do status quo vigente, mediante o anestesiamento e
a dessubjetivação do homem comum, visando reproduzí-lo como massa dócil e
conformada com as atuais formas sofisticadas de “inclusão-excludente” e de “controle
biopolítico”.
Nessa condição, isso implica numa postura que dificulta a efetivação da formação
cultural autêntica e autônoma. Tal dificuldade se multiplica ainda mais, porquanto o
âmbito educacional vem perdendo cada vez mais espaço. A educação, assim, torna-se
um apêndice funcional às necessidades de assimilação técnica da força de trabalho aos

98
Com relação a tal veículo, acredita-se, aqui, ser de suma importância enfatizar que Adorno não chegou
a conhecer o auge da televisão, tampouco conheceu a Internet. Entretanto, pode-se dizer que, certamente,
faria um comentário crítico de grande valia com relação a esse último veículo, visto que ele é o maior
instrumento de comunicação ― de massa ou não ― em termos de complexidade, até agora produzido
pelo advento do desenvolvimento técnico-tecnológico, fruto dos avanços científicos.

134
imperativos da acumulação do capital e em termos culturais abraça a subserviência aos
atrativos pseudo-culturais de entretenimento e de propaganda do mundo do consumo
capitalista.
O mundo em que vivemos hoje ― racionalizado, fetichizado e virtualizado ―
reproduz-se movido pelo desprezo ao amor e à solidariedade humana, em prol de
desejos atravessados, de modo imediatista e mortífero, pelo imperativo do “mais gozar”
a qualquer custo e sem limites. Este tipo de gozo associa-se também, cada vez mais, às
fugazes novidades tecnológicas, que prendem o sentimento ao virtualismo veloz de
máquinas que promovem a ilusão, a fantasia e a alienação dos indivíduos em torno da
propaganda de coisas e/ou objetos fetiches, onde o lema das pessoas se faz pela
expressão “I like Nice equipament” (ADORNO, 1995, p.133). Para Adorno, esse tipo de
acontecimento não é simplesmente uma deformação natural do homem, mas uma grave
lesão dos aparatos político-sociais, que se ajoelham e se submetem à reprodução
massificada da frieza e do consumo generalizado em nossa sociedade.
Para finalizar o presente texto, cabe ainda observar que a reflexão de Adorno não
se deixa domesticar pela falsidade fugaz das artimanhas que, em última instância,
restringem-se a reproduzir sempre o mesmo, o idêntico. Ao contrário, a sua constelação
conceitual é norteada pelo realce do não-idêntico, mediante o exercício da dialética
negativa, visando sempre solapar a lógica perversa do princípio da identidade. Esta
lógica procura fazer subsumir todos os sofrimentos e as injustiças humanas ― e
também as contradições e os paradoxos da realidade ― ao discurso ideológico do
capital.
A propósito, Adorno também é um filósofo que não propõe modelos sistemáticos
de educação, mesmo porque seu pensamento está mais concentrado em elaborar e
apresentar uma crítica à pseudo-cultura do capitalismo tardio. Ou seja, o que ele mais
pretende é abrir uma distância crítica ao pensamento para melhor captar as contradições,
os paradoxos e os nós górdios da modernidade tardia, visando contribuir com novos
parâmetros para uma práxis econômico-social, política e cultural autêntica e de
emancipação.

135
Referências

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:


fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar,
1985.

_________. O Fetichismo na música e a regressão da audição. Tradução de Luiz João


Baraúna. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os Pensadores), 1983.

_________. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo:


Paz e Terra, 1995.

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136
Educação e Subjetividade em Theodor W. Adorno

Maria Socorro Gomes

Introdução

A educação dos últimos séculos, com o surgimento da tecnologia, está marcada


por grandes transformações tanto objetivas quanto subjetivas. No entanto, a posição de
Theodor Adorno em torno dessa conclusão é de uma limitação quanto à possibilidade de
mudanças nos pressupostos objetivos, ou seja, mudanças sociais e políticas. Segundo o
frankfurtiano deve-se assim recorrer à possibilidade de mudanças no lado subjetivo
direcionando a preocupação para os aspectos subjetivos da consciência.
Desde o século passado, o homem tem sido investigado para os mais variados
campos das ciências e, mesmo com todo “progresso tecnológico”, continuamente, são
colocadas algumas questões comportamentais que determinam que ele ainda se encontra
muito distante de ser conhecido e se fazer conhecer. Num primeiro momento, ele se
reconhece como ser pensante, mas ainda não coloca em questão os limites da sua
subjetividade mesma, não sabendo até que ponto pode chegar os limites das suas ações.
Em torno dessa questão, esse trabalho pretende investigar, com o apoio do texto
Educação após Auschwitz de Theodor W. Adorno (1995), como o filósofo aborda a
importância da subjetividade humana para e na educação. Abordar-se-á primeiramente
como o tradutor de Educação e Emancipação, Wolfgang Leo Maar, interpreta alguns
pontos importantes para uma melhor compreensão de Adorno, traçando pontos
importantes que permitem ter uma visão geral do pensamento do filósofo.
As primeiras palavras de Leo Maar na nota introdutória da obra Educação e
Emancipação sobre Adorno são de que as preocupações do filósofo se remetem às
questões do seu tempo e que estas levam a refletir e concluir que a possibilidade da
verdadeira democracia só se dará com uma sociedade de emancipados. (ADORNO,
1995). Emancipação que só será possível com a existência de uma educação política
para a contestação e para a resistência.


Graduada em Filosofia, Especialista em Estudos Clássicos e Mestranda em Educação Brasileira pela
Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: socorroufc@hotmail.com

137
Dessa forma, a relevância desta investigação é fazer compreender em que
medida o pensamento adorniano poderá contribuir para a educação atual, caracterizada
por comportamentos explosivos comumente noticiados nos meios de comunicação e
que tem enfrentado nos últimos tempos grande obstáculos em busca dos seus objetivos:
uma educação com homens emancipados.

A Subjetividade e a Educação

A educação, na civilização ocidental, é a maior contribuição do homem ao


próprio homem, à formação humana para manutenção da vida em comunidade. Na
Grécia Antiga, com Platão, surgiram as primeiras preocupações com ela, com propostas
de educação que tinham como finalidade satisfazer unicamente aos interesses da
comunidade. Pode-se dizer assim que no mundo antigo não havia uma preocupação
específica com a subjetividade humana.
Segundo Rodrigo Duarte, na obra Mímesis e Racionalidade, a preocupação da
educação na antiguidade era com o aspecto moral que guiava toda vida em comunidade,
ou seja, sua finalidade era a dominação da natureza interna do homem. Na obra A
República, Platão trata explicitamente de uma investigação sobre em que medida as
relações humanas podem ser reguladas da maneira mais racional. O alvo da obra é
mostrar em que medida as partes inferiores do humano, nada diferentes da dos animais,
devem ser contidas. Por isso, boa parte do diálogo é dedicada à educação, cujo
significado não é mais do que o domínio dos desejos e apetites, que, segundo Platão,
deprecia a existência humana. Dessa maneira, a palavra de ordem é moderação, que
pode ser compreendida como uma forma de repressão. (DUARTE, 1993, pág.22)
Ultrapassando o período medieval e tratando já da Modernidade pode-se dizer
que nela os aspectos subjetivos do comportamento humano como na antiguidade não
eram parte essencial das propostas de educação. Só era levada em devida conta a
existência de um homem movido por uma razão instrumentalizada cuja finalidade era
resolver problemas imediatos, ou seja, julgava-se o homem já totalmente munido de um
pensamento racional que a tudo direcionava à perfeição da certeza de um agir. O
homem era pura razão, com ela tudo conseguia manipular e satisfazer seus interesses
que se resumiam quase que unicamente em tornar mais fácil a vida.

138
Com o surgimento da ciência experimental tal manipulação ganhará terreno e o
homem ainda mais se distanciará de si mesmo e ainda que tendo todos os meios para
satisfazer suas vontades externas, as vontades internas ficavam ainda em segundo plano.
Assim, nessa época o desenvolvimento científico não o conduzirá ainda a uma
emancipação por estar vinculado apenas a um determinado tipo de formação social, isso
se estendendo também ao plano educacional. Dessa forma:

a modernidade, sua significação e sua contribuição para antropogênese estão


de novo em debate. A crise cultural que vivemos é crise contra a razão,
contra a ilustração, numa palavra, contra a modernidade. A crítica da razão
instrumental desenvolvida pela modernidade desemboca numa crítica à
modernidade enquanto tal e, em última análise, numa crítica à própria razão,
que é vista como instrumento de repressão. (OLIVEIRA, 1995, p.7.)

Para Theodor W. Adorno, o nazismo é o exemplo vivo da dominação da


educação resultante do processo de desenvolvimento da sociedade em bases materiais.
A confiança exagerada numa razão plena não permitia que os homens colocassem em
questão as suas próprias ações, o que faz compreender a ocorrência de tantas
barbaridades que o olhar contemporâneo colocará em foco.
Estudos posteriores à modernidade teorizarão que o homem não é apenas
elemento puramente racional; nele existe um inconsciente, que só pode ser explicado se
trazido à tona e reconhecido como problema a superar. Com o “surgimento” de
comportamentos inesperados e incompreensíveis no ser humano se faz perceber a
necessidade de novas formas de educar.
As pesquisas feitas por Adorno na contemporaneidade demonstram uma
preocupação dos aspectos subjetivos com relação à educação. Freud, na obra O Mal
Estar da Civilização, tece as primeiras considerações a respeito da civilização humana,
e Adorno, nas suas pesquisas, irá propor suas teorias sobre a educação se baseando
nesses estudos para tentar fazer compreender uma das piores catástrofes do século XX:
o nazismo, que levou às últimas consequências o preconceito e a destruição que varreu a
Europa. Segundo Adorno, o nazismo faz parte da história da humanidade que muitos
gostariam de apagar, mas não sem antes compreender os motivos que o motivaram. No
artigo Personalidade Autoritária, de 1950 ele delineia características dos
comportamentos abusivos que ocorre com:

139
o surgimento de uma espécie „antropológica‟, que podemos chamar de
homem autoritário. Em contrate com o fanático de velho estilo, esse último
parece combinar as idéias e habilidades típicas da sociedade altamente
industrializada com crenças irracionais ou anti-racionais. (ADORNO, 1950,
p. 1)

Essas são as características de um homem que leva às últimas consequências as


habilidades para a prática da barbárie e que possui como atributo dominante a regressão.
A categoria freudiana de regressão,99 utilizada Adorno, visa esclarecer o quanto
Auschwitz foi o mais grave retrocesso da consciência humana. Para Adorno, embora a
regressão não possa mais se fazer da mesma forma, pois se constitui o mais alto grau de
pobreza da razão, ela é persistente e tende a se repetir, basta que haja as condições
necessárias para isso.
Adorno, baseado nas teorias freudianas, concluiu que há na gênese humana
características bárbaras, ou seja, o homem como potencialmente capaz de práticas
cruéis. Adorno reforça que esses comportamentos regidos pelos costumes e pelas leis
levam o homem a agir não como ser inteiramente consciente, mas por medo da coerção.
Amparado pelos estudos freudianos e pelo pensamento de Kant, Adorno analisa
ainda a categoria de consciência, que indica o quanto se encontra o homem em sua
menoridade e o quanto a ausência de consciência e de aptidão para a experiência podem
levar à barbárie.

Autorreflexão Crítica para Emancipação

Como crítico da sociedade, Adorno estabelece, em Educação após Auschwitz,


como seria possível evitar novas formas de barbárie. Com a análise de alguns elementos
da cultura, Adorno indica como seria possível a constituição de uma pessoa esclarecida
e emancipada.
Para Adorno, a exigência é que Auschwitz não se repita (ADORNO, 1995,
p.119). Esse é o principal objetivo da educação e não há necessidade de justificá-la. A
monstruosidade do Holocausto é de modo diferente também injustificável, o que se
pode afirmar com exatidão é que aconteceu devido a pouca consciência dessa exigência:
A exigência que Auschwitz não se repita. A monstruosidade que não calou fundo nas
pessoas, persiste na possibilidade de se repetir e sua repetição dependerá do estado de

99
Essa categoria freudiana de regressão é caracterizada pela defesa contra uma frustração pelo retorno a
uma modalidade de comportamento e de satisfação interior.

140
consciência das pessoas. Por isso, para Adorno, é urgente uma nova educação insistindo
que:

qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e


importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a
barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma
regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a
regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de
fundamental as condições que geram esta regressão. (ADORNO, 1995,
p.119)

No texto Educação após Auschwitz, Adorno diz que a educação tem como
princípio fundamental evitar a barbárie. A barbárie, à qual ele se refere, é o horror dos
campos de concentração, especificamente Auschwitz I, que apesar de não ser o único
local de horror é o que mais chama a atenção, pois se trata do centro administrativo de
deliberação do horror, o centro da pouca consciência.
As características bárbaras existentes no humano adicionadas às pressões sociais
impelem à prática de ações indescritíveis, mas possíveis de perceber, pois elas
culminam em Auschwitz. (ADORNO, 1995, p. 119) Tais ações não acontecem porque
os homens se julgam civilizados, diz Adorno, reforçando as palavras de Freud, mas
porque o processo civilizatório, embora possua seu lado social, reforça o
anticivilizatório.
Adorno corrobora assim com a teoria de Rousseau que, na obra Emílio ou da
Educação, defende que o homem, em seu estado primitivo, seria feliz por viver de
acordo com suas necessidades inatas e não baseado em imposições de comportamento
da sociedade.
Para Rousseau, o verdadeiro instrumento do conhecimento não é a razão, mas o
sentimento, e o objeto a ser verificado é a interioridade pessoal, o mundo humano, o
conhecimento do homem de si mesmo. Aqui observamos a valorização moral ressaltada
pelo pensador como caminho de alcance da felicidade humana em relação a si mesmo
(Emílio), bem como à sociedade (Contrato Social).
O pensamento freudiano, diz Adorno, proporcionou conhecimentos referentes à
cultura e à sociologia, e, ao tratar da civilização, percebe-se o quanto está relacionada
intimamente à ocorrência de Auschwitz e, mais ainda, diz ele, “se a barbárie encontra-se
no próprio princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de
desesperador.”(ADORNO, 1995, p. 120).

141
Por isso, é imprescindível repensar novas formas de educação, a começar pela
conscientização do elemento desesperador e impedir que Auschwitz se repita. Para
Adorno, a conscientização imediata não ocorre devido à falta da consciência mesma,
contudo isso não impede de arriscar na tentativa para outra forma educação.
Segundo Adorno, não se pode justificar nem minimizar a morte de milhões de
pessoas simplesmente como um fenômeno, uma aberração no curso da história, pois “o
simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma tendência social
imperativa.” (ADORNO, 1995, p. 120) Na história da humanidade, mais precisamente
no século XIX, surgiram as primeiras raízes de genocídios bárbaros, principalmente
com a invenção da bomba atômica. Com isso, a pouca possibilidade de mudar os
pressupostos objetivos (sociais e políticos) faz com que se apele para o lado subjetivo e
evitar a repetição de Auschwitz, ou seja, deve-se propor uma “inflexão em direção ao
sujeito” (ADORNO, 1995, p. 121), que se estude a psicologia dos sujeitos que
condescendem com explosões de barbarismo e que se reconheçam os mecanismos que
capacitam esses sujeitos de praticar atos desumanos, impedindo que voltem a repetir
mais atos monstruosos.
A proposta adorniana sugere que isso só poderá ocorrer com um despertar de
consciência dos sujeitos e que os desprovidos de consciência reflitam sobre suas
próprias ações. Nesse sentido, a educação deve ser dirigida “para uma auto-reflexão
crítica.” (ADORNO, 1995, p. 121) A autorreflexão crítica forma-se na primeira
infância, pois nessa fase da vida é que devem ser focados os objetivos educacionais. O
que corresponde a dizer que a estruturação de uma instituição escolar deverá ser um
lugar onde não haja as desigualdades específicas das classes, superando, dessa forma, as
barreiras classistas das crianças para o desenvolvimento em direção à emancipação.
Nesse aspecto, percebe-se a influência que Adorno carrega do pensamento marxista que
defende a não existência de classes para que os homens sejam emancipados.
Segundo Adorno, a educação deve se dirigir contra a barbárie em busca da
emancipação que só tem sentido quando dirigida ao que ele denomina de autorreflexão
crítica. Emancipação é, neste caso, o mesmo que conscientização.
Ao tratar da autorreflexão crítica, Adorno dialoga com Kant: a teoria kantiana
defende que a partir da conscientização dos indivíduos pode-se alcançar a autonomia
que significa que o homem deve ter a lei para si mesmo. O homem sai da sua
menoridade que é a falta de coragem de servir-se do entendimento, quando as leis que

142
regem suas ações se fundamentam na conscientização, ou seja, por uma lei moral
universal e necessária.
Nesse sentido, a educação é uma área de persistência entre a autonomia dos
indivíduos e a sua adaptação às exigências da sociedade e, desta forma, implica num
processo de emancipação individual para cumprir as exigências da cultura e da
sociedade. Como Kant, Adorno se detém na formação educacional pelo esclarecimento
da consciência.
Na Crítica da Razão Prática, Kant denomina a lei moral como análoga à
consciência moral e que não pode depender de fatos empíricos. Sendo a lei moral
dependente de fatos empíricos já não é lei moral. Para ser uma lei moral, deve haver um
imperativo categórico que tem a vontade como legisladora, pois, sem a vontade, o
homem age por puro instinto. A razão empiricamente condicionada por fatores externos
implica não um imperativo categórico, mas um imperativo hipotético. O imperativo
categórico é imperativo porque ordena a si mesmo uma vontade inexorável, é categórico
porque independe de fatores externos. Para Kant, a razão empiricamente condicionada
não é capaz de oferecer fundamentos porque é a posteriori.
O imperativo categórico não pode nascer da experiência; ao contrário, é ele o
oposto de qualquer inclinação sensível. É, portanto, um fato da razão, o elemento a
priori da moralidade e a forma que todas as nossas ações devem ter, para que possam
ser consideradas morais. Assim o incondicionado, o absoluto ou categórico apresenta-se
como uma exigência da razão, como um dever ser. Esse deve ser é a síntese entre a
sensibilidade e a razão, síntese a priori, pela qual o homem deve determinar suas ações
por si, enquanto a vontade é livre e nunca se determina por motivos provenientes da
sensibilidade.
Influenciado pela categoria kantiana de autonomia, Adorno esclarece que, para
cumprir as exigências da sociedade, a educação deve estar voltada ao desenvolvimento
da personalidade individual. Não deve a educação estar voltada puramente para os
objetivos do capitalismo, sendo assim tornar-se-á a educação uma ideologia. Ao voltar
seus objetivos apenas às finalidades úteis, a educação não faz senão orientar a
racionalidade humana o que poderá culminar em um prevalecimento da razão
instrumental como forma única de racionalidade.
Leo Maar, na introdução de Educação e Emancipação esclarece como a razão se
instrumentaliza e reforça que:

143
é o capitalismo tardio de nossa época, embaralhando os referenciais da razão
nos termos de uma racionalidade produtivista pela qual o sentido ético dos
processos formativos e educacionais vaga à mercê das marés econômicas. A
crise da formação é a expressão mais desenvolvida da crise social da
sociedade moderna. (ADORNO, 1995, p. 15)

A educação já não mais se preocupa com a formação da consciência, ao


aperfeiçoamento moral e “a verdade não seria condicionada subjetivamente, mas
objetivamente.” (ADORNO, 1995, p.16).
A preocupação de Adorno, segundo Leo Maar, é alertar os educadores em
relação ao deslumbramento em que eles se encontram e que ameaça o conteúdo ético do
processo formativo. Adverte contra os efeitos negativos da educação pautada em
estratégias de “esclarecimento” travestido de consciência. Passando a ideia de uma
educação para a emancipação, quando, na verdade, “se converte em mera presa da
situação social existente.” Com o desenvolvimento da sociedade, cabe à educação
formar culturalmente e não conduzir o humano à barbárie. (ADORNO, 1995, p. 11).
Esse é o papel da teoria crítica ao analisar a formação social e revelar as raízes
deste movimento e interferir no seu rumo: “o essencial é pensar a sociedade e a
educação em seu devir.” Formar sujeitos emancipados e aptos a interromper a barbárie e
“realizar o conteúdo positivo, emancipatório do movimento de ilustração da razão.”
Isso, no entanto, só será possível com o “destravamento de encantamento em que se
encontra a formação social, dando a educação uma impotência, uma incapacidade de
promover as mudanças e transformações.” (ADORNO, 1995, p. 12).
Segundo ainda Leo Maar, “para os frankfurtianos Marx e Freud são os que
desvendam os determinantes da limitação do esclarecimento, da experiência do
insucesso da humanização do mundo, da generalização da alienação e da dissolução da
experiência formativa.” (ADORNO, 1995, p.19). Essas relações sociais não afetam
apenas as condições da produção econômica, mas afetam principalmente o plano
subjetivo originando relações de dominação. Exemplos disso são a manipulação das
massas no nazi-fascismo e a expansão das sociedades consumistas.
Na obra Dialética do Esclarecimento, Adorno trata dessa subjetividade
ameaçada, da semiformação e das forças econômicas que ameaçam a subjetividade: a
indústria cultural. Na Indústria Cultural há uma cumplicidade entre ciência e cultura que
se caracteriza pela perda da dimensão emancipatória. Adorno não abdica da vinculação
entre esclarecimento e liberdade e embora pareça haver uma ruptura entre ambas, sua
crítica é quanto à oposição entre ciência e cultura.

144
Há uma cumplicidade refletida no conceito de Indústria Cultural como
caracterização social objetiva da perda da dimensão emancipatória gerada
inexoravelmente no movimento da razão. Como já exposto no início da introdução deste
artigo, a razão é caracterizada em termos sociais objetivos, e não, teoricamente, no
plano da consciência ou do esclarecimento, ou seja, do conhecimento por oposição à
ignorância. Por isso, a palavra alemã Aufklärung que significa Ilustração na obra
supracitada foi traduzida por esclarecimento que destaca o momento subjetivo do
conhecimento, a formação social do sujeito. (ADORNO, 1985, p.7).
Para Adorno, o problema está focado na falta da racionalidade mesma. Seu
déficit nos termos da experiência formativa dialética, ou seja, a falta da própria razão.
“É uma advertência da razão contra si mesma e em nome de si mesma.” A Indústria
Cultura é, nesse sentido, o que expressa “a forma repressiva da formação da identidade
da subjetividade social contemporânea.” (ADORNO, 1995, p. 20).
Leo Maar observa que já em Marx se pode entender como pela educação os
trabalhadores aceitam ser a classe proletária. A aceitação ocorre claramente no
capitalismo tardio, onde há uma transformação básica na chamada superestrutura da
sociedade com uma confusão entre os planos da economia e da cultura e que com a
Indústria cultural determinando a estrutura de sentido da vida cultural permite que:

pela racionalidade estratégica da produção econômica que se inocula nos


bens culturais enquanto se convertem estritamente em mercadorias; a própria
organização da cultura, portanto, é manipulatória dos sentidos dos objetos
culturais, subordinando-os aos sentidos econômicos, políticos e, logo, à
situação vigente.( ADORNO, 1995, p. 9)

Há uma interferência na apreensão da sociedade pelos seus “sujeitos” pelo


mecanismo da “semiformação” e “mobilizam-se traços autoritários da personalidade
[...] A Indústria Cultural em Adorno reflete uma irracionalidade objetiva da sociedade
capitalista tardia, como racionalidade da manipulação das massas.” Ela corresponde à
continuidade histórica de condições sociais objetivas que formam a antecâmara de
Auschwitz, a racionalização da linha de produção do terror e da morte. (ADORNO,
1995, p. 21).
Que Auschwitz não se repita é a articulação contundente de Adorno para que a
experiência histórica do nazismo não volte a acontecer. Auschwitz aconteceu e não deve
mais acontecer. Esse é o imperativo que implica em uma práxis educativa ou

145
emancipatória. Dessa forma, a experiência formativa não será prejudicada culminando
como o exemplo extremado de Auschwitz.

Conclusão
Conclui-se, desse modo, que a investigação no pensamento adorniano dos
aspectos subjetivos ou da consciência são de grande importância, posto que a
subjetividade na educação ganhará grande notoriedade na educação contemporânea. A
partir do texto Educação após Auschwitz, Adorno aponta a consciência o principal alvo
para se chegar a um homem emancipado. Possibilitando um repensar sobre as novas
propostas de educação. A educação das consciências que levem em consideração os
aspectos subjetivos, formando sujeitos emancipados que contribuam para as
transformações sociais.

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Maria Helena da Rocha Pereira

146
Metafisica da vontade de poder e maquinação em Martin Heidegger

Homero Luís Alves de Lima

Introdução

“Pertence à vontade de poder o predomínio incondicional da razão


calculadora e não a poeira e o caos de uma turva compulsão vital”
(Heidegger, 2002, p. 70).

O que interessa a Heidegger é a história da metafísica compreendida como


“história do ser”; história esta que sob o prisma da diferença ontológica revela-se
inteiramente marcada por processos de “essencialização do ente” e de “entificação do
ser”.
A partir da pergunta metafísica “o que é o ente?”, Heidegger procura situar o
pensamento de Nietzsche e seus desdobramentos no âmbito da história das posições
metafísicas fundamentais.
Se o pensamento de Nietzsche se inscreve na história da metafísica, Heidegger
pergunta: ora, qual a posição metafísica fundamental de Nietzsche?

Para Heidegger a “metafísica da vontade de poder” configura a posição


metafísica fundamental de Nietzsche.
Mas como Heidegger busca fundamentar a sua própria interpretação de
Nietzsche no âmbito da história da metafísica? O que é a vontade de poder em
Nietzsche? Quais os elementos que a definem?
O presente ensaio é uma tentativa de pensar com Heidegger o pensamento da
vontade de poder de Nietzsche, especialmente no que concerne à inscrição de tal
pensamento num modo de pensar característico da modernidade: o pensamento
calculador. Vontade de poder, técnica moderna, maquinação são termos que guardam
uma correlação profunda com a consumação da metafísica.
Certamente, a confrontação Heidegger-Nietzsche hoje se afigura incontornável
àqueles que se inscrevem em um modo próprio de pensar – o pensamento da diferença -,


Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Faculdade de Educação, da
Universidade Federal do Ceará (FACED-UFC). Atua na linha de pesquisa Filosofia e Sociologia da
Educação (FILOS), eixo temático “Filosofias da diferença, Antropologia e Educação”. E-mail:
homerodelima@gmail.com

147
especialmente em matéria de educação, haja vista que seu pensar e teorizar se inscrevem
na tradição metafísica que o pensamento heideggeriano se esforça em desconstruir.

A confrontação Heidegger-Nietzsche

No que diz respeito “a confrontação Heidegger-Nietzsche, cabe um


esclarecimento. Seguindo o próprio Heidegger (2007), a idéia aqui de “confrontação”
não tem o sentido de negação, aniquilamento ou mesmo de superação. Com a idéia de
confrontação não procuramos saber “se Heidegger superou ou ultrapassou Nietzsche”,
mas queremos dizer que ela tem um sentido, fundamentalmente, histórico. Confrontar,
aqui, tem o sentido de destruição (Destruktion), ou seja, “desconstruir” os conceitos
herdados da tradição metafísica. A confrontação acena para um exercício de
desconstrução dos conceitos sedimentados, cristalizados pela tradição ocidental de
pensamento.
Assim, faz-se necessário uma breve elucidação da idéia de destruição da tradição
no horizonte da ontologia fundamental.
Em Ser e tempo, no parágrafo “A tarefa de uma destruição da história da
ontologia”, Heidegger (2000) alude aos efeitos que o tratado deve produzir: “que se
abale a rigidez e o endurecimento de uma tradição petrificada e se removam os entulhos
acumulados. Entendemos essa tarefa como destruição do acervo da antiga ontologia,
legado pela tradição” (Heidegger, 2000, p.51). É exatamente neste ponto de Ser e
Tempo que a palavra destruição (Destruktion) pode facilmente conduzir a enganos, o
que de fato vem ocorrendo, sobretudo, a partir de leituras apressadas. Ora, a destruição
(e Heidegger é aqui categórico) não tem o sentido negativo de “arrasar a tradição
ontológica”. Ao contrário, ela deve definir e circunscrever a tradição em suas
“possibilidades positivas”. A destruição não se propõe “a sepultar o passado em um
nada negativo, tendo uma intenção positiva. Sua função negativa é implícita e indireta”
(Heidegger, 2000, p.51).
O fato é que a tradição é encobridora e procede por ocultação da origem dos
conceitos que ela mesma produz e opera; por exemplo, o ego cogito de Descartes, o
sujeito transcendental de Kant, a noção de “pessoa” do cristianismo. E o mais grave e
que deve ser motivo de nossa preocupação: ela, a tradição, nos desobrigar de pensar a
proveniência desses conceitos.
Quanto à necessidade de um confronto com a filosofia de Nietzsche, Heidegger é
incisivo:
148
Se o pensamento nietzschiano reúne a tradição até aqui do pensamento
ocidental e a consuma segundo um aspecto decisivo (metafísica da vontade
de poder), então a confrontação com Nietzsche torna-se uma confrontação
com o pensamento ocidental até aqui (Heidegger, 2007a, p.7).

Nietzsche e o “fim da metafísica”

Para Heidegger, há dois modos de conceber a temática da superação da metafísica


em Nietzsche: a inversão do platonismo e o pensamento da vontade de poder.
De imediato a questão que se coloca é a seguinte: pode a filosofia de Nietzsche
representar “o fim da metafísica”? Com a “destruição” nietzschiana da metafísica via
inversão do platonismos e o fim dos valores transcendentes (Ser, Deus, Bem, Espírito,
Alma, Verdade, Mundo supra-sensível, etc.), com o diagnóstico e anúncio da morte de
Deus, a metafísica teria chegado ao fim?

Nietzsche e a inversão do Platonismo: o Ser como um “vapor e um erro”

Em O Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo), precisamente no


tópico A “razão” na filosofia, podemos ler: “os „conceitos mais elevados‟, os mais
universais e vazios ( Ser, Deus, o Bem, a Verdade), a derradeira fumaça da realidade
que evapora” (Nietzsche, 2000, p. 27). Em outra passagem, podemos ler: “Heráclito
sempre terá razão quanto ao fato de que o Ser é uma ficção vazia” (Idem, p. 26).
Assim, para Nietzsche, o Ser é um erro, ilusão, ficção vazia, “a derradeira fumaça
da realidade que evapora”100. Daí, podemos concluir que a metafísica chegou ao fim.
Em Introdução à Metafísica, Heidegger (1999) afirma que Nietzsche inverte a
metafísica platônica ao promover o ente sensível, o mundo da vida e do devir, à posição
do ente verdadeiro, rebaixando o ser ao nível da pura ilusão, do erro, do que não tem
qualquer efetividade. Mas, nesta inversão, Nietzsche continua determinado por aquilo
que inverte, isto é, pela metafísica e pelo platonismo.
Em uma conferência intitulada A Superação da Metafísica, Heidegger (2002)
assevera que a reviravolta do platonismo, no sentido conferido por Nietzsche, de que o
sensível passa a constituir o mundo verdadeiro e o supra-sensível o não verdadeiro,
“permanece teimosamente no interior da metafísica. Essa espécie de superação da
100
“O Ser é uma simples palavra e seu significado um vapor ou o que se entende com a palavra “Ser”,
abarca o destino espiritual do ocidente?” (Heidegger, 1999, p. 68).

149
metafísica, que Nietzsche tem em vista (...) não passa de um envolvimento definitivo
com a metafísica” (p. 68).
Ela, a metafísica, ainda persiste quando “a hierarquia platônica entre sensível e
supra-sensível se inverte e então se experimenta o sensível mais essencial e mais
amplamente num sentido que Nietzsche denomina Dionisíaco” (Heidegger, 2002, p.
106).
O fundamental, é que Nietzsche pensa o ser absolutamente no sentido platônico e
metafísico – mesmo enquanto inversor do platonismo, mesmo enquanto
“antimetafísico”. E isto porque que Nietzsche concebe “o ser como um valor” na
perspectiva da vontade de poder. Senão vejamos.
Em Teoria Platônica da verdade, Heidegger (2008a) afirmar que, a partir de
Platão, o “pensar sobre o ser do ente” tornou-se “filosofia”: um olhar ascendente em
direção às “idéias”. Decisivo é que a “filosofia”, que só começa com Platão, toma a
partir daí o caráter daquilo que mais tarde se vai chamar de “metafísica”.
A configuração fundamental da metafísica torna-se visível por meio do próprio
Platão na história que narra a “alegoria da caverna”. Nas descrições de Platão, onde
torna claro “o acostumar-se do olhar às idéias”, o pensar vai “além” daquilo que é
experimentado apenas sob a forma de sombra e cópia, em direção das “idéias”. As
idéias são o supra-sensível contemplado em um olhar não sensível, o ser do ente que
não pode ser apreendido como o instrumento do corpo. E o mais elevado no âmbito do
supra-sensível é aquela idéia que, como a idéia das idéias, continua sendo a causa
originária de toda consistência e aparecimento de todo ente. Porque essa “idéia” é deste
modo a causa de tudo, ela também é a idéia que se chama “o bem”. Desde a
interpretação do ser como idéia, o pensar sobre o ser do ente tornou-se metafísico, e a
metafísica tornou-se teológica.
A alegoria da caverna oferece uma visão daquilo que propriamente acontece no
Ocidente: o homem pensa na perspectiva da essência da verdade como “retidão do
representar” de todo ente segundo “idéias” e avalia todo real segundo “valores”. O real
é interpretado segundo “idéias” e, em geral, o mundo é avaliado segundo “valores”.
Ora, se Platão concebeu o Ser como idéia e a idéia como modelo e, como tal,
também normativa (a idéia do bem, do belo, do justo), o que será mais sugestivo do que
se compreender, então, as Idéias de Platão no sentido de valores e interpretar o ser do
ente a partir do valor?

150
Segundo Heidegger (1999), o pensamento do valor, que pensa e opera segundo
“valores”, se consolidou no século XIX, o que não dever surpreender quando o próprio
Nietzsche, e justamente ele, haver pensado inteiramente dentro da perspectiva de uma
“representação do valor”. O subtítulo de sua obra principal planejada Vontade de Poder,
nesse ponto é claro: “uma tentativa de uma inversão (transvaloração) de todos os
valores”. O terceiro livro da obra se intitula “Princípio de uma nova valoração”.
Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche (1998) afirma que “a essência de uma
coisa”, é tão somente uma significação sobre a „coisa‟. Ou, antes, o seu “valer” (valor) é
propriamente o seu ser, o único que é algo.
Para Nietzsche, o homem é um “o animal avaliador”, por ser “aquele que avalia”.
Em A Genealogia da moral, concebe que o homem se designa “como o ser que mede
valores, que avalia e mede, o animal avaliador” (Nietzsche, 2001, p. 59).
A história da filosofia ou da metafísica, termos sinônimos para Heidegger,
confunde-se em definitivo com a história da emergência lenta e progressiva do “pensar
segundo valores”. Esta assimilação do ser ao valor, levada a cabo em várias etapas,
culminando com Nietzsche, encerra a história da metafísica enquanto história do
platonismo.
Podemos, assim, retomar a nossa questão inicial: o pensamento de Nietzsche
representa a ultrapassagem da metafísica?
Ora, com Heidegger podemos afirmar que não. E isso porque a saída “para fora da
metafísica” é muito mais difícil de ser realizada do que, em geral, imaginam aqueles que
julgam tê-la realizado há muito tempo. Em geral, eles próprios estão mergulhados na
metafísica por todo o corpo do discurso que pretendem ter libertado dela. Na verdade,
no desejo de ultrapassagem da metafísica, acaba-se por realizar a própria metafísica ao
repeti-la.
Sartre, por exemplo, expressa o princípio básico do existencialismo do seguinte
modo: “A existência precede a essência”. O fato é que ele toma a existência e a essência
no sentido da metafísica, que desde Platão afirma que “a essência precede a existência”.
Sartre inverte esta frase. Mas a inversão de uma frase metafísica continua sendo uma
frase metafísica. Com essa frase, ele continua preso, junto com a metafísica, no
esquecimento do ser (Cf. Heidegger, 2008b, p.341).
“A metafísica”, dirá Heidegger (2002, p. 61), “não se desfaz como se desfaz uma
opinião. Não se pode deixá-la para trás como se faz com uma doutrina em que não mais
se acredita ou defende”. Sendo assim, não podemos imaginar que podemos ficar “fora

151
da metafísica”. Isso porque, “depois da superação, a metafísica não desaparece. Retorna
transformada e permanece no poder como a diferença ainda vigente entre ser e ente”
(Idem, p. 62).
O fato é que sempre queremos voar no vácuo, mas sempre respiramos o ar impuro
da metafísica. É que “ninguém consegue pular a própria sombra” (Heidegger, 1999, p.
218).
Em Humano, Demasiado Humano, no aforismo intitulado Mundo Metafísico, o
próprio Nietzsche parecer reconhecer essa impossibilidade, qual seja, de uma posição
fora da metafísica: “Olhamos todas as coisas com a cabeça humana, e é impossível
cortar essa cabeça; mas permanece a questão de saber o que ainda existiria do mundo se
ela fosse mesmo cortada” (Nietzsche, 2000, p. 20).

A metafísica da vontade de poder

Este mundo é vontade de poder – e nada além disso! E também vós mesmos
sois essa vontade de poder – e nada além disso! (Nietzsche, 2008, p. 513).

Para Heidegger (2007a) a expressão “vontade de poder” (Wille zur Macht)


denomina o caráter fundamental do ente; todo ente que é, na medida em que é, é
vontade de poder. Todavia, a vontade de poder em sua essência mais profunda não é
outra coisa senão a estabilização do devir na presença, eis a tese central de Heidegger.
E para fundamentá-la, cita o próprio Nietzsche: “Recapitulação: Cunhar sobre o devir o
caráter de ser – essa é a mais elevada vontade de poder”. (...) “Que tudo retorna é a
aproximação mais extrema de um mundo do devir ao mundo do ser: Ápice da
consideração” (Nietzsche apud Heidegger, 2007a, p. 509).
A leitura comum da filosofia de Nietzsche compreende que a essência do ente na
totalidade é caos, ou seja, o “devir” e precisamente um não “ser” no sentido do fixo e do
constante. O essencial é que o ser é deslocado em favor do devir, cujo caráter de devir e
de movimento se determina como vontade de poder. Diante desta constatação,
Heidegger se pergunta: “ainda se pode denominar então o pensamento nietzschiano um
acabamento da metafísica? Ele não é a sua recusa ou mesmo superação? Para fora do
ser – em direção ao devir?” (Heidegger, 2007a, p. 508).
Seguramente, Nietzsche quer o devir e o que a vem a ser como o caráter
fundamental do ente na totalidade (a vida, a natureza, o conhecimento). O problema é
que ele quer o devir precisamente e antes de tudo como o que permanece – como o

152
propriamente “ente”; a saber, ente no sentido dos pensadores gregos (Platão e
Aristóteles). Mas vejamos, a partir de Heidegger, em que consiste, em seus
componentes essenciais, a vontade de poder como metafísica.

A superpotencialização do poder: a elevação e a conservação

Nietzsche reconhece e posiciona o caráter fundamental do ente na totalidade no


que denomina “vontade de poder”. O conceito não delimita apenas o que o ente é em
seu ser (o-que-é; a qüididade). O fundamental é que a expressão “vontade de poder” que
se tornou multiplamente corrente também concerne a uma interpretação da essência
mesma do poder. Todo poder só é poder na medida é mais poder, ou seja, elevação do
poder. O poder só pode se manter em si mesmo, isto é, em sua essência, na medida em
que ele ultrapassa e excede o nível e configuração de poder a cada vez alcançado,
portanto, na medida em que ultrapassa e excede a cada vez a si mesmo. O movimento
do poder que se lança para além (über) de suas configurações a cada vez alcançadas,
Heidegger designa de superpotencialização (Übermächtigung). Em suma, “vontade de
poder” significa: “o apoderar-se do poder para a sua própria superpotencialização”
(Heidegger, 2007b, p. 25).
Como superpotencialização, a vontade de poder se constitui de componentes ou
dimensões essenciais: a elevação e a conservação.
No dizer de Nietzsche (2008): “o que o homem quer, o que cada mínimo pedaço
de um organismo vivo quer é mais poder” (p. 354). Na vontade como “querer-ser-
mais”, reside essencialmente a intensificação, a elevação do poder. Daí que somente
uma elevação mais poderosa pode fazer com que se escape da tendência para o declínio.
O Próprio Nietzsche dá um exemplo para descrever esse processo:

Tomemos o exemplo mais simples, o exemplo alimentação primitiva: o


protoplasma estende seus pseudópodes para procurar por algo que se lhe
contraponha – não por fome mas por vontade de poder. Então, ele tenta
superá-lo, apropriar-se dele, incorporá-lo: O que se denomina „alimentação‟ é
meramente um fenômeno secundário, uma aplicação prática daquela vontade
originária de se tornar mais forte (Nietzsche, 2008, p. 355).

Heidegger chama a atenção para o fato de que a vontade de poder não ser tão
somente a vontade de uma entidade singular, real. De modo mais fundamental, ela diz
respeito ao ser e à essência do ente. O que é a vontade de poder? Ela é “a essência mais
íntima do ser” (Nietzsche, 2008, p. 351).
153
Tendo em vista que a vontade de poder define o caráter fundamental do ente, a
essência da vontade só pode ser questionada e pensada com vistas ao ente enquanto tal,
isto é, metafisicamente. A verdade desse projeto do ente, o modo como se constitui em
seu ser no sentido da vontade de poder possui um caráter metafísico: “o ente já é
projetado de antemão com vistas ao caráter fundamental da vontade de poder enquanto
ser” (Heidegger, 2007b, p. 200).
Para Heidegger, a vontade de poder é ao mesmo tempo criadora e destruidora. O
assenhorar-se-para-além-de-si é sempre também aniquilação das configurações
existentes. Todos os momentos introduzidos da vontade – o para-além-de-si, a
intensificação, o caráter de comando, o criar, o afirmar-se – “falam de maneira
suficientemente clara e deixam reconhecer que a vontade é, em si, vontade de poder”
(Heidegger, 2007a, p. 58).
Para Nietzsche todo vivente é vontade de poder101: Ter e querer ter mais, dito em
uma palavra crescimento – isto que é a própria vida (cf. Nietzsche, 2008). Ora, toda
mera conservação de poder já é decadência da vida. Daí decorre que o poder só pode
apoderar-se de si mesmo para uma superpotencialização na medida em que comanda
antes de tudo a elevação e a conservação. Decisivo é que o próprio poder e apenas ele
pode estabelecer as condições da elevação e da conservação.
Neste exato ponto, Heidegger (2007b) levanta a seguinte questão: “de que tipo são
essas condições estabelecidas pela própria vontade de poder e condicionadas, assim, por
ela?” (p. 203). A resposta encontra-se no próprio Nietzsche: “o ponto de vista do „valor‟
é o ponto de vista das condições de concervação-elevação com vistas a conformações
complexas de duração relativa de vida no interior do devir” (Nietzsche, 2008, p. 360).
Segundo Heidegger, o valor é essencialmente o ponto de vista, “a perspectiva”, do
ver potencializante e calculador da vontade de poder.
Daí a importância que assumem os valores no que concerne “as condições da
vontade de poder”, que Nietzsche denomina “as condições de conservação-elevação”.
Ora, “com que se mede objetivamente o valor? Somente com a quantidade de poder
incrementado e organizado” (Nietzsche, 2008, p. 340).
Assim, a vontade de poder é, em si mesma, instauradora de valores. Que todos os
“fins”, “metas”, “sentidos” são somente modos de expressão e metamorfoses da única

101
Em Nietzsche, a vontade de poder mostra-se como o caráter fundamental da vida. A “vida” é
considerada por Nietzsche como uma outra palavra para dizer “ser”. “O ser – não temos nenhuma outra
representação disso, a não ser „viver‟. – Como pode, portanto, algo„ser‟ morto?” (Nietzsche, 208, p. 301).

154
vontade: a vontade de poder. “Querer em geral, tal é como querer-tornar-se-mais-
fortalecido, querer crescer, e para tal também querer os meios” (Nietzsche, 2008,
p.340). Os meios essenciais, porém, são aquelas “condições” de elevação-conservação
sob as quais a vontade de poder se encontra segundo a sua essência: os “valores”.
“Em toda vontade há um avaliar”. Na medida em que se essencializa como
vontade de poder, todo ente é “perspectivístico”. Dessa compreensão decorre o juízo:
“Se quiséssemos sair do mundo das perspectivas, então pereceríamos” (Nietzsche,
2008).
Nesse ponto, compreende-se o perspectivismo e seu nexo com a vontade de poder.
Ela, a vontade de poder – e apenas ela – é a vontade que quer valores. Daí ela se
apresentar como “o princípio da instauração de valores” que as condições de elevação e
conservação impõem.
Para Heidegger (2000), o pensamento moderno tem como condição de
possibilidade o que nomeia de metafísica da subjetividade. A subjetividade como uma
figura emblemática da vontade de poder é, enquanto tal, “instauradora de valores”. A
“verdade” mesma, o ser do ente enquanto o ser do constante revela-se enquanto valores
que são estabelecidos no seio da vontade de poder essencialmente instauradora de
valores. A subjetividade é a verdade da objetividade. Nessa verdade, o ser do ente se
manifesta modernamente.

O dispositivo como o impensado do pensamento calculador

O esquecimento do ser, a indiferença ontológica conduz ao uso e consumo dos


entes. O cálculo planificador e o consumo incluem o uso regulamentado dos entes, que
se tornam oportunidade e matéria para os desempenhos e sua intensificação em um
fundo de reservas calculáveis. O pensamento calculador submete a si mesmo tudo à
ordem e ao planejamento a partir da lógica conseqüente de seu procedimento.
Procedimento que faz com que, de antemão, o ente mesmo se manifeste sob a forma do
que pode ser produzido e consumido.
A indiferença ontológica no pensamento calculador conduz ao abuso de toda
matéria, inclusive da “matéria-prima” chamada “homem”.
Hoje, a tecnociência comandada pela cibernética, tecnologias da informação e
biotecnologias realizam o “homem numérico”, “enumerável”: digitalizado,
desmaterializado, desencarnado; o “homem orgânico-natural” desaparece na linguagem

155
numérica dos fluxos de codificação de informação. A digitalização da vida (na
genômica), a virtualização do corpo (na realidade virtual), a produção da memória
biotecnológica (na bioinformática) e da inteligência (na inteligência artificial) são os
desdobramentos mais visíveis do pensamento calculador proveniente da cibernética. O
homem numérico, enumerável, calculável, operacional mostra-se como um fundo de
reserva, um dispositivo cibernético-informacional (Cf. Lima, 2010).
Quando perguntamos seriamente pela dinâmica da tecnociência e pelo projeto de
constituição do ser do ente que ela instaura, vemos que o ente (naquilo que-é , como-é,
seu valor) é desencoberto como um “ente informacional”, que contém um programa
capaz de codificar e decodificar instruções, mensagens, informações. Na imagem do
ente como uma espécie de autômato lógico que processa informação, temos uma
compreensão prévia do ser do ente determinada pela ciência da cibernética. Os entes
mesmos, enquanto viventes, não apenas se abrem às explicações em termos de cálculo e
comunicação, como também, em princípio, eles mesmos são calculáveis, traduzíveis,
codificáveis, comunicáveis. É importante lembrar que esse projeto ontológico de
constituição do ser do ente posto em curso pela cibernética, marcado pela dinâmica da
miniaturização, da desmaterialização e da aceleração, sustenta o vasto campo das
práticas e dos saberes provenientes da inteligência artificial, das neurociências, da
realidade virtual, da biologia molecular e ciências da vida (Cf. Lima, 2010).
A questão que se coloca é: onde estamos nós? Em que constelação de ser e
homem, na qual homem e ser se interpelam mutuamente? A que apelo responde o
homem?
Em Identidade e Diferença, Heidegger (2006) observa que toda a nossa existência
se vê, em toda parte, - seja por diversão, seja por necessidade, ou incitada ou forçada -,
provocada a se dedicar ao planejamento e cálculo de tudo.

O que fala nesta provocação? Decorre ela apenas de um arbitrário capricho


do homem? Ou nela nos aborda e desafia já o ente mesmo, e justamente de
tal modo que nos interpela na perspectiva de sua aplicabilidade e
calculabilidade? Será que até mesmo o ser estaria sendo provocado a
manifestar o ente no horizonte da calculabilidade? Efetivamente. E isto não é
tudo. Na mesma medida que o ser, o homem é provocado e desafiado à
armazenar o ente que aborda como fundo de reserva para o seu planificar e
calcular e realizar esta exploração indefinidamente (Heidegger. 2006, p. 46-
47).

Para Heidegger, o nome para todo o processo de provocação que leva o homem e
o ser a um confronto de natureza tal que se implicam mutuamente se denomina “o

156
dispositivo (Gestell)”. A palavra dispositivo diz o império da racionalidade técnica-
calculadora, que caracteriza uma época em que o homem busca as razões, as causas, os
fundamentos de tudo, calculando a natureza, que, por sua vez, provoca a razão do
homem a explorá-la como um fundo de reserva sobre o qual dispõe.
O dispositivo nos agride diretamente em toda parte. E curiosamente, às suas
reivindicações e apelos respondemos positivamente em nossas ocupações diárias: no
trabalho, na pesquisa, na atividade acadêmica, no lazer, nos empreendimentos culturais.
No cálculo mora todo planejamento e pesquisa, todo processamento e investigação, toda
produtividade e eficiência. O dispositivo, observa Heidegger (2006), é mais “real” que
todas as energias atômicas e toda a maquinaria, mais real que a violência da
organização, da informação e da automatização. E, mesmo assim, ele nos é estranho.
Em face da indiferença ontológica e do processo de desertificação que instaura, o
dispositivo é o impensado no pensamento calculador, o que nos cabe pensar
cuidadosamente e que ainda não pensamos.

Considerações finais: vontade de poder e maquinação

Ao predomínio do ser como vontade de poder nessa configuração essencial,


Heidegger (2010) denomina maquinação (Machenschaft). A maquinação significa a
factibilidade do ente, uma factibilidade que a tudo faz e constitui e por isso mesmo
determina a entidade do ente ou o projeto de sua constituição ontológica (o-que-é,
como-é, seu valor).
O “factível”, aqui, significa: o que é passível de ser feito. A maquinação é o
edificar-se com vistas à possibilidade de que “tudo seja feito”; e isto de tal modo, que o
ente mesmo seja previamente posicionado e exposto à calculabilidade incondicionada:
“tudo” (a natureza, a cultura, o humano e o não-humano), incondicionalmente, adentra e
sujeita-se a ordem do cálculo.
Na maquinação, todo questionamento da “verdade do ser” são substituídos pela
apresentação de “metas” e “valores” maquicionais. Por exemplo, hoje projeta-se por
meio de uma ética ou de uma educação (a bioética, a ética ambiental, a eco-pedagogia,
etc.) a edificação de “novos valores” por meio da “vida”, depois desta já ter sido
totalmente mobilizada e objetificada pela técnica e ciência modernas.

157
O problema é que a inquestionabilidade do ser, vale dizer, a indiferença
ontológica, decide quanto à entidade do ente. Conseqüentemente, o ser mesmo do ente
como vontade de poder entrega-se a uma maquinação desenfreada.
Curiosamente, a “era da maquinação consumada” possui mais inventividade,
criatividade e mais formas de ocupação, de vivências e de sucesso do que qualquer
outra era.
A maquinação, a calculabilidade, a planificação que impulsiona e cria a
necessidade de sempre novas metas e que conta com novos valores, ao mesmo tempo
em que define o projeto fundamental do ente, estabelece o modo como ele deve ser
produzido, consumido e representado; por exemplo, na obra de arte, quando o ente é
representado como produto técnico ou política cultural estatal, ou ainda como produto
para o consumo desenfreado no mercado. Daí segue-se que a maquinação do ente
impulsiona construtivamente o “empreendimento cultural” e seus “ideais” em seus
planejamentos como meios de poder102.
Em parceria com a produtividade, como domínio da cultura, a ciência que se faz
hoje na Universidade, em todos os seus setores, mostra-se como uma mera questão
técnica e prática de adquirir e transmitir conhecimentos. A partir da compreensão
técnico-prática da ciência, chega-se a fazer da pesquisa e do conhecimento uma
“profissão de cultura” na exata medida em que a ciência se converteu num “valor” e
num “empreendimento cultural”. Daí que da ciência universitária, “não poderá partir
nunca um despertar do espírito. É de espírito que ela própria necessita” (Heidegger,
1999, p.74).
Na maquinação, o pensar calculador e o pensar valorativo revelam-se como duas
faces de um mesmo problema. Sob o comando da superpotencialização do poder (em
sua essência desprovido de quaisquer metas, haja vista que a vontade de poder não quer
outra coisa senão a si mesma), o calcular e o valorar, a técnica e o valor corroboram
para as condições de elevação e conservação do próprio poder.
A maquinação que instaura a si mesma inventa os “valores” (os valores
humanísticos, culturais). No dizer de Heidegger (2007, p. 14), “o valor é a tradução da

102
A despeito das obras de arte e das produções artísticas modernas, Heidegger (2010) observa que as
mesmas revelam a sua essência maquinacional quando assumem a forma de “instalações”. Como
maquinação, as instalações determinam de antemão “o conjunto das vivências” na esfera pública
normativa ao definir e difundir o que é digno de ser vivenciado. O “museu” não é mais agora o lugar da
conservação do passado, mas ele se mostra como o lugar da exposição conclamadora, instrutiva,
estimulante de vivências e, assim, vinculado ao planejado. A instalação organiza a vida pública das
massas, cujo propósito insere-se no culto das personalidades.

158
essencialidade (isto é, da entidade do ente) no elemento do calculável e, por
conseguinte, naquilo que avaliado segundo o número e a medida espacial”.
Segundo Heidegger, a metafísica da vontade de poder é com razão e
necessariamente um pensar valorativo que opera ao modo do cálculo. No “contar com
valores” e no avaliar segundo relações valorativas, a vontade de poder como “o eterno
potencializar-se desprovido de metas” quer verdadeiramente apenas a si mesma.

Referências

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Petrópolis, Editora Vozes, 2000.

______________. Teoria Platônica da Verdade, in Marcas do Caminho. Tradução de


Enio Paulo Gichini e Ernildo Stein. Petrópolis, Editora Vozes, 2008a. pp. 215-250.

_____________. Carta sobre o Humanismo, in Marcas do Caminho. Tradução de Enio


Paulo Gichini e Ernildo Stein. Petrópolis, Editora Vozes, 2008b. pp. 326-376.

______________. Identidade e Diferença, in Que é isto – A Filosofia? Tradução de


Ernildo Stein. Petrópolis, Editora Vozes, 2006. pp. 33-77.

______________. A Superação da Metafísica, in Ensaios e Conferências. Tradução de


Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, Editora Vozes, 2002a. pp. 61-86.

______________. A Questão da Técnica, in Ensaios e Conferências. Tradução de


Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, Editora Vozes, 2002b. pp. 11-38.

______________. Introdução à Metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio


de Janeiro, Editora Tempo Brasileiro, 1999.

______________. Meditação. Tradução de Marco Antonio Casa Nova, Editora Vozes,


2010.

____________. Nietzsche I. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. São Paulo:


Forense Editora, 2007a.

____________. Nietzsche II. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. São Paulo:
Forense Editora, 2007b.

____________. Metafísica e Niilismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.


LIMA, H. Do Corpo-Máquina ao Corpo-Informação: o pós-humano como horizonte
biotecnológico. Curitiba, Editora Honoris Causa, 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Poder. Tradução de Marcos Fernandes e


Francisco Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

159
_____________. Crepúsculo dos Ídolos – ou como filosofar com o martelo. Tradução
de Marco Antonio Casa Nova . São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

_____________. Genealogia da Moral – uma polêmica. Tradução de Paulo Cesar de


Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

____________. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Mario da Silva. Civilização


Brasileira, 1998.

160
Formação Discursiva da Plenitude em Educação: desconstruindo
a sagrada condição do homem

Karina Mirian da Cruz Valença Alves

Atualmente uma série de discursos tem se articulado em torno de uma


concepção algo “reencantada” da natureza: movimentos ecologistas, ao mesmo tempo
em que pedem pela preservação do meio ambiente, agenciam o seu canto, na reverência
quase mítica que prestam à Terra e a todas as suas formas de vida.
Uma perspectiva biosférica da vida, assente na necessidade de uma nova
cosmologia e no reconhecimento de que a vida na natureza mantém-se através da
cooperação orgânica e sistêmica, do cuidado e do amor mútuos, se articula. Aí, o apelo
educativo se indicará: é preciso conscientizar para a vida harmonizada na/com a Terra.
Devemos aprender com a natureza (e agora com a cultura “naturalizada” pela
ecologização do pensamento e de práticas compatíveis) que encontrar a felicidade não
implica em subjugar ou transcender o “reino da natureza”. Bem ao contrário, deve-se
aprender a estimular e conservar a potencial subsistência da natureza em todas as suas
dimensões e manifestações, inclusive, e, talvez, sobretudo, em nós mesmos.
Uma espécie de eco-bio-religião (SFEZ, 1996)103 emerge como modo de ligação
da ciência, da técnica, da gestão, de governo, da religião, da educação, de modo que,
inclusive, as esferas axiológicas diferenciadas das sociedades modernas (talvez,
principalmente elas!)104 foram, também, reunidas sob a égide da preocupação comum


Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco e professora da Faculdade Educação
da Universidade Estadual do Ceará no Curso de Pedagogia. E-mail: karinamirian@gmail.com
103
Com a expressão eco-bio-religião, Sfez (1996) se refere a uma vasta narrativa das origens (do
universo, da natureza, do homem), que, se dirigindo a um passado arcaico, projeta no futuro um mundo
infinitamente melhor que o atual, com base nos avanços das tecnologias. Como analisa o autor, tendo-se
dissolvidos os grandes programas de transformação do mundo e da história, as “metanarrativas”, das
quais Lyotard (1999) fez a crítica inaugural, hoje parece que encontramos um novo fundamento de
sentido, que repousa na base mais material, mais extrema que existe: no nosso aparelho de percepção do
mundo e de ação sobre o mundo, o corpo, que cultuamos em nome da “saúde perfeita”. Utilizamos a
expressão cunhada por Sfez para nos referir à característica também comum aos discursos da plenitude de
elaborar uma “narrativa das origens” e de projetar um futuro pacificado por uma relação sustentável com
a natureza, que hoje “cultuamos” em nome da salvação da vida no planeta Terra.
104
Para Max Weber, era evidente a relação íntima, não apenas contingente, entre a modernidade e aquilo
que ele designou como racionalismo ocidental. Ele descreveu como racional o processo de
desencantamento que levou à desintegração das concepções religiosas do mundo e à geração, na Europa,
de uma cultura profana e laica da qual fazem parte as esferas axiológicas sociais e culturais (Cf.
HABERMAS, 2000).

161
com a vida, naturalizada e sacralizada, numa indissociável visão ecológica e
cosmológica. Na maneira de moralizar a relação com a natureza, assenta-se uma
divinização dessa mesma relação, divinização que empresta aos discursos um caráter
também mítico.
Tal arranjo articula a produção discursiva de um indivíduo ecologicamente
normalizado, caracterizado por uma relação mais “sensível”, “amorosa”, “direta” e
“sustentável” para com a natureza, como saída para os impasses gerados pela
modernidade e como ideal de sujeito de uma contemporaneidade desprovida de
modelos. Para nós, a formação discursiva em análise, que advém e estende a crise do
humanismo, cultuando uma espécie de sagrada condição natural do homem, engendra
questões que, a nosso ver, merecem ser pensadas desde um ponto vista biopolítico,
aspecto que esboçamos a seguir.
Assentados em um estranho “neohumanismo”, um neo-humanismo ecológico,
biocêntrico, por assim dizer (que coloca, lado a lado, o homem, os seres vivos e animais
de toda espécie), os discursos da plenitude parecem corroborar uma crise da política em
termos de uma supervalorização da esfera de zôê (a vida natural), em detrimento de bios
(a vida politicamente qualificada), esferas que tradicionalmente estruturaram os
humanismos105. Para nós, é preciso alertar para os perigos inscritos no clamor por
reconhecer “o valor intrínseco de todos os seres vivos” (CAPRA, 1996, p. 26) e na idéia
de conceber os seres humanos “apenas como um fio particular na teia da vida” (idem,
ibid.), tal como propõem hoje os discursos da plenitude. Nestes casos, nos parece, como
alerta Carvalho (2006), o que está em risco de extinção, respectivamente às bases de
sustentação material do planeta, são as bases mesmas de compreensão da vida política
contemporânea.
Neste “novo naturalismo” que emerge – que denominamos de “biocêntrico” –
circula a idéia de que não podemos entender a natureza de forma separada das
sociedades humanas, na medida em que estas estão situadas na natureza que
transformam e da qual dependem para sobreviver. A natureza tem uma história, que, por

105
Segundo Agambem (1998), os gregos antigos não tinham um termo para exprimir aquilo que nós
entendemos por vida. Eles tinham dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que
remetam a um étimo comum: zôê, que exprimia o simples fato de estar vivo, comum a todos os seres
vivos (animais, homens e mesmo deuses) e bios que definia a forma ou maneira própria de cada indivíduo
ou grupo. Neste último caso, trata-se não da simples vida natural, mas de uma vida qualificada, um modo
particular de vida. A vida natural está excluída, no mundo clássico, da polis e permanece confinada como
mera vida reprodutiva, ao âmbito do oikos.

162
sua vez, está cada vez mais interligada com a história das sociedades (Cf. DIEGUES,
2000). Ou, de outra feita, a própria história das sociedades não pode ser mais desligada
da história da natureza. Mais do que isto, o que de resto nos parece tácito, tal
naturalismo afirma a unidade entre a sociedade e a natureza: o homem está dentro da
natureza, e essa realidade não pode ser abolida. A natureza não é um meio exterior ao
qual o homem se adapta. O homem é natureza e a natureza, seu mundo.
Comemorando o sagrado natural, que se eleva acima do militantismo ecológico
dos anos 1960-70, intelectuais práticos trabalham para uma revolução da consciência:
organizam-se em redes paralelas para estabelecer uma sociedade comunitária,
descentralizada, não violenta e convival (Cf. ALPHANDÉRY, BITOUN E DUPONT,
1992).
Tais questões constituem o pano de fundo que circunscreve o horizonte de
problemática de nossa Tese de Doutorado, realizado no Programa de Pós-graduação em
Educação da UFPE, que apresentamos sucintamente neste artigo. Desta feita, podemos
caracterizar nosso objetivo no trabalho: analisar os discursos veiculados no campo da
educação que constituem a formação discursiva da plenitude. Pensando esses discursos
como práticas discursivas, isto é, discursos que vêm acompanhados de práticas
institucionais e educacionais, se desdobrando em práticas sociais mais amplas,
buscamos identificar os enunciados que sugerem a configuração da formação discursiva
da plenitude em educação, relacionando-os aos lugares de produção dos discursos e
àqueles que lhes fazem difundir, associando, a isto, as práticas discursivas que investem
na produção de uma subjetividade ecológica.
Se, de fato, ingressamos numa formação discursiva que dissolve as fronteiras
que o homem ocidental erigiu para conceituar a si e a seu mundo – através do
funcionamento de um “dispositivo da plenitude” que liga indissociavelmente aquilo que
antes foram pólos opostos -, nos interessa saber como operam tais enunciados e que
efeitos de verdade são daí decorrentes.

Natureza e cultura: a zôê da política

Se, ainda segundo Carvalho (Op. Cit), podemos afirmar uma politização da
natureza pelos movimentos sociais e pelas lutas ecológicas (que conquistam um espaço
crescente como objeto de discussão política na sociedade), também podemos observar a

163
delicada fronteira que, no limite, aponta para uma biologização da política, ou seja, a
afirmação de uma suposta ordem natural sobre a polis.
Desdobrando a análise, nos amparamos em Agamben (1998), para quem, se há
algo que distingue a democracia moderna da antiga é o fato de aquela se apresentar,
desde o início, como uma reivindicação e uma libertação da zôê, de buscar transformar a
própria vida nua em forma de vida politicamente qualificada e encontrar, por assim
dizer, o bios da zôê.
Tendo como princípio essa zona de indistinção entre zôê e bios, podemos dizer
que a nossa política não conhece hoje outro valor que não seja o da vida nua. Se outrora
a felicidade já implicou uma libertação da zôê, hoje as promessas de felicidade reenviam
para uma afirmação da zôê como condição de sua efetivação plena.
Em A Vontade de Saber, Foucault resume o processo pelo qual, na modernidade,
a vida natural foi incluída nos mecanismos e cálculos do poder do Estado e a política se
transforma em biopolítica: “Durante milênios, o homem foi sempre o que era para
Aristóteles, um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem
moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivo”
(FOUCAULT, 1993, p. 167). Na célebre passagem da Política, em que Aristóteles
define o homem como animal político (politikon zôon), “político” não é um atributo do
ser vivo enquanto tal, mas uma diferença específica que determina o humano (Cf.
AGAMBEN, 1998).
A entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber
e nos mecanismos e cálculos do poder, isto é, no campo das técnicas políticas, constitui
uma espécie “bio-história” (FOUCAULT, 1993, p. 134) e define o limiar de nossa
modernidade, quando a política se converte em biopolítica.
A gestão dos processos vitais da população é a marca da biopolítica, em que se
integram os mecanismos de normalização e os sistemas mais gerais de regulamentação
da vida da população. Em um de seus últimos escritos, Foucault (1999b) afirma que o
Estado ocidental moderno integrou, num grau sem precedentes, técnicas de
individuação subjetivas e processos totalizantes objetivos, e fala de um “duplo laço
político”, simultaneamente constituído pela individuação e pela totalização das
estruturas do poder moderno. Há, assim, uma zona de intersecção onde as técnicas de
individuação e os processos totalizantes se tocam, e essa zona se concentra, cada vez
mais, na vida dos indivíduos enquanto tal.

164
O sexo, tal como Foucault analisou no primeiro volume da História da
Sexualidade é, então, a “dobradiça” que articula a disciplina do corpo (da mulher, da
criança, do onanista etc.) e a regulamentação da população (haja vista, por exemplo, as
políticas de contracepção, controle de natalidade, a atual preocupação com as doenças
sexualmente transmissíveis etc.), sendo o “dispositivo da sexualidade” o ponto de
entrecruzamento entre a normalização e a gestão da vida.
A politização da vida nua – a biopolítica – não significa, simplesmente, uma
instrumentalização da vida enquanto tal, mas, antes, o fato de que, na modernidade, a
vida como um dado biológico é imediatamente política, isto é, é condição da política
operar sobre a vida biológica. Ou, dito de outro modo, o político já faz parte da vida nua
como o seu núcleo mais precioso. Os campos de concentração ensinaram que pôr em
questão a condição de homem provoca uma reivindicação quase biológica de pertença à
espécie humana: pertencer à “espécie humana” – à esfera da zôê – e protegê-la é só o
que lhe resta.
Já no final dos anos 1950, em A Condição Humana, Hannah Arendt tinha
analisado o processo que leva o homo laborans – o homem circunscrito à sua relação
com o meio, com o qual instaura processos puramente metabólicos que garantam a sua
sobrevivência enquanto espécie - a ocupar progressivamente o centro da vida política da
modernidade. Esta primazia da vida natural sobre a ação política assinala a
transformação e a decadência do espaço público nas sociedades modernas.
Enquanto alguns intelectuais alimentam ainda o debate teórico sobre se estamos
ou não numa pós-modernidade (LYOTARD, 1989), ou se numa alta modernidade
(GIDDENS, 1999), ou, ainda, numa modernidade irrealizada (HABERMAS, 2000),
sábios, biólogos, físicos, matemáticos, mas também na sua esteira, cientistas sociais,
psicólogos, educadores, filósofos e ecologistas recolocam as coisas em ordem,
propondo-nos a percepção de outra realidade, mais “verdadeira”, nova e, ao mesmo
tempo, ancestral - uma realidade que sempre esteve aí, nós é que não estávamos prontos
para vê-la.
Como aponta Vaz (1998), hoje parece impossível deixar de pensar “a história
humana na continuidade e na dependência da história da matéria e da vida” (p.177),
num processo de desmantelo do “funcionamento legal” que regeu as relações simbólicas
entre natureza e cultura, de tal modo que “a lei que vale para a história deve ser a

165
mesma que vale para a ontogênese e a filogênese” (idem, ibid.)106. Desse modo,
compõe-se a escritura de uma História antiga, ancestral, reassegurando, com isso, as
nossas identidades, antes questionadas: a Grande História do Vivo (a matéria viva de
hoje é ligada à matéria viva das eras precedentes). Se da identidade não restava mais a
dizer senão sua crise, temos agora a certeza de pertencer a essa grande categoria dos
seres vivos (a história do homem devolvida à história mais ampla da Terra). Ao invés da
separação entre natureza e cultura, separação que já foi justificada pela necessidade de
ordenar simbolicamente o mundo e pela relação singular do homem com o tempo, uma
indistinção de fronteiras: os seres humanos, uma espécie tão particular quanto as outras.
No núcleo do humanismo – sistema de pensamento que nos ensinou a ver o
nosso lugar no mundo a partir da demarcação de fronteiras e da fixação de alteridades
entre o humano e não-humano -, sempre atuou a idéia de que existe entre o homem e os
demais seres uma diferença não apenas de gênero ou espécie, mas uma diferença
ontológica. O próprio modo de ser dos humanos distingue-se de todos os outros seres
vegetais e animais, pois o humano tem um mundo e está no mundo, enquanto plantas e
animais estão atrelados apenas aos seus respectivos ambientes. Mesmo a formulação do
humanismo clássico do ser humano como animal racional não aceita uma
indiferenciação entre homem e animal. Ser racional e dotado de uma dimensão
espiritual distingue o homem de todos os animais, além de elevá-lo acima deles (Cf.
SLOTERDIJK, 2000).
Como observa Agamben (1998), o princípio do caráter sagrado da vida tornou-
se tão familiar para nós, que hoje nos esquecemos que a Grécia clássica, a quem
devemos a maior parte dos nossos conceitos éticos e políticos, não só ignorava tal
princípio, como sequer possuía um termo para exprimir, em toda a sua complexidade, a
esfera semântica que nós indicamos com um único termo, a “vita”. A oposição entre
zôê e bios, ou seja, entre a vida em geral e o modo de vida qualificado que é próprio dos
homens, tão decisiva para a emergência da política e da sua possibilidade, não contém
nada que possa fazer pensar em algum caráter sagrado da vida enquanto tal107.

106
Para Vaz (op. Cit.), se existe uma peculiaridade da cultura, ela deixa de significar uma fronteira
ontológico-legal. Dentro da mesma lei de funcionamento, o surgimento do homem passa a ser visto
apenas como a aceleração dos processos que regem a matéria e a vida.
107
De resto, a vida em si não podia ser considerada sagrada: ela só recebia essa condição quando,
separada de seu contexto profano, atravessava o limiar que separa o homem do “mundo dos vivos”
através, por exemplo, do sacrifício: a vida só se torna sagrada quando a vítima sacrificada é morta (Cf.
AGAMBEN, 1998).

166
O fato é que, hoje, a questão do que é próprio do ser humano – questão de fundo
de todo humanismo -, está colocada em termos não só do reconhecimento, como
também da aceitação e do elogio a uma espécie de sagrada condição biológica do
homem, e sua identidade passa por uma reivindicação do estatuto ontológico que
compartilha com o mundo natural, de algum modo mitificado, sacralizado, animado, por
assim dizer. É nesse lugar – do qual o homem ocidental parece sempre ter querido
escapar para assegurar a sua humanidade, o reino da natureza -, que ele reencontrará a
sua inteireza, resgatará a unidade perdida e religará a sua relação com a essência do
divino, que se manifesta, como em nenhum outro lugar, na Natureza.
No nosso trabalho indicamos a configuração de uma nova formação discursiva,
caracterizada por uma mutação no solo dos discursos educacionais: a passagem dos
discursos modernos, “racionalizantes”, que privilegiavam os aspectos lógicos,
puramente cognitivos ou racionais nas suas explicações e assertivas, para perspectivas
mais “totalizantes”, que buscam dar conta dos aspectos globais que cobrem os
fenômenos humanos, com acentuado interesse nos aspectos emocionais e espirituais,
negligenciados pela tradição intelectual ocidental. Hoje tais aspectos são articulados em
torno da possibilidade de uma “religação” com a natureza, notadamente assumida pelos
discursos da plenitude.
A seguir, apresentamos, em resumo, as diretrizes metodológicas que orientaram
nossa Tese e, em seguida, passamos a uma análise dos discursos em questão, buscando,
o que é próprio da análise desconstrucionista, desmontar seus efeitos de verdade.

Orientação Metodológica

O trabalho buscou levantar o solo de configuração e circulação dos discursos da


plenitude, as condições históricas que fizeram funcionar o seu dispositivo, o seu modo
de funcionamento, o que supõe operar com uma massa dispersa de enunciados
agenciados aos mecanismos histórico-sociais, político-institucionais, teórico-
educacionais que os engendraram.
Desde já, é preciso indicar a direção metodológica que nos orienta nesse
trabalho. Primeiro, quanto à massa de discursos em análise: trata-se de um campo
discursivo amplo e heterogêneo, que vai desde os discursos da complexidade (Morin),
passando pela autopoeise (Maturana e Varela) e pela ecologia profunda (Capra);
estabelece relações entre, por exemplo, Educação Ambiental e Espiritualidade,

167
promovendo, ainda, pontos de articulação entre “novos paradigmas” científicos (da
física quântica à astrofísica, porém com matriz discursiva radicada na Ecologia e na
Biologia Sistêmica) e antigas visões de mundo como budismo, hinduísmo e
cristianismo.
Conforme nossa abordagem, denominada de arqueogenealógica, os discursos em
análise que, como se vê, têm proveniências diferenciadas, são considerados como um
conjunto de enunciados que se articulam de diversos modos, sendo submetidos a regras
e contextos diferentes.
A orientação metodológica indicada supõe, pois, analisar a proveniência dos
discursos, os seus possíveis cruzamentos e os efeitos de superfície que esses
cruzamentos produzem, isto é, os “efeitos de verdade”. E isto porque o papel da
arqueogenealogia não é descobrir o que está escondido, mas sim “tornar visível o que
precisamente é visível – ou seja, fazer aparecer o que está tão próximo de nós, tão
imediato, o que está tão intimamente ligado a nós mesmos que, em função disso, não o
percebemos” (FOUCAULT, 2004, p. 44).
Na análise, o que interessa é saber como, historicamente, se produzem “efeitos
de verdade” no interior dos discursos que não são tomados, em si mesmos, como
verdadeiros ou falsos. Não procuramos o conjunto das proposições verdadeiras que se
há de descobrir, mas o que permite dizer, reconhecer e aceitar proposições como
verdadeiras, às quais efeitos específicos de poder se ligam. Nesse caso, mais
especificamente, tomamos, para a análise, os discursos cujos interstícios articulados
produzem efeitos novos ao falar das relações homem-natureza, do sujeito, da educação.
A gênese de alguns dos tantos discursos colocados em relação aqui remonta a
tempos imemoriais, haja vista, por exemplo, as muitas referências a culturas milenares
que plasmam os discursos da plenitude. O que nos interessa, no entanto, é entender a
sua atuação no sentido de fundar uma nova formação discursiva que investe em novas
relações entre o homem e a natureza, e na subjetivação do sujeito ecologicamente
normalizado. Nesse sentido, consideramos, como configuração do solo de recepção e
circulação dos discursos da plenitude, a emergência de novas sensibilidades em relação
à natureza, fenômeno que se espraia no ocidente a partir do século XVIII; e tomamos o
final dos anos sessenta e início dos anos setenta do século XX como ponto de inflexão
definitivo para a formação discursiva em análise, quando assistimos à explosão de
conferências e declarações, ao surgimento de instituições e associações que pactuam

168
uma regulação das sensibilidades (que se reforçam por tal regulação) e dão conta de um
verdadeiro “acontecimento ecológico” (Cf. CARVALHO, 2006).
Os enunciados, dispersos e heterogêneos, foram, segundo a démarche
arqueogenealógica, submetidos a um trabalho de ordenação que, identificando
elementos e definindo conjuntos, estabeleceu séries de relações.
A análise do material, assim empreendida, gerou a ordenação da massa de
discursos em três séries discursivas, que assim foram denominadas: a) série “eco-
sistêmica”: de matriz cunhada na Biologia Sistêmica e Ecologia, ambas fundamentadas
na noção-chave de “sistema”, corroborada por uma série de “princípios científicos” e
seus virtuais entrecruzamentos: Princípio Holográfico (David Bohm), Princípio da
Complementaridade (Bohr), Princípio da Incerteza (Heisenberg), Princípio da
Transdisciplinaridade (Nicolescu), Princípio da Autopoiése (Maturana e Varela), o
Pensamento da Complexidade (Morin) e Ecologia e Ecologia profunda (Capra); b) série
“ambientalista-Institucional”: concentramo-nos nos discursos expressos por
organismos nacionais e internacionais e em documentos tais como declarações, cartas e
programas que demonstram a institucionalização da sensibilidade ecológica e dos temas
ecologistas. São exemplos dessa série: a Carta da Terra, a Agenda 21, o Relatório
Brutland etc; e c) série “teórico-educativa”: conferida pela preocupação com uma
educação holística, a integralidade humana e as relações entre educação, natureza e
espiritualidade (e as abordagens da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade que lhe
são consubstanciais), emblematicamente encarnada pelas chamadas Ecopedagogia ou
Educação Bieocêntrica e pela Alfabetização Ecológica (Gadotti, Gutierrez, Boff,
Brandão, Morin e Capra).
Desde este arranjo discursivo, investe-se, ao nível do discurso teórico, político e
institucional na idéia da promoção de uma “consciência planetária” como estratégia
para fazer frente à “crise ecológica”, emergindo daí uma nova forma de dizer o sujeito,
um sujeito “eco-pedagogizado” em vista da produção de um indivíduo “eco-centrado”.
Assentados em um estranho “neohumanismo”, um neo-humanismo bio-cêntrico
espiritualizado, que coloca, lado a lado, o homem, os seres vivos e animais de toda
espécie, os discursos da plenitude engendram a injunção de um novo ethos e um novo
governo do eu. Para nós, essa rede discursiva que se engendra advém e estende a crise
do humanismo, base de toda pedagogia, daí a necessidade de pensá-la sob o ponto de
vista de uma reflexão educacional.

169
A análise: desmontando efeitos de verdade

Para a análise, tornamos produtiva a regularidade dos discursos, para


caracterizar o formato mais ou menos comum a que obedecem, as alusões que fazem, o
vocabulário que compõe um mesmo grupo de enunciados, registrando os diferentes
lugares de enunciação.
Do ponto de vista da sua estruturação, os discursos em análise apresentam
alguns registros fundamentais, constituindo sua regularidade, dos quais seu caráter
escatológico-normalizador e sua auto-referencialidade são os mais visíveis.
Com a expressão caráter escatológico-normativo do discurso assinalamos a
dinâmica, segundo a qual, os discursos da plenitude muitas vezes apresentam ideias ou
dados que descrevem uma situação drástica (com relação à “saúde do planeta”, à
“destruição do meio ambiente” ou ao nosso próprio “equilíbrio sócio-emocional”),
mobilizando uma série de imagens e metáforas escatológicas. Tais dados ou conceitos –
e as metáforas que a eles se colam – logo são seguidos das possibilidades de solução: as
ideias, posturas e práticas que os discursos apresentam quase como normas.
A auto-referencialidade dos discursos se encontra no fato de os enunciados
serem imunes à crítica devido à atuação de significados transcendentais, contra os quais
ninguém pode se voltar. Ao falar “em nome de” (da “humanidade”, da “dignidade
humana”, do “respeito pela vida”, da “vida do planeta”, da “paz na Terra”, da
“harmonia” etc.), os discursos tornam-se impassíveis à crítica, bastando recorrer ao seu
próprio referencial para se legitimarem.
Através da combinação do caráter escatológico-normalizador e da
autoreferencialidade dos discursos, estratégias de produção de sentido sobre a “crise
ecológica”, crise essa “planetária”, e sobre a necessidade de nos conscientizarmos para
assumir uma conduta ecologicamente orientada e reverente para com a Terra, as novas
sensibilidades ecológicas tornam-se, elas próprias, sensibilidades “eco-pedagógicas”:
“ensinam” acerca da verdade da natureza que é preciso descobrir ou redescobrir e
acerca do modo de ser que é preciso majorar para viver de modo coerente com essa
verdade.
A produção discursiva que investe na redefinição das relações homem-natureza
é polimórfica, diversificada e muito abrangente, como afirma Grün (1995). Mas, destaca
o autor, existem características comuns aos vários estratos discursivos. Uma delas, é a
forte autoridade com que são investidos esses discursos. Eles conservam sua

170
respeitabilidade e legitimidade miticamente indefectíveis, mesmo transpassando
registros ideológicos, políticos e culturais muito diferentes.
Ao falar em nome da “paz”, do “equilíbrio”, da “harmonia”, da “felicidade”, do
“amor”, a produção discursiva que compõe o repertório da formação discursiva da
plenitude claramente expressa uma ação de “transcendentalização” da natureza (Cf.
GRÜN, op. cit.), que torna transcendental o próprio discurso que fala em nome dos
“significados universais”. Ainda que essas noções possam ser definidas de variadas e
até de conflitantes maneiras, elas atuam como princípios primeiros contra os quais
ninguém pode se voltar, pois seus significados, ainda que imprecisos, são “positivos”
em si mesmos (aí repousa sua “universalidade”), assumindo valor explicativo per si.
O aspecto mítico do discurso se encontra, precisamente, na sua auto-
referencialidade, que o torna inimputável à crítica. Basta se referir ao seu repertório
interno de universais para se justificar e legitimar. Aspecto correlato à mitificação dos
discursos, os “universais” com os quais opera a formação discursiva da plenitude
investem-na de força “transcendental”.
Hoje parece consenso que encontramos um novo fundamento de sentido, que
repousa não mais para além deste mundo. É justamente este mundo o lugar mesmo em
que buscamos reposicionar o fundamento, respondendo, com isso, à exigência de dar
sentido à existência.
Através da combinação do caráter escatológico-normalizador e da
autoreferencialidade dos discursos, estratégias de produção de sentido sobre a “crise
ecológica”, crise essa “planetária”, bem como sobre a necessidade de nos
conscientizarmos para assumir uma conduta ecologicamente orientada e reverente para
com a Terra, as novas sensibilidades ecológicas tornam-se, elas próprias, sensibilidades
“eco-pedagógicas”: ensinando acerca da verdade da natureza que carecemos descobrir
ou redescobrir, terminam por ensinar acerca do modo de subjetivação que devemos
majorar para viver de modo coerente com tal verdade. Só adotando uma conduta
ecologicamente informada, podemos alterar o curso catastrófico da história da
humanidade gerado pelo modelo ocidental de desenvolvimento. Porém, é nessa mesma
verdade que encontramos o pensamento metafísico, que os discursos da plenitude se
propõem a superar, em plena operação, na medida em que atuam com uma oposição
binária básica: falar e agir em nome da natureza, ser “ecologicamente correto” é bom,
valoroso, ético, enfim, “positivo”, em oposição a uma postura “anti-ecológica”,

171
desligada do dever para com a sustentabilidade, rapidamente qualificada como
incorreta, perversa, imoral, “negativa”.
Entre os muitos apelos que emergem no sentido da produção de subjetividades
na contemporaneidade, destacamos aqueles que se inscrevem em meio às reivindicações
ecológicas atuais, que apontam para a normalização de uma subjetividade ecológica ou
um “eco-sujeito, um indivíduo descentrado de seu antigo ego, alienado, consumista e
predatório em função de seu eco-centrismo recém-desenvolvido por sua consciência
ecologicamente sensível.
As idéias sobre a natureza mobilizadas pela formação discursiva da plenitude
são freqüentemente utilizadas para justificar idéias morais, e essas, por sua vez, são
elaboradas desde certos ideais morais, revelando que as visões de natureza e os ideais de
ambiente estão intensamente ligados a uma moralidade (Cf. FLORITI, 2004)108. Não
havendo mais a possibilidade de articular uma concepção inequívoca de conduta
adequada, a natureza emerge como modelo e como norma.
Segundo a proposição dos discursos em curso, uma razão instrumental
demasiadamente monológica e destrutiva, daria lugar a uma “razão sensível” de um
“novo sujeito”, um “eco-sujeito” que devemos aprender a nos tornar, e a relação com a
Terra estaria como que reequilibrada por uma gestão não apenas científica, mas cívica e,
sobretudo, sensível, dos meios naturais. Tentando legar às gerações futuras o patrimônio
“natural” que herdamos, as sociedades contemporâneas retomariam as noções de dever
e de dívida que haviam deixado de lado ao emancipar-se da religião e da tradição.
Entretanto, tal proposição não seria possível senão condimentando o
individualismo com a busca de regras ecológicas comuns, o que aponta para a
articulação que convém assinalar entre os “riscos públicos” (globais, planetários e até
universais) e uma moral privada: cada um deve se esforçar por reformular seus hábitos,
inclusive os mais íntimos, e tornar-se o portador de novos comportamentos, por assim
dizer saudáveis para si e para a Terra.
Se, por um lado, as práticas discursivas articuladas aos discursos da plenitude
incidem em importantes desconstruções do humano e acenam para uma nova formação
discursiva, por outro, apresentam certas continuidades que evidenciam quão

108
Para o autor, é possível reconhecer implicações do fundamento normativo da natureza nas sociedades
contemporâneas, cuja principal seria o fato de não ser “o ambiente ou a natureza o que está em risco em
muitos dos confrontos atuais que tentam conformar a natureza ou o ambiente sob diferentes agendas
políticas, mas a idéia de ambiente ou de natureza, e com eles o ideal de uma ordem adequada” (op. Cit., p
27).

172
problemáticas são as superações que propugnam. Ainda que o deslocamento do humano
em favor da natureza seja perceptível, percebe-se que, em última instância, esse
deslocamento reenvia novamente para a afirmação do humano. Enunciados do tipo “a
Terra está ameaçada e sem a Terra não há humanidade” ou “é preciso estabelecer outra
relação com a natureza se quisermos sobreviver” são reveladores dessa estratégia
paradoxal, paradoxo revelador, ele mesmo, da dificuldade de superação do
antropocentrismo: afirmando a natureza, a Terra, o planeta, o equilíbrio do ecossistema,
afirmamos o homem.
Devido ao efeito da tomada de consciência ecológica, da assunção de uma
consciência planetária, desenvolveu-se o que parece uma descentração radical. A
própria noção de “planetarização” impele a um ponto de vista sistêmico e total, cujo
centro é a biosferra, a “Terra”, e não mais o homem. Essa tomada de consciência, assim
enunciada, implica a preocupação acerca da preservação do “equilíbrio natural” e da
diversidade biológica. Contudo, tal arranjo discursivo nem sempre consegue constituir
uma ultrapassagem real do ponto de vista antropocêntrico do humanismo. A
preocupação ecológica é determinada pela urgência da ameaça à sobrevivência da
espécie humana. Deste modo, o respeito à natureza é um imperativo relativo às
necessidades humanas, e não um respeito incondicional à natureza como ente (como
outrora exprimia o conceito antigo de physis), tal como faz parecer o culto à “Mãe
Terra”, tantas vezes repetido pelos discursos da plenitude.
Foi possível perceber também que, apelando ao sagrado e ao sensível, é o
próprio discurso que é investido de sacralização. Através da atuação dos significados
transcendentais – “vida”, “Terra”, “paz” etc. –, os discursos da plenitude inventam uma
linguagem nova (ainda que em termos antigos) para descrever a nós e ao mundo, pelo
expediente do repertório ao mesmo tempo “científico” e místico com o qual trabalham.
Inventar uma linguagem é uma operação de poder. E, mais, sacralizar um discurso é
investi-lo de um poder transcendental, inquestionável porque situado em um lugar para
além do humano, inalcançável, por isso mesmo, perigoso. É preciso restituí-lo ao seu
caráter “mundano”, isto é, torná-lo também objeto de crítica, como garantia da liberdade
do pensar e do agir.
A partir da análise arqueogenealógica, foi possível perceber, ainda, como
discursos aparentemente inatacáveis e tomados como “naturalmente bons”, como os
discursos da plenitude, são atravessados de relações de saber-poder. A partir da
sensibilidade em torno da natureza, tais discursos regulam uma subjetivação do sujeito

173
ecológico, revelando uma zona de intersecção onde as técnicas de individuação e os
processos totalizantes se tocam na figura do “eco-sujeito”, processo que não ocorreria
sem um saber da natureza, uma verdade da natureza (a ser reencontrada), que levaria a
uma mudança de conduta. Capra (2008) e, na sua esteira, muitos outros, tem defendido
que qualquer mudança nas atitudes dos estudantes em relação ao meio ambiente estaria,
antes de tudo, condicionada ao conhecimento das ciências do meio ambiente, que é
preciso generalizar por toda a sociedade através de “informações corretas”. Nesse
sentido, a educação para uma vida sustentável emerge investida de poder.

Considerações Finais

O ímpeto que guio o trabalho de nossa tese foi fazer problema a uma
aparelhagem discursiva que, cada vez mais, conquista elevada notoriedade, ao propagar-
se largamente no campo educacional e ao estender-se no cenário mais amplo das
práticas culturais. É exatamente tendo em vista a posição privilegiada ocupada pelas
problemáticas ambientais no discurso educacional e sócio-político, que necessitamos
desenvolver análises de sua produção discursiva. Assim, problematizar o consenso
ecológico, “desnaturalizá-lo”, foi, em grande medida, o que nos motivou, tarefa que
empreendemos com a dupla preocupação, teórica e política, de colaborar para um
“diagnóstico do presente”.
Como vimos, o discurso que organiza a formação discursiva da plenitude está
investido de saber-poder, providenciando, por muitas vias, modos específicos de
regulação moral, injunções de produção de identidades sociais e de subjetivação
contemporânea. O uso recorrente do argumento da crise não consegue ocultar a
“vontade de poder”, comum aos muitos discursos ecológicos, mas que adquire ainda
mais intensificação no campo educativo, uma vez que, na educação, o caráter
subjetivante e normalizador é flagrante, pois lhe é constitutivo. Antes de aderir às
soluções que uma gestão bio-ecológica espiritualizada de nossas vidas pode favorecer, é
bom lembrar que o dado biológico é, ele mesmo, imediatamente político em tempos de
biopolítica.
Como mostrou Arendt (1995), a compreensão biológica da vida humana corre ao
lado daquilo que a autora chamou de vitória do “animal laborans”: a redução da vida
humana a uma “laborização”, a um metabolismo de produção e consumo, cujo sentido
se esgota na repetição do metabolismo. No limite, como também demonstraram as

174
reflexões da filósofa, a compreensão biológica da vida humana, na sua versão mais
redutível, foi condição para legitimação e justificação dos crimes perpetrados pelo
nazismo contra os judeus. Como também demonstrou Agambem (1998), a vida,
reduzida à vida nua, é o que torna o homem, por assim dizer, facilmente “matável”.
Não esperamos colocar no lugar dos problemas levantados aos arranjos
discursivos aqui analisados novas soluções, porque buscar desmontar uma lógica
discursiva não significa propor, necessariamente, uma ordem conceitual que a substitua.
Aprendemos com os esforços desconstrucionistas do pós-estruturalismo, no qual a
arqueogenealogia de Foucault inscreve-se, que precisamos resistir à inclinação, tão
típica do pensamento dualista, mas, também, tão cara aos discursos que se querem
críticos, de, tão logo desarranjado o repertório transcendental, colocar em seu lugar
outro fundamento que possa organizar o discurso e a ação. Pensar é resistir. Neste
sentido, é preciso ver na teoria uma prática política baseada na tentativa de desembotar
a lógica através da qual uma formação discursiva e todo um conjunto de estruturas
sócio-políticas a ela articulada conservam e ampliam sua força, desmantelando, por
dentro, suas regras discursivas, invertendo seus sinais, confundindo seus efeitos de
verdade.
É possível que cada época veja a si mesma como singularidade e crise (Cf. VAZ,
1996). A crise ecológica talvez diga mais sobre como nos vemos hoje (como homens e
mulheres em crise), do que sobre como entendemos a crise ou sobre a crise mesma. O
presente, este obscuro intervalo entre passado e futuro, marca a diferença entre o que
ainda somos e o que podemos nos tornar. Formular esta diferença sugere interrogar
sobre como chegamos a ser o que somos. O modo de contornar o paradoxo – o que não
somos mais (“ecologicamente alienados”), o que não somos ainda (“ecologicamente
corretos”) – subentendido na nossa condição contemporânea passa pelo diagnóstico de
que estamos adquirindo outra historicidade e pela coragem de buscar criar condições de
pensar à sombra da ruptura.

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177
Empreendedorismo, Concorrência e Educação: faces da
governamentalidade neoliberal e da biopolítica contemporânea

Sylvio Gadelha 

A questão da concorrência e a “política de sociedade” no ordoliberalismo

Seguindo basicamente as formulações de Foucault em Nascimento da Biopolítica


(2008), busco apresentar, de início, uma caracterização sumária de alguns tópicos
relacionados à governamentalidade neoliberal, em sua expressão alemã (caso do
ordoliberalismo), salientando o modo como nela se concebe a questão da concorrência e
como se desenvolve sua “política de sociedade” (Gesellschaftspolitik).
Os ordoliberais afirmam categoricamente que o essencial do mercado não está na
troca, mas sim na concorrência, nas questões que envolvem concorrência e monopólio.
Trata-se de valorizar mais a desigualdade, no que ela concerne à concorrência, do que a
equivalência, no que ela diz respeito à troca. É a concorrência, e somente ela, que pode
assegurar a racionalidade econômica. Como? Foucault (2008, p. 162) o diz: “mediante a
formação de preços, que, na medida em que há concorrência plena e inteira, são capazes
de medir as grandezas econômicas e, por conseguinte, regular as escolhas”. Isso tem a
ver com recusa desses neoliberais alemães em deduzir e afirmar o laissez-faire da
economia de mercado. Pois, na verdade, a concorrência, em vez de ser um dado ou
fenômeno natural, espontâneo, passa a ser concebida por eles como uma essência, um
eidos, uma entidade puramente formal; ou melhor, a concorrência é por eles concebida
como um princípio de formalização, com uma lógica e uma estrutura que lhe são
próprias, cujos efeitos só podem ser estimados se respeitadas essa lógica e essa
estrutura, e sob condições criteriosa e artificialmente planejadas. Como diz Foucault
(2008, p. 163) a concorrência remete a um “jogo formal de desigualdades”, e não a um
“jogo natural entre indivíduos e comportamentos”. Por outro lado, para Foucault (2008,


Esse artigo foi escrito originariamente para o XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo
biopolítico da vida humana promovido pelo Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – IHU/Unisinos, em setembro de 2010, sendo o mesmo cedido a esta instituição universitária para
que seja reproduzido em livro eletrônico, pluriautoral, a ser distribuído gratuitamente através da
internet, no site www.ihu.unisinos.br.

Professor do Deptº de Fundamentos da Educação da FACED/UFC e do Programa de Pós-Graduação
em Educação Brasileira da UFC (Linha de Pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação, Eixo de
Pesquisa Filosofias da Diferença, Antropologia e Educação).

178
p. 164), formulada nesses termos, e com esse deslocamento da natureza para a história,
a concorrência pura guarda um caráter paradoxal, pois ela “deve ser e não pode ser
senão um objetivo, um objetivo que supõe, por conseguinte, uma política infinitamente
ativa”.
O importante a reter, aqui, é que essa “política infinitamente ativa” de que fala
Foucault, entendida como condição para que se construísse o melhor estado de
concorrência possível, e como organizadora, de fato, do “espaço concreto e real” em
que a concorrência deveria atuar, doravante, não poderia mais exercer-se através de uma
delimitação recíproca de áreas diferentes, tais como as que seriam, respectivamente, da
alçada do mercado e da alçada do Estado. Ela vai caracterizar uma governamentalidade
ativa que justapõe totalmente os mecanismos de mercado indexados pela concorrência à
política governamental. Nas palavras de Foucault (2008, p. 165):

O governo deve acompanhar de ponta a ponta uma economia de mercado. A


economia de mercado não subtrai algo ao governo. Ao contrário, ela indica,
ela constitui o indexador geral sob o qual se deve colocar a regra que vai
definir todas as ações governamentais. É necessário governar para o mercado,
em vez de governar por causa do mercado.

Essa necessidade de uma atividade, de uma vigilância e de uma intervenção


permanentes, remete não só ao caráter fortemente intervencionista desse neoliberalismo
alemão, mas à natureza das intervenções por ele preconizadas, ao “como mexer”, ao
estilo governamental a ser adotado. Essa breve revisão me permite, agora, passar
diretamente à abordagem da questão relativa à “política de sociedade”
(Gesellschaftspolitik) desenvolvida pelo neoliberalismo alemão, deixando de lado o
como este concebeu a questão da gestão dos monopólios e a questão das ações
conformes (ordenadoras e reguladores).
Quando se fala em política social, numa economia de bem-estar social, três coisas,
de imediato, são evocadas: a) que ela deve servir de contrapeso a processos econômicos
selvagens que induzem efeitos de desigualdade, senão de destruição na sociedade; b)
que ela deve ter como principais instrumentos a socialização de certos elementos de
consumo e a transferência de elementos de renda, na forma de subvenções às famílias e;
c) que ela deve ser feita numa relação diretamente proporcional ao crescimento
econômico. Pois bem, o neoliberalismo alemão irá questionar esses três princípios
orientadores. Em primeiro lugar, os ordoliberais argumentam que a política social não
pode se definir como contrapeso, como mecanismo de compensação de efeitos nefastos

179
dos processos econômicos, e nem tampouco pode ter como objetivo equalizar, mesmo
que relativamente, a repartição de acesso dos indivíduos aos bens de consumo. Por quê?
Porque a desigualdade, que implica todo um jogo de diferenciações, está na base da
concorrência econômica, isto é, ela é própria desse mecanismo formalizador da vida
social. Em princípio, ela é a mesma para todos, ela envolve a todos, razão pela qual se
deve deixá-la agir, no sentido de que é ela, com suas oscilações para mais e para menos,
que tornará possível a regulação social. Nesse sentido, diz Foucault (2008, p. 196):

A única coisa que se pode fazer é tirar dos rendimentos mais altos uma parte que, de
qualquer modo, seria consagrada ao consumo ou, digamos, ao sobreconsumo, e
transferir essa parte de sobreconsumo para os que, seja por razões de desvantagem
definitiva, seja por razões de vicissitudes compartilhadas, se acham num estado de
subconsumo. E nada mais.

Em segundo lugar, a política social desejada pelo ordoliberalismo não pode se


orientar pela socialização do consumo e da renda, mas sim por uma capitalização a mais
generalizada possível, estendida a todos os indivíduos de todas as classes, de maneira a
que eles próprios se encarreguem, na medida do possível, de garantir sua proteção
contra os mais variados riscos, sejam eles individuais (de doença, de acidentes) ou
coletivos (de danos materiais), fazendo uso, para tanto, dos instrumentos do seguro e da
propriedade privada. A política social ordoliberal, assim, confunde-se com um processo
de privatização, em que se vai pedir à economia, pedido este que se expressa mais como
um pedido à sociedade, para que todos os seus indivíduos busquem ter rendimentos
suficientemente elevados, que lhes permitam, seja individualmente, seja pela
intermediação coletiva de sociedades de ajuda mútua, garantir-se contra os diversos
riscos que envolvem suas existências. O curioso é que, assim definida, essa política
social parece ser individualizada: ao invés de uma coletivização, tem-se uma
individualização da política social.
Em terceiro lugar, resta que, para os ordoliberais, a única política social
verdadeiramente digna desse nome, não é outra senão o crescimento econômico. Como
diz Foucault (2008, p. 198), é ele, o crescimento econômico, que, “por si só, deveria
permitir que todos os indivíduos alcançassem um nível de renda que lhes possibilitasse
os seguros individuais, o acesso à propriedade privada, a capitalização individual ou
familiar, com as quais poderiam absorver os riscos”. É justamente esse o projeto de
política social que deveria ser levado às ultimas conseqüências na “economia social de
mercado”, mas ele não o foi, e isso em virtude de uma série de razões que não cabe aqui

180
situar. O que não se pode perder de vista, como pondera Foucault, é que mesmo assim
ele repercutirá consideravelmente no anarcocapitalismo americano e em outros países
alinhados ao neoliberalismo. Por outro lado, esses argumentos contra uma política de
bem-estar social ancorada no New Deal e de influência tipicamente keynesiana, nos
abrem novas portas ao entendimento desse tipo de governamentalidade ativa que
caracteriza o neoliberalismo alemão, em sua aplicação sui generis à sociedade.
Foucault insiste na idéia de que esse estilo neoliberal de governar, sem que deixe
de ser um governo econômico, constitui mais propriamente um “governo de sociedade”,
um governo de tipo sociológico, que faz da sociedade o alvo e o objetivo da prática
governamental. Para que o mercado seja possível, para que seja possível torná-lo o
regulador geral e, ao mesmo tempo, o princípio de racionalidade política que, mediante
os mecanismos de concorrência, deverá informar a todas as práticas governamentais,
estas têm de intervir em toda a sociedade, em sua trama e em sua espessura. Mas
introduzir a regulação do mercado como princípio regulador geral da sociedade não
significa, como no caso do liberalismo, instaurar uma sociedade mercantil, uma
sociedade de consumo, ancorada na troca. Significa, isso sim, instaurar uma sociedade
empresarial, ancorada nos mecanismos concorrenciais. Mudança na ancoragem e
mudança no estatuto do homo oeconomicus, que já não é tanto o homem da troca, o
consumidor, senão o homem da empresa e da produção.
Não é sem razão, diz Foucault, que esse neoliberalismo alemão busca resgatar um
pouco do que seria uma “ética social da empresa”, cuja história política, cultural e
econômica deve muito aos trabalhos de Weber, Sombart e Schumpeter. Fazendo alusão
a um texto de 1950, de autoria de W. Röpke, intitulado Orientação da política
econômica alemã, Foucault (2008, p. 202) resume os principais objetivos relacionados a
essa sociedade empresarial que os neoliberais alemães buscavam instaurar:

(...) primeiro, permitir a cada um, na medida do possível, o acesso à


propriedade privada; segundo, redução dos gigantismos urbanos, substituição
da política dos grandes subúrbios por uma política de cidades medianas,
substituição da política e da economia dos grandes conjuntos por uma
política e uma economia de casas individuais, incentivo às pequenas unidades
de cultivo e criação no campo, desenvolvimento do que ele chama de
indústrias não-proletárias, isto é, o artesanato e o pequeno comércio; terceiro,
descentralização dos locais de moradia, de produção e de gestão, correção
dos efeitos de especialização e de divisão do trabalho, reconstrução orgânica
da sociedade a partir das comunidades naturais, das famílias e das
vizinhanças; enfim, de um modo geral, organização, adequação e controle de
todos os efeitos ambientais que podem ser produzidos, ou pela coabitação das
pessoas, ou pelo desenvolvimento das empresas e dos centros de produção.

181
Esse novo programa de racionalização econômica da sociedade, apesar de lembrar
uma espécie de retorno rousseauniano à natureza109, afirma na verdade a produção de
uma trama social cuja unidade básica seria a forma “empresa”, e cuja lógica residiria na
multiplicação e generalização dessa forma “empresa” por entre todo o corpo social.

Neoliberalismo norte-americano: teoria do Capital Humano e Empreendedorismo

Dentre as diferenças apontadas por Foucault entre o neoliberalismo europeu,


sobretudo, o alemão, e o neoliberalismo norte-americano, creio que uma em particular
merece especial destaque: enquanto que na Alemanha o liberalismo aparece como uma
opção técnica produzida e formulada pelos governantes com o intuito de aplicá-la aos
governados, na tradição dos EUA, diversamente, o liberalismo constitui algo mais do
que isso, e também algo diferente disso, pois ele perfaz “toda uma maneira de ser e de
pensar”, algo que é reivindicado globalmente, tanto na tradição do partido republicano
quanto na do partido democrata; portanto, trata-se de uma relação, e não de uma
alternativa a ser aplicada e testada. Nesse, sentido, não devemos perder de vista que essa
maneira de ser e de pensar, essa espécie de relação constitutiva entre governantes e
governados, permeou a vida da sociedade norte-americana, desde a crise de 1929 e do
advento do New Deal, passando pelos pactos sociais pós-guerra e pelo crescimento da
administração federal, crescimento este traduzido, por exemplo, no aumento de
programas econômicos e sociais.
Certamente sob influência de algumas idéias e teorias do ordoliberalismo alemão,
para o que contribuiu a presença de Hayek nos EUA, os economistas da Escola de
Chicago inovaram no modo como empreenderam suas análises econômicas, no modo
como definiram os objetos dessas análises e na forma como conceberam o domínio
desses objetos. Isso pode ser ilustrado exemplarmente pela teoria do Capital Humano,
formulada entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, por Theodore Schultz, e
desenvolvida por colaboradores como Becker e Stigler. Para início de conversa, a teoria
do Capital Humano redefine a noção de trabalho e, em o fazendo, consegue reintroduzi-
la originalmente no campo da análise econômica. Com efeito, para esses economistas,
de Ricardo a Marx, a teoria econômica não teria conseguido conceber o trabalho senão

109
Em relação a isso, F. W. von Rustow falava em uma “política da vida” (Vitalpolitik).

182
em termos abstratos, o que a impossibilitava de dar conta de suas especificações, de
suas modulações qualitativas e dos efeitos das mesmas. Nesse sentido, o que essa teoria
econômica clássica tomava como objeto de suas análises eram processos, ou
mecanismos de certos processos, processos de produção, de troca e de consumo,
mecanismos e processos, enfim, que implicavam essa abstração, o trabalho. O que deve
fazer, então, a análise econômica? Respondendo por Schultz, Becker e Stigler, Foucault
(2008, p. 306) afirma que ela deve “consistir, não no estudo desses mecanismos, mas no
estudo da natureza e das conseqüências do que chamam de opções substituíveis, isto é,
o estudo e a análise da maneira como são alocados recursos raros para fins que são
concorrentes, isto é, para fins que são alternativos, que não podem se superpor uns aos
outros”.110 É o comportamento do indivíduo, na racionalidade que o anima, ou melhor,
no que ele envolve uma espécie de cálculo (de relação custo-benefício), o qual deverá
presidir sua escolha por alguns recursos, dentre outros considerados raros, tendo em
vista a consecução de determinados fins alternativos, pois bem, é isso o que a análise
tem de tentar esclarecer. Um trecho de Nascimento da biopolítica (Foucault, 2008, p.
307) esclarece bem não só o que constitui o problema fundamental para esse tipo de
análise, mas, também, a maneira como ela concebe e como reintroduz a noção de
trabalho na teorização econômica:

O problema fundamental, essencial, em todo caso primeiro, que se colocará a


partir do momento em que se pretenderá fazer a análise do trabalho em
termos econômicos será saber como quem trabalha utiliza os recursos de que
dispõe. Ou seja, será necessário (...) situar-se do ponto de vista de quem
trabalha; será preciso estudar o trabalho como conduta econômica, como
conduta econômica praticada, aplicada, racionalizada, calculada por quem
trabalha. O que é trabalhar, para quem trabalha, e a que sistema de opção, a
que sistema de racionalidade essa atividade de trabalho obedece? E, com
isso, se poderá ver, a partir dessa grade que projeta sobre a atividade de
trabalho um princípio de racionalidade estratégica, em que e como as
diferenças qualitativas de trabalho podem ter um efeito de tipo econômico.
Situar-se, portanto, do ponto de vista do trabalhador e fazer, pela primeira
vez, que o trabalhador seja na análise econômica não um objeto, o objeto de
uma oferta e de uma procura na forma de força de trabalho, mas um sujeito
econômico ativo.

Nessa perspectiva, outros elementos são redefinidos e re-equacionados. O


trabalho é visto como algo necessário para que se tenha um salário, e este, por sua vez,
pelo menos do ponto de vista do trabalhador, não equivale ao preço obtido pela venda

110
Na verdade, diz Foucault (2008, p. 306), esses economistas retomam uma formulação de Robbins que
remonta a 1930-1932, e que consiste no seguinte: “A economia é a ciência do comportamento humano
(...) como uma relação entre fins e meios raros que têm usos mutuamente excludentes”.

183
de sua força de trabalho, mas é aquilo por meio do que ele pode constituir para si uma
renda; esta, por sua vez, é entendida como o produto ou rendimento de um capital, ao
passo que este, o capital, inversamente, é concebido como tudo aquilo que pode vir a
constituir, de um modo ou de outro, uma fonte de renda futura. O essencial, aqui, é a
idéia de que o trabalho comporta um capital, ou, como diz Foucault (2008, p. 308),
“uma aptidão, uma competência”, e que estas podem ser fontes de rendas futuras.
Mas, é por isso mesmo que se impõe a seguinte questão (idem, p. 308): “Ora, qual
é o capital de que o salário é uma renda?” Pois bem, ele é o que esses economistas
chamam de capital humano, de capital intelectual. E esse tipo de capital é pensado
como um conjunto de habilidades, capacidades e destrezas que fazem do indivíduo, nas
palavras de Johnson (Apud Lopez-Ruiz, 2007, p. 195), “um meio de produção
produzido, um item de equipamento de capital”, mas também, como diz Foucault,
(2008, p. 309) “uma máquina entendida no sentido positivo, pois é uma máquina que
vai produzir fluxos de renda.” Na verdade, o mais apropriado seria pensar em termos de
um complexo “máquina-fluxo”, no sentido de que o que está em questão é, de um lado,
a produção de uma máquina-competência que não se encontra dada de antemão, já
pronta, à disposição em lojas de departamentos, e cuja durabilidade e uso são limitados
no tempo; de outro, uma máquina-competência que irá ser remunerada, ao longo do
tempo, por uma série de salários, os quais tenderão a diminuir na medida em que ela for
se mostrando obsoleta.
Para Foucault, todos os elementos acima evocados fazem com que os defensores
da teoria do Capital Humano concebam o indivíduo como uma empresa, como
funcionando nas mesmas bases em que funciona uma empresa, só que, daí por diante,
essa empresa se confunde com o próprio indivíduo, que se torna, por isso mesmo, um
empresário de si. Estamos em face de uma nova atualização do homo oeconomicus, que
já não o compreende mais como parceiro da troca, senão, como diz Foucault (2008, p.
311), como “empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si
mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda”.
Quanto a esse ponto, duas observações devem ser feitas. Em primeiro lugar,
diferentemente do neoliberalismo alemão, no neoliberalismo norte-americano, embora
observemos o mesmo movimento de constituir uma sociedade tomando por base o
modelo da empresa, essa tendência é radicalizada, pois os próprios indivíduos são
constituídos como tal. Ou seja, a empresa já não está “fora”, não é algo (disposto
estrategicamente em rede) puramente exterior, a que os indivíduos devem apenas

184
acionar, tomar por referência e a ela se ajustarem; não, agora, os próprios indivíduos
vão ser produzidos (objetivados e subjetivados) como micro-empresas. Em segundo
lugar, tendo em vista a indignação e as denúncias feitas tanto pelas discursividades que
se dizem críticas, progressistas, de esquerda, etc., no âmbito das ciências humanas e
sociais, quanto no âmbito dos novos movimentos sociais, relativas ao que seria uma
alienação e uma exploração do homem, promovidas pelo consumismo, pela sociedade
de consumo, pela sociedade do espetáculo, pois bem, tal indignação e tais denúncias
revelam-se equivocadas, fora de lugar e não acertam o alvo, pois elas não compreendem
que, para a governamentalidade neoliberal norte-americana, o crucial não está ancorado
na troca e, portanto, no homem da troca, no homem que, pela troca e pelo consumo, é
convertido em mercadoria; em vez disso, o fator decisivo está numa produção
condicionada pela concorrência, isto é, está em ver no consumo uma atividade
eminentemente empresarial, uma atividade empreendedora, e que é regulada, sobretudo,
pela concorrência. Eis um deslocamento fundamental: priorizar o investimento e a
concorrência, em detrimento da troca e do consumo.
De todo modo, esses neoliberais da Escola de Chicago vão se interessar sobre
questões concernentes à composição, acumulação e ao uso do capital humano. Vão
pensar sobre os fatores que o compõem, se são hereditários, se são adquiridos (neste
caso, vão se interessar, sobretudo, pelos componentes adquiridos através da educação
familiar, da educação formal, da educação técnico-profissional). Vão pensar, além
disso, em como se dão os investimentos em capital humano, e que investimentos cabem
aos patrões, ao Estado e ao próprio indivíduo trabalhador. Por outro lado, problemas
políticos, tais como os relacionados à utilização da engenharia genética, às migrações
numa sociedade globalizada, bem como à inovação nos campos dos negócios, da ciência
e da tecnologia, vão ser pensados em referência à constituição, ao crescimento e à
melhoria do capital humano. Ora, dentre essas questões e esses problemas, como afirma
Foucault (2008, p. 315), os que envolvem a educação assumem uma centralidade ímpar:

Claro, é muito mais do lado do adquirido, ou seja, da constituição mais ou


menos voluntária de capital humano no curso da vida dos indivíduos, que se
colocam todos os problemas e que novos tipos de análise são apresentados
pelos neoliberais. Formar capital humano, formar portanto essas espécies de
competência-máquina que vão produzir renda, ou melhor, que vão ser
remuneradas por renda, quer dizer o quê? Quer dizer, é claro, fazer o que se
chama de investimentos educacionais.

185
Temos, assim, uma via privilegiada para pensar como e porque a educação é
estrategicamente agenciada à governamentalidade neoliberal e articula-se à biopolítica.
Todavia, para que possamos explorá-la de forma produtiva, temos não só de pensá-la
em termos ampliados, desterritorializada em face da escola, mas também tomando esse
seu processo de desterritorialização como se dando em estreita solidariedade a outro
processo que lhe é complementar, a saber: aquele mediante o qual um ethos empresarial
fortemente influenciado por princípios, normas e valores oriundos das teorias
econômicas e da dinâmica das empresas, migra do domínio das corporações, das teorias
e práticas de gestão (management) para toda a sociedade, difundindo-se amplamente na
mesma.
Ora, parece-me que essa dupla articulação, que, aliás, envolve toda uma série de
elementos importantes, característicos da governamentalidade neoliberal norte-
americana, aparece exemplarmente no fenômeno do empreendedorismo. Com efeito, o
culto ao empreendedorismo está por toda parte, propagando-se de forma surpreendente!
Ele está em livros, capas de revistas, artigos de jornais, reportagens de TV, sítios da
web, cartazes de eventos; na programação de cursos, seminários e congressos, mas
também em escolas públicas e privadas; em organizações empresariais e comerciais
voltadas à qualificação e preparação para o mundo do trabalho; nas ONGs que assistem
aos jovens da periferia das grandes cidades, em programas e/ou projetos governamentais
sociais ou voltados para a área cultural; nas universidades, nos programas de partidos
políticos, na agenda de entidades multilaterais e de entidades comprometidas com o
desenvolvimento sustentável. Além disso, ele constitui um dos principais fatores
enaltecidos pelas teorias de gestão, pelas grandes empresas e corporações e, portanto,
por essa curiosa entidade: o mercado. Ao que parece, ele se apresenta como algo que
transcende as ideologias, angariando simpatias e defensores ardorosos tanto à esquerda
como à direita. Em todo caso, por marcar sua presença no cenário contemporâneo como
estando estreitamente associado à inovação, à eficácia, à eficiência à competitividade e
ao desenvolvimento sustentável, ele, poder-se-ia dizer, parece constituir-se não só em
unanimidade, mas como a panacéia para um sem número de problemas enfrentados
pelos países ditos emergentes, bem como pelos países ditos subdesenvolvidos.111 Não

111
Acúrcio e Andrade (2005, p. 12 - grifos meus) chegam ao ponto de dizer o seguinte: “Em momentos
históricos cuja organização social é marcada por problemas como o desemprego, a má distribuição de
renda, a desigualdade de oportunidades e a violência, investir no empreendedorismo parece ser a
melhor solução. Mais que um programa social, isso significa uma visão de mundo e de vida, um
compromisso político de todo cidadão com a nação e o planeta. As instituições educacionais podem

186
bastasse isso, sua presença entre nós é amplificada pela propaganda, pelo marketing e
pelo branding, razão pela qual ele parece inscrever-se cada vez mais como elemento
ordinário na formação em geral e na educação formal de nossas crianças e de nossos
jovens. Não é sem razão o fato ele de vir ensejando a criação e formalização de novas
pedagogias, as quais, em maior ou menor medida, tendem a acentuar a importância da
“questão das competências”.112 Nesse sentido, ele vem sendo investido de um poder de
conformar nossas maneiras de agir, de sentir e de pensar, munindo-nos de novos
princípios e valores, afetando nossas condutas, alterando nossas relações de
sociabilidade; enfim, transformando-se num dispositivo crucial das novas políticas e
processos de subjetivação em curso nas sociedades contemporâneas.
Entretanto, tendo em vista tudo o que foi dito acima, talvez seja mais apropriado
falar aqui da instituição de uma cultura do empreendedorismo, uma cultura que, desde
meados da década de 1970, vem sendo cada vez mais disseminada, e que tem a
peculiaridade de associar-se facilmente a todas as esferas e níveis de ação de nossa vida
cotidiana. Com o intuito de caracterizar o que vem a ser o empreendedorismo e a cultura
que o propaga, convém, antes, que recuemos no tempo para dirimir alguns possíveis
mal-entendidos.113 Houve uma época em que a figura destemida, aventureira e
sonhadora do empresário capitalista, que personificava, conforme López-Ruiz (2007,
pp. 79-80), “a força do novo, do extraordinário na vida econômica, levando adiante
novas composições, inovando”, era considerada, senão como uma das principais causas
do desenvolvimento econômico capitalista, pelo menos como parte fundamental do
processo que o levou ao seu apogeu.114 Com efeito, o empresário capitalista da era
industrial, movido pelo ímpeto de ganhar dinheiro, de sempre obter mais e mais lucros,
constituiu-se no sujeito econômico por excelência, pois ele não só alavancava como
também dirigia e organizava o desenvolvimento econômico. López-Ruiz (2007, p. 85)
resume a função desse empreendedor clássico nos seguintes termos: “unificar o capital e

colaborar na solução dessas dificuldades socioeconômicas, preparando pessoas para empreender, gerar
empregos, criar riquezas para o país. Precisamos de um povo participativo, sensível e produtivo, capaz
de utilizar suas potencialidades e exercer suas atribuições com plenitude profissional, com atitude ética
e empreendedora, para assumir os riscos de sugerir caminhos que beneficiem a todos.”
112
Dentre elas, merece destaque a “Pedagogia Empreendedora” de Fernando Dolabela, um dos maiores e
mais conhecidos apologistas do empreendedorismo no Brasil.
113
A maior parte de minhas considerações, quanto a esse ponto, tomam por referência o competente
apanhado e exame que Lopez-Ruiz (2007) faz de algumas idéias de Sombart.
114
Esse período coincidiria com o processo no decurso do qual o capitalismo industrial teria chagado ao
seu ápice, e que, segundo Sombart (1913), se estenderia da segunda metade do século XVIII até a
deflagração da I Grande Guerra Mundial, em 1914.

187
o trabalho, determinar a direção e o volume da produção e estabelecer a relação entre
produção e consumo. Isto é, tomar nas suas mãos o controle do processo econômico”.
Essa figura do empresário capitalista, desse empreendedor clássico, arraigou-se
profundamente no senso comum, sobretudo por efeito dos meios de comunicação, como
signo do atrevimento, da coragem, da tenacidade, do sucesso, do enriquecimento, da
fortuna e do glamour, razão pela qual passou a ser tão venerada pelo grande público.
Mas essa veneração também se deve ao fato de o empreendedor clássico constituir
como que um caso à parte; por sua riqueza, por sua ganância, por sua obsessão pelo
endinheiramento e pelo lucro, e provavelmente por alguns atributos singulares (por seu
capital humano), ele era como que uma exceção em face da multiplicidade de homens
reais que serviam de “substrato do sujeito econômico capitalista”.115 Em suma, os
antigos empreendedores eram como que uma minoria, um caso particular, uma raridade.
Finalmente, vale ressaltar que essa minoria atuava circunscrita a um determinado espaço
da sociedade, o espaço econômico da fábrica, da empresa privada, em suas relações com
instâncias e mecanismos jurídicos e financeiros, perfazendo e habitando algo como o
“mundo dos negócios”.
Do conflito de 1914, passando pela Revolução Soviética, pela crise de 1929, pelo
advento do nazi-fascismo, pela instituição do Walfare State, até o término da II Grande
Guerra Mundial, porém, temos um período turbulento, instável, em que não só o
liberalismo é posto em questão, como o capitalismo experimenta uma série de
mudanças. Uma delas consiste no fato de que aquela centralidade antes encarnada pelo
empresário capitalista e, correlativamente, por sua empresa privada e/ou singular, sofre
um deslocamento, passando então a fixar-se na empresa de tipo social e, logo em
seguida, na empresa de tipo sociedade anônima. Outra mudança consiste no fato de que
nestas últimas vai haver uma dissociação entre proprietários-empresários, ou seja, que
detém o capital, e empregados-dirigentes, isto é, especialistas que exercem funções
técnicas e/ou administrativas – o que já deixa antever uma terceira mudança, relativa à
especialização de funções. Uma quarta mudança, por sua vez, deve-se ao que Sombart
descreveu como “desconcretização progressiva” da atividade do empresariado, dando
ensejo ao aparecimento de três diferentes tipos de empresário: o técnico, o comerciante

115
O “homem real” constitui uma formulação de Sombart (1946), e diz respeito, em princípio, a todos os
indivíduos virtualmente capazes de fazer uso de suas forças (esforços, propósitos, aspirações, paixões
etc.), forças essas exteriores às máquinas e técnicas, para justamente realizarem essas máquinas e
técnicas. É nesse sentido que o homem real constitui o “substrato do sujeito econômico capitalista”.

188
e o financeiro. Uma quinta mudança, por fim, refere-se ao que Sombart (apud, Lopez-
Ruiz, 2007, p. 87), em 1913, designava por “democratização do corpo de dirigentes”:

Antes (...) o próprio empresário deveria ser rico, ou ser filho de um homem
rico, ou se relacionar com pessoas que o foram. Devia, portanto, acontecer
com muita freqüência que um homem tivesse capacidades de empresário e
nenhum dinheiro, assim como que o tivesse mas carecesse de toda
capacidade de empresário e de todo desejo de sê-lo. Hoje, o homem rico pode
empregar facilmente seu dinheiro como capital sem ser empresário ele
mesmo; o homem sem meios pode facilmente buscar dinheiro. Os caminhos
para pôr o empresário sem meios em posse do capital necessário são, como é
conhecido, as sociedades por ações e o sistema de crédito.

Para Lopez-Ruiz (2007, p. 88), aos poucos, a empresa tornou-se a via privilegiada
de abertura de possibilidades para que os indivíduos pudessem ascender socialmente
com base em seus próprios méritos, e isso foi possível “a partir do desenvolvimento de
mercado financeiro”. De minha parte, sem que tenha a pretensão de fazer uma história
da empresa e do empreendedorismo, o que quero salientar é que todas essas
transformações, particularmente essa, referente à “democratização do corpo de
dirigentes”, pois bem, todas elas se farão presentes, em maior ou menor medida, no
projeto ordoliberal de instaurar uma sociedade empresarial formalizada por mecanismos
de concorrência, projeto esse que vai ser depois radicalizado com o neoliberalismo
norte-americano, através da teoria de Capital Humano, e através de um de seus
principais desdobramentos: o culto ao empreendedorismo e a disseminação de uma
cultura do empreendedorismo.

Cultura do Empreendedorismo, Concorrência e Educação

Tal como se desenvolveu de meados dos anos 1970 aos nossos dias, o
empreendedorismo contemporâneo pode ser entendido em diversas acepções, por
exemplo: em primeiro lugar, as que aludem à abertura de pequenas empresas e/ou
negócios inovadores, ou de forma inovadora; em segundo lugar, as que aludem à
tendência de que os países que postulam tornarem-se competitivos numa economia
globalizada desenvolvam projetos e/ou programas educacionais, científico-tecnológicos
e culturais voltados à capacitação e instrumentalização técnico-profissional dos
indivíduos-trabalhadores, tendo em vista o combate ao desemprego, o desenvolvimento
de condições de empregabilidade, o desenvolvimento sustentável e, enfim, o aumento
do capital social da população como um todo; em terceiro, as que, de forma mais ampla

189
e podendo-se virtualmente aplicarem-se a tudo, remetem a uma “visão de mundo”, a um
modo de “ser” e “estar” no mundo, em suma, a um estilo de vida a ser adotado e
cultivado, e que é modulado pelas capacidades de sonhar, de transformar idéias em
realidade, de identificar oportunidades/investimentos, de competir, de definir seu
próprio destino, de inovar, mas também pela ousadia em correr riscos, pela eficácia,
pela eficiência, pela flexibilidade, pelo “ser pró-ativo” etc.
Ora é justamente esse último sentido de empreendedorismo o que mais me parece
importante, pois ele sugere, antes de tudo, que tipo de capital deve ser configurado nos
indivíduos, sobretudo, através da educação: o capital humano. Em segundo lugar,
porque ele aponta quais os componentes de capital que, por seu valor de mercado,
devem ser objeto de criteriosos investimentos por parte dos indivíduos. Em terceiro
lugar, porque ele deixa ver que tais componentes (todo um conjunto de competências,
habilidades e destrezas) são justamente aqueles provindos originariamente de um ethos
empresarial que enaltece princípios e valores que são os das grandes corporações
comerciais e dos conglomerados financeiros. Em quarto, porque, como aponta Lopez-
Ruiz (2007) ele inscreve a figura do executivo das empresas transnacionais como o
modelo, por excelência, do indivíduo que soube como investir e acumular capital
humano, tornando-se um vencedor (winner), uma pessoa bem-sucedida, realizada, bem
remunerada etc., modelo este em que todos devem se espelhar e que todos devem
seguir116 Em quinto lugar, porque ele dá a entender que é a própria a vida, a vida de cada
indivíduo, o que se deve, doravante, conceber-se como um negócio, cuja gestão, a
administração, deve ser similar à que se realiza em qualquer empresa; em suma,
questões existenciais tornam-se questões empresariais, o que significa que o cuidado de
si deve ser tomado como uma questão de investimento em capital humano e, portanto,
de empreendedorismo. Em sexto lugar, por fim, porque ele deixa implícito que, a não
ser que façam os devidos investimentos nesses componentes de capital humano, e a não
ser que se orientem por essa “visão de mundo”, os indivíduos não terão como concorrer
uns com os outros, não terão como competir entre si, tendo em vista obterem fluxos de
renda e, em decorrência, seguridade, acesso a bens e serviços, assim como condições
para novos investimentos. Mas, concorrer é crucial!

116
Um entusiasta da gestão e do empreendedorismo, como Davenport (2001), afirma que essa figura do
executivo-empreendedor há muito deixou de ser visto como um passivo na contabilidade das grandes
empresas e corporações, que ele já não é mais nem mesmo um ativo, senão um investidor, ou seja, uma
espécie de sócio que investe seu capital humano na empresa em que, ou para a qual trabalha.

190
Com efeito, um dos traços mais incisivos da cultura do empreendedorismo em
nossa contemporaneidade é o modo como ela induz os indivíduos a estabelecerem entre
si relações marcadas pela concorrência, pela competitividade. Cada vez mais, aqui e ali,
em todo lugar, tudo se passa como se o outro personificasse algo que me assombra,
alguém a quem devo temer, um risco potencial à minha vida, haja vista que, pelo menos
virtualmente, ele quer as mesmas coisas que eu, que irá disputar comigo por elas, e que,
para tanto, não deixará de lançar mão de todos os investimentos e recursos possíveis
para obtê-las e para ter um lugar ao sol. Numa palavra, o outro constitui um obstáculo a
ser batido. Mas, há mais! Aqui, o que governa a mim e ao outro, o que governa e
modula nossa relação, nos dispõe de tal modo que, nessa concorrência, nessa
competição desenfreada e generalizada, nos sentimos sozinhos e fragilizados, como se
cada um não pudesse contar com ninguém a não ser consigo mesmo. Um verdadeiro
empreendedor, diz Dolabela (1999), aprende sozinho. Cineastas como Costa-Gavras,
em O corte (Le couperet – 2005) e Marcelo Piñeyro, em O que você faria? (El método –
2005), fazem, com um humor corrosivo, a crônica dessa bizarra forma de sociabilidade
a que estamos cada vez mais sendo submetidos. Em que pese toda a verborragia,
insidiosa e apelativa, que encontramos na literatura do empreendedorismo, relativa à
importância da sensibilidade ao outro (às suas dificuldades, sofrimentos e mazelas), à
importância da cooperação, à necessidade de se ter em vista o bem comum e a elevação
do “nosso” capital social, a verdade é que nossos encontros e agenciamentos com o
outro tendem a estar sempre na dependência de cálculos (racionais ou irracionais, pouco
importa) da relação custo-benefício que os mesmos implicam; a verdade é que somos
induzidos a tomar o outro, quando conveniente, como investimento estratégico, em
benefício de nós mesmos.
O empreendedorismo que hoje conhecemos constitui, talvez, aquilo a que
Foucault chamava de dispositivo, um dispositivo e/ou diagrama de governamento,
estreitamente associado ao neoliberalismo norte-americano, o qual faz um uso
estratégico da educação (familiar, escolarizada, técnico-profissional, universitária etc.),
e da pedagogização das novas tecnologias e práticas de gestão, vistas como fontes
fundamentais de investimentos em capital humano, para radicalizar o processo de
empresariamento da sociedade, tomando o mercado como princípio de inteligibilidade e
a concorrência como princípio de formalização e como ancoragem mestra. Por outro
lado, a interface entre empreendedorismo, concorrência e educação também aponta para
questões relacionadas à biopolítica, pois, como dizia Theodore Schultz (1973, p. 9):

191
“Uma classe particular de capital humano, consistente do „capital configurado na
criança‟, pode ser a chave de uma teoria econômica da população”.

Referências

DAVENPORT, Thomas. O. Capital humano: o que é e por que as pessoas investem


nele. São Paulo: Nobel, 2001;

DOLABELA. Fernando. Oficina do empreendedor: a metodologia de ensino que ajuda


a transformar conhecimento em riqueza. São Paulo: Ed. de Cultura, 1999.

DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Ed. de Cultura, 2003.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Curso dado no Collège de France


(1978 - 1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

LÓPEZ-RUIZ, Oswaldo. Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo:


capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2007.

SCHULTZ, Theodore. Capital humano: investimentos em educação e pesquisa. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1973.

192
Educação Profissional: A Normalização
Biopolítica da Subjetividade do Trabalhador

Samuel Brasileiro Filho

A Subjetividade Produtiva

Uma abordagem teórica do conceito de subjetividade, mesmo delimitada a uma


tipologia específica de subjetividade produtiva, não é uma temática simples e seu
tratamento conceitual apresenta certa complexidade em função da natureza polissêmica
e interdisciplinar de tal conceito, que se constitui numa das principais questões da
tradição filosófica ao investigar sobre a verdade do ser do homem. Tal abordagem,
conforme se propõe, neste breve artigo, aponta para o enfrentamento da seguinte
questão: como funciona ou em que consiste o modo de ser do homem que vive do
trabalho e como esta subjetivação produtiva tem sido conformada ao longo da
história?
A questão da Subjetividade é tema central na tradição filosófica e a sua
abordagem apresenta uma dificuldade adicional que é relacionada com a diversidade e
amplitude dos referenciais teóricos adotados em seu tratamento ao longo da evolução
histórica do pensamento filosófico. Considerando-se a delimitação da temática proposta,
onde se pretende realizar uma investigação introdutória da relação entre a educação
profissional e os processos de produção da subjetividade do trabalhador, no contexto de
transição da sociedade industrial para a pós-industrial, torna imperativo analisar como a
relação entre Trabalho e Educação tem sido moldada pelas conformações subjetivas
resultantes do embate entre as concepções de organização dos sistemas produtivos e dos
sistemas educativos.
Segundo Gondin e Rodrigues (2009) a investigação da subjetividade é a temática
central da ontologia, mas a ontologia, através da história do pensamento, não teve um
significado linear; sofreu diversas mudanças quanto à forma de definir o seu objeto: o
ser. Assim sendo, a cada etapa histórica podem-se constatar cortes e rupturas isto
significando que o conceito de ser não é unidimensional, por causa disto é fundamental


Doutorando em Educação FACED/UFC. Professor do IFCE. Mestre em Computação Aplicada (UECE),
Especialista em Gestão da Educação Tecnológica (Oklahoma State University), Membro do Núcleo de
Pesquisa NUPEP do IFCE e Conselheiro do Conselho Estadual de Educação. Samuel@ifce.edu.br

193
conhecer as mais variadas etapas históricas do saber ontológico com suas respectivas
definições do ser. Tal tratamento histórico da subjetividade foge do escopo do presente
trabalho, mas ressalta-se a sua importância para a investigação dos processos de
formação das condições de existência da subjetividade.
Na investigação da temática proposta, delimitada na abordagem dos processos de
produção da subjetividade do trabalhador e suas relações com a educação profissional
entre a transição da sociedade industrial e a pós-industrial, também será delimitada pela
adoção de categorias analíticas da relação trabalho e educação, fundamentadas nos
pensamentos Karl Marx e Michel Foucault, em função da referencial contribuição que
estes autores deram para a investigação da ontologia do ser que vive do trabalho. Neste
sentido, pretende-se contribuir modestamente com as discussões e debates desta atual e
relevante temática do I Colóquio de Filosofia da Educação: Subjetividade e
Educação, realizado pela Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, no período de 13 a 15 de
outubro de 2010.

As Condições de Existência da Subjetividade Produtiva em Marx e Foucault.

A conformação da subjetividade é um processo ontológico, portanto


multidimensional, social e historicamente condicionado. Segundo Saviane (2007) a
análise dos fundamentos ontológicos e históricos do trabalho e da educação aponta para
uma análise integrada destas categorias, pois o ser do homem, e, portanto o ser do
trabalho, é tanto histórico quanto ontológico. O mesmo vínculo ontológico-histórico se
dá entre a relação trabalho-educação e os processos de formação da subjetividade
produtiva com a evolução do conhecimento humano, materializada nas tecnologias
produtivas, nos modelos gerenciais do trabalho e nas relações de poder que têm
implicação na subjetivação e objetivação dos sujeitos do trabalho, as quais são ao
mesmo tempo resultantes de sociabilidades produtivas e de práticas educativas.

Elementos da Subjetividade Produtiva no Pensamento de Karl Max e suas


Implicações para Investigação da Sociedade Industrial

Retomando-se a pergunta de partida do presente trabalho, assim formulada: como


funciona ou em que consiste o modo de ser do homem que vive do trabalho e como
esta subjetivação produtiva tem sido conformada ao longo da história? Para

194
Saviani(2007) o homem não nasce homem, ele forma-se homem, ele precisa aprender a
ser homem, precisa aprender a produzir a própria existência. Assim a origem do ser
homem, coincide com a origem do trabalho e da educação, enquanto condições essência
de existência da subjetividade.
Na Obra de Marx e Engels (1974) a essência do ser homem e o diferencial da
existência animal é que este necessita produzir seus meios de vida, produzindo
indiretamente a sua própria vida material. Tal afirmação estabelece a primazia da
categoria trabalho como fundante da subjetividade humana. Assim a formação do ser
que trabalha é um feito humano, numa espécie de recursividade subjetiva, que se
desenvolve, se aprofunda e evolui ao longo do tempo em um processo ontológico e
histórico cada vez mais complexo.
Na fundamentação do pensamento marxista a formação da subjetividade
produtiva na sociedade capitalista é diretamente relacionada com os modos de
reprodução das relações de produção, o que, de certa maneira, sugere um caráter
decisivo da educação na reprodução das relações de produção capitalista, cuja separação
entre educar e trabalhar, entre educar para pensar e educar para trabalhar, consolida um
processo de produção de subjetividade que caracteriza pela aculturação da classe que
vive do trabalho e uma crescente perda de significação do trabalho.
Segundo Correa e Teixeira (2010) o pensamento de Marx sobre a subjetividade
tem sido alvo de críticas com ênfase para sua fundamentação da noção de consciência a
partir de conceitos de infra-estrutura, superestrutura, base e ideologia, que conduzem a
uma interpretação mecanicista da relação entre subjetividade e o contexto sócio-
econômico. Tais críticas tais críticas são questionadas, segundo Berino (1994), com
base na tese de que Marx desenvolveu em sua teoria uma ontologia do ser social
ampliando sua análise da questão da subjetividade para além dos conceitos de base e de
ideologia, por meio de uma complexa arquitetura categorial. Para o citado pesquisador
a divisão social do trabalho resultou na expropriação dos trabalhadores dos produtos de
seu trabalho, o que é tratado por Marx fundamentalmente por meio da ótica da inversão,
por meio dos conceitos de alienação, ideologia e fetiche da mercadoria.
Sob esta visão, a subjetividade produtiva se constituiria numa dinâmica em que,
simultaneamente atividade e passividade, se articulam na conformação do ser do
trabalho. Corrêa e Teixeira (2010) afirmam que na concepção marxista a dinâmica de
forças que se estabelecem na divisão de classes no sistema capitalista, apenas a classe
trabalhadora tem condições de promover mudanças significativas nas relações sociais de

195
forma a superar o sistema de produção capitalista e os processos de subjetivação
alienantes. Tal afirmação embute uma potencialidade subjetiva revolucionária na classe
que vive do trabalho.
Sob o esteio da modernidade, surge a ideologia liberal a qual, segundo Sanson
(2009), possibilita liberar a iniciativa privada, o gosto pelo risco e pelo esforço, o
sentido de competição, os quais assentados nos preceitos da modernidade possibilitam a
conformação do sujeito moderno, na perspectiva de um indivíduo capaz de fazer valer o
seu julgamento frente aos fatos da realidade objetiva, ganhando relevo, como afirma
Tourrine (1999), de um status de sujeito como a vontade de um indivíduo de agir e de
ser reconhecido como ator.
De acordo com Sanson (2009) com a revolução industrial e seu novo modo de
produção capitalista, o sujeito do trabalho perde o controle sobre o seu trabalho, o qual
passa ser fragmentado e desvinculado de um saber centrado no trabalhador, fazendo
com que a força produtiva que este desenvolve como sua própria subjetivação passe a
ser força produtiva de reprodução do capital, representando a constituição de uma nova
subjetivação produtiva assujeitada.
Segundo Marx e Engels (1974) no modo de produção capitalista que se instaura
na sociedade industrial a produção de um objeto, de uma mercadoria, é estranha ao seu
produtor, introduzindo a análise categorial do trabalho alienado e da fetchização da
mercadoria. Sob tal abordagem, observa Sanson (2009) que há uma inversão da relação
entre o sujeito do trabalho e seu objeto. Há uma objetivação do sujeito do trabalho e
uma subjetivação do objeto, onde o sujeito se torna objeto e o objeto ganha vida. No
pensamento marxista a subjetivação produtiva, com advento da sociedade industrial, se
manifesta como uma subjetividade coisificada.
Sanson (2009), abordando a subjetivação em Marx, afirma que, apesar da
alienação, do fetichismo, do estranhamento, sujeição, até mesmo corporal, que se
processa no trabalho alienado, essas mesmas relações de produção produzem reações
subjetivas à exploração, numa espécie de subjetividade de resistência. Tal subjetividade
revolucionária emerge das relações de contradição entre o capital e o trabalho e da
tomada de consciência da classe trabalhadora como classe explorada geradora da mais-
valia apropriada pelo capital.
Com tal visão pode-se afirmar que a organização do trabalho na sociedade
industrial, modelou a subjetividade produtiva, gerando a classe operária. A
modernidade, a ideologia liberal e modo de produção industrial, fortalecido pela

196
incorporação das máquinas e das técnicas, conformaram o homo faber como um sujeito
laboral que só sabe viver de seu trabalho, e que está programado para ser feliz.
A continuidade da complexificação do trabalho e de constituição da classe
operária, aliado ao desenvolvimento de uma nova inteligibilidade produtiva inspirada na
inteligência industrial de Ford, na inteligência gerencial de Taylor e Fayol e na
inteligência econômica de Keynes, dentre outras significantes contribuições,
estabeleceu-se um novo momento histórico da sociedade industrial, o qual foi
denominado de segunda revolução industrial, marcado pelo surgimento da grande
indústria e do processo de produção em massa, denominado de modelo de produção
Taylorista – Fordista, ou simplesmente fordismo.
Para Sanson (2009) o modelo da organização do trabalho que servia de base à
economia industrial fordista tornou-se insuficiente, ou seja, a redução do trabalho
complexo ao trabalho simples, a separação da execução manual da concepção
intelectual, a industrialização e especialização da atividade laboral, não mais são
capazes de responderem aos novos padrões competitivos e às exigências no novo
paradigma produtivo implantado pela reestruturação produtiva, pela incorporação das
tecnologias de comunicação e informação e pela emergência da hegemonia qualitativa
do trabalho imaterial. Tal mudança aponta a transição da sociedade industrial para a
sociedade pós-industrial, gerando novas condições de existência da subjetividade
produtiva.
Tais condicionantes da formação da subjetividade produtiva, na era pós-industrial
com a emergência da hegemonia qualitativa do trabalho imaterial enquanto elemento
inovador de valorização do capital impõe restrições à aplicação das categorias marxistas
para a análise das condições de objetivação e subjetivação dos trabalhadores, apontando
para a necessidade de exploração de uma nova arquitetura categorial complementar à
análise marxista que seja capaz de dar conta deste novo contexto social e histórico das
condições de existência da subjetividade produtiva.

As Bases da Investigação da Subjetividade Produtiva no Pensamento de Michel


Foucault.

Segundo Corrêa e Teixeira (2010) na obra de Foucault toda experiência humana


vivida no interior da sociedade capitalista seria perpassada por relações de poder. Daí
porque o exercício de poder não seria privilégio apenas dos grupos dominantes e nem
das instituições, existindo uma reversibilidade e reciprocidade entre relações de poder e

197
as lutas históricas e sociais, de modo que não haveria poder sem a existência de
mecanismos de resistência e liberdade. É neste contexto que se estabelece a ontologia
do sujeito, como principal tema investigativo de Foucault, na concepção de que é na
imanência da história, na dobra da realidade, que o sujeito foucaultiano se constitui
como produto e resistência às técnicas de dominação.
No início de organização da sociedade capitalista, entre o século XVII e XVIII,
como afirma Foucault (2000), emergiram as técnicas de poder que foram
essencialmente centradas no corpo, no corpo individual, tendo sido assim descritas por
Foucault:

Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição


espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua
colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno destes corpos
individuais, de todo um campo de visibilidade. Eram também as técnicas,
pelas quais se incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil
através do exercício, do treinamento, etc. Eram igualmente técnicas de
racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, da
maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de
hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa
tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho.
(FOUCAULT, 2000, p.288)

Pode-se afirmar que o trabalho e a educação sofreram forte influência destas


tecnologias disciplinares, as quais possibilitaram a entrada do poder disciplinar no jogo
político e o nascimento do Estado moderno. Tanto as esferas do trabalho, quanto a da
educação, passaram ao status de espaços de direitos, porém regulados numa estrutura
disciplinar, num Estado que é ao mesmo tempo, individualizante e totalitário. Nesta
ambiência de tecnologia de vigilância, a educação ganha uma posição de regulação
social, a qual associada às tecnologias disciplinares do trabalho trata de forjar corpos
dóceis e as condições básicas para o estabelecimento de uma divisão social do trabalho.
Segundo Foucault (2000), durante a segunda metade do século XVIII, vai
aparecer algo novo, que é outra tecnologia, uma nova tecnologia de poder que não
exclui a tecnologia disciplinar, mas que a integra e modifica que não mais se aplica
meramente ao corpo, mas à vida, ao homem-corpo, ao homem-espécie. Foucault
denomina esta nova técnica de poder de biopolítica da espécie humana, fundamentada
na articulação entre as tecnologias disciplinares do corpo com as novas tecnologias de
controle da população. Para Foucault (2000), o nascimento da biopolítica trata-se de

Um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e de óbitos, a


taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses
processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na

198
segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas
econômicos e políticos, constituíram os primeiros objetos de saber e os
primeiros alvos de controle dessa biopolítica. (FOUCAULT, 2000, p.290)

Para Foucault (2000) a biopolítica surge como tecnologia de poder que tem como
foco um novo personagem no jogo político: a população, tratada como um problema
político e científico. As tecnologias de controle da população, com seus cálculos
estatísticos e seus mecanismos de medição e de previdência em torno desse aleatório de
populações vivas, vai atuar diferentemente das tecnologias disciplinares do corpo
mediante mecanismos globais, de ações destinadas à obtenção de estados globais de
equilíbrio, de regularidade, em resumo, de levar em conta a vida, os processos
biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma
regulação.
O desenvolvimento da sociedade capitalista, acompanhada da explosão
populacional e da industrialização - pois o poder soberano não conseguia mais dar conta
desta problemática complexa - a qual promoveu profundas mudanças em várias esferas
da vida humana. Na esfera da educação, assim como em outras esferas da vigilância e
do treinamento, a biopolítica promoveu a sua primeira acomodação, a qual orientou, já
no século XVII, a organização da escola como espaço de socialização e aprendizagem.
A educação além de manter funções de regulação social, assume, no contexto do
liberalismo, as funções de formação do cidadão produtivo, capaz de operar os processos
produtivos cada vez mais incorporadores de maquinarias e novas tecnologias
produtivas. Disso resulta segundo Veiga-Neto (2007, p.69), a ampliação do papel
conferido à escola como instituição de regulação social, de modo que o deslocamento
neoliberal a que hoje se assiste – da educação como direito para a educação como
mercadoria – terá implicações que vão além do que as análises marxistas costumam
apontar.
A educação, sob a governamentalidade biopolítica, assume papel fundamental no
desenvolvimento das forças produtivas da sociedade capitalista, na medida em que se
tornam mais complexos os processos de produção, pela crescente incorporação de
inovações tecnológicas e modernização das técnicas de gestão do trabalho, a ponto de
fundamentar uma das bases da governamentalidade neoliberal na forma da teoria do
capital humano.
A esfera do trabalho também sofre forte influência da nova tecnologia de poder
que emerge com a biopolítica. O trabalho considerado na sua historicidade e na sua

199
ontologia social se configura e adquire forma a partir das práticas de poder e saber, que
formulam os efeitos de verdade que o constituem. Neste aspecto, o trabalho, sob a
influência das tecnologias de controle biopolítico, sofre novas formas de controle no
processo produtivo e na subjetivação e objetivação do trabalhador. A análise sociológica
da categoria trabalho, no contexto da biopolítica, deve, portanto, operar deslocamentos
produtivos para a emergência de um trabalhador coletivo e novas formas de controle,
que superem os modelos disciplinares de treinamento e vigilância.
Segundo Lima (2010, p.99), na chamada primeira revolução industrial o corpo do
trabalhador era tratado como corpo-máquina e as máquinas introduzidas no sistema
produtivo substituíam a força motriz humana ou animal, enquanto principal fator de
realização de trabalho. Neste ambiente, onde as práticas de saber e poder estavam
vinculadas a um modelo de trabalho orientado para a invidualização, para a
especialização produtiva numa linha de produção em massa e padronizada, as
tecnologias disciplinares constituíam o modelo de regulação do processo produtivo. A
expansão da industrialização foi acompanhada de uma expansão da população operária,
levando a necessidade de agregação da nova tecnologia política de controle da classe
trabalhadora. É neste contexto que o modelo de produção taylorista-fordista se instala.
Lima (2010) aponta uma nova mudança na esfera do trabalho promovida pela
denominada segunda revolução industrial, onde o desenvolvimento científico e
tecnológico apropriado pelos sistemas produtivos possibilita a criação de máquinas
capazes de substituir não apenas a força-motriz humana, mas de substituir os processos
informativos de decisão e controle exercidos pelos trabalhadores. Tal substituição
denuncia uma grande mudança na esfera do trabalho, a passagem da atuação de
mecanismos disciplinares do corpo-máquina sobre trabalhador a um novo corpo
impactado pela informação que atua sobre a força de trabalho.
Lima (2010) afirma que a passagem do corpo-máquina ao corpo-informação

Inscreve-se no âmbito de duas grandes transformações. Uma primeira, que


diz respeito às mudanças das sociedades industriais para sociedades pós-
industriais ou informacionais. Uma segunda, que está na base material dessa
mudança de modelo de sociedade – a mudança de paradigma tecnológico: a
transição do paradigma mecânico ao informacional. (LIMA, 2010, p. 98)

Uma questão a ser considerada, na análise da relação entre Trabalho e Educação


na emergência da biopolítica, é o deslocamento do trabalho como principio educativo

200
para o trabalho como problema biopolítico-educativo. A questão central então passa a
ser em conhecer como a relação entre trabalho e educação entra nas relações sócio-
históricas, enquanto práticas de saber e poder das quais esta relação é investida?
Na transição da sociedade Industrial para a sociedade pós-industrial a lógica de
acumulação capitalista mantem a mesma dinâmica de acumulação e reprodução do
capital orientada pela introdução de inovação tecnológica e de organização do trabalho
no processo produtivo, porem diferencia-se no modo de produção da subjetividade
produtiva. Uma diferença essencial é que na primeira a acumulação é intensiva em
capital e na segunda a acumulação se dá em capital e conhecimento, com primazia para
o conhecimento, o qual assume o papel de principal fator de geração de valor.
De acordo com Sanson (2009) a forma de trabalho associada à sociedade pós-
industrial, pós-fordista, conforma-se com uma passagem de uma lógica da reprodução
para uma lógica da inovação, de um regime de repetição a um regime de inovação.
Neste novo contexto histórico de transição da sociedade industrial para a pós-industrial
o sujeito do trabalho, nesse caso, assume o papel de agente do trabalho imaterial, pois
seu saber e seu conhecimento – recursos imateriais – assumem papel relevante de
enriquecimento do trabalho e de geração de valor.
Os processos de formação da subjetividade produtiva no contexto da sociedade
pós-industrial, com a crescente hegemonia qualitativa do trabalho imaterial, revaloriza a
subjetividade dos trabalhadores, por meio do reconhecimento de que o conhecimento, a
comunicação e a cooperação são as categorias fundamentais da nova organização do
trabalho, as quais estão vinculadas ao estabelecimento de relações intersubjetivas entre
sujeitos singulares desenvolvidas mediante os processos sociais colaborativos da
produção.
Para Foucault a subjetividade, enquanto característica de um sujeito, é produzida
pelas correlações de forças e pelas resistências que emergem das tecnologias de
governamentalidade que estão em jogo a cada época, seja pelo modo como o
conhecimento alcança o estatuto de ciência, seja pelas práticas de divisão e classificação
das tecnologias disciplinares, seja pela associação das técnicas disciplinas com as
práticas de controle, mas será sempre um modo de normalização subjetiva.
Uma das alternativas de análise da relação entre Trabalho e Educação numa
abordagem biopolítica é, conforme aponta Gadelha (2009, p. 175), investigar como a
norma disciplinar e a norma de regulação biopolítica desta relação se cruzam, e os
lugares em que esse cruzamento se dá, no atual estrato sócio-histórico.

201
Um ambiente de regulamentação onde as normas disciplinares e as normas de
controle se encontram no campo da educação para o trabalho é o chamado modelo de
competências, o qual tem como estrato sócio-histórico de sua emergência as políticas
neoliberais e o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo. A análise desta
problemática é sucintamente realizada no próximo item do presente como um elemento
pontual para investigação das implicações da biopolítica na relação entre o trabalho e a
educação.

A Normalização Biopolítica da Subjetividade Produtiva na Sociedade Pós-


industrial – a emergência do Sujeito Competente.

As mudanças societárias em curso, que temos vivenciado a partir dos anos 1990,
trazem novas práticas discursivas que configuram mudanças em diversas práticas de
saber e poder, as quais incidem sobre variados campos sociais, mas com especial
impacto nas esferas do trabalho e da educação. Numa abordagem foucaultiana, com
todo o cuidado que se deve ter em utilizar tal denominação, a relação entre trabalho e
educação, considerada em sua historicidade, se configura e adquire formas a partir das
práticas de poder e de saber, com os efeitos de regimes de verdades que a constituem.
Tais mudanças societárias são evidenciadas por um conjunto de vocábulos e
noções que se constituem numa espécie de produção discursiva aparente, sem um
sentido claro. Estas novas formações discursivas, as quais operam diversos conceitos
ambíguos e polissêmicos, estabelecem novas modelagens políticas da relação trabalho e
educação. Tais formações discursivas podem ser exemplificadas citando-se alguns
termos que compõem os discursos normativos da esfera do trabalho e da educação, tais
como: flexibilidade, empregabilidade, governabilidade, empreendedorismo,
competência, globalização, sociedade do conhecimento, dentre outros.
A investigação da relação entre trabalho e educação, numa abordagem biopolítica,
não é uma tarefa simples e não se tem a pretensão de esgotar esta temática, mas de
apenas contribuir com algumas considerações introdutórias. Parafraseando Gadelha
(2009), a relação entre a biopolítica, o trabalho e a educação não constitui um fato
óbvio, dado de antemão, de modo a estar devidamente apontado, analisado e
dimensionado, mas sim um problema, no sentido de que não parecem suficientemente
evidentes os nexos entre trabalho e educação com a tecnologia de poder biopolítico,
tanto no passado como nos dias atuais.

202
A crítica marxista sobre a relação trabalho e educação estabelece que o trabalho,
enquanto categoria fundamental da existência humana, tem a primazia sobre a
educação, e os efeitos causados pelo sistema capitalista sobre aquele, materializados na
apropriação da mais-valia e na divisão social do trabalho, condicionam os processos
educativos às demandas do mercado de trabalho. Neste ambiente de interesses
antagônicos de classes, a educação que é demandada pelos trabalhadores e a que é de
interesse do capital, não são conciliáveis, de modo que a educação se torna um espaço
social de luta que incide sobre os processos de inclusão e exclusão.
Para Antunes (2010), o sistema capitalista está em crise e esta situação incide na
crise da sociedade do trabalho. Porém, para ele o trabalho ainda tem o status de
centralidade, pois o trabalho abstrato cumpre papel decisivo na criação de valores de
troca. A heterogeneização do trabalho e a complexificação da classe trabalhadora
impõem desafios para a construção de modelos formativos dos trabalhadores que sejam
capazes de enfrentar os condicionamentos do extrato sócio-histórico contemporâneo da
relação entre trabalho e educação.
A perspectiva de análise proposta pela abordagem marxista é de grande relevância
para a compreensão dos condicionantes sociais e políticos do modelo societário
capitalista e de suas implicações para a relação entre trabalho e educação. Porém esta
abordagem investigativa não tem sido suficiente para dar conta da complexificação do
trabalho, da emergência de novos arranjos produtivos e do deslocamento da própria
função produtiva para atividades imateriais.
Um novo estrato sócio-histórico emergiu com o crescente deslocamento do
trabalho concreto para o trabalho imaterial, com mais ênfase nos anos 1990, para o qual
Cocco et al. (2003) relacionou o trabalho imaterial, e mais tudo aquilo que está
vinculado à circulação e por outro lado à inovação, com um novo padrão de acumulação
onde processos reprodutivos se tornam imediatamente produtivos, emancipando-se da
ordem fabril do trabalho assalariado. Para o referido autor, esse deslocamento não
poderia ter acontecido sem a integração crescente das novas tecnologias de informação
e comunicação (NTICs) aos processos produtivos, principalmente no que diz respeito à
constituição do emaranhado de redes sociais e técnicas que sustentam e desenham
territórios ou arranjos de uma cooperação produtiva não mais restrita ao chão de fábrica.

Segundo Cocco et al. (2003), a hipótese do capitalismo cognitivo sustenta-se com


a perspectiva de uma transformação radical das formas de produção, acumulação e

203
organização social abertas pelas NTICs para além das determinações neo-industriais do
denominado modelo japonês ou da especialização flexível.
O novo estrato sócio-histórico do capitalismo cognitivo - onde a cognição dos
trabalhadores passa a ser o mais importante fator explicativo de seus comportamentos e
dos fenômenos econômicos - tem promovido o deslocamento do conceito de
qualificação profissional para o de competência. Este deslocamento aponta para a
emergência de novas formas de produção de saberes e de intervenção na relação entre
trabalho e educação que evidenciam novas estratégias de normalização desta relação,
em que se cruzam normas disciplinares e normas de regulação, sob a influência de
novos dispositivos de controle originados pelo o avanço das novas tecnologias de
informação e comunicação.
Segundo Manfredi (1999) a concepção da qualificação, no contexto da sociedade
industrial, tem como matriz o modelo job/skills, definido a partir da posição a ser
ocupada no processo de trabalho e previamente estabelecida nas normas organizacionais
da empresa, de acordo com a lógica do modelo taylorista/fordista de organização do
trabalho. Na ótica deste modelo, a qualificação é concebida como sendo adstrita ao
posto de trabalho e não como um conjunto de atributos inerentes ao trabalhador.
Tal abordagem aponta para um modelo de regulação disciplinar de um trabalhador
especializado e assujeitado, onde o seu corpo-máquina é treinado para desempenhar
tarefas prescritas e repetitivas em seu posto de trabalho. Neste sentido a qualificação
profissional é um modelo de formação orientado por uma anotomo-política que visa a
produção de corpos dóceis e aptos ao desenvolvimento de tarefas produtivas individuais
e fragmentadas.
A emergência dos modelos pós-fordistas de produção sob o contexto do
capitalismo cognitivo tornou o modelo de qualificação profissional, para os postos de
trabalho, insuficiente para atender as demandas em curso no mundo do trabalho,
remetendo a uma nova abordagem social da qualificação e da organização do trabalho, a
qual tem como elemento central o modelo das competências.
Um importante aspecto embutido no deslocamento do conceito de qualificação
para o modelo de competência é a sua relação como um novo tipo de práticas de poder e
de saber, o qual coloca a cognição e a comunicação intersubjetiva como principais
fatores de desenvolvimento dos sistemas produtivos, promovendo o deslocamento da
abordagem social da qualificação profissional para um novo ambiente de subjetivação e
de objetivação da relação entre o objeto trabalho e o sujeito trabalhador.

204
Outro ponto fundamental para análise da emergência do modelo das
competências, enquanto nova normalização biopolítica da qualificação e da organização
do trabalho é o seu caráter “psicologizado” e sua articulação com os dispositivos das
novas tecnologias de informação e comunicação.
Por outro ângulo, o conceito de competências é tratado como uma norma de
competência, a qual tem como exemplo a definição da Organização Internacional do
Trabalho-OIT (1999).
As normas de competências representam um dos sistemas de normalização da
sociedade pós-industrial, onde se cruzam as normas de disciplina e as normas de
regulação, inseridas em um apriori histórico, que orienta o deslocamento do corpo-
máquina da qualificação para o corpo-informação da competência. Neste campo de
visualização, as competências não representam uma negação do conceito de
qualificação profissional, mas pelo contrário, constituem-se numas das principais
formas de normalização da subjetividade produtiva na emergência do capitalismo
cognitivo, indicando uma revalorização da qualificação, que deixa de ser um atributo
vinculado a um posto de trabalho, para se tornar um atributo de um novo sujeito do
trabalho.
Pelo exposto, ousa-se afirmar que a normalização das competências laborais, que
se inserem tanto na esfera de organização do trabalho quanto na esfera educacional,
representa uma estratégia biopolítica para a governamentalidade da relação entre
trabalho e educação no estrato sócio-histórico do que vem sendo denominado de
capitalismo cognitivo. Porém, os seus efeitos sobre a subjetivação e objetivação dos
trabalhadores, e seu caráter de onipresença em todos os espaços sociais, associado aos
dispositivos de poder das tecnologias de informação e comunicação, têm se
caracterizado apenas como estratégias de elevação da produtividade e de promoção da
inclusão excludente dos trabalhadores, representando novas formas de acumulação do
capital.
A normalização biopolítica das competências é estruturada, segundo a OIT
(1999), em unidades de competências, as quais se fragmentam em elementos de
competências, critérios de desempenho, campos de aplicações e evidências de
desempenho, as quais são dirigidas para o controle de competências-chaves para cada
atividade produtiva. Tal organização tem grande semelhança com os dispositivos de
controle das tecnologias de informação, tais como os sistemas de programação
orientados a objetos e a comunicação em redes de pacotes, possibilitando tratar a

205
competência como um pacote informacional, que tem estruturas descritivas e de
orientação seqüencial, como cabeçalhos e endereços dos pacotes de dados enviados por
redes de computadores.
O modelo das competências, em sua aplicação biopolítica na relação trabalho e
educação, possibilita a integração dos dispositivos disciplinares, mediante a
especificação de padrões de desempenho em situações reais de trabalho e processos de
auto-gestão da qualidade, com dispositivos de segurança que possibilitam a atuação
preventiva sobre a população de trabalhadores flexíveis e orientados para a solução de
problemas, com maior responsabilização destes sobre os processos de inovação, e com
os dispositivos de controle da mente pela incorporação da empresa na subjetivação do
trabalhador empreendedor e na ampliação das redes informacionais de controle,
possibilitadas pelas tecnologias digitais.
Assim considerado, o modelo das competências, presente tanto na organização do
trabalho, quanto na estruturação de modelos formativos flexíveis e abertos, constitui um
importante componente da tessitura das novas formas de poder-saber que se cruzam nas
esferas do trabalho e da educação na emergência da biopolítica enquanto estratégia de
normalização de uma subjetividade produtiva flexível e inovadora, mas ainda sob o
controle do capital.

Considerações Finais

A investigação da relação entre trabalho e educação, tendo como abordagem os


mecanismos estratégicos agenciados pelo exercício do biopoder e da biopolítica, na
ótica de Michel Foucalt, possibilita operar deslocamentos que ampliam e inovam novas
práticas de saber e poder que emergem das relações sociais deste campo investigativo,
na conjuntura do denominado capitalismo cognitivo. Tal investigação oportuniza a
identificação de novas formas de subjetivação e objetivação do trabalhador, crítico e
reflexivo, em relação ao objeto do trabalho, o qual vem se tornando cada vez mais
imaterial.
As implicações da governamentalidade biopolítica na relação entre trabalho e
educação, enquanto categorias fundamentais da formação da subjetividade estão
situadas no mesmo plano de imanência das relações de resistência aos dispositivos de
exploração do capitalismo, cuja lógica produtivista se altera na era do capitalismo
cognitivo, mas não se altera a sua lógica de acumulação. Neste contexto, faz-se
necessário a construção de novas maneiras de viver e de trabalhar, que sejam capazes de

206
criar espaços de resistência que promovam a valorização da vida qualificada (bio) em
detrimento da vida desqualificada (zoe).
A educação profissional, no atual contexto, deve ser estruturada como um espaço
de resistência, buscando a construção de competências ampliadas, que integrem a
ciência, a tecnologia, o trabalho e a cultura, numa perspectiva de exploração de novas
formas de trabalhar e de viver, por meio de processos de aprendizagens colaborativas e
de trabalho em redes sociais de cooperação.

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