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A resistência ao soberano no Leviatã e no Segundo tratado sobre o governo: resis-

tência individual à punição e direito à rebelião

Felipe Azeredo – Mestrando em Ciência Política

1. Introdução

A representação e consequente tensão entre a vontade dos que possuem autori-


dade e exercem o poder e aqueles que estão submetidos à essa autoridade e poder é um
tema central no estudo da política. A partir da noção de contrato social, Thomas Hobbes
e John Locke desenvolvem o tema da representação de formas diferentes nas suas respec-
tivas obras Leviatã e Segundo tratado sobre o governo. Como resultado das diferentes
formas de representação e de concepções sobre o direito natural, os autores desenvolvem
diferentes condições em que os súditos passam a poder resistir legitimamente ao sobe-
rano.
Neste trabalho pretendo analisar, comparativamente, o desenvolvimento das
ideias de resistência ao poder soberano no Leviatã e no Segundo tratado sobre o governo,
com o objetivo de entender as condições e a forma em que a resistência é trabalhada
nestes dois textos. O fio condutor para analisar o desenvolvimento desta ideia serão as
noções de estado de natureza e representação em cada uma das obras. Dessa forma, na
seção dois analiso as condições do estado de natureza em cada uma das obras, ressaltando
os objetivos na formação do contrato. Na seção seguinte, analiso as condições dispostas
no contrato social em Hobbes e Rousseau. Na parte quatro, retomo as ideias trabalhadas
anteriormente para entender as condições de resistência ao soberano em cada uma das
obras. Comparando as circunstâncias em que cada autor admite a resistência legítima dos
súditos, defendo que as possibilidades descritas no Leviatã não podem ser concebidas
como a justificativa de uma rebelião legítima dos súditos, mesmo no cenário de dissolu-
ção do Estado Civil. Em Hobbes haveria apenas o direito de resistência individual, base-
ado na autopreservação, sem conteúdos políticos mais amplos.

2. As condições que levam à soberania no Leviatã


2.1. Estado de Natureza: o perigo da igualdade sem restrições
As ideias de Estado de Natureza e Direito Natural estão presente em ambas as
obras objeto deste trabalho e são articuladas de maneiras diferentes pelos seus autores.
No Leviatã, o Estado de Natureza é descrito como um estado de constante competição
por recursos, em que os indivíduos possuem, pelo menos na sua potencialidade, igual
capacidade para obtê-los (Hobbes, 1988, p. 84). Evrigenis (2016) mostra como Hobbes
constrói o problema do indivíduo em sua condição natural a partir da afirmação da exis-
tência de recursos limitados, da absoluta igualdade do homem no seu potencial para atin-
gir o mesmo fim que seus pares e do direito natural à autopreservação. No Estado de
Natureza hobbesiano, os indivíduos possuem um único direito natural à autopreservação
que, na ausência de restrições legítimas para a ação humana, dá a todo indivíduo o direito
a tudo aquilo que entender necessário para a sua sobrevivência. Contudo, não há bens
suficientes para todos os indivíduos desejarem as mesmas coisas. Assim, se duas pessoas
entenderem que necessitam do mesmo objeto para a sua autopreservação, elas entrarão
em conflito, especialmente porque entendem serem tão capazes quanto a outra para obter
o objeto em questão. Esses indivíduos são, no limite, iguais em suas capacidades para
atingirem os mesmos fins, ou pelo menos percebem-se como igualmente capazes. Dessa
forma, essa igualdade lhes retira o medo de agir, pois se enxergam como tão aptos quanto
os demais. Ao mesmo tempo, fundamenta o medo de que qualquer outro indivíduo terá
capacidade para tomar aquilo que ele já conquistou para a sua sobrevivência:

From this equality of ability, ariseth equality of hope in the attaining of our ends. And
therefore if any two men desire the same thing, which nevertheless they cannot both en-
joy, they become enemies; and in the way to their end, (which is principally their own
conservation, and sometimes their delectation only,) endeavour to destroy, or subdue one
another (Hobbes, 1998, p. 83).

Nesse sentido, o principal problema oriundo do estado de natureza no Leviatã é


a ausência de um critério externo capaz de definir a resolução do conflito entre os indiví-
duos. Se todos possuem o direito à autopreservação e a tudo aquilo que entenderem como
necessário, no limite, direito a tudo, o único critério que resta para a resolução desse con-
flito absoluto entre todos os homens é pragmático: a capacidade do indivíduo de obter
aquilo que deseja e preservá-lo (Hobbes, 1998, p. 85-86). Como todos os indivíduos são
iguais, não há pretensão mais legítima ou mais justa do que outra, inexistindo um meio
de resolução que não seja pelo uso da força (Runciman, 2016). Não há que se falar em
justiça, propriedade, bem ou mal, pois se tratam de noções desenvolvidas apenas a partir
de um critério externo, definido por um poder superior que não existe no conjunto de
indivíduos atomizados existentes no estado de natureza.
A ausência de um critério limitador da ação dos indivíduos torna a sua condição
natural miserável diante da constante possibilidade de guerra entre eles. A condição na-
tural do homem é instável, inexistindo a mínima certeza sobre a manutenção da autopre-
servação no futuro e a absoluta limitação do desenvolvimento dos indivíduos, que pare-
cem limitados a condição de perpétuos defensores de seus recursos (Sorrel, 2008). A ir-
restrita liberdade e igualdade entre os homens no Estado de Natureza, que gozam do di-
reito a qualquer coisa, inclusive uns aos outros, na maneira em que acharem necessário,
para a se preservarem (Hobbes, 1988, 83). Dessa forma, os homens estão constantemente
em uma guerra potencial uns contra os outros. Na medida em que, em um mundo de
recursos limitados, sem um poder para coagi-los a respeitarem certos limites, não existem
direitos adquiridos e só possuem aquilo que conseguirem proteger por si próprios, en-
quanto puderem proteger (Hobbes, 1988, 82).
É esta instabilidade, causada pelo medo da constante possibilidade de guerra,
que motiva os indivíduos a buscarem outra forma de organização. Impelidos pela lei na-
tural e por suas paixões, em especial o medo e o desejo de autopreservação, os indivíduos
compreendem que é mais vantajoso para se preservarem abrir mão do seu direito a todas
as coisas, cedendo-o a um terceiro a quem se submetem, autorizando-o a usar destes di-
reitos para governá-los (Hobbes, 1998, p. 86). Dessa forma, para que o indivíduo obtenha
sucesso na sua autopreservação, é necessário limitar a sua ação e abrir mão do seu direito
à todas as coisas:

that a man, when others are so too, as far-forth, as for peace, and defence f himself he
shall think it necessary, to lay down this right to all things; and be contented with so much
liberty against other men, as he would allow other men against himself (Hobbes, 1998, p.
87).

No raciocínio desenvolvido no Leviatã, que a autopreservação é, simultanea-


mente, a própria fonte de incerteza e instabilidade do Estado de Natureza que impele os
homens para o Estado Civil e aquilo que os homens buscam preservar ao se submeterem
ao soberano.
Assim, acredito que o principal objetivo da construção do Estado Civil, como
desenvolvido no Leviatã, é limitar o direito à autopreservação o contrato social, a partir
da resolução de dois aspectos que possibilitavam a extensão do direito de autopreservação
para todos as coisas e, em suma, da possibilidade permanente de guerra de uns contra os
outros: a igualdade e a ausência de um critério externo de resolução de conflitos.
2.2. A construção do soberano: autorização e alienação na representação

Para garantir uma ordem mínima, dotados de uma razão comum e impelidos pela
lei natural que os comanda à autopreservação, os indivíduos compactuam entre si para
estabelecer uma autoridade, cada um cedendo a totalidade dos seus direitos e transferindo
a este terceiro, o soberano, que receberá autoridade e poder sobre essa comunidade para
agir em seu nome, de modo a preservar a sua paz e segurança (Hobbes, 1988, 112). Os
indivíduos limitam entre si o seu direito à todas as coisas na medida em que alienam seus
direitos para outra pessoa e estabelecem um poder externo a eles na medida em que o
receptáculo desses direitos não faz parte do contrato social e, portanto, não pode ser obri-
gado ou demandado por este ato (Martinich, 2016). O objetivo deste pacto é justamente
a criação de um poder acima dos indivíduos que será capaz de garantir a sua preservação
não só por meio da sua proteção a ameaças externas, mas também de ameaças internas à
autopreservação de seus membros dentro da própria comunidade que o formou. Para ga-
rantir que o soberano possa cumprir com esse objetivo, é necessário que suas ações não
sejam limitadas por nenhuma restrição do contrato social, pois se assim estivesse, o so-
berano estaria na mesma condição que seus súditos, deixando de ser uma força externa
(Hobbes, 1998, p. 115).
Assim, apesar da obrigação de agir para manter a autopreservação dos indivíduos
que pactuaram para torná-lo soberano, este não pode ser demandado pelos seus súditos a
cumprir esta obrigação de uma determinada forma específica. No contrato social hobbe-
siano, a representação é construída de modo a excluir a tensão entre soberano e súditos
(representantes/representados). Os indivíduos, ao aderirem ao contrato, concordam com
em abrir mão dos seus direitos em benefício do soberano, autorizando-o a agir em seu
nome em busca da manutenção da paz e da sua segurança. Em sua obra, Hobbes desen-
volve o tema da representação com foco no aspecto da autorização, i.e., a outorga que o
conjunto de indivíduos dá ao soberano para agir em seu nome, suprimindo da equação
quase que na totalidade a questão da responsabilidade (accountability) pelos atos pratica-
dos em nome dos súditos (Pitkin, 1972, cap.1). Apesar de utilizar o termo representação
para definir a relação entre súditos e soberano, Hobbes foca no aspecto formal desta re-
lação, defendendo a assunção de obrigações unilateral pelos representados, já que o re-
presentante está autorizado a agir em nome daqueles e, portanto, tudo aquilo que fizer
também deve ser considerado como ação dos representados.
Nesse sentido, a autorização dos súditos ao soberano para agir em seu nome é
absolutamente irrestrita e possui uma dupla função: criar uma conexão entre o soberano
e seus súditos e garantir a sua independência da vontade daquela comunidade. A conexão
decorre da transferência dos direitos ao soberano, o que implica em uma autorização dos
súditos para que ele aja amplamente em seu nome, tornando seus atos, atos dos próprios
súditos (Martinich, 2016). Já a independência é fruto tanto dessa autorização quanto da
não participação do soberano no contrato social. Como age em nome dos súditos, estes
jamais podem questionar os atos do soberano pois são seus próprios atos. Paralelamente,
por não ser parte contratante no pacto social, é impossível opor ao soberano as limitações
impostas aos súditos por aquele pacto (Skinner, 2008, cap. 5). A vontade da comunidade
passa a ser a do seu legítimo representante, que age em seu nome por autorização, mas
não é obrigado a consultá-la para agir (Hobbes, 1998, cap. XVIII).
A autorização dos súditos, como formulada no raciocínio de Hobbes, exclui o
problema da formação de um consenso político acerca da vontade daquela comunidade
no desenvolvimento de uma teoria da representação (Pitikin, 1972, cap. 1). A vontade da
comunidade é a vontade do seu soberano que a representa, inexistindo qualquer espaço
para dissidência ou conflito. Ribeiro (2003, p. 29), defende que essa formulação do con-
ceito de representação de Hobbes gerado pelo contrato social é planejada para resolver o
problema da igualdade absoluta e da ausência de um critério externo para as ações dos
indivíduos. O soberano é único indivíduo a possuir direito a todas as coisas, sem qualquer
obrigação para com seus súditos, enquanto estes lhe devem obedecer às obrigações que
aquele lhes impor. Dessa forma, o contrato social coloca o soberano em absoluta desi-
gualdade com relação a seus súditos. Ao mesmo tempo, porém, essa absoluta desigual-
dade impõe a igualdade entre os próprios súditos, que devem igual obediência ao sobe-
rano.
Paralelamente, essa desigualdade instaurada entre soberano e súditos garante a
criação de um critério externo para julgar as suas ações (Runciman, 2016). Não estando
obrigado a obedecer a vontade dos seus súditos, que lhe devem obediência, o soberano é
livre para agir e julgar as suas ações da maneira que entender melhor, já que eles assim
os autorizaram. Dessa forma, ele se torna o único capaz de exigir legitimamente que ou-
tros indivíduos ajam ou deixem de agir de determinada maneira, criando-se assim um
critério externo para julgar as suas ações. Agir de maneira justa/boa é agir conforme os
ditames do soberano, agir de forma injusta/má é ir contra as normas estabelecidas por ele,
tornando-se passível de punição. Há em Hobbes, portanto, um esvaziamento do conteúdo
político da justiça e das normas que regem a vida em comunidade, em favor de uma es-
pécie de formalismo jurídico-filosófico que estabelece ser a justiça a obediência àquilo
que o soberano, receptáculo dos direitos e representante dos súditos, lhe impor como regra
(Ferreira, 2013).
Desse modo, na formulação de um contrato social para garantir a autopreserva-
ção dos indivíduos, Hobbes parece aniquilar por completo a possibilidade de resistência
legítima ao poder soberano pelos indivíduos que pactuaram para criá-lo, inexistindo es-
paço para a desobediência ou questionamento das suas determinações. Dessa forma, não
é possível fundamentar uma desobediência conjunta dos súditos das disposições do sobe-
rano que seja legitimada em um julgamento daquilo que seria a ação mais justa ou mais
correta a ser tomada pelo soberano (Hobbes, 1998, p. 116-117). A primeira e a segunda
consequência da formação deste pacto de representação é praticamente impedem o indi-
víduo de rompê-lo de forma legítima. Em primeiro lugar, não se pode romper o pacto sem
injustiça, já que os indivíduos são obrigados pela lei natural a permanecerem nele, bem
como não se pode fazer um novo porque haverá sempre o pacto anterior limitando as
ações dos indivíduos. Segundo, não é possível romper o pacto alegando que o soberano
o teria rompido primeiro. Como ele não faz parte do contrato social não se pode imaginar
que lhe foram impostas condições algumas no exercício do seu poder e, portanto, não
pode violar essas condições inexistentes (Hobbes, 1998, cap XVIII).
Contudo, há uma única ressalva a este dever absoluto de obediência, baseado no
único direito que os indivíduos são incapazes de ceder ao soberano e que fundamenta a
sua própria criação: o direito a auto preservação. Antes de explorar esse tema, porém, por
entender que a comparação com Locke é profícua para compreender os limites e condi-
ções da resistência legítima ao soberano em Hobbes, trato na seção de seguinte da cons-
trução da soberania e dos seus limites no Segundo Tratado sobre o governo.

3. A soberania no Segundo Tratado sobre o governo


3.1.O perigo do direito sem mediação

Semelhante a Hobbes, Locke também fundamenta a sua teoria sobre a soberania


em um exercício teórico sobre em quais condições o indivíduo viveria se não estivesse
submetido a um poder político, buscando analisar o que o levaria a desejar abandonar
essas condições e qual pacto ele celebraria com seus pares para tanto. Dessa forma, utili-
zando-se das mesmas ferramentas teóricas de Hobbes – racionalidade do indivíduo, a
existência de leis e direitos naturais, estado de natureza e contrato social – mas dando-
lhes conteúdo substancialmente diferente do autor de Leviatã, Locke construirá a sua te-
oria sobre a soberania, desenvolvendo o problema da representação de modo a incluir
também uma noção de accountability.
Para Locke, o estado natural dos indivíduos é um estado de liberdade e igualdade
entre os indivíduos, que exercem suas atividades sobre a natureza, que é suficientemente
abundante para que todos possam satisfazer seus desejos (Locke, 1980, p. 9). Tal como
em Hobbes, os indivíduos em sua condição natural são livres porque podem dispor de
suas posses e agir sem pedir permissão a ninguém, já que não se encontram sob o poder
legitimo de outro indivíduo. Iguais porque todos os indivíduos possuem as mesmas con-
dições naturais: são serem racionais, que não possuem autoridade um sobre o outro e,
potencialmente, as mesmas vantagens e habilidades (Sorrel, 2008). Porém, ao contrário
de Hobbes, Locke não pensa o estado de natureza como um estado de escassez de recur-
sos, que impeliria os homens à disputa pelos mesmos bens. Assim, a igualdade e liberdade
que em Hobbes levam à competição pelos recursos limitados dispostos na natureza, ge-
rando incerteza da ameaça constante do conflito, em Locke revela uma condição natural
de relativa tranquilidade (Brown, 2008).
Também distanciando-se de Hobbes, Locke defende a existência de critérios de
legitimidade para julgar as ações dos indivíduos em sua condição natural, oriundos da lei
natural, que a racionalidade do homem os torna capaz de conhecer e obedecer. Assim,
das leis a natureza, deduz-se justamente a condição de igualdade e liberdade dos indiví-
duos, que os proíbe de machucar uns aos outros, exceto quando sua própria vida estiver
em perigo e quando o outro tiver ofendido a lei da natureza:

The state of nature has a law of nature to govern it, which obliges every one: and reason,
which is that law, teaches all mankind, who will but consult it, that being all equal and
independent, no one ought to harm another in his life, health, liberty, or possessions: for
men being all the workmanship of one omnipotent, and infinitely wise maker (Locke, p.
09)

O critério desenvolvido por Locke para julgar a conduta humana mesmo no es-
tado de natureza está baseado na existência de um direito natural que vai além da sua
autopreservação (Godoy, 2004). Enquanto ser racional, o indivíduo é senhor de si próprio,
possuindo a propriedade de si mesmo, logo, possui o direito de se preservar. Como con-
sequência, o indivíduo deve buscar meios para se manter vivo e se preservar. Neste pro-
cesso, ao adquirir os recursos necessários para a sua sobrevivência por meio do seu pró-
prio esforço, o indivíduo se mistura a essas coisas e as torna também suas propriedades,
pois sendo dono de si e estando seu eu misturado a elas, elas também são suas:

every man has a property in his own person: this nobody has any right to but himself. The
labor of his body, and the work of his hands, we may say, are properly his. Whatsoever
then he removes out of the state that nature hath provided, and left it in, he hath mixed
his labor with, and joined to it something that is his own, and thereby makes it his prop-
erty. (Locke, XXXX, p. 19)

Todavia, o direito a autopreservação do indivíduo e a sua consequente proprie-


dade de si não geram o direito de se apropriar de tudo aquilo que o indivíduo entender
como necessário para a sua sobrevivência. Para Locke, o limite do direito à propriedade
das coisas é o necessário para a própria sobrevivência do indivíduo e a propriedade do
outro, i.e., aquilo que outro indivíduo já colocou a sua força de trabalho e adquiriu para
si (Locke, 1980, p. 19). À diferença de Hobbes, o direito à autopreservação não gera um
direito a manter tudo aquilo que for possível obter e proteger por meio da sua própria
capacidade, mas sim um legítimo direito à propriedade, que poderá ser oposto a terceiros
que desejem esta mesma coisa, que o indivíduo já possui (Godoy, 2004).
Nessa linha, o direito à propriedade em sentido amplo está conectado ao o ter-
ceiro direito natural do indivíduo: o direito de punir aquele que violar a sua propriedade
(Brown, 2008). Se há um critério legítimo para julgar as condutas dos indivíduos, há tam-
bém o direito de punir aqueles que, violando o critério estabelecido pela lei natural, pre-
judicam o direito de outros. Para Locke, a única oportunidade legitima na condição natu-
ral em que se pode subjugar o outro é para restaurar a lei natural, i.e., punir a violação do
direito à propriedade de si e a adquirida (1980, p. 14). Nesse cenário, apenas aquele que
viola a lei natural – conhecida por todos por meio da racionalidade – se coloca em um
estado de guerra com os outros indivíduos, já que, mesmo conhecendo as limitações na-
turais, violou o direito de outro, se tornando um perigo (Locke, 1980, p. 15).
Mais uma vez, há uma clara diferença com o Estado de Natureza de Hobbes.
Enquanto no cenário desenhado no Leviatã, o Estado de Natureza é o Estado de Guerra
em potencial, causado pela igualdade e ausência de critério para julgar e limitar as ações
dos indivíduos, em Locke o Estado de Natureza é uma condição de paz, pois a razão (lei
natural) é garantia de que a igualdade e liberdade não serão utilizadas para subjugar outros
indivíduos. O Estado de Guerra ocorre apenas quando indivíduos decidem quebrar essa
garantia natural, declarando a sua intenção de usar a força contra outro homem, clara
violação da razão, e, consequentemente, da natureza humana (Sorrel, 2008).
Dessa forma, Locke exclui o problema presente no Estado de Natureza hobbesi-
ano causado pela absoluta igualdade dos homens na sua empreitada para garantir a sua
autopreservação por meio da exclusão da escassez e da criação de um critério legítimo
para limitar as condutas dos indivíduos mesmo na sua condição natural. Contudo, a cria-
ção desse critério legítimo para julgar e punir as condutas do indivíduo em seu estado
natural cria uma nova ordem de problemas inexistentes no Estado de Natureza de Hobbes.
A punição, em respeito à lei natural, deve ser aplicada de maneira proporcional, já que a
punição deve restaurar a lei natural, legitimando o mal a ser causado naquele que a violou
apenas na medida do mal causado por ele. Assim, o homem no Estado de Natureza deve
punir aquele que o ofendeu de maneira justa, sob o risco dele próprio violar a lei natural.
Portanto, é necessário, para além de garantir a segurança do direito natural à propriedade,
garantir a imparcialidade daquele que aplica a pena para garantir a sua justiça.
Assim, o estado civil surge na teoria lockeana para solucionar duas questões co-
locadas pela admissão da lei natural como fonte de critério legítimo para julgar as ações
dos indivíduos: (i) a necessidade de proteger a propriedade (de si e de seus bens) dos
indivíduos daqueles que desejam se colocar em um Estado de Guerra; e (ii) a necessidade
de garantir uma justa punição para os ofensores para que não haja uma nova violação da
lei natural (Conces, 1998).

3.2. Representação e confiança

O contrato social é firmado entre os indivíduos para criar uma comunidade e


escolher um soberano que possa melhor proteger a propriedade dos membros daquela
comunidade e punir justamente aqueles que violem as leis naturais (Locke, 1980, p. 65).
Então, a criação da sociedade civil para Locke é a formação de uma comunidade em que
seus membros abriram mão do seu direito natural de agir da maneira que melhor entender
para garantir a preservação da sua propriedade em sentido amplo, respeitados os limites
da lei natural, e o de punir aqueles que violarem esta lei (Brown, 2008). Porém, ao con-
trário do descrito no Leviatã, a alienação dos direitos não resulta em uma representação
sem responsabilidade do representante junto aos representados. A cessão destes dois di-
reitos gera como consequência a vinculação do exercício da soberania a duas premissas:
(1) governar estabelecendo leis para proteger a propriedade, nos limites da lei natural; e
(2) empregar a força para garantir a eficácia lei e prevenir ou corrigir injúrias que afetem
a segurança da comunidade. Assim, Locke define poder político como o direito de fazer
leis (da mais gravosa - penalidade de morte - até as menores penalidades) para regular e
preservar a propriedade, bem como empregar as forças da comunidade no cumprimento
dessas leis e na defesa da comunidade de ataques externos, tudo isso buscando o bem
comum (Brown, 2018).
É fundamental para essa limitação do exercício do poder soberano é a participa-
ção do governante no contrato social, obrigando-o ao cumprimento das cláusulas do con-
trato. Essa vinculação permite que o mesmo critério de legitimidade para ação humana
presente no Estado de Natureza seja preservado na passagem para o Estado Civil, permi-
tindo ao soberano ser questionado legitimamente pelos seus súditos caso não cumpra os
ditames da lei natural na sua busca para a preservação da propriedade. Como o Estado de
Natureza em Locke não coloca o problema da igualdade absoluta, tal como ele é constru-
ído por Hobbes, não há necessidade de um soberano ilimitado, que se coloque acima dos
súditos e fora da lei civil para servir de parâmetro/critério de resolução de conflitos e
limitação às ações dos indivíduos. Nos termos do Segundo tratado sobre o governo, este
soberano se encontraria em um estado de guerra com relação aos seus súditos, já que os
outros sequer poderiam lhe opor os limites da lei natural (Locke, 1980, p. 77).
A preocupação de Locke é, na verdade, garantir que aquele que o soberano não
abusará da sua condição para agir em desacordo com os ditames da lei natural, critério de
justiça dos atos dos indivíduos pré-existente à formação do Estado civil e que também o
vincula. Nessa perspectiva, Conces (1988) defende uma interpretação interessante da for-
mação do contrato social em Locke. Para o autor, o momento em que os indivíduos deci-
dem compactuar para a deixar o Estado de Natureza pode ser dividido em duas etapas. A
primeira é a formação da comunidade daqueles que irão contratar, cedendo os seus direi-
tos naturais à preservação da propriedade e de punição para o corpo político formado pela
maioria. A segunda – e o primeiro ato dessa maioria – é o estabelecimento de um gover-
nante para este corpo político. Apesar de ser possível levantar dúvidas sobre esse processo
duplo ser algo novo na teoria contratualista lockeana, pois seria possível interpretar de
forma parecida a formação do estado civil em Hobbes (Ribeiro, 2003), esta interpretação
parece profícua na medida em que ressalta a importância do corpo político formado pela
comunidade civil como beneficiária e limitadora do contrato social.
A partir desta intepretação, Conces (1988) defende que as condições estabeleci-
das no contrato social lockeano permitem pensá-lo como um pacto de confiança firmado
entre o governante e o povo, beneficiário deste pacto, que irá determinar os seus termos
e, consequentemente, os limites do poder de representação do soberano. De fato, em
Locke não parece ser o indivíduo quem tem legitimidade para julgar as ações do gover-
nante, mas o próprio corpo político que o instituiu, na medida em que o objetivo do go-
verno (bem comum) só pode ter o seu conteúdo definido pela própria comunidade. Con-
sequentemente, é a própria comunidade que pode resistir ao governo e destituí-lo (Locke,
1980, p. 108).

4. Direito individual à autopreservação e direito à rebelião

O objetivo dos dois autores é fazer um exercício teórico para legitimar a existên-
cia do Estado Civil e o fazem justificando o porquê e em quais condições o indivíduo vive
melhor nele do que em sua condição natural. A justificativa apresentada por Hobbes e
Locke para o indivíduo se submeter ao soberano é que no Estado Civil os direitos naturais
do homem estariam melhor protegidos do que eles próprios seriam capazes de fazer no
Estado de Natureza. Em Hobbes esse direito é o de autopreservação do indivíduo, em
Locke é o direito à propriedade em sentido amplo, entendida tanto quanto autopreserva-
ção do indivíduo quanto preservação dos seus bens. Contudo, ambos os autores estipulam
cenários limítrofes ao poder do soberano, em que desobedecê-lo, oferecendo-lhe resistên-
cia, pode ser considerada uma ação legítima.
No Leviatã, Hobbes descreve dois cenários em que a resistência do súdito ao
poder do soberano seria legítima, todos em que o direito à autopreservação é colocado
em risco. O primeiro é quando o soberano decide infligir uma punição ao súdito. A legi-
timidade da resistência nesta condição decorre dos próprios termos e limites do contrato
social. Como visto, na formação do pacto social, o soberano não recebe dos súditos o seu
direito à autopreservação, já que Hobbes entender ser impossível, pela própria natureza
do homem, ceder este direito. Logo, não é possível deduzir o direito do soberano de punir
seus súditos da alienação deste direito. O que fundamenta o direito à punição do soberano
é o seu próprio direito à autopreservação da sociedade civil (Ristroph, 2013). Porém,
como o indivíduo não cedeu o seu direito à autopreservação ao soberano, ele não pode
ser obrigado, ainda que na condição de súdito, a consentir ou assistir o soberano na sua
própria punição. Neste cenário, a obrigação do súdito cessa porque ele e o soberano re-
tornam ao estado natureza um em relação ao outro, existindo apenas a possibilidade de
resistência individual comum a todos os indivíduos na sua condição natural.
For by that which has been said before, no man is supposed bound by covenant, not to
resist violence; and consequently, it cannot be intended, that he gave any right to another
to lay violent hands upon his person. In the making of a commonwealth, every man giveth
away the right of defending another; but not of defending himself. Also, he obligeth him-
self, to assist him that hath the sovereignty, in the punishing of another; but of himself
not [...]. But I have also showed formerly, that before the institution of commonwealth,
every man had a right to every thing, and to do whatsoever he thought necessary to his
own preservation; subduing, hurting, or killing any man in order thereunto. And this is
the foundation of that right of punishing, which is exercised in every Commonwealth
(Hobbes, 1988, pp. 205-206)

O segundo cenário em que é legítimo resistir aos comandos do soberano descrito


no Leviatã é na dissolução do Estado Civil, i.e., quando o próprio soberano não possui
mais forças para mantê-lo, causando o seu perecimento. Como consequência da dissolu-
ção do Estado Civil, há a dissolução da comunidade forma pelos homens que pactuaram
o contrato social, que apenas pode existir sob o governo de um soberano absoluto

then is the commonwealth DISSOLVED, and every man at liberty to protect himself by
such courses as his own discretion shall suggest unto him. For the sovereign, is the public
soul, giving life and motion to the commonwealth; which expiring, the members are gov-
erned by it no more, than the carcase of a man, by his departed (though immortal) soul.
(Hobbes, 1988, 221)

Assim, não parece que o autor descreve um cenário de resistência legítima ao


poder soberano, mas tão somente a constatação de que, quando não há mais como manter
o poder do soberano, ocorre a dissolução do Estado Civil.
Sob outra perspectiva, Locke também irá pensar dois cenários em que a resistên-
cia aos atos do governo é legítima. O primeiro cenário é a mudança do legislativo sem o
consentimento do povo. Nesse caso, há uma violação ao direito natural de propriedade de
si mesmo, que só pode ser exercida por meio de um legislativo aprovado pelo povo que
irá estabelecer as leis que o governo deve executar. O segundo cenário, mais fundamental
para esta discussão, é quando o governo age contra a confiança do povo, invadindo a sua
propriedade e agindo arbitrariamente contra a sua liberdade:

There is therefore, secondly, another way whereby governments are dissolved, and that
is, when the legislative, or the prince, either of them, act contrary to their trust. First, The
legislative acts against the trust reposed in them, when they endeavour to invade the prop-
erty of the subject, and to make themselves, or any part of the community, masters, or
arbitrary disposers of the lives, liberties, or fortunes of the people (Locke, 1980, pp. 112)

Ao violar a confiança do povo, o governo perde a sua legitimidade e passa a usar


a força em desacordo com a autoridade que lhe foi conferida pelo povo, se colocando,
doravante, em estado de guerra com este. No estado de guerra, o povo obtém a direito de
resistir ao governo pela força para preservar seus direitos naturais:

In all states and conditions, the true remedy of force without authority, is to oppose force
to it. The use of force without authority, always puts him that uses it into a state of war,
as the aggressor, and renders him liable to be treated accordingly (Locke, 1980, p. 81).

Contudo, a dissolução do governo em Locke não significa necessariamente a


dissolução da sociedade civil, que permanece unida como povo, inclusive para julgar os
atos do soberano (Conces, 1988). Enquanto outorgante e beneficiário da confiança depo-
sitada no governo, é o povo quem deve julgar a legitimidade dos atos do governo e repô-
lo por outro que esteja mais apto a preservar o seu direito à propriedade:

Who shall be judge, whether the prince or legislative act contrary to their trust? [...] To
this I reply, The people shall be judge; for who shall be judge whether his trustee or deputy
acts well, and according to the trust reposed in him, but he who deputes him, and must,
by having deputed him, have still a power to discard him, when he fails in his trust?
(Locke, 1980, p. 123)

Ao contrapô-lo à Locke, acredito ser possível interpretar que em Hobbes não há


de fato a construção de uma justificativa da resistência coletiva legítima ao poder sobe-
rano, mas apenas a descrição de cenários em que o indivíduo se relaciona com o soberano
fora do Estado de Civil, seja diante da dissolução da sociedade, seja ao sofrer uma puni-
ção.
As hipóteses de resistência ao poder soberano em Hobbes não são propriamente
resistência ao soberano ou à Commonwealth enquanto membro de uma coletividade, mas
sim como ser externo, que já se encontra fora do pacto social com seus pares e, por isso,
não é mais compelido a reconhecer os direitos e obrigações deste pacto entre os indiví-
duos pactuantes e entre estes e o soberano.
Não há qualquer possibilidade em Hobbes de oferecer resistência conjunta legí-
tima ao soberano, mas apenas indivíduos, de forma atomizada. Isso porque, nos dois ce-
nários descritos, os indivíduos já retornaram ao Estado de Natureza e, portanto, não po-
dem agir como uma coletividade. Em termos hobbesianos, sem soberano não há condi-
ções para a existência de uma comunidade entre homens iguais, diante da ameaça cons-
tante da guerra e da impossibilidade de existir um critério externo capaz de estabelecer o
que é justo e impô-lo.
Assim, sem a ideia da possibilidade de construção de uma coletividade fora do
julgo de um soberano não há direito à rebelião em Hobbes, mas apenas o direito individual
de resistir à atos que atentem contra a preservação da sua própria vida.

5. Bibliografia

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