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Volume 

11 ­ Março de 2006
Editor: Giovanni Torello

Outubro de 1999 - Vol.4 - Nº 10

Transtorno de personalidade paranóide. Uma revisão.

Paranoid Personality Disorder. A Review.

Guilherme Rubino de Azevedo Focchi


Psiquiatra - Médico Colaborador do Instituto de Psiquiatria da Faculdadede Medicina da Universidade de
São Paulo.

José Carlos Ramos Castillo.


Médico Assistente do Instituto de Psiquiatria da FMUSP
Supervisor dos residentes. Residência Médica - IPQ - HC - FMUSP
Membro da Comissão de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e do Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Instituto de Psiquiatria - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rua Ovídio Pires de
Campos, s/n. CEP 05403-010, São Paulo, SP. Tel/Fax (011) 852-9029.

Endereço para correspondência:


Guilherme Rubino de Azevedo Focchi
Rua Napoleão de Barros, 167 - Vila Clementino. CEP 04024 - 000. Tel: 5712569.

Resumo

Os autores, partindo do conceito de Personalidade, fazem uma revisão sobre o Transtorno de


Personalidade Paranóide, desde seus aspectos históricos até o diagnóstico e a terapêutica. São
apresentados casos ilustrativos.

Palavras - chave: Personalidade.Transtorno.Paranóide.Diagnóstico. Tratamento.

Abstract

The authors, beginning with a discussion about the concept of Personality, review the Paranoid
Personality Disorder, its diagnosis and treatment. Typical cases are presented.

Key - words: Personality.Disorder. Paranoid. Diagnosis. Treatment.

"Ela nunca confiava em ninguém, e por mais


nobres que fossem as intenções, sempre
suspeitava nelas motivos mesquinhos ou baixos e
fins egoístas."

Tchecov, A Esposa

Personalidade é um dos conceitos mais complexos em Psiquiatria (WANG E COL., 1995). Constitui a
essência do indivíduo, determinada multifatorialmente e percebida pelo meio (ALPORT, 1966; WANG E
COL., 1995). É composta pelo caráter - seus aspectos cognitivos - e pelo temperamento - seus
aspectos afetivo-conativos (PETERS, 1984).
Transtornos de Personalidade são variações extremas da normalidade, causando prejuízo no
funcionamento do indivíduo, má adaptação social e sofrimento subjetivo (WANG E COL., 1995). Para
muitos, o Transtorno de Personalidade não existe, devendo-se eliminar o conceito por ser teoricamente
insatisfatório, confuso na prática e cientificamente nocivo (KAUFMAN, 1980).

Aqui, será abordado especificamente o Transtorno de Personalidade Paranóide, seu diagnóstico e


terapêutica.

O Transtorno de Personalidade Paranóide pode ser definido como entidade patológica distinta, que
independe da cultura e do grupo em que o indivíduo está inserido, envolvendo um estilo global de
pensar, sentir ou relacionar-se com os outros de forma rígida e invariável (GABBARD, 1992). Constitui
maneira de ser do indivíduo, ego-sintônica, caracterizada por desconfiança e suspeita persistentes em
relação a outrem, interpretando motivações e ações de outros indivíduos como malevolentes (GABBARD,
1992; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

A Personalidade Paranóide já havia sido descrita por Kraepelin em 1915, designando indivíduos
querelantes e constituindo característica pré-mórbida da Paranóia (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995). Kurt
Schneider, em sua classificação assistemática das Personalidades Psicopáticas, descreveu um tipo de
psicopata, o fanático, caracterizado pela supervalorização de certos complexos, ou seja, idéias ou
motivações que em virtude de sua exagerada acentuação afetiva adquiriam posição dominante, uma
preponderância tirânica sobre o psiquismo (BIRNBAUM, 1909; SCHNEIDER, 1948; KAUFMAN, 1980).
Haveria fanáticos ativos, lutadores, e fanáticos silenciosos, dissimulados (SCHNEIDER, 1948).

É interessante assinalar que o próprio Schneider evitou o termo "Psicopata Paranóide", pois o
principal nesses psicopatas seria a supervalorização de complexos e não a propensão à autorreferência
(SCHNEIDER, 1948). A respeito disso, cabe salientar que a classificação de Kurt Schneider foi criticada
por "definições pouco esclarecedoras" (BONNET, 1983). Ao psicopata fanático schneideriano
corresponde o Transtorno de Personalidade Paranóide nas nosologias atuais (CID - 10, DSM - IV).
(GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

O Transtorno de Personalidade Paranóide ocorre em 0,5 - 2,5% da população geral, sendo mais
comum em indivíduos do sexo masculino (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995). Estudos em famílias revelaram
estreita relação com Esquizofrenia e Transtornos Delirantes (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

A etiologia do Transtorno é incerta, provavelmente contando para esta fatores biológicos,


psicológicos e ambientais (KAUFMAN, 1980; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

Diagnóstico e Quadro Clínico

O diagnóstico do Transtorno de Personalidade Paranóide é basicamente clínico.

A CID - 10 (OMS, 1993) tem como critérios diagnósticos para o Transtorno os seguintes:
sensibilidade excessiva a contratempos e rejeições; tendência a guardar rancores persistentemente,
isto é, recusa a perdoar insultos e injúrias ou desafetos; desconfiança e tendência invasiva a distorcer
experiências por interpretar erroneamente ações amistosas de outrem como hostis; um combativo e
obstinado senso de direitos pessoais, em desacordo com a situação real; suspeitas recorrentes, sem
justificativa, com respeito à fidelidade sexual do cônjuge ou parceiro sexual; tendência a experimentar
auto-valorização excessiva, manifestada em atitudes persistentes de auto-referência; preocupação
com explicações "conspiratórias", não substanciadas, para o que ocorre. Estão excluídos Esquizofrenia e
Transtornos Delirantes.

Os critérios diagnósticos do DSM - IV (APA, 1994) para o Transtorno de Personalidade Paranóide


são: suspeita, sem base suficiente, de que os outros o(a) estão explorando, agredindo ou enganando;
preocupação ou dúvidas injustificadas sobre a lealdade ou confiabilidade de amigos ou sócios; relutância
em fazer confidências, por temer que as informações sejam usadas contra si; interpretação de
significados ocultos em comentários amistosos; dificuldade em perdoar insultos; hipervigilância a
ataques à própria pessoa ou reputação, podendo reagir de forma rápida e agressiva; suspeita, sem base
justificada, em relação à fidelidade do cônjuge ou parceiro sexual. Devem estar preenchidos quatro ou
mais critérios e estão excluídos Esquizofrenia, Transtornos do Humor com sintomas psicóticos, outros
Transtornos Psicóticos e condições médicas gerais.

Os pacientes com Transtorno de Personalidade Paranóide são em geral reservados, silenciosos e


têm uma percepção notavelmente acurada do ambiente (GABBARD, 1992). São dotados de arguta
sensibilidade em questões de hierarquia e poder, apresentando dificuldade em se relacionar com
autoridades, talvez por medo de serem dominados ou de mostrar sua vulnerabilidade (GABBARD, 1992;
GUNDERSON & PHILLIPS, 1995). Percebem as ameaças à sua autonomia como onipresentes, não
conseguem relaxar, o mundo é para eles povoado por seres estranhos e imprevisíveis, indignos de
confiança (OGDEN, 1986; GABBARD, 1992). Esses pacientes têm necessidade constante de controlar os
outros, são também patologicamente ciumentos, o que reflete sua terrível baixa auto-estima
(MEISSNER, 1986; O’BRIEN E COL., 1992). Interpretam os sentimentos alheios não como criações
pessoais, mas como coisas em si mesmas (GABBARD, 1992). Vivem na posição esquizoparanóide,
dissociando e afastando de si toda a "maldade" e projetando-a em figuras externas (GABBARD, 1992).

O Transtorno pode estar associado à Depressão, Agorafobia, Transtorno Obsessivo-Compulsivo,


tentativas de suicídio e outros Transtornos de Personalidade, primariamente Esquizotípico, Narcisista,
"Borderline" e Evitativo (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

O diagnóstico diferencial deve ser feito com Esquizofrenia Paranóide (há sintomas psicóticos
persistentes), com Transtorno Delirante, tipo Paranóide (há delírios persecutórios persistentes) e com
outros Transtornos de Personalidade (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

A seguir, cinco casos ilustrativos:

Caso 1)

Um estudante de 22 anos, com dúvidas sobre juntar-se à Central de Inteligência ou estudar


Ciências Políticas, foi pedir aconselhamento vocacional. Na primeira entrevista, deixou claro que não
confiava em psiquiatras e falou do "perigo" que representavam as duas profissões, pois poderia ser
"explorado". Decidiu não dar muitas informações a seu respeito, pois "poderia ser prejudicado
futuramente". Contou sobre a separação recente de sua esposa, a quem sempre acusou de infidelidade.
Ela o considerava tenso e sério, incapaz de responder a brincadeiras sem se sentir atacado. O
estudante acreditava que sua esposa era responsável por todos os seus problemas matrimoniais, e
interpretou a separação como uma confirmação de que não deveria confiar em ninguém (GUNDERSON &
PHILLIPS, 1995).

Caso 2)

C.L.N.P., 30 anos, masculino, solteiro, engenheiro, RGHC 7030519D, internado no IPQ - HC -


FMUSP a 29-4-97 por "tentar agredir o pai com uma faca". O paciente, sem antecedentes mórbidos, aos
17 anos passou a queixar-se de que estava sendo perseguido na escola, informação verificada pelos
pais como falsa. Tornou-se desde então agressivo e desconfiado, sobretudo em relação à família.
Responsabilizava-a pelos seus problemas, exigia o "melhor" para si. Chegou a agredir os pais fisicamente
e em seu trabalho, chegou a sustentar, sem provas, que haveria um "complô" para demiti-lo. Ao exame
psíquico de entrada, apresentava-se querelante, autorreferente, irritável, sem delírios ou alucinações, a
crítica prejudicada. Avaliação psicológica denotou "incapacidade de valorizar seus próprios recursos e
necessidade de referencial externo para organizar sua identidade". O paciente recebeu risperidona 2
mg/dia V.O. e tratamento psicoterápico durante a internação, evoluindo bem e recebendo alta a 30-5-
97, sendo então encaminhado ao Ambulatório.

Caso 3)

Pedro I, o Grande, Czar da Rússia (1672-1725). Dotado de enorme vontade e energia, foi
responsável pela ocidentalização da Rússia, trazendo Arte e Ciência de outros países europeus por onde
viajou. Organizou a Administração e o Exército, conquistou vários territórios e fez-se reconhecer como
supremo chefe da Igreja Russa. Desconfiado, mesmo sem provas punia com extrema crueldade
"opositores em potencial". Mandou executar seu próprio filho, que se opunha às suas reformas (Lello
Universal).

Caso 4)

Arthur Schopenhauer, filósofo alemão (1788-1860). Sempre desconfiado, autorreferente, tinha


verdadeiro desprezo pela raça humana e ao mesmo tempo, desejos de obter glória e notoriedade.
Atribuía seus fracassos acadêmicos a "conspirações" de professores universitários (VALLEJO-NÁGERA,
1946).

Caso 5)

Tibério, Imperador Romano (14-37 d.C.). Príncipe hábil, esclarecido e prudente, teve um reinado
glorioso; porém, desconfiado em excesso com relação a intrigas palacianas, cometeu as maiores
crueldades (Lello Universal).

Tratamento

O Transtorno de Personalidade Paranóide é de tratamento bastante difícil (GABBARD, 1992). Os


pacientes por vezes se recusam a aderir a psicoterapia pela desconfiança, relutância em informar sobre
sua intimidade e porque não admitem sua doença, tanto que normalmente são trazidos por familiares
(GABBARD, 1992; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995). Entretanto, a psicoterapia dirigida, baseada em
relação de confiança, é a base do tratamento, e a franqueza é de longe a melhor política frente a esses
pacientes (GABBARD, 1992; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

A prevenção da violência nesses pacientes é outra dificuldade (GABBARD, 1995). O terapeuta,


nesse sentido, deve sempre ajudar o paciente a não se sentir humilhado; deve evitar levantar ainda
mais suspeitas; ajudar o paciente a manter seu senso de controle, encorajando-o a verbalizar ao invés
de atuar com violência; dar espaço para o paciente relaxar; manter-se sintonizado com a contra-
transferência (FELTHOUS, 1984; GABBARD, 1992).

As psicoterapias cognitiva e familiar podem ser úteis, sendo que outras terapias, como a
comportamental, não mostraram sucesso (BECK & FREEMAN, 1990; GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

Os pacientes podem beneficiar-se com medicação antipsicótica em baixas doses (GUNDERSON &
PHILLIPS, 1995). Essas drogas estão indicadas nas descompensações psicóticas que podem ocorrer no
curso do Transtorno (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

Na ausência de tratamento, o prognóstico é reservado (GUNDERSON & PHILLIPS, 1995).

Concluindo, o Transtorno de Personalidade Paranóide é variação extrema e desadaptativa do modo


de ser, caracterizado basicamente por desconfiança e suspeita em relação a outrem. Provavelmente, é
subdiagnosticado e sua etiologia é incerta, havendo porém relação estreita com quadros psicóticos. A
terapêutica, essencialmente psicoterápica, é bastante difícil, podendo ser útil o uso de neurolépticos
em baixa dose. São necessários mais estudos para o esclarecimento da relação entre o Transtorno e as
Psicoses Paranóides e para a elaboração de terapêuticas mais eficazes.

Bibliografia

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