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Curso de Direito Constitucional

Parte I: Introdução às funções e aos atos do poder político

Capítulo I: Funções do Estado-ordenamento

1. A noção contemporânea de Estado: uma sinopse

1.1. Elementos do Estado

O Estado define-se como uma coletividade territorial na qual está fixado um povo dirigido por
um poder político soberano, cuja atividade institucional, exercida no âmbito de um
ordenamento jurídico, visa a satisfação dos interesses gerais.

O Estado é uma coletividade política e juridicamente organizada que funciona com autonomia
em relação aos elementos que integram.

1.2. Breves considerações sobre o ordenamento jurídico como elemento do


Estado

Uma coletividade territorial privada de um ordenamento pressupõe a existência de poderes


fácticos pautados por condutas arbitrárias e incompatíveis com a ideia de coletividade política
e juridicamente organizada.

A associação entre Estado e ordem jurídica foi examinada por Kelsen, o qual concebia o Estado
como um “sistema de normas” que exprimiria a unidade dessa “ordem jurídica”. A
coercibilidade dos poderes soberanos suporia que os mesmos fossem regidos pelo direito, o
qual, por rezões de coerência e segurança, reclamaria uma ordem conformada por um sistema
jurídico.

Sendo efetiva essa imbricação entre Estado e direito, o facto é que o Estado não se reduz a um
sistema normativo. Como coletividade politicamente organizada, o Estado é uma organização
e esta, embora normativamente regulada, supõe a existência de um complexo de autoridades
políticas, administrativas e jurisdicionais que não se confunde com as normas jurídicas que o
regem. Por outro lado, o poder precede a norma: tal ocorre, seja no quadro de um movimento
emancipalista que enfrenta uma potência colonial e de cuja luta armada nasce um poder
político de facto, e só depois de direito, seja no contexto de uma rutura revolucionária que
institui um poder fáctico, responsável pela substituição de uma ordem jurídica de domínio por
outra.

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1.3. Estado-ordenamento e Estado-pessoa

O “Estado Ordenamento” ou Estado em sentido amplo integra na sua esfera, não uma, mas
diversas pessoas jurídicas coletivas de carácter público. No espetro dessas pessoas coletivas
emerge, com carácter dominante e principal, o Estado-pessoa, representado pelos órgãos de
soberania. Contudo, também integram o Estado-Ordenamento outros entes coletivos dotados
de uma autonomia variável em face do Estado-pessoa e que prosseguem interesses próprios,
como os estados federados, as regiões autónomas e as autarquias locais, assim como
entidades públicas não territoriais que na administração interna prosseguem os fins do Estado-
pessoa ou de entidades territoriais.

2. As funções do Estado como atividades jurídico-públicas

2.1. Atividades jurídicas e não jurídicas

Os interesses gerais prosseguidos pelo Estado consistem nos seus fins e tarefas dominantes.
Tradicionalmente, os fins principais ou existenciais do Estado consistem em segurança, justiça
e bem-estar, segundo o professor Marcello Caetano.

Na ordem constitucional portuguesa vigente esses fins principais do Estado encontram-se, na


totalidade ou em parte, enunciados no art.º 9, a par de outros fins complementares que são
específicos da nossa ordem jurídica.

A prossecução dos fins do Estado realiza-se através de atividade públicas. Estas, conforme
pressuponham, ou não, a prática de atos jurídicos podem decompor-se em atividade jurídica e
não jurídica.

O carácter jurídicos de uma atividade do Estado deve ser medida pela natureza dominante dos
atos produzidos ao seu abrigo, traduzida na produção de efeitos regidos pelo Direito. Tal não
implica, contudo, que todos os atos ou condutas imputáveis ao Estado devam revestir,
necessariamente, essas características. Por exemplo, no exercício da função política em
sentido estrito, os órgãos constitucionais podem aprovar:

 Atos políticos que produzem efeitos jurídicos diretos e imperativos apenas no circuito
interno das relações entre as instituições, sem ser essa prática desconforme com a
constituição, por exemplo, a moção de censura parlamentar;
 Atos e condutas políticas dos quais não decorrem consequências jurídicas, como as
mensagens avulsas do PR.

De todo o modo, funções instrumentais do Estado, tal como a função técnica constituem o
exemplo de uma atividade cujos efeitos não revestem carácter jurídico.

2.2. Conceito de função do Estado

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Considera-se funções estaduais todas as atividades jurídico-públicas desenvolvidas pelas
autoridades do Estado-Ordenamento, tendo em vista a realização dos seus fins.

Uma atividade estadual pode ser caracterizada como o conjunto de atos produzidos
permanentemente por decisão de autoridades públicas e que se agrupam numa relação de
semelhança, por força de critérios identitários de natureza material, formal ou orgânica. Por
exemplo, atividade legislativa é composta por atos jurídicos que, em comum, possuem vários
atributos homólogos: são produzidos por órgãos com competência legislativa (critério
orgânico); fluem numa corrente permanente , caracterizando-se pela inesgotabilidade do
poder normativo que os edita (critério institucional); envolvem um conteúdo político (atributo
material); e dispõem de uma forma própria e de uma forma geral (atributos formais em
sentido amplo).

As referidas funções são exercidas, em razão da sua especificidade, pelos órgãos do Estado.
Assim, na ordem jurídica portuguesa, a função jurisdicional constitui uma atividade
exclusivamente reservada aos tribunais, neles se incluindo os tribunais arbitrais. Já a função ou
subfunção legislativa se encontra repartida, na base de critérios de competência, por órgãos
de soberania (AR e GOV) e por órgãos regionais (ALR). Finalmente, a função administrativa é
repartida por: órgãos soberanos (o GOV) e por entidades da administração indireta sujeitos ao
poder de orientação governamental; órgãos constitucionais do Estado-pessoa (Provedor de
Justiça e certas autoridades administrativas independentes); e até por privados investidos em
funções de autoridade (concessionários do serviço público).

3. Conceções doutrinais sobre as funções do Estado

3.1. A doutrina portuguesa no contexto das constituições liberais

Em Portugal, Marcello Caetano elaborou uma construção as funções do Estado. As funções não
jurídicas e as funções jurídicas, foram diferenciadas entre si na base de critérios materiais,
orgânicos e formais. Nas funções não jurídicas, o ilustre jus-publicista arrumou as atividades
política e técnica. Nas jurídicas posicionou a legislativa e a executiva (abrangendo o processo
administrativo e jurisdicional, que o autor fez equivaler a subfunções).

Gomes Canotilho e Marcelo Rebelo de Sousa elaboraram uma quadripartição de funções: a


política, a legislativa, a administrativa e a jurisdicional.

Finalmente, Jorge Miranda esboçou uma tripartição caracterizada por uma função política
(decomposta em atividade legislativa e política em sentido estrito), uma função administrativa
e uma função jurisdicional.

4. Posição adotada

4.1. Fundamentos de uma opção pelo tricotomia representada função política,


administrativa e jurisdicional

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A. Ponto fortes e debilidades da posição adotada

A construção operativamente preferível é a que radica da tricotomia gizada por Jorge Miranda,
por duas razões:

 A conceção alude às funções do Estado que pressupõem a prática de atos jurídicos, ou


seja, atos garantidos pela coercibilidade do Direito, lateralizando outras funções
estaduais de carácter auxiliar ou instrumental, as quais não relevam para as
construções do Direito Constitucional;
 A posição consome na função política, concebida no seu sentido amplo, as atividades
que pressupõem a adoção de critérios políticos de decisão e que são a atividade
legislativa e a atividade política em sentido estrito, reconhecendo paralelamente que
os atos dimanados da atividade política stricto sensu produzem, por regra, efeitos
jurídicos, embora uma grande maioria deles apenas dentro do circuito das relações
interinstitucionais e não junto dos cidadãos.

Já se encontra ultrapassado o tempo em que a função política foi autonomizada da função


legislativa e era considerada como um função não jurídica ou como uma atividade do “GOV”.
Isto porque, no Estado social de direito, a lei passa a ser concebida como um instrumento
político de intervenção por excelência. A lei tende mesmo a tornar-se no ato típico da função
política e a definir-se, sob o ponto de vista da sua imensa plasticidade e abertura material, pelo
se conteúdo político. Assim sendo, não seria conveniente apartar a lei da essência da atividade
política, quando ela, na verdade, constitui a manifestação juridicamente mais relevante dessa
mesma atividade

Como elemento com maior fragilidade desta aceção cumpre destacar a circunstância de a
função política implicar que a atividade legislativa, indubitavelmente a mais importante de
todas as atividades do Estado, seja reconduzida a uma subfunção.

B. Função subordinante e funções subordinadas

Existiram diversos autores responsáveis pela hierarquização das funções do Estado, como
Kelsen, Merkl ou Carré de Malberg. Este último exclui a construção clássica de poderes
separados, estanques e igualmente soberanos, considerando, com algum sarcasmo, que a
separação de poderes só pode ser aplicável, na medida em que não pressuponha uma
separação verdadeira e efetiva e ainda alude à ideia de interdependência de poderes,
considerando que estes exigiriam “coordenação” das atividades desenvolvidas pelos diversos
órgãos.

Nos termos expostos, a função política constitui uma atividade primária ou dominante, apenas
vinculada no plano interno à Constituição ou a outros tos oriundos dessa mesma função
política, pressupondo que os fins do Estado sejam preenchidos cm uma ampla liberdade de
conformação. Tal sucede igualmente com a atividade legislativa e com a atividade política em
sentido estrito.

As funções de natureza administrativa e jurisdicional constituem funções secundárias,


dominadas ou subordinadas. Com efeito, elas vinculam-se à lei, produto da atividade

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legislativa, como componente normativa subordinante da função política (art.º 205/1-
atividade jurisdicional-, art.º 266/2- função administrativa).

A função jurisdicional, por exemplo, pressupõe uma dimensão específica e autónoma, que é a
do controlo da constitucionalidade e que consiste numa atividade repressiva e corretiva da lei
que exceciona uma estrita submissão dos tribunais à legalidade, em nome do primado de um
bloco normativo mais alto, que é o da constitucionalidade. Assim, os tribunais, nos termos do
art.º 205/1 subordinam-se à lei, mas podem e devem, de acordo com o art.º 204, desaplicar
uma lei nos feitos submetidos ao seu julgamento, se esta violar a Constituição.

Nesta dimensão específica e autónoma desenvolvido um ponto de vista que estaria em causa
uma nova função do Estado. E, com efeito, o controlo de constitucionalidade tem como
particularidades relevantes:

 O facto da maioria dos membros do TC serem eleitos por órgãos políticos;


 A circunstância do TC ter a última palavra sobre as colisões entre normas de conteúdo
político como a constituição e as leis;
 O facto do TC desenvolver funções arbitrais e até “moderadoras” na dirimição de
conflitos políticos com expressão normativa e exercer algo semelhante a um veto
“jurisdicional”;
 A circunstância de a Justiça Constitucional envolver a proclamação de “sentenças
normativas” e optar por métodos e vias interpretativas de teor criativo que se afastam,
por vezes, do método jurídico que inere à hermenêutica clássica.

Ainda assim o professor CBM considera que o controlo da constitucionalidade não se assumiu
como “quarto poder”, antes atuando no âmbito da função jurisdicional. É o facto de se exigir à
Justiça Constitucional uma atuação independente e imparcial na aplicação do direito a
conflitos entre normas de hierarquia diferente que lhe confere legitimidade como poder de
controlo.

No dia em que se assumisse protagonista de uma nova função estadual frustraria tudo o que
foi “adquirido” numa longa caminhada para a jurisdicionalização da Constituição (ou seja, para
assegurar a sua garantia através dos tribunais, como sucede com as demais leis). Essa
frustração suporia a existência ameaçadora de um poder político “aristocrático”, desprovido
de freios e contrapesos e invasivo das restantes atividades estaduais.

4.2. A função política em sentido amplo

A função política consiste numa atividade de ordenação da vida coletiva assente em valores,
ideologias e programas e exercida em benefício da mesma coletividade.

No contexto de um Estado de direito democrático supõe que os órgãos competentes para o


seu exercício tomem, cum um expressivo grau de liberdade e mediante os atos
constitucionalmente prescritos para o efeito, decisões fundadas no bem comum que definam
inovatoriamente o interesse público a prosseguir, no preenchimento dos fins do Estado.

A Constituição alude à atividade política, no âmbito do art.º 197 no que toca ao GOV e no art.º
161 no âmbito da AR.

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Na interpretação textual da lei fundamental podemos dissecar uma distinção entre a função
política e a função legislativa. Contudo, no plano doutrinário e jurisprudencial, verifica-se que a
função legislativa é a mais importante atividade política dos poderes constituídos, já que a lei
se define como um típico critério político de decisão. Lei, normas políticas e atos políticos são,
deste modo, manifestações da função política em sentido amplo que se diferenciam na base
de critérios predominantemente formais.

Temos, assim, que a função política, no seu sentido lato, constitui uma macro atividade pública
com carácter multidigitado, ou seja, assume-se como um poder dominante que emerge de
entre as funções constituídas e que supõe o exercício de responsabilidades normativas e de
“gubernatio”. Enquanto as responsabilidades normativas supõem a produção de critérios
inovatórios de decisão, traduzidos em leis, convenções internacionais e de normas atípicas de
conteúdo político, já as responsabilidades de “governação” supõem a prática de atos políticos,
de conteúdo singular, que se enquadram no exercício de poderes livres de direção, orientação
e fiscalização.

Encontra-se a caracterização das atividades públicas marcada por critérios orgânicos (órgãos
competentes para o exercício essa mesma função), formais (atos que nos termos
constitucionais, se encontram aptos para o exercício dessa mesma atividade naturalmente
livre e inovatória) e materiais (“liberdade” e “novidade” na definição das políticas públicas que
preenchem os fins do Estado.

O exercício da função pública implica a tomada de decisões e de critérios de decisão,


inovatórios, na medida em que é a Constituição a principal fonte dos respetivos limites
jurídicos. Daí que, por regra, exista um grau expressivo de liberdade, não apenas na
interpretação dos fins do Estado, mas na definição do modo como estes devem ser
preenchidos, bem como na escolha dos meios necessários para esse mesmo preenchimento.

Existem diversos graus de liberdade no exercício da função política. Se é um facto que os atos
da função política não devem observância a atos oriundos de outras funções do Estado,
situações existem em que a Constituição determina relações de dependência entre atos da
mesma atividade (entre atos praticados na esfera da mesma atividade ou subfunção) e de
atividades diversas compreendidas na função política (entre atos oriundos das diferentes
atividades que compõem a função política).

No caso de atos praticados no âmbito da mesma atividade da função política existe, no âmbito
da atividade legislativa, leis que subordinam a outras leis dotadas de hierarquia material
superior (com é o caso dos decretos leis complementares subordinados às leis de bases, art.º
112/2). No âmbito da função política em sentido estrito, temos as normas atípicas de função
política, com é o caso decreto presidencial que declara o estado de sítio cuja produtividade
jurídica está dependente da autorização desse estado pela AR (art.º 138/1 e 166/5).

Já no caso da combinação entre atos oriundos das diferentes atividades que compõem a
função política haverá a considerar relações de vinculação como a da subordinação da
atividade legislativa ao sentido vinculante de uma decisão referendária, na qualidade de
norma atípica da atividade política em sentido estrito (art.º115/1); a subordinação do ato
referendário à lei orgânica do referendo (art.º 115/1); e da subordinação do decreto
presidencial que declara os estados de exceção à lei orgânica correspondente (art.º 19/7).

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A. A atividade legislativa

A atividade ou função legislativa define-se compostamente, na base de critérios materiais,


formais e orgânicos.

a) Critérios materiais

Julga-se que o princípio da legalidade democrática (art.º 3/3) e a existência da submissão ao


mesmo dos tribunais (art.º 203) e da administração pública (art.º 266/2) conjugados com o
princípio da tipicidade da lei (art.º 112/5), permitem identificar a atividade legislativa.

Esta pode ser concebida como um poder primário de criação e modificação da ordem jurídica,
mediante a aprovação de normas com conteúdo político e eficácia externa que regulam a vida
coletiva e prevalecem sobre a generalidade dos atos emanados das funções não políticas do
Estado.

O conceito de poder normativo primário alude à circunstância da função legislativa implicar o


exercício de uma política pública inovadora e reguladora, marcado por um programa
intencional de valores e interesses que se projetam na edição de critérios de decisão que
modificam a ordem jurídica interna. A mesmo a atividade não observa os vínculos que não os
ditados na Constituição. Neste sentido, os atos da atividade legislativa, não só não podem, por
regra, ser revogados ou integrados, com eficácia externa, por atos emitidos ao abrigo de
outras funções (art.º 112/5), como também constituirão parâmetro de validade destes atos
emitidos ao abrigo de atividades subordinadas.

Normativamente política, inovação e supremacia sobre funções não políticas, na órbita dos
poderes constituídos, conformam os 3 pilares de uma identificação desta atividade pública
numa vertente substancialista.

b) Critério formal

Sob o ponto de vista formal, nos termos do art.º 112 conduziria a função à prática permanente
de ato jurídico-públicos que devem revestir uma das três formas específicas de lei previstas no
referido preceito: a lei (formal); o decreto-lei; e eu toquei entre legislativo regional.

Não existem manifestações da atividade legislativa que não revistam estes três títulos
legislativos.

c) Critério orgânico

Do ponto de vista orgânico, a função legislativa nos termos do art.º 161/c, 198 e 227 consiste
numa atividade jurídico-pública que se encontra reservada à competência da Assembleia da
República (que aprova as leis formais); do GOV (que edita decretos leis) e das Assembleias
Legislativas das Regiões Autónomas (que deliberam decretos legislativos regionais).

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d) Definição

Podemos definir a função legislativa como a atividade político-normativa traduzida num poder
inovador de criação e modificação da ordem jurídica exercida pelos órgãos competentes tem o
efeito, cujos atos assumem a forma de lei e vinculam o exercício das demais funções não
políticas do Estado.

B. A atividade política em sentido estrito

a) Critério substancial

É possível sustentar que a função política em sentido estrito no ordenamento português


resulta ser juridicamente mais livre do que a atividade legislativa. Trata-se de uma atividade
que envolve escolhas primárias de direção e controlo e que se projeta nas relações
institucionais do sistema de GOV e externamente, nas relações do Estado com outros sujeitos
de direito Internacional Público.

Ela assenta na produção de atos e na externalização de condutas de comunicação e


interlocução que corporizam, predominantemente:

 O sistema de freios e contrapesos do sistema político (a concretização do princípio da


interdependência de poderes, através de faculdades de direção e controlo
interorgânicos e intraorgânicos);
 O exercício da política externa;
 O uso de poderes excecionais de defesa da República;
 As formas de exercício da democracia direta ou semi direta (controlo popular
extraorgânico, do poder através do referendo).

O seu maior diâmetro de liberdade ocorre no universo dos atos políticos, que são decisões
jurídicas de conteúdo singular produzidas ao seu abrigo. Estando as duas atividades sujeitas ao
primado da Constituição, o controlo da constitucionalidade abarca todas as leis, mas já não
abrange os atos políticos. Estes não são sujeitos a controlo da sua validade e podem produzir
os seus efeitos jurídicos imperativos, mesmo que inconstitucionais, o que constitui uma “zona
branca” que exceciona o primado do direito sobre o poder político.

b) Critérios orgânico-formais

No plano formal os atos normativos e não normativos da atividade política em sentido restrito
assumem formas muito variadas, todas elas de caráter não legislativo, como os decretos do
Presidente da República ou as moções e resoluções da Assembleia da República.

Apesar do grande leque de atos interessarão os que se encontrem aptos a produzir efeitos
jurídicos. Assim, moções de censura parlamentar ao GOV aprovadas sem maioria absoluta ou

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resoluções parlamentares que se traduzam em meras recomendações ao GOV constituem atos
políticos desprovidos eficácia jurídica. Podemos Falar em atos políticos com e sem eficácia
jurídica.

c) Categorização de atos políticos portadores de eficácia jurídica: decisões


produzidas ao abrigo de poderes de direção e de controlo interorgânicos

1 Introdução e conceitos

Importa classificar os atos políticos emanados dos órgãos de soberania, pela qualidade do
poder de onde emanam e pelo seu impacto na configuração da arquitetura do sistema político.

Os atos políticos fluem no universo da interdependência de poderes (art.º 111/1). A


Constituição como estatuto do poder político, limita e ordena em termos funcionais, sendo
impensável que, mesmo no quadro de uma separação de poderes, um dos órgãos de
soberania pudesse exercer as suas competências sem controlo dos restantes, que se
relacionasse com eles como um superior hierárquico ou então que todos esses órgãos não
colaborassem articuladamente entre si, na persecução do interesse público.

Embora de modo geral os atos políticos se configurem como técnicas de controlo, o facto é
que outras caracterizações têm sido esboçadas pela ciência política e pelo direito
constitucional. Várias classificações têm sido operadas no direito português, mormente a
propósito dos poderes presidenciais, como é o caso das funções de direção política ou, as
funções de representação, de direção política e de garantia.

O CBM opta pela dicotomia entre atos de direção política e atos de controlo, advertindo-se
para a existência de atos “impuros” que contêm manifestações dominantes de uma das
realidades e atributos complementares da outra.

2 Atos de direção política

Os atos de direção política, consistem em decisões que envolvem uma escolha potencialmente
livre de opções primárias ou inovadoras relativas ao funcionamento das instituições do Estado
e determinam objetivos da ação política.

A direção política não implica a possibilidade de um órgão de soberania poder arrogar-se a


uma posição de hierarquia em relação a outro, nem a faculdade de lhe dar ordens, instruções
ou injunções, realidade que é liminarmente excluída pelo TC. Supõe o exercício de faculdades
de “indirizzo” político que tanto pode envolver poderes positivos de escolha e orientação,
como também poderes constitutivos exercidos no contexto de relações pontuais de primazia
de um órgão sobre outro e no estrito âmbito de relações de responsabilidade política.

O PR é o órgão que dispõe de um maior panóplia de atos desta natureza. Este pode praticar
atos independentes e atos partilhados. Assim, no quadro das nomeações de titulares de
órgãos constitucionais:

 Alguns atos são formalmente independentes (a nomeação do RR e do PM);

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 Outros atos envolvem uma competência partilhada com o GOV (nomeação e
exoneração dos membros do GOV e nomeação e exoneração do procurador-geral da
República).

Existem, ainda, atos de direção presidencial que implicando um grau expressivo, embora
variável, de liberdade no plano jurídico e político, se projetam sobre a subsistência de órgãos
de soberania em funções: é o caso da renúncia do PR, da dissolução da AR, da demissão do PM
e da marcação de eleições. Todos estes atos são predominantemente atos de direção pois
envolvem um juízo de mérito independente do PR. Contudo, todos eles também incorporam
uma dimensão de controlo político interorgânico: por exemplo, o PR pode dissolver a AR por
razões de oportunidade jurídica centradas num juízo negativo de mérito sobre o desempenho
parlamentar.

Outros atos, ainda implicam o exercício de poderes diretivos sobre o funcionamento de órgãos
colegiais, é o caso da convocação extraordinária da AR, do exercício extraordinário da
presidência do Conselho de Ministros e ainda a presidência do Conselho Superior da Defesa
Nacional.

Finalmente, outras decisões implicam a prática de atos de projeção institucional relevante para
a proteção da República e da vontade popular diretamente expressa, no contexto
competências compartilhadas: é o caso da declaração dos Estados de sítio e de emergência
sujeita à autorização parlamentar.

Também a AR exerce importantes poderes de direção que se projetam sobre a subsistência de


outros órgãos em funções, como é o caso do executivo, quando aquele órgão parlamentar
vota em moções de censura e de confiança ao GOV e quando submete a votação o seu
programa.

Outras manifestações do poder de direção parlamentar implicam a designação de titulares de


órgãos constitucionais como é o caso da eleição parlamentar do Provedor de justiça e de 10
juízes do TC.

O GOV e os respetivos órgãos exercem poderes de direção quando o PM propõe ao PR a


nomeação de titulares de órgãos constitucionais no âmbito de competências partilhadas,
quando apresenta a sua demissão ao PR e quando o CM decide apresentar um pedido de
confiança à AR.

3 Atos de controlo

Já os atos de controlo político implicam um poder de escrutínio e vigilância por parte de


determinados centros de poder sobre outros órgãos ou titulares de órgãos, bem como sobre
os respetivos atos. Enquadra-se nesta categoria:

 Decisões de responsabilização política e jurídica interorgânica (como a convocação dos


membros do GOV pela AR);
 Poderes de livre apreciação do mérito técnico ou político de atos de outros órgãos
(como o veto e a promulgação presidencial);
 Autorizações, atestações e confirmações (como a referenda ministerial dos atos do
PR);

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 Atos de garantia jurídica da ordem constitucional (como a promoção do controlo
preventivo).

4 Atos e normas da função política

Os atos políticos portadores de eficácia jurídica são aprovados pelos órgãos constitucionais
competentes para o exercício da função política, assumem conteúdo individual e concreto e o
sentido obrigatório ou imperativo que deles dimana projeta-se na esfera jurídica dos órgãos do
poder político.

Estamos diante de atos não normativos, embora dotados de conteúdo jurídico imperativo, sem
prejuízo de essa imperatividade não assumir eficácia intersubjetiva, mas antes exibir uma
eficácia circunscrita aos órgãos e aos atos que são destinatários do mesmo comando. Tal é o
caso das competências do PR relativas ao veto e à promulgação dos atos legislativos e, ainda,
dos decretos presidenciais de assinatura e ratificação de convenções internacionais. É,
também, no que tange à AR, o caso da aprovação de moções e resoluções das quais resultem
efeitos jurídicos. É, finalmente, no que concerne ao GOV, o caso dos decretos de nomeação e
demissão de titulares de órgãos constitucionais.

Quanto às normas gerais e abstratas emitidas ao abrigo da função política em sentido estrito,
haverá a assinalar, o decreto normativo do PR que declara os Estados de sítio e de emergência;
as resoluções normativas; e a decisão referendaria vinculativa. Por assumirem formas,
finalidades e graus de vinculatividade muito distintos alguma doutrina qualificou-as de normas
e típicas da função política, visto que são normativas, ao contrário das restantes.

4.3. A função administrativa

A função administrativa é traduzida na concretização e execução das leis e na satisfação


permanente das necessidades coletivas legalmente definidas, mediante normas, atos
singulares, contratos e atuações materiais, dimanados de órgãos e agentes dotados de
iniciativa e parcialidade na prossecução do interesse público.

A. Critério material

Os elementos substanciais reportam-se à natureza dependente da função administrativa; aos


objetivos que prossegue e aos princípios típicos que presidem à atuação dos seus órgãos.

A natureza subordinada desta atividade resulta do facto da função administrativa se vincular à


Constituição e à lei (art.º 266/2), dependendo a validade dos atos e contratos que dela
promanam, não só de uma habilitação legal, mas também da respetiva conformidade com as
leis da República. Na verdade, as opções primárias fundamentais relativas à satisfação das
necessidades públicas encontram-se determinadas na lei, pelo que, à função administrativa
caberá fundamentalmente, a atividade secundária de providenciar, no concreto, essas
necessidades.

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A prossecução do interesse público através da satisfação permanente das necessidades
coletivas conforma, também, no plano substancial os objetivos desta atividade.

Os centros de decisão administrativa devem exibir iniciativa (capacidade própria para realizar
criativamente os comandos legais e ir ao encontro das necessidades coletivas) e parcialidade
na persecução do interesse público (seguindo os objetivos políticos traçados por lei e atuando
como parte interessada na realização das referidas necessidades). O caráter parcial da
administração na realização do interesse público não prejudica o imperativo de a mesma
observar o princípio constitucional da imparcialidade no tratamento dos particulares, não
favorecendo, com base em critérios subjetivos, os interesses de uns em relação a outros (art.º
266/2).

B. Critérios orgânicos

Quanto aos elementos orgânicos da definição, traduzem-se na menção aos órgãos e agentes
que desenvolvem atividade administrativa, enquanto órgãos são centros autónomos e
institucionalizados que desenvolvem funções públicas administrativas em nome de uma
pessoa coletiva, os agentes colaboram com os órgãos, numa posição subordinada em relação a
estes, na formação da vontade coletiva inerente ao exercício da atividade administrativa.

O GOV (art.º 182) exerce poderes de hierarquia ou direção sobre a administração direta,
poderes de superintendência ou orientação sobre a administração indireta e poderes de tutela
ou controlo sobre a administração autónoma (art.º 199/d).

Existem ainda outros órgãos executivos de pessoas coletivas territoriais dotados de


autonomia, com é o caso do GOV das regiões autónomas (art.º 231/1 e 3), das câmaras
municipais (art.º 252) e das juntas de freguesia (art.º 246). E prevê a existência de entidades
administrativas independentes (art.º 267/3).

C. Critérios formais

Os elementos formais da caracterização reportam-se às manifestações externas do exercício


da atividade administrativa, importando apenas destacar as que produzem diretamente
efeitos jurídicos, ou seja, as normas, os atos singulares e os contratos públicos. As atividades
materiais da administração, referentes à produção de bens e prestação de serviços não
assumem, por si próprias, natureza jurídica.

As normas da administração assumem a natureza de regulamentos administrativos, os quais


nos termos do art.º 135 CPA consistem em atos normativos de conteúdo geral e abstrato que,
emitidos ao abrigo de poderes jurídico-administrativos, visam produzir efeitos jurídicos
externos.

Já os atos administrativos, nos termos do art.º 148 CPA, são decisões que, no exercício de
poderes jurídico-administrativos, visam produzir efeitos jurídicos externos numa situação
individual e concreta.

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Quanto aos contratos administrativos, estes caracterizam-se como acordos plurilaterais de
vontade celebrados entre entidades públicas ou entre estas e particulares e que se destinam à
constituição, modificação ou extinção de uma relação jurídica administrativa.

4.4. A função jurisdicional

A função jurisdicional pode ser definida como uma atividade que resolve questões de direito
emergentes de interesses conflituantes, através da aplicação da Constituição, das leis e de
outras normas mediante decisões que em regra revestem caráter individual e concreto e são
tomadas pelos tribunais, órgãos caracterizados pela sua independência, imparcialidade e
passividade.

A. Critérios materiais

O elemento substancial centra-se:

 No objeto da função, traduzido na operação intelectual de resolução de questões que


envolvem a aplicação do direito;
 No fim, traduzido na composição, concreta ou abstrata, de conflitos e litígios derivados
de posições e interesses contrapostos, mediante a resolução de uma questão jurídica,
tendo em vista a garantia da justiça material e da paz jurídica;
 Na sua natureza subordinada, como atividade jurídico-pública destinada a dar
aplicação à Constituição e à lei, no que toca às normas relativas às quais os decisões
jurisdicionais se encontram submetidos (art.º 203 e 204 CRP).

A posição subordinada dos tribunais não inibe os mesmos órgãos de proceder à interpretação
e integração autorizada. O disposto no art.º 112/5 CRP apenas impede, fora do campo do
controlo da constitucionalidade, operações jurisdicionais ordinárias de interpretação e de
integração que sejam dotadas de eficácia externa e força obrigatória para os sujeitos situados
fora do processo onde um determinado feito se encontra em julgamento.

Por outro lado, a mesma posição subordinada não prejudica o poder-dever dos tribunais
comuns (art.º 204 CRP) e do TC (art.º 221 e 227 ss.) em julgar a invalidade de leis contrárias à
Constituição ou a outras leis às quais a Constituição impõe relações de respeito, com é o caso
dos atos legislativos de valor reforçado.

B. Critério orgânico

O elemento orgânico reporta-se aos tribunais como centros institucionais de poder formados
por juízes que desenvolvem especificamente a função jurisdicional. A Independência dos
tribunais (extensível aos juízes, art.º 216/1) manifesta-se, seja em face dos demais órgãos do
poder, seja entre si, sem prejuízo do regime de recurso para instâncias superiores.

13
A Constituição define as diversas classes de tribunais. Para além do TC que é regido
separadamente, o art.º 209 CRP refere-se a outras categorias tribunais, tais como o Supremo
Tribunal de Justiça e os Tribunais Judiciais de primeira e segunda instância; O Supremo
Tribunal Administrativo e os Tribunais Administrativos e Fiscais de primeira e segunda
instância e o Tribunal de Contas.

A mesma Constituição prevê no campo jurisdicional, tribunais marítimos, tribunais arbitrais e


julgados de paz (art.º 209/2) e ainda tribunais militares durante o estado de guerra, para o
julgamento de crimes de natureza estritamente militar (art.º 213).

C. Critério formal

O elemento formal reconduz-se às decisões jurisdicionais. Estas decisões são qualificáveis


como sentenças em sentido amplo e corporizam o resultado do exercício dessa função. Outras
decisões de ordem processual assumem uma pluralidade de designações. No plano de um
critério misto o conteúdo das decisões jurisdicionais é individual e concreto.

5. As funções do Estado e o princípio da separação de poderes

5.1. O sentido do princípio da separação com interdependência de poderes na


ordem constitucional portuguesa

5.1.1. Separação de poderes

A separação de poderes, tal como se encontra enunciado no art.º2 e no art.º 111 CRP não tem
uma relação de significado idêntica ao princípio da divisão de poderes do liberalismo
setecentista e oitocentista o qual implicava que a cada órgão de soberania fosse atribuída uma
função do Estado, como pressuposto institutivo de um GOV moderado que evitasse formas
extremas de autocracia e até de democracia.

Quatro postulados afastam na atualidade, a leitura de divisão de poderes oitocentista,


radicada na distribuição de uma função por cada órgão soberano, em relação ao paradigma da
separação de poderes no Estado constitucional de direito do tempo presente. Esse
afastamento é, contudo, relativo, pois opera no respeito de um incindível nexo de conexão
entre a visão atualista do princípio e a teleologia originária, no que tange aos fins estruturantes
que presidiram à sua enunciação e constitucionalização.

1 Mutações na morfologia do princípio da separação de poderes derivadas de


transformações nas funções e fins do Estado

O princípio da divisão de poderes nunca teve uma efetividade evidente na prática


constitucional. Mesmo a Constituição norte-americana, que é afinal o texto constitucional que
mais se aproxima da pureza do mesmo modelo, acaba por derrogá-lo pontualmente, na

14
medida em que a sua interpretação feita pelos tribunais consente autorizações legislativas do
Congresso ao poder executivo.

Do mesmo modo, desde o tempo em que na Europa as constituições atribuíram aos GOVs, que
são os centros do poder executivo por excelência, competências legislativas, o princípio da
divisão de poderes, como estrita divisão orgânica de funções, deixou proceder com esse
entendimento.

2 A liberdade conformadora do constituinte para configurar diversas modalidades ou


formas de expressão da separação de poderes

No âmbito do modelo do Estado social de direito, impera o entendimento que a ordenação das
funções do Estado se afere em razão da arquitetura orgânica das atividades e competências
estabelecida por cada Constituição em concreto. Tal entendimento exclui a ideia de uma
separação estrita de funções públicas por órgãos necessariamente distintos.

Por exemplo, nos Estados Unidos da América a arquitetura da separação de poderes aproxima-
se textualmente de uma divisão orgânica de funções, mas o papel dos tribunais e, em especial,
do Supremo Tribunal Federal, na criação inovadora de direito através da jurisprudência, coloca
problemas delicados na delimitação de fronteiras entre as funções legislativa e jurisdicional.

3 Os limites políticos e jurídicos fixados pela teoria do “núcleo essencial” ao poder


constituinte e aos poderes constituídos como garantia identitária do princípio da
separação de poderes

O método “normativo-concreto” de tratamento e compreensão do princípio da separação de


poderes a partir das competências constitucionalmente configuradas para diversos órgãos de
soberania não pode ser indiferente ao nexo de conexão entre uma dada competência, a
essência da função do Estado onde ela se reconduz e o órgão do poder prototípico que deve
ser titular do núcleo essencial dessa função.

É que, por maior que seja o esbatimento de fronteiras entre as funções do Estado e por mais
extensa que seja a aptidão da Constituição para configurar em concreto o modo de exercício
das competências dos órgãos de soberania, existem parâmetros teleológicos que, caso sejam
ultrapassados, impedem que se possa invocar o respeito pelo princípio da separação de
poderes.

Essa exigência exprime-se ordinariamente no exercício dos poderes constituídos e veda a um


órgão a possibilidade de se intrometer no âmago de competências alheias e de exercer, no
limite, funções que a Constituição lhe não comete não deveria axiologicamente cometer. Não
seria admissível que os órgãos que exercem o primado de uma função, o viessem a perder em
favor de um outro órgão a quem coubesse, em tese, o primado de uma função distinta.

No que tange ao poder constituinte, sem prejuízo a sua incondicionalidade jurídica, o princípio
da separação de poderes não pode ser desfigurado pela arrumação constitucional específica
das competências dos poderes soberanos em termos que envolvem a negação do seu “centro
de gravidade”, o qual radica em 3 dos seus pilares axiológicos e objetivos políticos
fundacionais: a partilha do poder político por uma pluralidade de titulares como forma de o

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limitar; a exclusão de uma concentração omnicompetente do poder “numa só mão”; e a
proibição de ingerência de certos órgãos no objeto medular das competências de outros.

Uma Constituição que permita que um dos órgãos soberanos se arrogue ao LIVRE exercício de
poderes substitutivos em relação aos restantes órgãos ou que tolere que um órgão exerça
materialmente funções alheias, sob o mando formal do exercício de funções próprias, não
respeita a teleologia do princípio da separação de poderes.

Ora essa distribuição de funções, operada por via de uma repartição de competências
conforme com o princípio da separação de poderes implica o respeito pelo núcleo essencial
desse princípio (teoria do núcleo essencial, de Gomes Canotilho). Desta tese resulta o
postulado de que a nenhum órgão soberano podem ser cometidas funções de que não resulte
quer o “esvaziamento” das funções materiais atribuídas a outro órgão quer a intromissão no
círculo indisponível das funções que, por razões de essencialidade material, devam pertencer a
outro órgão.

A identificação do “núcleo essencial” do princípio, que na Constituição portuguesa se encontra


protegido por um limite material de revisão constitucional (art.º 288/j) tem como ponto de
partida a arquitetura de poderes que a Constituição configura, podendo essa configuração ser
relevante para a censura de fenómenos encobertos de lesão ao princípio pelos poderes
constituídos.

O referido “núcleo” tem uma dimensão material que se impõe no plano político ao próprio
poder constituinte quando o mesmo conforma a distribuição de competências pelos órgãos
soberanos. Assim, se por força da Constituição um órgão parlamentar soberano cumulasse o
exercício da função legislativa com o exercício da atividade administrativa e com a função
jurisdicional, este quadro de repartição de competências não respeitaria o princípio da
separação de poderes.

Se tal ocorresse, o princípio teria um valor nominal e o perfil do Estado, embora


eventualmente pudesse ser o de uma democracia competitiva, não seria pelo menos o de um
Estado de direito (já que o direito deixaria de limitar o poder político de uma forma
fundamentalmente adequada). O estado ficaria despossuído das funções de medida, de
racionalização, de controlo e de proteção que o referido princípio desempenha.

4 Complementaridade incindível entre a separação e interdependência de poderes

Em qualquer ordem constitucional é excluída qualquer possibilidade de lateralidade


estanquicista do exercício de funções. Emerge, neste contexto, o princípio da
interdependência de poderes (art.º 111/1), critério complementar e inseparável do axioma da
separação e que o Tribunal Constitucional designou como “dimensão negativa do princípio da
separação de poderes”.

A interdependência significa a comunicação institucional entre órgãos que emergem os


poderes do Estado e controlos interorgânicos entre os mesmos.

Assim, o princípio da separação de poderes implica que cada órgão constitucional a quem é
atribuído o núcleo essencial de uma função do Estado se deva conter nos limites das
competências que lhe são constitucionalmente atribuídas, assegurando um modelo de

16
repartição que observe uma essencialidade nuclear na distribuição das atividades públicas e na
responsabilização jurídica e política do exercício das atividades.

Como corolários do princípio da separação de poderes, na esfera dos órgãos de soberania,


importa sublinhar:

 A repartição da atividade stricto sensu entre o PR, a AR e o GOV;


 A repartição da atividade legislativa entre a AR e o GOV;
 A exclusão da atribuição da função administrativa, com eficácia externa, à AR;
 A reserva de jurisdição confiada aos tribunais.

O princípio da separação de poderes não constitui um exclusivo dos órgãos de soberania já


que envolve, ainda a repartição de funções e competências, operada através da Constituição,
entre os órgãos de soberania e outros órgãos constitucionais do Estado, a quem a Constituição
reconhece a titularidade de poderes autónomos, no exercício das atividades políticas e
legislativas e da função administrativa.

Assim, nas relações dos órgãos de soberania com os órgãos das regiões autónomas e
autarquias locais, a atividade legislativa é repartida entre o GOV e a AR e as ALRA. Quanto à
função administrativa esta é repartida entre o GOV, as ALRA, os GR e as autarquias locais.

Neste espectro de repartição de funções, a ordenação de poderes entre os órgãos das regiões
autónomas, os corolários são distintos:

 A função política é repartida pelos RR, as ALRA e os GR;


 As ALRA têm reserva de atividade legislativa;
 A função administrativa é repartida entre as ALRA e os GR, já que as primeiras,
atipicamente, têm competências regulamentares.

5.1.2. Manifestação do princípio da interdependência de poderes

A insuficiência de uma separação de poderes entre os mesmos pode sustentar-se em duas


razões fundamentais.

A primeira consiste na constatação de que não basta uma repartição de competências entre
órgãos soberanos e a atribuição do primado ou núcleo de uma dada função para que se
garanta o objetivo fundamental da limitação do poder. Uma autoridade soberana pode abusar
do poder exclusivo que lhe foi constitucionalmente conferido e exercê-lo de forma inclusiva,
omnipotente, ilícita, desproporcional ou desrespeitosa para com princípios da
responsabilidade política pelo exercício das respetivas competências, lealdade institucional,
prossecução do interesse Público e respeito pelos direitos dos cidadãos. Só “poder limita o
poder” regista-se assim que a limitação da autoridade ocorre por força dos controlo
interorgânicos, que os órgãos soberanos exercem entre si. Na ordem jurídica nacional, atos
políticos que protagonizam poderes de impedimento, tais como vetos presidenciais sobre leis
ou decretos-leis, ou poderes de dissolução parlamentar pelo PR ilustram a incidência do
princípio da interdependência como instrumento móvel de condicionamento do exercício do
poder.

17
A segunda razão prende-se às exigências de eficiência do funcionamento do sistema político as
quais reclamam uma articulação recíproca na repartição de diferentes tarefas sobre a mesma
matéria e cooperação interinstitucional no exercício de certos poderes. É o caso da
magistratura de influências do PR, do processo e de conclusão tratados e o exercício de
competências partilhadas.

Relativamente e estas considerações relativas à delimitação do âmbito positivo do princípio da


separação de poderes no Estado Social, o TC considerou inequivocamente como um dos
essentialia Do Estado de direito democrático no respeitante às atividades desenvolvidas pelos
órgãos de soberania que integram uma ordem constitucional portuguesa.

A ideia de interferência de poderes, configurada no art.º 111 traduz a ideia de que a repartição
de poderes e competências pelos órgãos do poder e não prejudica relações de colaboração e
aplicação de institutos de responsabilização e controlo entre os mesmos órgãos.

5.2. O impacto da supranacionalidade da União Europeia na configuração da


separação de poderes do Estado

5.2.1. A limitação da soberania inerente ao exercício dos poderes


estaduais

A integração do Estado português numa organização supranacional pressupõe que esta exerça
poderes subordinantes que implicam, quer a limitação da esfera das competências dos
mesmos Estados, quer a edição de atos jurídicos unilaterais que prevalecem sobre o direito
ordinário interno. Para alguns autores essa supranacionalidade envolveria uma necessária
abertura da Constituição portuguesa aos valores inerentes ao compromisso europeu.

Na medida em que os Estados-membros delegam na União Europeia, através dos tratados


institutos que regem esta entidade Internacional competências que passam a ser exercidas em
comum pelas instituições europeias ou de modo partilhado entre estas e os órgãos soberanos
dos Estados, estes deixam de poder exercer em plenitude os poderes que as constituições dos
cometem, passando a soberania que inere a esse exercício assumir caráter limitado. Trata-se
de um fenómeno de limitação de poderes soberanos com traços próximos ao das associações
de Estados que revestem a natureza de Confederação.

A delegação de poderes originariamente soberanos dos Estados-membros da União é operada


por normas das constituições Dos Estados. O art.º 7/6 ao pega essa função habilitante. Isto
significa que, mediante o acordo do Estado português na revisão dos tratados institutivos da
União, o estado pode delegar o exercício de poderes. Com efeito, a definitividade dessa
transferência mostra-se incompatível com a efetiva possibilidade de o estado português entrar
em recesso em relação aos tratados da União e recuperar nesse caso, a põe mito dos seus
poderes originais. O exercício em cooperação dos poderes delegados implica que essas
responsabilidades serão exercidas através de formas de decisão de recorte
intergovernamental (onde as instituições comunitárias refletem, mediante esquemas e
processos de concertação decisória, o peso e os interesses dos diversos Estados). Já o exercício
do direto pelas instituições se reporta a modos de decisão tipicamente comunitárias e
seguindo interesses da União Europeia.

18
A delegação de poderes visa a coesão económica e social, a criação de um espaço de
liberdade, segurança e justiça e a definição de uma política externa e de segurança comum.

Nestes sairmos, a delegação do exercício dessas responsabilidades nos domínios referidos tem
como limites:

 Os princípios fundamentais e estruturantes da República portuguesa, como estado de


direito democrático que sendo soberano, nos termos do art.º 3/1, não consente
delegações, que punham em causa critérios como a essência da política externa; a
autonomia das forças armadas portuguesas da defesa da República; a Independência
dos tribunais; a integridade do sistema de direitos fundamentais; e a Independência na
definição da política de justiça e segurança interna;
 O princípio da subsidiariedade, em que sede de poderes concorrentes exclui a
delegação de poderes que as coletividades mais próximas dos cidadãos possam
exercer com mais eficiência;
 A reciprocidade (todos os Estados devem aceder a idêntica limitação de poderes).

5.2.2. Síntese e observações finais

A supranacionalidade europeia tem influenciado de uma forma significativa a distribuição


interna de poderes na esfera jurídica dos Estados-membros, traduzindo-se essa influência:

 No reforço dos poderes de direção política e de centralidade legislativa dos GOVs;


 Na delimitação relativa dos GOVs o exercício da função administrativa~;
 O reforço do poder jurisdicional a expensas das atividades políticas e legislativas
protagonizadas pelo GOV e pela AR.

A supranacionalidade teve um efeito moderado na dinâmica de separação de poderes em


Portugal durante o período em que o estado sofreu limitações à sua soberania por força de um
resgate Internacional contratualizado pelas instituições europeias e por estas supervisionado.

19
Capítulo II: Os atos jurídico-públicos

1. Conceito

Podemos definir ato jurídico-público como a decisão imputada aos órgãos de uma entidade
coletiva que se mostra apta à produção de consequências jurídicas na prossecução dos fins
públicos é que o mesmo ainda se encontra ao distrito.

Na qualidade de decisão, traduz-se na exteriorização de vontade imputável a um ente público,


cujo grau de vinculação pode ser mais ou menos intenso conforme a natureza da função:

 É maior numa função dominante como a política, podendo no caso da subfunção ou


atividade legislativa falar-se em liberdade conformadora do conteúdo dessa vontade, a
qual varia a sua intensidade em razão dos limites a quem se encontra submetida pela
Constituição;
 É menor em funções subordinadas ao Império da legalidade, como é o caso das
atividades administrativas e jurisdicional.

Por regra, esta mesma vontade é imputada ao poder funcional do órgão de uma pessoa
coletiva que assume natureza pública. Existe, situações em que o ato é praticado por um ente
de natureza jurídica privada, embora atuando no desempenho de funções públicas e ao abrigo
de um poder público de autoridade que lhe foi concebido por uma pessoa coletiva pública,
como é o caso da concessão de serviço público.

É a função pública especificamente desempenhada (associada aos fins públicos que preenche e
ao poder supra-ordenador de comando que vincula os respetivos destinatários) que permite
conferir ao ato produzido no seu respeito, uma natureza jurídico-pública. Essa supra-
ordenação do ato jurídico-público traduz-se na produção de efeitos jurídicos, caracterizados
pela manifestação unilateral de um poder de Império sobre os seus destinatários, o qua é, na
generalidade, assegurado pelo coercibilidade que assiste ao direito (ou seja, o poder de fazer
acatar comandos mediante o uso da força).

A Constituição da República contém uma previsão específica do princípio da


constitucionalidade dirigida aos autos jurídico-públicos, quando aborda no art.º 3/3.

2. Pressupostos e elementos do ato

2.1. Pressupostos: órgão, vontade psicológica e competência

São pressupostos jurídicos do ato aos parâmetros que condicionam a sua prática, quanto mais
abertas, ambíguas e indeterminadas são as normas objeto de aplicação jurisdicional, maior a
margem do intérprete para determinar o seu real ou presumido sentido. Trata-se de
realidades por pré-existentes ao ato e que devem encontrar-se indispensavelmente reunidas,
para que o mesmo possa ser produzido de um modo conforme ao direito.

20
Podem os mesmos assumir natureza subjetiva (como é o caso do órgão e da vontade
funcional) e natureza mista, isto é, uma dimensão subjetiva e objetiva, nos sabemos da
competência.

Os órgãos são definíveis como os centros institucionais do poder que, em nome de uma pessoa
coletiva pública, exprimem uma vontade funcional da qual resulta a prática de um ato jurídico-
público. Trata-se de unidades funcionais através das quais uma pessoa coletiva pública
prossegue os seus fins que são alcançados mediante a tomada de decisões unilateralmente
consideradas.

Sem órgão validamente criado para exercer uma dada competência não existe ato, pois as
pessoas coletivas, como o Estado, carecem de uma estrutura organizatório institucional para
poderem decidir, constituindo os órgãos, as instâncias permanentes dessa estrutura que se
encontram vocacionados para exprimir uma decisão que será imputável às mesmas pessoas
jurídicas.

A imputação é, pois, a recondução do ato à vontade gerada por um órgão em nome de uma
pessoa coletiva pública.

Os órgãos podem ser classificados no respeito de uma pluralidade de classificações. Teremos


pois:

 Os órgãos de soberania (os que exercem os poderes de soberania no Estado e se


encontram previstos no art.º 110/1) e simples órgãos constitucionais (órgãos não
soberanos, como o Procurador Geral da República);
 Os órgãos singulares (desempenhados por um só titular, como o PR) e órgãos colegiais
(compostos por uma pluralidade de titulares como a AR);
 Os órgãos simples (caracterizados pela unicidade da sua estrutura orgânica como o PR
ou o RR) e órgãos complexos, os quais se desenvolvam em outros órgãos ( a AR
desdobra-se no plenário e numa pluralidade de comissões);
 Os órgãos eletivos (centros de poder eleitos por sufrágio universal direto, como o PR e
a AR ou eleitos por outros órgãos como os 10 juízes do TC) e órgãos não eletivos (os
quais são designados por outros órgãos, como é o caso do PM, nomeado pelo PR);
 Os órgãos deliberativos (os quais tomam decisões e deliberações jurídicas com caráter
imperativo) e órgãos consultivos (que formulam pareceres e opiniões políticas e
técnicas como o Conselho de Estado);
 Os órgãos primários (a quem a Constituição comete poderes que os mesmos exercem
em nome próprio, como é o caso dos órgãos de soberania) e órgãos vigários (que
representam outros órgãos no exercício de uma atividade, a qual exercem com
Independência como é o caso do RR).

A vontade psicológica consiste na formação intelectiva da volição dos titulares de um


determinado órgão quanto à tomada de uma decisão que, na qualidade de vontade declarada,
assume a natureza de um ato jurídico-público.

Os órgãos decidem mediante a atuação pessoas físicas que são os seus titulares. O querer do
titular implica por parte deste uma ação a qual envolve uma escolha pública de opções que,
dentro de uma pluralidade de condicionamentos, o mesmo decisor estime como mais
adequadas para configurarem o conteúdo de um comando jurídico expresso em ato.

21
A vontade psicológica antecede a vontade declarada, a qual configura a forma e o conteúdo do
ato decidido. O professor CBM defende que a vontade psicológica integra os pressupostos
subjetivos do ato, já que, sem uma volidação efetiva ou perfeita, não é possível a um órgão
conceber um ato existente, ou pelo menos conforme ao direito antes da emissão concreta de
uma decisão. Daí que, se o titular de um órgão praticar um ato, sob coação ou em estado de
anomalia psíquica , os vícios ocorridos na génese dessa volidação intelectiva de formosa
projetam-se na sua vontade declarada, esta última já como elemento do ato, dado que seria
pressuposto dogmático da juridicidade da mesma prática que o titular decidissem em
liberdade e no pleno uso das suas faculdades.

A competência pode ser definida como a atribuição a um órgão, com eventual exclusão dos
demais, do poder funcional de aprovar atos jurídico-públicos no âmbito de uma determinada
matéria e nos limites de um determinado espaço e de um determinado tempo.

Trata-se de um pressuposto misto do ato, pois comporta uma componente subjetiva (já que
implica o seu exercício por parte de um órgão a quem o mesmo poder é cometido) e outra
objetiva (dado que supõe o reconhecimento normativo de uma potestas, exercida ao abrigo de
uma função do Estado-ordenamento e no âmbito de uma determinada matéria e espaço
territorial).

Assim, para que o GOV pudesse aprovar decretos na esfera da concorrência com a AR, tornou-
se necessário cometer no art.º 198/a) a faculdade de exercer esse poder funcional. Não
poderia, por outro lado, uma ALRA aprovar um ato legislativo se essa faculdade não lhe fosse
atribuída pelo art.º 112/4 conjugado com o art.º 227/a.

2.2. Elementos fundamentais: forma e conteúdo

Da vontade funcional declarada no ato emergem dois atributos objetivos que devem
necessariamente encontrar-se presentes em qualquer decisão jurídico-pública.

Trata-se da forma e do conteúdo do ato.

A forma consiste no modo como ato é produzida e revelado. A cada um corresponde uma
competência e esta última inere um poder funcional de praticar atos, cuja formulação corre
por um itinerário específico Itinerário composto uma sequência lógica e encadeada de outros
atos que concorrem para formação de um ato final, designando-se por procedimento
produtivo, a tramitação a que essa sequência corresponde.

A revelação em sentido estrito consiste no título jurídico ou legenda que é aposto ao ato
formado ou declarado com base na tramitação descrita e que permite a sua identificação
externa.

A Constituição regula diretamente um número reduzido de procedimentos produtivos de atos


jurídico-públicos, com um relevo para a lei. Impõe ainda assim, nos atos cujo procedimento
não regula, formalidades produtivas avulsas que devem ser respeitadas no procedimento
genético de outros atos. Já no que concerne á revelação dos atos jurídicos-públicos, a
Constituição estipula diretamente no art.º 112/1 e 166, os títulos formais ou legendas dos atos
legislativos (leis de revisão constitucional, leis orgânicas, etc), os títulos de certas normas

22
atípicas da função política (regimentos de órgãos representativos), e reporta-se ainda aos
títulos de alguns atos políticos.

Quanto ao conteúdo do ato, este reconduz se ao seu objeto e fim. O objeto reconduz-se às
disposições materiais que configuram a vontade declarada (objeto imediato); e o domínio
abstrato (o conjunto de situações fáticas ou jurídicas) sobre o qual essa declaração incide
(objeto mediato).

O fim consiste no escopo ou no objetivo que o ato visa preencher.

Em razão da natureza do ato, existe uma variabilidade expressiva da liberdade ou da


discricionariedade inerente à configuração do seu objeto imediato, por parte do órgão
competente. Paralelamente, contudo, encontram-se, os mesmos atos vinculados aos fins
constitucionais ou legais que prosseguem, sem prejuízo da existência de graus exigenciais
diversos quanto a essa mesma vinculação.

Assim, o valor positivo do ato conforme à Constituição resulta do facto de a sua génese se
mostrar conforme aos respetivos pressupostos constitucionais e de a sua forma e conteúdo
ostentarem uma relação de respeito pelos parâmetros fixados na Constituição.

2.3. Tipologia elementar de atos jurídico-públicos

Abordaremos neste sentido alguns tipos elementares de atos, seguindo alguns dos critérios
esboçados por Jorge Miranda quando este atende para efeitos classificatórios, à vontade e ao
objeto.

Assim, atendendo ao critério da vontade, haverá a considerar os:

 Atos livres (quando o autor goza da faculdade de os praticar, situação que se


exemplifica no regime geral promulgação e no veto político presidencial) e os atos
derivados (quando o autor do ato é obrigado a praticá-lo, como é o caso do veto por
inconstitucionalidade do PR ou a obrigação de promulgação de lei confirmada pela
AR);
 Atos simples (praticados por um só órgão, como é nomeação do PM pelo PR), atos
complexos unipessoais (que implicam um concerto de vontades diversas de órgãos e
titulares pertencentes à mesma pessoa coletiva, como é o caso do procedimento
legislativo parlamentar que resulte de um ato iniciativa do GOV ou dos deputados) e
atos complexos pluripessoais (que resulta de um concerto de vontades de órgãos,
alguns dos quais pertencem a pessoas coletivas distintas , como é o caso do processo
de revisão dos estatutos político-administrativos das regiões);
 Decisões (atos de vontade de um órgão singular, como é o caso dos decretos
presidenciais respeitantes aos atos livres do PR) e deliberações (atos jurídicos de
vontade imputados a órgãos colegiais, como a AR).

Em razão do objeto, haverá que considerar:

 Atos de eficácia interna (esgotam a sua produtividade na esfera jurídica do órgão que
emite o ato, como é o caso dos atos administrativos aprovados por órgãos da AR,
tendo em vista a sua gestão interna) e atos de eficácia externa (projetam os seus

23
efeitos em destinatários diversos do órgão que emite o ato, como é o caso da
generalidade das leis);
 Atos declarativos (os que atestam uma situação jurídica já constituída
precedentemente, como é o caso da declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral do TC), e atos constitutivos (os que geram um “status jurídico” novo,
criando, modificando ou extinguindo situações jurídicas);
 Atos-condição (atos que vinculam o conteúdo de outros, sendo pressuposto
necessário da sua produção ou da sua validade, como é o caso das leis de bases de
reserva parlamentar em relação aos decretos-leis complementares) e atos-objeto (atos
vinculados no seu conteúdo pelos atos-condição, como é o caso de um decreto-lei
complementar ou decreto-lei autorizado);
 Atos normativos (os que implicam a aprovação de leis, bem como de outros atos
jurídico-públicos de conteúdo geral e abstrato, como os regulamentos) e atos não
normativos (decisões públicas não legislativas com conteúdo individual e concreto,
como os atos políticos e os atos administrativos).

3. Os atos normativos

3.1. Aceções de norma jurídica na ordem constitucional portuguesa

3.1.1. Ausência de um conceito unitário de norma jurídica na Constituição

O art.º 277/1 dispõe que o sistema de fiscalização da constitucionalidade tem por objeto
“normas”. Mas, no amplo universo dos atos jurídico-públicos que, de acordo com o art.º 3/3, 5
encontram sujeitos ao Império da Constituição. Para identificarmos aqueles que assumem a
natureza de normas jurídicas temos que ter como referência conceptual a noção tradicional de
norma, definida como regra de direito portadora de um conteúdo geral e abstrato, já que essa
generalidade e abstração nem sempre se verifica no universo dos atos legislativos.

A “desmaterialização” do conteúdo geral e abstrato dos atos legislativos iniciou-se no termo


do pontificado do Estado Liberal, tornando-se prática corrente num estado social caracterizado
pela emissão de leis singulares destinadas a reger realidades contingentes. Trata-se de um
fenómeno caracterizado pela produção de leis-medida e leis individuais e concretas destinadas
a incidir sobre situações particulares carentes de regulação e pela necessidade de acorrer a
cenários de necessidade legislativa que se converteram em prática comum, libertando-se
velozmente grandes quantidades de normas legais.

Salientou alguma doutrina que a generalidade e abstração, como requisitos do conteúdo da lei
no período liberal cederam lugar, no Estado Social à politicidade do conteúdo legal. Ora, A
Constituição de 1976 não facilita a tarefa identificativa da noção de norma jurídica referida no
art.º 277/já que não oferece pistas sensíveis para a identificação do respetivo conteúdo.

Na ordem jurídica portuguesa a generalidade e a abstração, como predicados substanciais do


conceito de norma, apenas são exigidos relativamente a leis que disciplinem certas matérias
(art.º 18/3, relativamente a leis restritivas de direitos, liberdades e garantias) ou se encontrão
pressupostas, no conteúdo exigível a certas categorias legais em razão da sua natureza

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paramétrica, como é o caso das leis de bases. É pois legitima a inferência “a contrario sensu”
de que, não estando definida uma reserva geral de administração na Constituição, a lei poderá
assumir um conteúdo muito variável, o qual se mostra passível de abarcar disposições gerais e
concretas e individuais e concretas.

Se uma boa parte da doutrina entende que a lei, à luz da Constituição, se define segundo um
critério estrutural, pela politicidade do seu conteúdo, pela sua forma e pela sua força, então o
problema da sua normatividade poderia encontrar-se solucionado. Só que assim não sucede,
sob um ponto de dogmática jurídica que reclama soluções lógicas e, como tal, a ausência de
contradições nas relações entre normas constitucionais. Isto porque o art.º 268/4 refere-se
aos atos administrativos lesivos dos direitos dos particulares, independentemente da sua
forma, redação que levanta a hipótese da existência de leis com conteúdo idêntico ao de um
ato administrativo, suscetíveis de serem impugnadas com fundamento em ilegalidade desse
conteúdo nos tribunais administrativos.

Daqui parece resultar que um comando individual e concreto praticado sob a forma de lei é
passível de ser julgado como um ato administrativo e não como um ato legislativo pelos
tribunais administrativos, como forma de garantir os direitos dos cidadãos num ordenamento
que não prevê o recurso de amparo junto do TC contra leis constitucionais singulares lesivas
desses direitos.

Ora, o disposto no art.º 268/4 perturba uma noção de lei, estritamente definida pela sua
forma, já que permite que os tribunais administrativos não qualifiquem como lei um ato
individual e concreto mesmo que aprovado sobre essa forma.

O ato administrativo constitui uma manifestação singular da atividade executiva que se


encontra vinculada à lei. O seu conteúdo não é politicamente inovador como o da lei, nem
supõe qualquer liberdade conformadora na sua edição, a sua forma não é a legal, e a sua
potência de valor é muito menos intensa do que a força da lei, nos termos do art.º 112/5.

Por um lado, a lei não pode, sem mais ser definida como norma com base na sua forma, já que
o art.º 268/4 habilita os tribunais administrativos a tratarem atos singulares praticados sob a
forma de lei como atos administrativos, os quais se encontram desprovidos de natureza
normativa. Por outro lado, um conceito de norma caracterizado pela generalidade excluiria do
mesmo leis singulares, que, todavia, não se reduzem ao conteúdo de um ato administrativo, já
que contém previsões políticas de caráter inovador.

3.1.2. Distintas aceções de norma jurídica nas jurisprudências


administrativa e constitucional

A. Aceção material de norma na jurisprudência do Supremo


Tribunal Administrativo

O Supremo Tribunal de administrativo começou a considerar a existência de decisões


administrativas sob a forma de lei, passando à luz do art.º 264/4 a adotar uma noção material
de norma jurídica.

25
Na verdade, o art.º 4/b ETAF excluindo a competência da jurisdição administrativa e fiscal as
normas legislativas e a responsabilidade pelos danos decorrentes do exercício da função
legislativa. Isto, porque um entendimento diverso que incluísse nessa noção de normas
legislativa, as leis de conteúdo singular e auto-aplicativo, chocar-se-ia com a regra
constitucional do art.º 268/4 que atribui à competência dos tribunais administrativos, o
julgamento da legalidade dos atos administrativos praticados sob qualquer forma, nela
incluída a forma de lei.

Normas legais seriam segundo o STA, todos os atos inovadores produzidos por órgãos titulares
da função legislativa que resistisse em forma de lei e que detivessem conteúdo geral e
abstrato. E o ato administrativo seria uma decisão que no exercício de poderes jurídico-
administrativos vise produzir efeitos externos numa situação individual e concreta
independente da forma com que seria emitida a qual poderia ser regular ou legal.

A noção de norma na dicotomia lei- ato administrativo, desvaloriza os seus atributos de


caracterização formal. Comandos contidos em decretos-leis que identifiquem os seus
destinatários e que se mostrem lesivos dos seus direitos seriam tidos como atos
administrativos. Pese o facto de estarem contidos em diplomas legislativos, poderiam esses
atos enfermar do vício de violação de lei, por colisão com prévia norma legal que deveria
constituir o seu parâmetro.

Considera de qualquer modo o STA que não violaria a Constituição a existência desses atos
administrativos aprovados sob forma de decreto-lei, já que tal possibilidade seria admitida
pelo art.º 268/4, disposição que não seria contrariada pelas regras constitucionais que
atribuem competência legislativa e administrativa o GOV.

B. O conceito “funcional” de norma na jurisprudência do


Tribunal Constitucional: a opção dualista

a) Subsídios para uma noção “pragmática” de norma

A Posição corporizada pelo TC sobre o sentido constitucional de norma é diferente da


assumida pelo STA. Trata-se de um entendimento que bebe na jurisprudência da comissão
constitucional.

O TC esboçou as bases de um conceito funcional de norma, tido pelo mesmo órgão como a
noção que tem em vista o controlo do poder normativo do Estado, com especial relevo para os
atos de poder legislativo.

Esse conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização pretende significar que a


noção de norma adotada não exclui outras conceções distintas utilizadas em outras jurisdições
ou na doutrina. Ela consistiria, ao invés, numa fórmula de qualificação necessária de todos os
atos normativos que integram o objeto do sistema de controlo da constitucionalidade.

A necessidade de abranger figuras jurídicas de forma e conteúdo distinto levou o TC a conter


na sua conceção “funcional” uma noção dualista de norma, passível de abarcar realidades
estruturalmente diversas:

26
 De um lado os comandos jurídicos aprovados ao abrigo da função legislativa sob a
forma de lei que seriam sempre normas jurídica para o efeito da sua submissão ao
sistema de fiscalização da constitucionalidade, independentemente de o seu conteúdo
poder ser geral e abstrato ou individual e concreto;
 De outro lado, os restantes atos normativos desprovidos de forma legal, os quais para
integrarem o conceito funcional de norma deveriam conter os comandos
caracterizados pela sua generalidade e abstração.

Em suma, havendo uma dificuldade conceitual criada pela letra da Constituição insuscetível de
ser resolvida através de interpretação lógico-sistemática o TC optou por uma “aproximação
tópica”, para resolver o problema. A tópica, em sede interpretativa, envolve o recurso a
medidas de valor metajurídicas para solucionar um problema não resolvido pelo raciocínio
dogmático, e dobra a norma ao facto, de forma a obter uma resposta pragmática ajustada à
situação problemática e que seja aceitável pela comunidade jurídica.

b) Norma legal de conteúdo singular e ato administrativo

Para o TC o conceito de norma adequada à função que Constituição confere a este é aquele
que inclua todo o ato do poder público que contenha uma regra de conduta para os
particulares e para a administração, ou um critério de decisão desta última para o juiz, o que
acontecerá ainda com os preceitos legais de conteúdo individual e concreto, ainda mesmo
quando possuem eficácia consuntiva, pois que, tendo eles também um parâmetro de validade
imediato não a lei mas a Constituição, nada justificaria que o seu exame escapasse ao controlo
específico da constitucionalidade.

Para a justiça constitucional portuguesa um “preceito legal que rege para um caso concreto e
que nessa medida se apresente com uma eficácia equivalente à de um ato administrativo,
nunca é em regra um puro ato de aplicação de direito preexistente , pois que
simultaneamente se traduz num ato de criação de direito novo”.

Ainda segundo este tribunal, a regra geral aplicável a um caso concreto requer muitas vezes
uma exceção para uma situação singular, pelo que “um preceito de conteúdo individual e
concreto e com eficácia consumptiva, contém implicitamente uma norma que não deve ser
subtraída à possibilidade de controlo previsto no art.º 281/1.

Nesta base o TC afere o seu caráter normativo em razão:

 Da função ao abrigo da qual é emitida;


 Da respetiva forma legal e no respeito de um conceito material “assente
essencialmente nas características da generalidade e abstração”;
 Da sua sujeição direita à Constituição;
 Da sua força de lei pois “o facto de um ato administrativo se conter em norma com
força legal e, portanto geral é suficiente para conferir carácter de norma para o efeito
do art.º281/1).

Da jurisprudência originária decorreu a possibilidade de à lei não estar virtualmente vedada a


adoção de qualquer conteúdo e da penetração em qualquer área da função administrativa,
convertendo em “norma”, em razão da sua forma ou força, qualquer comando jurídico.

27
A AR não teria assim de programar, planificar e racionalizar a atividade administrativa pré
conformando-a no seu desenvolvimento e definindo o espaço que ficará à liberdade de critério
e à autonomia dos respetivos órgãos e agentes.

Num segundo momento, o TC repegando na ideia de núcleo essencial do executivo vedou a


leis parlamentares uma intromissão no poder de direção do GOV, adotando sob forma de lei,
atos administrativos vinculativos da administração direta

No que respeita ao controlo de normas não legislativas o TC estimaria que o seu controlo geral,
ou geral e abstrato, constituiria o critério determinante da sua inclusão no objeto do sistema
de fiscalização, como sucede com as resoluções parlamentares de conteúdo normativo e com
os regulamentos administrativos em geral.

O TC considera se competente para controlar a constitucionalidade de normas individuais e


concretas aprovadas com a forma e a força de lei, tanto mais que, no seu entender, são estas
mesmas disposições as que mais riscos apresentam em termos de constitucionalidade, para a
esfera jurídica dos cidadãos. No seu entender não existiria nenhum conflito positivo
competências entre as jurisdições constitucional e administrativa, pois o controlo de
constitucionalidade e de legalidade situar-se-iam em “planos distintos” que não teriam de se
excluir reciprocamente.

3.2. Síntese

A generalidade devia constituir, por rega, o elemento estrutural da caracterização de uma


norma jurídica. Norma seria, por regra, um critério de decisão aplicavam a pluralidade
indeterminada ou imediatamente indeterminável de destinatários, independentemente de se
esgotar numa situação concreta ou numa pluralidade de situações. Já a abstração não deveria
segundo CBM, constituir mais um elemento permanente de definição na norma, pois não
abrange regras que se esgotam na regulação de um ato determinado e circunscrito no tempo,
as quais assumem caráter normativo em razão de natureza geral do seu comando. A
repetibilidade não é um elemento decisivo da noção de norma, embora possa ser um atributo
exigível para certas normas (leis restritivas de direitos, liberdades e garantias).

Visto que a Constituição não adota uma noção material unitária de norma, a de acolher uma
noção de recorte pragmático. Essa construção pressupõe que:

 Sejam normas os atos legislativos, os quais se caracterizam por ser critérios de decisão
de conteúdos políticos emitidos ao abrigo da função legislativa, aprovados com a
forma de lei e dotados de força própria da lei, independentemente do seu conteúdo
ser geral e abstrato, geral e concreto ou, até, individual e concreto;
 Sejam, qualificadas também como normas, os atos não legislativos que assumam
conteúdos jurídicos geral e a abstrato, como será o caso dos regulamentos
administrativos, dos tratados e acordos internacionais, das declarações de Estado de
sítio e de estado de emergência, etc.

4. Normas legislativas: introdução e remissão

28
5. Sinopse sobre algumas normas “atípicas” da função política em sentido estrito

5.1. O ato referendário nacional

A. Natureza jurídica

O referendo constitui uma forma de expressão de democracia semidireta, exercida no âmbito


da função política, porque a sua realização depende da combinação da vontade representativa
dos órgãos de poder político que o propõe (AR e GOV) e o convocam (PR), com a vontade do
eleitorado que aprova ou rejeita, mediante sufrágio, a questão referendá-la. E integra-se, nos
termos do art.º 115/1 e 3 no exercício da função política stricto sensu porque se trata de um
instituto de expressão da vontade popular através do sufrágio, que incide sobre questões de
“relevante interesse nacional” que devam ser decididas pelo GOV ou pela AR através da
aprovação de Convenção Internacional ou a ato legislativo, sem que a decisão assuma essa
forma. Deste modo, ao implicar matérias atribuídas no exercício da atividade política stricto
sensu e da atividade legislativa, o resultado do referendo integra-se substancialmente no
âmbito da função política.

Embora a sua convocação constitua um ato político inscrito na competência do PR, a decisão
referendária não se reduz a um ato da mesma natureza.

É certo que a doutrina maioritária considera o referendo vinculativo um ato político não
normativo, conferindo mesmo que o facto de incidir sobre matérias de competência legislativa
dos órgãos de soberania não o converteria em norma.

Contudo, contrariamente, comparam o resultado referendário da resposta positiva, às leis de


autorização legislativa, já que haveria um sentido normativo fixado ao ato legislativo
subsequente, e outros autores da mesma sensibilidade concedem que o referendo vinculativo
constitui uma “decisão-regra” que será ulteriormente objeto de lei ou Convenção
Internacional.

Uma decisão-regra com um conteúdo vinculativo tem, necessariamente, alcance normativo.


Esse mesmo alcance torna-se patente quando o legislador é obrigado a alterar uma lei para a
compatibilizar com o sentido de uma decisão referendaria (resposta positiva), ou quando se vê
precludido de alterar uma lei ou alterá-la num dado sentido (resposta negativa). Neste
contexto o ato referendário consiste num critério material de decisão que para além de
parâmetro ao legislador é, também, de um parâmetro de lei, o que converte em “norma sobre
a normação”.

Dir-se-á que o resultado vinculativo do referendo consiste numa resposta a uma questão,
resposta essa cujo conteúdo é excessivamente abstrato e etéreo, em termos de densidade
reguladora, para poder ser traduzido numa norma equiparada a lei. Trata-se de um argumento
que, não colhe. É que, na Constituição e nas leis de bases avultam princípios normativos com
idêntico ao de generalidade e uma ainda mais escassa densidade reguladora, realidade que
não prejudica a sua parametricidade vinculante em relação a normas jurídicas.

Daí que o referendo que tenha por objeto a regionalização administrativa e que rejeitem
instituição em abstrato e em concreto das regiões, exprima um comando normativo de caráter
proibitivo da instituição dos referidos entes territoriais; ou uma eventual decisão referendaria

29
que exprime positivamente uma opção em favor de uma imigração escolhida por pontos focais
da origem, condicione necessariamente a alteração de legislação em vigor onde esse critério
não se encontre previsto.

Dir-se-á, também, que os seus efeitos se projetam apenas na estrutura organizativa do poder
político, um pouco como os atos políticos, não possuindo eficácia externa. Contudo o
referendo está sujeito a publicação e os seus efeitos de ordem positiva sobre o decisor
normativo assimilam o mesmo instituto ao regime de uma lei de autorização legislativa, a qual
não produz por si própria eficácia direta sobre os destinatários, antes de se configurando como
um comando sobre o decisor legislativo. Ora, se ninguém nega carota normativa a uma lei de
autorização legislativa, pelo facto de a mesma ter como destinatário imediato o legislador e
não os cidadãos, são pouco se pode negar natureza normativa ao referendo pelo facto de
exprimir a sua vinculatividade imediata sobre o decisor normativo. Concluindo, a decisão
referendária tem conteúdo normativo.

B. Objeto

O objeto do referendo nacional incide sobre questões de relevante interesse nacional que
devam ser decididas pelo GOV ou pela AR através da aprovação de Convenção Internacional
ou ato legislativo (art.º 115/3) com a exclusão daquelas que se encontram expressas nas
seguintes matérias: alterações à Constituição; questões e atos de conteúdo orçamental,
tributário ou financeiro; e matérias previstas no art.º 161 e 164, com exceção das bases do
ensino.

Diversamente do que entende alguma ilustre doutrina, a expressão Convenção Internacional


abrange tratados e acordos internacionais, não havendo, devido à aproximação dos regimes
de conclusão destas duas convenções e da sobreponibilidade conteudística entregando
maioria dos tratados e acordos aprovados pela AR, qualquer fundamento plausível para excluir
do referendo os acordos internacionais.

C. Âmbito e extensão

De acordo com o art.º 115/6, cada referendo incide sobre uma só matéria.

O número de perguntas não deve exceder o máximo de três (art.º 7/1, da lei do referendo),
excetuadas as convenções internacionais, relativamente às quais é apenas autorizada uma
questão.

D. Formulação da questão referendária

A questões devem ser formuladas com objetividade, clareza e precisão e dirigidas a respostas
de sim ou não (art.º 115/6) de forma a evitar, respetivamente, tanto a confusão dos eleitores
sobre o seu sentido, como a ambiguidade na interpretação dos resultados. Não devem as

30
mesmas questões sugerir, direta ou indiretamente, o sentido da resposta (art.º 7/2 da lei do
referendo) ou ser procedidas por considerações preambulantes (art.º 7/3).

E. Síntese procedimental

a) Iniciativa

A iniciativa primária para a convocação de um referendo nacional compete à AR e ao GOV,


mediante resolução parlamentar ou resolução do Conselho de ministros, respetivamente,
devendo estas propostas incidir no âmbito das matérias da sua competência, NOS termos
previstos na Constituição (art.º 115/1).

O art.º 115/2 prevê, também, uma iniciativa condicionada ou uma pré-iniciativa apresentada
em sede parlamentar que é reconhecida a grupos de cidadãos eleitores (Um número mínimo
de 60 mil, de acordo com o art.º 16 da lei do referendo). O seu caráter condicional decorre da
circunstância de a Constituição determinar que o impulso referendário dos cidadãos só se
formalizará como iniciativa legislativa se não for rejeitado pela AR, fixando a lei do referendo
dos termos e os prazos da apresentação e da apreciação parlamentar. Trata-se de um instituto
de petição atípico em que a iniciativa popular se exerce junto da AR e não junto do PR.
Consiste, assim, num filtro do sistema contra iniciativas populares julgadas indesejáveis pela
classe político-partidária que engessa o referendo e atribui para a autorreferencialidade do
sistema político e para a sua falta de representatividade.

b) Controlo preventivo obrigatório da constitucionalidade e legalidade

O PR submete, obrigatoriamente, nos termos do art.º 115/8, as propostas referendárias a um


controlo preventivo de constitucionalidade e legalidade junto do TC, devendo fazê-lo NOS 8
dias subsequentes à publicação da proposta parlamentar ou governamental (art.º 26 da lei do
referendo). O TC dispõe de 25 dias para decidir nos termos do art.º 27 da lei do referendo, tem
um papel importante não só na fiscalização do conteúdo referendário e dos respetivos
requisitos formais e orgânicos, mas também de objetividade, clareza e precisão das questões
convertidas num parâmetro de constitucionalidade.

Coloca-se a questão de saber se o PR pode recusar a proposta referendária antes de a


submeter ao controlo obrigatório de constitucionalidade e legalidade, a resposta é negativa.
De acordo com o art.º 34 da lei do referendo o PR só pode convocar ou rejeitar a proposta
depois da decisão do Tribunal, sendo evidente que a terá de rejeitar por razões de validade, no
caso de o mesmo tribunal a julgar ilegal ou inconstitucional.

c) Convocação

O PR tem plena liberdade política para convocar, ou não um referendo que lhe seja proposto
(art.º 115/1), não se encontrando o decreto correspondente sujeito a referendo a ministerial

31
(art.º 140). Tão pouco, no caso da recusa de convocação, pode a mesma ser recuperada pelo
efeito de uma confirmação parlamentar. As propostas de referendo recusadas pelo PR não
podem ser renovadas na mesma sessão legislativa (art.º 115/10). A mesmo a liberdade
decisória do PR no processo de convocação é aplicável à consulta direta nacional relativa à
instituição em concreto das regiões administrativas (art.º 256/3).

O PR dispõe de 25 dias para decidir sobre a convocação do referendo no caso do TC se


pronunciar pela não inconstitucionalidade da proposta (art.º34 da lei do referendo). O
referendo deverá ter lugar no art.º 35/2, entre o 60º e 90º dia após a data da publicação do
decreto presidencial de convocação.

São excluídas a convocação e a efetivação de referendos entre a data do convocação e a


realização de eleições gerais para órgãos de soberania, de GOV próprio das regiões autónomas
e do poder local e de deputados o Parlamento europeu (art.º 115/7).

d) Princípios e regras eleitorais

São aplicadas ao referendo, com adaptações, as normas constantes do art.º 113 nº1 a 7.

F. Capacidade eleitoral ativa

Participam no referendo todos os cidadãos e eleitores residentes no território nacional e


cidadãos residentes no estrangeiro regularmente recenseados e com laços de efetiva ligação à
comunidade nacional, quando a questão referendária recaia sobre matéria que lhes diga
especificamente respeito (art.º 115/2). Podem igualmente participar os cidadãos de países de
expressão portuguesa com estatuto de igualdade de direitos políticos (art.º 15/3)

G. Efeitos do referendo

a) Pressupostos para a produção de efeitos jurídicos

O referendo só terá efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos
eleitores inscritos no recenseamento (art.º 115/11).

b) Efeitos puramente políticos

No caso do requisito do número anterior não se verificar, o referendo terá o efeito político
equivalente a uma consulta não vinculativa.

Não deve, ainda assim, o peso desse efeito consultivo ser negligenciado, na medida em que o
poder político em Portugal tende a vergar-se psicologicamente à vontade expressa direta e
maioritariamente pelo eleitorado votante, a qual não opere como uma fonte de legitimação ou

32
deslegitimação das políticas públicas. Só após 9 anos volvidos sobre o referendo não
vinculativo e de resposta negativa sobre a despenalização do aborto o poder político realizou
outro referendo sobre a mesma matéria, renunciando voluntariamente a adotar um novo
regime legal sobre a matéria sem prévio convocação do mesmo instituto.

Cumpre referir que nenhum dos referendos realizados até 2008 votou a maioria dos eleitores
inscritos no recenseamento, como impõe a norma, para a decisão ser vinculativa mas, mesmo
sem essa vinculação o decisor político acatou o seu sentido durante mais de uma década, o
que não deixa de ser significativo, em termos de avaliação político-psicológica do peso da
vontade popular direta.

c) Efeitos jurídicos do contexto de uma resposta negativa

Sendo o referendo vinculativo e a resposta negativa, o sentido da decisão referendaria será um


comando normativo de sentido proibitivo que impedirá legislador parlamentar ou
governamental de aprovar um ato legislativo ou Convenção Internacional sobre a matéria
correspondente às perguntas objeto de resposta negativa, salvo nova eleição da AR, ou a
realização de outro referendo com resposta afirmativa (art.º 243 da lei do referendo).

Por outro lado, se é um facto que pode ser convocado um novo referendo sobre a matéria,
verifica-se que novas propostas de referendo objeto de resposta negativa do eleitorado não
podem ser renovadas na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da AR ou, em caso de
iniciativa oriunda do GOV, até a formação do novo executivo (art.º 244 da lei do referendo).

Sufraga-se a interpretação analógica feita ao art.º 242 da lei do referendo segundo a qual o PR
se encontra vinculado não promulgar lei que desrespeite o sentido negativo do ato
referendário em violação da CRP e da mesma lei.

Em caso de violação da obrigação de não legislar considera-se que a lei emitida na base da
decisão referendaria será ilegal nos termos do art.º 112/3 e 281/b CRP. Essa ilegalidade funda-
se na violação do art.º 249 da lei do referendo, a qual tem valor reforçado e vincula, no nosso
entendimento, quer o ato referendário, quer os atos legislativos afetados por uma decisão
vinculativa adotada em referendo. Essa ilegalidade, que pode ser sujeito ao controlo do TC em
fiscalização concreta e abstrata sucessiva, tem como efeito a invalidade da lei correspondente.

d) Efeitos jurídicos no contexto de uma resposta positiva

De acordo com o art.º 241 da lei do referendo, se a decisão referendária for vinculativa e da
votação resultar resposta afirmativa em favor da aprovação de um ato, a AR e o GOV devem
aprovar num prazo não superior a 90 ou a 60 dias, a Convenção Internacional ou ato legislativo
de sentido correspondente à decisão referendária.

O PR não pode vetar um ato legislativo ou recusar a ratificação de Convenção Internacional


aprovados na sequência de um ato referendário sentido positivo (art.º 242 da lei do
referendo), com fundamento na sua discordância em relação ao conteúdo da norma que
resultar da decisão referendária.

33
Poderá, contudo, exercer o veto fundado numa discordância em relação a normas do diploma
que não resultem diretamente do sentido do referendo. Em caso de dúvida de
constitucionalidade que envolva normas que traduzam o sentido de referendário o PR pode
promover a fiscalização preventiva do ato legislativo.

No caso dos órgãos competentes não emitirem o ato dentro do prazo legal para o efeito,
verificar-se-ia uma inconstitucionalidade por omissão, cuja apreciação não caberia, na moldura
do art.º 283 que tem por objeto, apenas, normas constitucionais não exequíveis por si
próprias.

Se, ao invés de um cenário de inação, foi aprovada uma lei ou Convenção desconforme com o
sentido positivo do referendo, abrem-se duas opções:

 Se o ato legislativo vier a ser aprovado depois da renovação da AR por nova eleição e
formação de novo GOV, não haverá obstáculos à sua validade;
 Se o ato normativo for aprovado em divergência com os limites circunstanciais
referidos no número anterior, ele violará, no nosso entendimento, o art.º 240 da lei do
referendo que determina a vinculatividade do ato referendário, sendo como tal, ilegal.

5.2. As resoluções normativas

A. Introdução

A Constituição reporta-se à figura da resolução como um ato de competência da AR e das


ALRA.

No que concerne às resoluções da AR, verifica-se o facto de o art.º 166/5 configurar como
forma de ato do Parlamento consagrada residualmente para decisões que não revistam outro
título ou legenda implicam que possam ser qualificadas como um ato da função política em
sentido estrito. Isto, na medida em que não é um ato legislativo e dado o facto da AR não
exercer a função administrativa (com eficácia externa) nem tão pouco a função jurisdicional.

Importa sublinhar o facto da Constituição não determinar um conteúdo específico para todas
as resoluções: sendo atos da função política, alguns deles revestem natureza de atos políticos
e outros a de normas políticas atípicas-

No que toca ao GOV as resoluções do Conselho de ministros não têm consagração


constitucional, encontrando-se, todavia, a sua emissão prevista no art.º 138/3/b do CPA. Um
atributo comum a todas as resoluções referidas é o de que não se encontram sujeitas a
promulgação pelo PR.

B. Os regimentos dos órgãos colegiais

Os regimentos dos órgãos colegiais constituem normas estatutárias interna corporis e como
tal, regras relativas à organização e funcionamento dos mesmos centros de poder, podendo
ainda dispor sobre os direitos e deveres dos seus titulares.

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No que toca aos órgãos constitucionais, as normas regimentais têm uma função subsidiária em
face da Constituição e da lei. Por exemplo, existem diversas e importantes regras
constitucionais relativas à organização, competências e funcionamento da AR, bem como em
relação ao estatuto dos deputados, assumindo o RAR um papel complementar em face destas
disposições da lei fundamental. Quanto ao GOV, o art.º 198/2 remete para a reserva de
decreto-lei a matéria de organização interna do executivo.

No que tange às ALRA existem sobre elas disposições organizativas e funcionais da CRP e nos
estatutos político-administrativos, o que não prejudica que disposições de detalhe, com menor
relevo político, sejam remetidas para o Regimento daquele órgão. De qualquer forma as
normas regimentais devem observar não apenas o disposto na Constituição, mas também nos
estatutos, podendo ser julgadas ilegais ao abrigo do art.º 281/c, se violarem as normas
estatutárias.

As normas regimentais não integram a reserva de lei nem assumem natureza legislativa. A AR
aprova-as, nos termos constitucionais, sob a forma de resolução e o Conselho de ministros,
sob a forma de resolução do Conselho de ministros.

Como as resoluções integram o exercício da função política e dado que se está perante normas
jurídicas e cuja função é complementar à Constituição quanto à organização e funcionamento
de órgãos constitucionais de natureza colegial, poderemos qualificar os regimentos como
normas atípicas da função política em sentido estrito.

Enquanto, o RAR e os regimentos das ALRA são atos normativos com relevância constitucional,
já o Regimento do Conselho de ministros não possui relevância constitucional.

As regras regimentais são normas jurídico-públicas com eficácia externa. O art.º 119/f
determina a publicação no Diário da República dos regimentos da AR, das ALRA e do CM.

No que respeita à sua vinculação jurídica, esta surge claramente diminuída no que concerne à
sua parametricidade em relação aos atos políticos e o legislativos.

Embora as disposições regimentais sejam normas sobre a normação, ou seja, contêm critérios
de decisão sobre o procedimento de produção de outras normas, sobre a sua revelação e
sobre a sua qualificação, o facto é que a Constituição não lhes confere caráter vinculativo. Não
é possível atribuir aos regimentos, ao abrigo do art.º 112/3 “valor reforçado”. Neste sentido a
violação das regras regimentais por atos legislativos não implica a validade destes, com
fundamento em ilegalidade com possibilidade de esta ser declarada pelo TC, pelo que as
normas regimentais detêm uma eficácia essencialmente ordenadora. Isto, sem prejuízo dos
órgãos da AR, mormente a mesa de AR, terem sempre a faculdade de rejeitar projetos de leis
que violem normas regimentais.

Ainda assim, cumpre verificar que, sempre que determinada matéria específica seja inserida
pela Constituição em reserva de Regimento, a sua regulação pelo lei implica a
inconstitucionalidade desta última, por violação das normas constitucionais que determinam a
mesma reserva (art.º 160/b, que cria uma reserva regimental no que tange à determinação do
número máximo de faltas que um deputado poderá ter).

Impõem-se, ainda, referir que os regimentos podem revelar num juízo de constitucionalidade
sobre uma lei, como elemento instrutório. Certas violações regimentais podem ser elementos
relevantes para juízos formais de inconstitucionalidade relativamente a atos legislativos
parlamentares viciados na sua votação na generalidade, especialidade e votação final global.

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C. Resoluções parlamentares incidentes sobre o conteúdo e sobre a
eficácia de outros atos normativos

a) Apreciação parlamentar para efeito de cessação ou suspensão de eficácia de decretos-


leis e decretos legislativos regionais

Considera o TC Que assumem natureza normativa as resoluções da AR que determinam a


cessação de vigência ou a suspensão de decretos-leis, bem como de decretos legislativos
regionais autorizados (art.º 169 e 227/4). Essas resoluções são aprovadas no âmbito do
instituto da apreciação parlamentar de atos legislativos emanados de outros órgãos, o qual
conforma um controlo interorgânico exercido no âmbito da função política mas que garante
instrumentalmente o primado da AR quanto ao exercício da atividade legislativa.

Estas resoluções corporizam uma derrogação expressa ao princípio da tipicidade da lei (art.º
112/5) na medida em que, apesar de não revestirem forma de lei, determinam uma cessação
de vigência de ato legislativos ou a sua suspensão. Ainda assim, não podem as mesmas
resoluções assumir o conteúdo material típico de um ato legislativo e fixar alterações a
decretos-leis e decretos legislativos regionais, decorrendo do art.º 169/2 que essas alterações
no processo de apreciação parlamentar devem operar sob forma de lei.

A serem consideradas normas jurídicas em razão dos efeitos constitutivos que imprimem no
ordenamento ao exprimirem o efeito abrogativo de uma norma, estas resoluções poderão ser
suscetíveis de fiscalização sucessiva da sua constitucionalidade (art.º 277/1).

b) Resoluções que aprovam tratados

No Campo das resoluções que aprovam e rececionam o conteúdo de outras normas,


assumindo caráter normativo, haverá a destacar as resoluções da AR que aprovam tratados
internacionais (art.º 166/6), encontrando-se nessa qualidade sujeitas a fiscalização preventiva
da sua constitucionalidade (art.º 278/1).

5.3. A declaração dos estados de exceção

A. Introdução à figura e pressupostos

Quanto confrontado com a ameaça de lesão ou com a própria lesão de bens jurídicos mais
essenciais do ordenamento estadual (tais como a integridade territorial do Estado, a defesa da
sua soberania, a proteção constitucional contra um ato de força ou a salvaguarda de pessoas e
bens antes situações calamitosas ou catastróficas) o poder político pode, se a legalidade
ordinária se mostrar insuficiente para a sua defesa, sacrificar transitoriamente certos bens
jurídicos menos essenciais do que aqueles.

36
O estado de sítio e o estado de emergência configuram Estados de exceção integrados numa
“legalidades de crise”, cujo regime e efeitos principais se encontram regulados no art.º 19.

Podem, deste modo, os dois institutos, integrar a figura de estado público de necessidade
justificante. O sacrifício temporário de um conjunto delimitado de bens jurídicos, traduzido na
supressão de direitos, liberdades e garantias, é justificado pela necessidade de preservar bens
mais importantes, os quais poderiam comportar o sacrifício mais agravado ou permanente dos
primeiros.

Os Estados de sítio e de emergência distinguem-se na ordem constitucional portuguesa, em


razão de um conjunto de fatores:

 Os pressupostos da declaração dos Estados excecionais que revestem caráter comum


(art.º 19/2) devem assumir “menos gravidade” no estado de emergência do que no
Estado de sítio, pelo que a opção por um ou por outro instituto, considerada essa
gravidade, deve ser feita no respeito pelo princípio da proporcionalidade (art.º 19/4);
 A declaração de Estado de emergência reveste carácter parcial no tocante aos direitos
fundamentais que devem ser afetados (art.º 19/3);
 Nos termos da lei orgânica que regula o respetivo regime, enquanto a declaração do
Estado de sítio envolve, atenta a maior gravidade dos seus fundamentos, a
intervenção ativa das forças armadas na respetiva execução, essa mesma intervenção
não tem lugar no Estado de emergência, onde a referida intervenção é eventual e
subsidiária.

B. A natureza e conteúdo do decreto presidencial de declaração

Compete exclusivamente ao PR a declaração dos Estados de exceção (art.º 134/d) a qual,


todavia, se conforma como um ato complexo já que implica a concorrência de atos de controlo
de outros órgãos constitucionais para que possa validamente produzir os seus efeitos.

A declaração é uma norma atípica da função política, atenta:

 A natureza normativa do decreto presidencial, traduzida na fixação de critérios de


decisão de conteúdo geral que determinem especificadamente a suspensão, no todo
ou em parte, de direitos, liberdades e garantias suscetíveis de serem abrangidos na
mesma declaração, bem como a fixação dos termos e dos limites em que se processa a
suspensão de cada um dos direitos;
 A natureza não legislativa do decreto já que o chefe de Estado não legisla e o decreto
não se encontra incluído na reserva de lei, o que em conjugação com a liberdade
primária que subjaz à prática do ato, bem como ao seu conteúdo necessário e ainda, à
preferência das suas regras sobre as leis e outras normas da função política permite
extrair o conteúdo político-normativo do referido ato;
 A natureza vinculada da referida norma à CRP e a lei do Estado de sítio e de
emergência incluída na reserva de lei orgânica (art.º 19/7 e 164/e).

Como ato normativo, o decreto esses ativa de fiscalização sucessiva, concreto e abstrata da
sua constitucionalidade nos termos no art.º 277. Já a fiscalização da sua legalidade, por
inobservância da lei do Estado de sítio e de emergência, não parece possível, na medida em

37
que, salvo caso de referendo, apenas os atos legislativos podem ser objeto de fiscalização da
legalidade, com fundamento em violação da lei com valor reforçado (art.º 280/b).

C. Declaração e execução dos estados de exceção

a) Separação funcional de duas atividades jurídicas diferenciadas

A Declaração e execução dos estados de exceção integram um só instituto jurídico, que


consiste na imposição temporária de um Estado Público da necessidade, sem prejuízo mesmo
instituto envolver atos promanados de funções do Estado distintas.

Declaração e execução da declaração constituem atividades autónomas: a primeira consiste no


exercício de um poder normativo primário e subordinante e a segunda envolve o exercício de
poderes de autoridade que concretizam a primeira numa posição subordinada. A par da
Constituição (art.º 19/ 5 e 8), a lei orgânica do Estado de sítio e estado de emergência, no
plano literal e sistemático, é perfeitamente clara quando diferencia o regime da declaração em
relação à execução da declaração.

A declaração do estado de sitio ou de estado de emergência consiste numa norma política da


competência presidencial, com força e parametricidade afins da lei, que, contudo como ato
complexo, compreende uma audição obrigatória e não vinculativa do GOV e uma autorização
política da AR (art.º 134/d e 138). Na perfeição jurídica do ato de declaração do Estado de
exceção, combinam-se, apenas três atos da função política em sentido estrito, oriundos desses
três atos de soberania.

Já a execução do decreto presidencial que declara os Estados de exceção compete ao GOV


NOS termos do art.º 17 da lei, bem como a autoridades militares na vigência do Estado de sítio
(art.º 8/2 e 4) e, nas regiões autónomas, ao RR se for decretado estado de emergência (art.º
20/4).

Na execução da declaração concorrem atos legislativos do GOV com uma pluralidade de


normas regulamentares e de atos administrativos governamentais e de outras autoridades
investidas nessa competência executiva.

No processo de declaração, o GOV tem um protagonismo institucional mais apagado. Já na


execução o PR passa a assumir um papel mais discreto junto com a AR enquanto o GOV passa
a ser o órgão predominante que se encontra investido na competência para executar a
referida declaração (art.º 17 da LOESEE).

Tratando-se de estado de sítio, o decreto deve estabelecer os termos que as autoridades civis
são subordinadas ou substituídas por autoridades militares (art.º 8/2 LOESEE), devendo as
forças de segurança ficar sob o comando das forças armadas (art.º 8/3) o que significa que,
embora sob a direção do GOV, as forças armadas têm competência para dar execução, com
discricionariedade, a esse estado de exceção.

A densidade reguladora do decreto presidencial que contém a declaração assume caráter


variável. O PR, dentro da sua liberdade político-normativa ditada por exigências de
necessidade, pode optar, num nível máximo de pormenorização, por um decreto detalhado.
Isto porque a “especificação” dos direitos suspensos a que o art.º 19/5 faz alusão pode
implicar uma disciplina pormenorizada sobre os termos em que o direito fundamental será

38
afetado. Essa especificação pode oscilar entre uma paralisação de todo um direito e
paralisações parciais dependentes de critérios normativos ínsitos na declaração.

Mas o PR pode preferir, em alternativa, a adoção de uma declaração menos densa, que se
limite a autorizar o GOV e outras autoridades a suspender certos direitos, fixando critérios que
balizem os termos dessa afetação, mas concedendo margem para uma disciplina mais
inovadora no processo de execução. Foi o que sucedeu com as sucessivas declarações de
emergência, adotadas durante a pandemia. O PR optou por uma declaração de Estado de
exceção, pouco densa embora não minimalista, habilitando o GOV a assumir a
responsabilidade concreta de determinar os termos específicos da aceitação de cada direito.

Existe o entendimento expresso num aresto recente do TC tirado em controlo concreto, que
estima que em estado de exceção, o GOV, sendo o órgão responsável pela execução da
declaração, possa a deter poderes extraordinários que lhe permitem afetar direitos e
liberdades sem autorização da AR e do PR.

1º É um facto que existe uma separação funcional sobre o poder de declaração presidencial Do
Estado de exceção pelo presente e o poder de execução dessa declaração, o qual é cometido,
não apenas ao GOV, mas às autoridades legalmente responsáveis por essa tarefa.

A Constituição não comete explicitamente ao GOV a tarefa de execução da declaração, pois


nem sempre o menciona, sendo a correspondente menção feita na lei, a LOESEE, que coloca
no art.º 17 o GOV num quadro de proeminência institucional mas sem exclusividade no
exercício desse poder. Assim, a lei prevê que em estado de sítio as autoridades militares
possam assumir funções subordinadas em face das autoridades civis ou mesmo competências
substitutivas das segundas na execução da esse estado excecional. Por outro lado, nas regiões
autónomas, a execução do Estado de emergência cabe ao RR em coordenação com o GR, sem
prejuízo da posição supra-ordenada do GOV.

É difícil falar nenhuma estrita divisão de poderes com necessário acento constitucional
(art.º110/2) entre o PR e o GOV no contexto da declaração e execução Dos Estados de exceção
se a Constituição não menciona o GOV como órgão de execução. Por hipótese, a LOESEE
poderia confiar a competência de execução administrativa Do Estado de exceção a um órgão
Comissarial da República, que não ao GOV, circunscrevendo os poderes deste, como órgão
superior da administração pública a faculdade de supervisão. Se assim sucede, não é
convincente falar numa divisão de poderes que resulte linearmente e tão só da Constituição,
mas também e necessariamente da lei.

Não sendo apenas o GOV da autoridade competente para adotar, nos termos do art.º 19/8, a
providência necessária e adequada ao restabelecimento da normalidade constitucional é
questionável que o GOV disponha de um título competencial tão vasto e o livre. As suas
competências quanto à tomada das providências necessárias e adequadas à reposição da
normalidade constitucional não podem ser entendidas isoladamente, mas sim lidas numa
conjunção sistemática.

Em primeiro lugar, a as competências de execução da declaração devem ser exercidas dentro


dos limites da mesma declaração, dado que é a declaração que confere às autoridades de
execução competência para decidirem (art.º 19/8). Em segundo lugar, a declaração só pode
alterar a normalidade constitucional nos termos da Constituição e da LOESEE (art.º 19/7) não
podendo, em sentido lato, afetar o núcleo da competência dos órgãos de soberania ou
autorizar que em sede de execução administrativa a mesma seja afetada.

39
Daqui resulta que, podendo a declaração, através da sua própria normalização, suprir a
necessidade de o GOV se vir forçado a obter de autorizações legislativas parlamentares para
afetar suspensiva e inovatoriamente direitos de liberdade, não poderá a mesma, autorizar
medidas que impliquem uma usurpação de poderes entre órgãos de soberania.

2º O PR não se encontra restrito pela Constituição a enumerar os direitos suscetíveis de serem


suspensos e estabelecer alguns critérios e limites circunstanciais relativamente à suspensão de
cada direito, como o fez o PR nas sucessivas deliberações de Estado de emergência que
decretou em 2020. O art.º 19/5 estabelece que o PR na declaração deve conter a
“especificação” dos direitos suspensos, e essa especificação não se circunscreve a uma
listagem desses direitos, pois pode envolver a fixação de critérios reitores dessa suspensão,
envolvendo um plano de detalhe sobre os termos que balizam a mesma afetação, contando
que implique uma disciplina primária.

Se assim é, no cenário de ser decretada uma declaração particularmente pormenorizada e


densificada, a competência do GOV e de outras autoridades responsáveis pela execução será
mais limitada na concretização dessas normas de escopo suspensivo, podendo no limite, tomar
apenas medidas de conteúdo regulamentar, com escassa novidade.

Diversamente, se a declaração for menos densa e fundamentalmente autorizativa o GOV pode


alargar as suas competências no plano da concretização da referida declaração, adotando
normas de conteúdo mais inovador a par de outras normas de conteúdo secundário e viés
executivista.

Essas duas hipóteses alternativas permitem excluir uma estrita divisão de competências entre
o PR e o GOV e antever, diversamente, um sistema de vasos comunicantes em que os poderes
de execução do GOV se alargam e se restringem em razão do detalhe do conteúdo da
declaração.

3º É certo que o estado de exceção implica uma concentração extraordinária do poder


executivo fundada no art.º 19/8.

No entanto existem duvidas relativamente ao facto de o GOV não necessitar de nenhuma


autorização da AR ou do PR para decretar as normas que entender necessárias em matérias
que integram a reserva de lei parlamentar.

Concorda-se que em estado de sítio ou de emergência, as autorizações de execução da


declaração encontram-se investidas em competências normativas que, no respeito pelo objeto
e limites da declaração, e encontram habilitadas a dispor sobre matérias objeto da reserva
legislativa parlamentar.

A declaração, por razões de urgência e estado público de necessidade, opera atipicamente


como uma variante de “autorização legislativa atípica” que investe temporariamente as
autoridades responsáveis pela execução a tomar medidas necessárias para o retorno à
normalidade.

Dito isto, não é possível ler o acórdão no sentido de o GOV não necessitar de autorização de
PR para editar as medidas que entender necessárias. A autorização presidencial consta da
declaração e a execução governamental encontra-se limitada em razão dos critérios que o PR
determine sobre a suspensão de cada direito.

40
Daí que, conjugado o art.º 19 nº 7 e 8, considera-se que se a declaração não credenciar as
autoridades de ”execução” no sentido de agravarem penas relativas a certos crimes, e essa
faculdade não resultar da LOESEE, esse agravamento não tem cobertura normativa e é
suspeito de inconstitucionalidade. Por isso mesmo, parece ser excessivo entender que o GOV,
ou outras autoridades de execução da declaração, possam com um título competencial
implícito, exercer uma espécie de “plenos poderes”, embora mitigados, criar ou agravar penas,
à margem do princípio da legalidade penal.

4º Por outro lado, as formas normativas de que reveste o ato de a execução não são
indiferentes para a ordem constitucional, não podendo o legado título que alarga os poderes
governamentais de execução permitir, sobretudo sem credencial constitucional, derrogações
ao princípio da tipicidade da lei, deslegalizações inadmissíveis ou fenómeno de usurpação de
poderes.

Não é, assim, pacífico, que o GOV possa aprovar decretos emitidos ao abrigo da sua
competência administrativa.

A necessidade de ser preservada como tem sido os órgãos de soberania, sobretudo no que
respeita às funções estatais tituladas pelos mesmos não pode admitir formas de usurpação de
poderes, como seria o caso de regulamentos administrativos independentes a dispor,
inovatoriamente, na reserva de lei, afetando direitos, e depois lados e garantias.

Se a norma do art.º 18/3 impõe reserva formal de lei parlamentar ou decreto-lei autorizado no
caso de se vir restringir um direito de liberdade, que implica sempre uma afetação parcial
desfavorável do exercício de um direito, com salvaguarda do conteúdo essencial, como pode
ser defensável que baste um mero regulamento para a suspensão do mesmo direito, a qual
pode envolver no limite a sua paralisação total, incluindo o núcleo essencial?

Parece evidente que a indiferença parente as formas normativas não faz sentido. A afetação
parcial ou total de um direito em norma inovadora e com conteúdo político é reservada de ato
legislativo, ato que contém um critério político de decisão. Daí ser mais do que duvidoso, que é
um regulamento possa agravar a pena de um crime, tanto mais que o princípio da legalidade
penal (art.º 29) não foi suspenso. O GOV deve utilizar para o efeito a forma de decreto-lei.

Por outro lado, os nº 5 a t do art.º 112, tão pouco foram suspensos, vedam a hipótese de um
regulamento derrogar leis ou ser emitidos sem habilitação legal, ou num quadro de exceção,
sem amparo na declaração.

D. Tramitação de um ato normativo complexo

O ato de declaração começa por se encontra sujeito, no plano instrutório, a parecer


obrigatório, mas não vinculativo do GOV, nos termos na alínea 197/f e 138/l.

É seguidamente o mesmo ato sujeito uma habilitação política da AR, a qual é competente para
autorizar, ou não, a declaração dos Estados excecionais, mediante resolução art.º 161/l
conjugado com art.º 166/5 e 138/1.

Dispõe o art.º 16/1 da lei orgânica nº1/2012, de 11-05 que a declaração deve conter a
delimitação pormenorizada do âmbito da autorização concebida. Por seu turno, o sobredito
art.º 14 elenca o conteúdo que a declaração deve corporizam.

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Se é um facto que a resolução assumiu o lugar previamente ocupado pela lei que autorizava a
declaração, no plano “concretizador” do conteúdo desta última, não se vê com que
fundamento se projeta a eficácia normativa do conteúdo concretizador da mesma resolução.

Em primeiro lugar, a Constituição limita-se a atribuir a normatividade ao decreto presidencial


que contém a referida declaração (art.º 119/5 e 8) e não ao ato de organização parlamentar
cujo conteúdo a Constituição não me define nem outorga normativamente. Uma lei orgânica
não pode atribuir ao conteúdo de uma resolução puramente autorizativa, um conteúdo
normativo disciplinador sobre a delimitação da autorização e com a eventual precedência
sobre decretos-leis de concretização da declaração, já que essa opção, para além de não ser
autorizada, violaria o art.º 112/5.

Em segundo lugar, a resolução de autorização não pode incorporar normas regulamentadoras


da declaração que são de reserva de competência das autoridades de execução (art.º 19/8).
Como tal, a natureza condicionante do ato autorizativo ou habilitante parece incompatível e
contraditória com a simultânea natureza concretizadora e condicionada que o art.º 16 da lei
orgânica lhe atribui: seria a mesma situação de uma lei de autorização legislativa que
habilitasse a emissão de um decreto-lei, como a sua norma-pressuposto e, simultaneamente,
assumisse a natureza de regulamento do diploma autorizado.

Em terceiro lugar, na medida em que a Constituição atribui diretamente natureza normativa


inovadora ao conteúdo da declaração presidencial, não pode, objetivamente, a resolução
autorizativa contrariar o seu conteúdo, interpretá-lo, limitá-lo ou esvaziar o seu alcance
através da sobredita normação concretizadora. As razões que impedem a resolução de
confirmação da declaração (art.º 16/2) de “restringir o conteúdo do decreto de declaração”
devem aplicar-se à resolução autorizativa, por entidade de razão.

Quando a AR não se encontrar reunida ou não for possível reuni-la imediatamente, a utilização
é dada pela respetiva Comissão Permanente, dependo referido ato ser confirmado pelo
Plenário, quando for possível reuni-lo (art.º 138/1 e 2).

Obtida a autorização, carece ainda a declaração de ser referendada ministerialmente, no


quadro do controlo certificatório (art.º 140/1), antes da respetiva publicação do DR.

5.4. Normas da função administrativa: o regulamento

A. Breve introdução ao poder regulamentar

A Administração pública não limita a sua atividade à resolução de problemas concretos


inerentes à satisfação das necessidades coletivas. Ela supõe a edição de normas gerais e
abstratas que, seja em execução das leis, seja habitadas por estas, regulam as relações
jurídicas administrativas, constituindo fundamento para a prática de atos administrativos.
Estas normas designam-se por regulamentos administrativos.

O art.º 135 do código do procedimento legislativo define os regulamentos como “as normas
jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes administrativos, visem produzir
efeitos jurídicos externos.

Nesta definição podemos encontrar:

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 O elemento substancial: os regulamentos são normas jurídicas gerais e abstratas,
daqui resulta o conhecimento, a contrario sensu, de que há em direito Público normas
jurídicas, desprovidas de generalidade e abstração bem como o entendimento,
segundo o qual não são regulamentos para efeitos da aplicação do CPA, os atos
administrativos gerais ou os regulamentos desprovidos de aplicação permanente;
 O elemento funcional: os regulamentos são normas produzidas no “exercício de
poderes jurídico-administrativos”, trata-se de uma invocação dos poderes funcionais
de autoridade que, no exercício da atividade administrativa, têm a faculdade de
produzir normas regulamentares, as quais, em razão desse elemento de tipicidade, se
distinguem de outras categorias normativas. O elemento “orgânico” não se encontra
expressamente individualizado, tal como sucede em outras definições doutrinais, mas
está implícito, a noção de poder administrativo alude a órgãos ou autoridades públicas
bem como a entidades privadas que, por habilitação legal, podem exercer, na esfera
das suas competências, a função administrativa;
 Atributo consequencial no âmbito da eficácia: de acordo com a definição legal, os
regulamentos são normas administrativas que visam “produzir efeitos externos”, ou
seja, só serão regulamentos para efeitos da aplicação do CPA as normas
administrativas sujeitas a publicação e que, para além desse requisito, sejam aptas
para produzir eficácia intersubjetiva e plurissubjetivas. Por conseguinte, as normas dos
chamados regulamentos internos que exprimem a sua eficácia apenas no interior de
uma pessoa coletiva ou de um órgão da administração, são privados de natureza
regulamentar para efeito da aplicação do código.

B. Parâmetros normativos das normas regulamentares

O art.º 143 do CPA inova ao elencar um conjunto de normas que constituem parâmetro de
validade dos regulamentos. Esse conjunto em sentido amplo, poderá ser topicamente
designado por “bloco de legalidade” dos regulamentos administrativos. Trata-se da
Constituição, do direito europeu e das convenções internacionais, da lei ordinária, dos
princípios gerais do direito administrativo, bem como de outros regulamentos de hierarquia
superior ou investidos numa posição funcional de prevalência (art.º 143/2 CPA).

C. Sinopse sobre os parâmetros de legalidade dos regulamentos

No que respeita aos pressupostos de aprovação e aos níveis de limitação legal da densidade
reguladora dos regulamentos, a ordem jurídica portuguesa prevê a existência de:

 Regulamentos independentes, os quais podem conter disciplinas tendencial ou


parcialmente inovadoras, em termos próximos das leis (art.º136 nº2 conjugado com o
nº3 CPA), carecendo contudo, pelo menos, para poderem ser editados, que uma lei
defina a competência objetiva ou subjetiva para a sua emissão devendo os mesmos
regulamentos independentes assumir a forma de decreto regulamentar se forem
aprovados pelo GOV (art.º 112/6);
 Regulamentos autónomos, que são normas administrativas (independentes ou de
execução) emitidas por órgãos integrados na administração autónoma, a qual, por

43
definição, prossegue interesses próprios, como será o caso das autoridades,
universidades (art.º 76/2) e regiões com autonomia político-administrativa (art.º
227/d);
 Regulamentos de execução, são os que dispõem de menor densidade reguladora e que
se limitam a complementar secundariamente ou a concretizar as normas legais
(art.º112/7).

Devem, assim, sob pena de inconstitucionalidade formal, os regulamentos de execução invocar


expressamente a lei que complementam ou concretizam e os regulamentos independentes
proceder à invocação da lei que define a competência para a sua produção. Essa evocação não
necessita de figurar nenhuma parte ou trecho determinado de norma regulamentar, bastando
que a menção à lei figura no texto de norma administrativa, mormente no preâmbulo ou no
preceituado.

A norma do art.º 112/6 impõe que os regulamentos independentes do GOV assumam a forma
de decreto regulamentar. Assim sendo, infere-se que será inconstitucional, toda a norma
legislativa que, sem definir um regime jurídico, remeta para o outro regulamento do GOV que
não o decreto regulamentar a disciplina desse mesmo regime, limitando-se a estabelecer é
competência objetiva e subjetiva que a emissão da lei regulamentar corresponde. Cumpre
assinalar uma tentação do legislador em prever a emissão de regulamentos independentes
desacompanhados de forma constitucionalmente devida, tendo em vista contornar a
submissão dos decretos regulamentares ao controlo do mérito do PR, traduzido, na sua
promulgação e veto. O TC, tem sancionado frequentemente essa conduta evasiva ou
desafiante. a qual é usualmente protagonizada por portarias.

A Constituição não admite regulamentos delegados, ou seja, normas administrativas que,


mediante uma habilitação ou utilização legal, derroguem, integrem ou interpretem os atos
legislativos, pois tal hipótese é proibida pelo princípio da tipicidade da lei (art.º112/5).

D. Introdução às relações de hierarquia e lateralidade entre regulamentos


administrativos

A hierarquia entre regulamentos estriba se nos seguintes critérios: a posição hierárquica ou


subordinante do órgão competente; a sua solenidade da forma; a inovação material; e o
âmbito espacial de aplicação em domínios concorrenciais alternados e paralelos.

Na órbita dos regulamentos governamentais, a norma do art.º 138/3 do CPA fixa o regime da
ordem de prevalência: 1º decretos regulamentares; 2º resoluções normativas do Conselho de
ministros; 3º portarias; e 4º despachos normativos.

A hierarquia do decreto regulamentar está sustentado nos critérios orgânico, formal e


material; a hierarquia da resolução do Conselho de ministros no critério orgânico e formal; e a
hierarquia das portarias sobre os despachos normativos estaria fundada num critério orgânico
(a portaria é imputada ao GOV e o despacho normativo a um membro do GOV) e num mero
critério solenidades de forma, criados pelo art.º 138/3 CPA.

A norma do art.º 138 fixa os critérios reitores das relações de prevalência entre regulamentos
do Estado, regiões autónomas, autarquias locais e demais entidades com autonomia
regulamentar.

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Importa, tecer considerações sobre o enquadramento das relações jurídicas entre
regulamentos governamentais, das regiões e das autarquias:

 Hierarquia, competência e coordenação como pressuposto da aplicação preferencial.


o Nas relações entre regulamentos do Estado e outras coletividades territoriais
autónomas, a incidência do critério hierárquico é limitada pelo incidência do
critério de competência. Desta combinação resultam nomeadamente: relações
de lateralidade onde apenas opera o critério da competência (que ocorre
sempre que a Constituição e a lei atribuam a um dado ente poderes exclusivos
ou próprios de regulação de um dado domínio material num determinado
âmbito territorial); e as relações de preferência aplicativa, mas não de
revogação, dos regulamentos de órgãos de grau superior sobre os órgãos de
grau inferior em domínios sobreponíveis de concorrência paralela, preferência
que exprime uma manifestação atenuada de prevalência hierárquica.
 Diferentes cenários de prevalência em sede de competências concorrenciais e de
competências exclusivas
o Na sequência do que acabou de se afirmar, de acordo com o art.º 138/1 e 2 do
CPA, as relações de prevalência estabelecidas em favor dos regulamentos do
GOV sobre os das regiões e autarquias operam no domínio das competências
concorrentes, ou seja, em matéria onde possam confluir regulamentos de
distintas pessoas coletivas, por vezes em níveis ou estratos diferentes em
termos de densidade reguladora, sendo esses níveis separados por fronteiras
imprecisas;
o Se se estiver, ao invés perante uma competência exclusiva que a Constituição
ou a lei atribuam a uma região ou autarquia esse regime de prevalência já não
se aplica. Pontificará, ao invés, uma incidência do princípio da competência
deixando de haver fundamento para a força maior do regulamento do GOV,
independentemente do seu grau hierárquico.
 Hierarquia funcional e especialidade como fundamento da operatividade de uma
cláusula de conflitos
o Mas, mesmo em sede das relações antirregulamentares de âmbito
concorrencial, a circunstância do art.º 138/1 do CPA admitir que a prevalência
operada em favor dos regulamentos do GOV não ocorrerá no caso de os
regulamentos dos entes menores serem normas especiais, afasta a aplicação
de um critério de hierarquia puramente formal das referidas normas estatais.
Não existe, neste âmbito, uma relação de hierarquia formal (em que a norma
superior revoga ou condiciona a inferior), mas uma variante atenuada de
hierarquia material associada a uma cláusula de aplicação preferencial, com
características próprias, na matéria das relações entre planos territoriais e
como alguns designam de “hierarquia flexível”;
o A aplicação preferencial exclui, em regra, a revogação, ajustando-se a um
quadro jurídico respeitador de repartição de atribuições e competências entre
diferentes coletividades que não se posicionam entre si numa relação de
hierarquia formal;
 Relações entre regulamentos de autarquias de distinto grau
o O regime de prevalência exposto, centrado na aplicação preferente, é
transponível para a prevalência dos regulamentos municipais sobre os das
freguesias;

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 Regimes especiais: os regulamentos em matéria de ordenamento do território e
urbanismo
o Estas disposições gerais do CPA só se aplicarão no domínio especial das
relações entre regulamentos governamentais e de locais, no âmbito da
legislação sobre o ordenamento do território e urbanismo, nos casos em que
esta legislação especial exiba lacunas. Não houve uma intenção do CPA de
derrogar a legislação especial existente sobre a matéria, a respeito de relações
entre planos aprovados sob a forma regulamentar.

E. Tópicos sobre a relação de tensão e complementaridade entre o


regulamento e a lei

É inequívoco que, pese o facto de lei e regulamento serem atos normativos, atento a critério
funcional de norma adotada pelo TC, o regulamento é uma norma da administração que deve
respeitar a lei (art.º 143 do CPA).

A noção doutrinal administrativa ultrapassada segundo a qual o regulamento seria “lei em


sentido material” desintegra-se perante o que a Constituição e a lei dispõem sobre a natureza
dessas normas.

Em primeiro lugar, de acordo com o princípio da legalidade administrativa (art.º 266/2), o


regulamento como norma administrativa está subordinado hierarquicamente à lei e, por
consequente, não a pode revogar, integrar ou interpretar (art.º 112/5). Por outro lado, quando
emitido o regulamento deve invocar a lei que executa (art.º 112/7 e 199/c) ou a lei que define
a competência para a sua emissão, no caso de se tratar de um regulamento independente
(art.º 112/6).

Em segundo lugar, a justificar esta hierarquia encontra-se a diferença entre funções ao abrigo
das quais as duas categorias de normas são emitidas. A norma legislativa, por ser produzida no
respeito de uma função do estado primário e dominante, dispõe de um poder inovatório
inerente ao seu conteúdo político e à liberdade de conformação que assiste ao legislador. Já a
norma regulamentar emitida no âmbito de uma função secundária e subordinada por lei ou
vocacionada para a concretização desta última. Como tal o regulamento, ou se limita a
executar as leis, ou pode fixar regimes normativos com uma novidade limitada por força de
uma habilitação legal.

Em terceiro lugar, enquanto a lei, atenta a sua politicidade, pode assumir um conteúdo geral e
abstrato, geral e concreto ou individual e concreto, o regulamento é, como se observou, um
comando de conteúdo geral e abstrato que, de acordo com o art.º 135 do CPA, é editado no
exercício de poderes jurídico-administrativos e produz efeitos jurídicos externos.

Feita a distinção entre as duas normas, importa questionar se a lei, na sua densidade
reguladora, ou seja, na sua aptidão para descer ao detalhe, pode dispensar a emissão de
regulamentos e preocupar um domínio regulamentar? A concessão de uma reserva geral de
regulamento é afastada pela jurisprudência administrativa e pela jurisprudência constitucional.
Na verdade, nada impede que uma matéria suscetível de ser objeto de atividade
administrativa, como a regulamentação de leis, não possa, igualmente, se o objeto de lei da
AR.

46
Dito isto, existem domínios específicos de reserva de regulamento que são reconhecidos pela
Constituição nelas se compreendendo esferas de reserva regulamentar das regiões autónomas
(art.º 227/d), das autarquias locais (art.º 241) e das universidades (art.º 76/2). Nesses mesmos
domínios, uma lei excessivamente detalhada que retira sentido útil a normas editadas ao
abrigo da atividade de autoGOV desses entes públicos enfermará de inconstitucionalidade.

Outra questão consiste em saber se a lei pode revogar sempre um regulamento, fora das áreas
de domínio regulamentar reservado.

Estima o próprio TC, no Ac. nº 214/2011:

1. O poder regulatório conferido ao GOV não corresponde a qualquer reserva de


regulamento, no sentido de a lei não poder ultrapassar um determinado nível de
pormenorização e particularização e modo a deixar ao GOV um nível de complementação
normativa relativamente a cada uma das leis;
2. Mas, meu espaço não ocupado pelo legislativo cabe ao GOV determinar qual o conteúdo
do ato regulamentar exigido pela boa execução da lei. E isso só a ele compete no exercício
da competência administrativa, e quanto a este espaço, a AR só pode exercer as suas
competências de fiscalização;
3. As relações do GOV e da AR não são relações de subordinação hierárquica ou de
superintendência , pelo que não pode, o GOV ser vinculado a exercer o seu poder
regulamentar por instruções ou injunções AR nem esta pode transmutar a forma legislativa
num meio enviesado de exercício de competências de fiscalização, com esvaziamento do
núcleo essencial da posição constitucional do GOV;
4. Para o TC, se uma lei parlamentar, mantiver intocadas as normas legais que regem uma
atividade administrativa a ser prosseguida e se limitar a revogar, mesmo supressivamente,
um regulamento aprovado ao abrigo dessa legislação que o GOV deve executar, priva esse
órgão de soberania dos instrumentos que Constituição lhe reserva para prosseguir as
tarefas que neste domínio lhe são constitucionalmente cometidas violando o princípio da
separação de poderes.

Daqui o TC retira a ideia-força de que o ato legislativo parlamentar não pode revogar um
regulamento sem ter previamente revogado a norma legal que o habilitou. Para esta
orientação não estaria em causa a faculdade da lei, atenta a sua hierarquia, em poder revogar
um regulamento. O que lhe seria vedado seria proceder a essa revogação sem antes ter
revogado ou alterado o parâmetro legal onde o referido argumento se fundaria.

Finalmente, no caso de a lei parâmetro de um regulamento de execução for revogada será que
o mesmo regulamento caduca? O art.º 145/1 e 2 esclarecem que se verifica a mesma
caducidade com a revogação, mas que esta não é automática nem necessária. O regulamento
mantém-se em vigor se não for incompatível com a lei nova. Caso seja incompatível e não for
alterado, permanecerá também em vigor enquanto não for revogado ou modificado por outro
regulamento.

47
Parte II: O ordenamento jurídico português

Capítulo I: Ordenamento jurídico-constitucional e sistema


normativo: introdução

A expressão “ordem jurídica”, termo que a Constituição portuguesa vigente acolhe


expressamente (art.º 277/2), David a fórmula Latina a qual é definida como uma integração de
partes num conjunto dotado de coerência sistemática. Uma ordem jurídica integra,
necessariamente uma dimensão normativa, na medida em que não existe direito sem norma,
ou seja, sem um complexo de regras investidas de caráter coercivo.

As normas jurídicas reconduzem-se a órgãos, estes últimos operam na base de competências,


estas por sua vez entroncam em funções e, finalmente, as funções servem os fins do Estado.

Capítulo II: O ordenamento estadual como sistema jurídico geral


autojustificado

1. Ordenamento estadual como sistema fundado na Constituição

Deve-se, fundamentalmente, ao positivismo normativo, a primeira e mais sustentada conceção


de ordem jurídica como um sistema.

Sendo múltiplas as definições abstratas de sistema, podemos em abstrato identificá-lo como


um conjunto de elementos que se encontram associados e reciprocamente ordenados, no
respeito de exigências comuns de unidade interna.

A ordem jurídica interna do Estado como um sistema jurídico geral resulta da Constituição,
como fundamento da legitimação jurídica e política de um regime político e estatuto
organizatório do poder Público e das relações entre as pessoas e esse poder. Procedem, deste
modo, tanto as concessões pós-kelseanas do positivismo normativo como os contributos do
pensamento decisionista que fazem assentar na Constituição de um Estado soberano, a norma
de referência da ordem jurídica interna ou ornamento.

Nestes termos, a conceção adotada de ordenamento estadual, é a de sistema jurídico


autojustificado, porque fundado numa decisão política soberana e juridicamente
incondicionada que produz a norma de referência do mesmo sistema. Para além da influência
que esta concessão recebe do positivismo existencialista, é igualmente tributária do
positivismo inclusivo e do positivismo sociológico da teoria aberta dos sistemas.

Do decisionismo extrai-se a valoração do poder de autoridade como componente do


ordenamento, o caráter existencial e conformador da decisão constituinte soberana e a ideia
de ordenamento jurídico como um conjunto complexo ordenado de decisores e decisões. Já
do positivismo sociológico retira-se ideia de comunicação aberta entre ordenamento e sistema

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social bem como de outros sistemas jurídicos e culturais externos, realidade incontornável na
“idade da comunicação”. Finalmente, do positivismo integrador ou porque inclusive recolhe-se
o protagonismo da Constituição como norma de referência do ordenamento jurídico, a
distinção entre moral e direito e a possibilidade, de a Constituição poder incorporar e atribuir
caráter jurídico a alguns cânones morais de natureza objetiva, os quais podem constituir
fatores exógenos de integração e interpretação da lei fundamental.

2. As componentes do ordenamento: decisões e decisores

Sendo o ordenamento estadual um sistema regido pelo direito e radicando a essência do


mesmo direito, na existência de normas jurídicas, o facto é que não é possível reduzir as
componentes do referido sistema a um complexo de normas jurídicas, como defende o
positivismo normativo.

2.1. Decisões jurídicas

A positividade do ordenamento jurídico determina que o direito que releva no mesmo sistema
geral é o direito decidido. E, em sede constitucional, as normas de referência do sistema
integram tanto normas jurídicas como princípios jurídico-constitucionais.

A par de alguns princípios imanentes do direito, os princípios constitucionais são, eles próprios,
direito decidido e não direito revelado ou imposto por um dever-ser metapositivo. Mesmo no
que toca à enunciação de princípios que enunciem fatores morais, eles foram incorporados na
Constituição por uma decisão ou ato livre de vontade do legislador constitucional: foi esse que
decidiu fundar República na dignidade da pessoa humana (art.º 1) e não no primado do
Estado; que determinou a inviolabilidade da vida humana (art.º 24/1), abstendo-se de
consagrar a pena de morte e admitir a licitude do aborto e da eutanásia; e que proibiu tratos
ou penas cruéis (art.º 25/2).

É inequívoco que as normas jurídicas ocupam um papel central na configuração do


ordenamento, já que as mesmas, determinadas por factos sociais, não só regulam as relações
individuais coletivas e outras situações da vida, como acabam também por reger a sua própria
criação.

Contudo, torna-se óbvio que existem outros atos jurídicos não normativos que se revelam
essenciais ou relevantes para a génese, execução e para a validação das próprias normas
jurídicas. Trata-se por exemplo: dos atos políticos que condicionam quer a existência de leis,
quer a sua eficácia; dos atos administrativos e jurisdicionais que lhes dão aplicação concreta; e
das sentenças integradas nos processos de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade e
legalidade que, para além do seu importante papel interpretativo invalidam regras de direito
contrárias aos respetivos parâmetros.

São deste modo abrangidas nesta noção de “atos jurídicos”, todas as manifestações de
vontade das autoridades competentes que visam produzir efeitos jurídicos, ou seja, não
apenas as normas, mas os restantes atos jurídico-públicos que as executam, aplicam,
interpretam ou fiscalizam.

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Em função da natureza dos atos jurídicos em análise decorre a existência de sistemas
derivados do sistema jurídico geral: as normas configuram o sistema normativo, como
realidade principal e os restantes atos integram outros sistemas ou subsistemas conformados
pelo primeiro.

2.2. Os decisores jurídicos

Deve-se ao inconstitucionalismo e ao decisionismo a valorização da componente orgânico-


funcional do ordenamento. Na realidade, os atos jurídico-públicos não nascem de geração
espontânea: são o produto da vontade humana e esta exprime-se e formaliza-se em decisões
tomadas pelos titulares de órgãos que servem pessoas coletivas de direito público. Os órgãos
exprimem uma vontade funcional imputável a esses entes jurídicos personalizados (como o
estado, regiões, autarquias, autoridades competentes, institutos e empresas públicas), a qual
se traduz em decisões jurídicas que entroncam nas diversas funções ou atividades do Estado-
coletividade.

É a imputação dos atos jurídicos a uma decisão expressa por centros de poder competentes
que designamos de “autoridades” que lhes confere, sob um ponto de vista orgânico-foi mal,
positividade. Independentemente, do grau de vinculação imposto à atuação da autoridade que
pratica um ato, surge como determinante que aquela manifeste na sua decisão, uma intrínseca
autonomia ou mesmo liberdade na formação da respetiva vontade.

A ordem constitucional portuguesa distribui os diversos atos jurídico-públicos por centros de


poder, e ressalva na qualificação destes últimos, a partir do art.º 110, a natureza soberana de
alguns bem como critérios rigorosos para a delimitação das suas competências.

O “sistema político-institucional” conforma a dimensão orgânica do sistema jurídico global que


agrega, na base de uma relação coerente de separação e interdependência, as autoridades
competentes para a decisão em matéria de direito.

Sendo os centros de poder político soberanos articulados pela Constituição num conjunto
coerente pautado por relações de separação, colaboração e subordinação, designa-se como
sistema político-institucional.

3. Elementos de agregação do ordenamento: unidade, coerência articular e


relação de pertença

Os elementos que compõem o sistema jurídico geral não se aglomeram em complexos


caóticos, mas sim em conjuntos ordenados e articulados em torno de uma exigência de
unidade, a qual postula necessariamente de um imperativo de coerência.

O direito não é uma “simples justaposição de normas”, pelo que “a resolução do problema da
unidade dos sistemas é também a parte central da elaboração dos fundamentos existentes e
dos critérios estruturantes das ordens jurídicas.

50
A unidade agregadora de um sistema realizar-se-á por via da existência de um conjunto de
princípios estruturantes que asseguram exigências de unidade, coerência e vocação de
plenitude entre os elementos sistémicos.

Quanto aos critérios que determinam a coerência nas relações entre os atos editados pelas
autoridades referidas, eles deduzem-se da própria inesgotabilidade das funções jurídicas-
públicas, ou encontram-se explicitamente contidos em normas sobre a normação. Qualquer
sistema pressupõe existência de critérios que determinam relações de pertença dos seus
elementos específicos relativamente ao conjunto articulado que o mesmo abarca

51
Parte III: A lei no ordenamento português

Capítulo I: A teoria da lei

Seção I: Introdução ao subsistema legislativo

1. A aceção de lei na ordem jurídica portuguesa

1.1. A lei no constitucionalismo liberal

Os modelos político-institucionais vigentes no decurso do constitucionalismo liberal


compreenderam dois sistemas monistas (Constituições de 1822 e 1911) e dois sistemas
dualistas mitigados (carta constitucional de 1826 e Constituição de 1838).

Como referência comum a esses modelos no que respeita à caracterização da lei ordinária,
convirá a mencionar: a unidade formal da lei (o sistema constitucional previa uma única forma
de lei); uma noção material de ato legislativo centrado no seu conteúdo geral e abstrato; e a
presença de uma noção difusa de “força de lei” como misto de supremacia relacional
(superioridade hierárquica da lei sobre o restante direito ordinário) e de imperatividade
(obrigatoriedade do comando legal para os destinatários), própria de uma influência dos
sistemas monistas.

Tal como ensinava Schmitt, a generalidade (pluralidade indeterminada ou imediata


indeterminável de destinatários de um comando jurídico) e a abstração (aplicação sucessiva e
temporalmente repetível do mesmo comando jurídico a uma pluralidade de casos ou situações
concretas) eram predicados típicos da conceção dominante de lei no Estado liberal de direito,
pressuposto pelo princípio da igualdade que surgia como contraponto às leis singulares de
monarquia absoluta, as quais supunham a concessão de privilégios ou onerações
discriminatórias e desigualitárias.

1.2. A lei no regime corporativo

A natureza autoritária, corporativa e intervencionista do plano económico e social do “estado


novo”, instituído pela Constituição de 1933, foi acompanhada por uma aceção mista ou
eclética de caracterização da lei com pendor material.

Semelhante caracterização era decerto influenciada, não apenas pela ideia de generalidade
que era imputada ao conteúdo das leis aprovadas pela AR (as quais se restringiam às bases
gerais dos regimes jurídicos, ou seja, aos grandes princípios e diretrizes de uma disciplina legal
carecida de complementação por decretos leis subordinados), mas também pela definição
eclética operada no art.º 1/2 do CC que definia as leis como todas as disposições genéricas
provenientes dos órgãos estaduais competentes. Embora a referida generalidade enunciada

52
no código fosse uma refração das leis da AR ela não compreendia a totalidade dos decretos-
leis, dado que alguns detinham conteúdo singular. Este r um ponto crítico do reducionismo da
definição de lei que ainda consta do CC.

No que concerne a outros atributos da lei, a doutrina juspublicista dominante, de Marcelo


Caetano, reconduziu a “força de lei” a uma potência unitária, pautada por uma superioridade
relacional que se fundava no respetivo valor hierárquico.

1.3. A lei na ordem constitucional de 1979

1.3.1. O poder conformador da lei nas suas dimensões horizontal e


vertical

A. A problemática do conteúdo da lei

Mau grado não definir explicitamente em que consiste a lei, a CRP de 1976 avança critérios
para a sua caracterização. Com maior ou menor reporte aos mesmos critérios, a doutrina
convergiu na edificação de um sentido eclético de ato legislativo tendo os jusprivatistas
privilegiado a sua vertente material e os juspublicistas a sua dimensão formal.

O cerne da controvérsia que inera à aceção de lei nos ordenamentos jurídicos


contemporâneos radica em saber se os atos individuais e concretos que, no contexto de um
Estado social intervencionista são aprovados sob a forma de lei, assumem efetiva natureza
legislativa. Numa palavra, é importante verificar se a Constituição autoriza a lei a assumir
qualquer conteúdo ou lhe impõe, antes, um conteúdo necessariamente geral ou geral e
abstrato.

Importa, pois, saber se os legisladores parlamentar e governamental podem, em qualquer


circunstância, emprestar às leis por si editadas o conteúdo que considerem mais conveniente,
mesmo este consistir na adoção de meros atos individuais e concretos de aplicação de outras
leis e, como tal, enquadráveis substancialmente no universo das decisões próprias de uma
atividade material administrativa, solução que implicaria uma apropriação pelo legislador de
funções que estariam normal e naturalmente confiadas à administração.

A função administrativa é uma atividade que:

 Pressupondo a tarefa de assegurar a boa concretização e execução das leis (art.º


199/c), implica também o desenvolvimento de operações técnicas e materiais de
produção de bens e prestações de serviços;
 Se encontra infra-ordenada à atividade legislativa, a qual, como expressão da
função política, define opções e critérios primários na disciplina das matérias,
cabendo à função administrativa concretizar vinculadamente essas opções;
 Dispondo a AR ao abrigo do art.º 161/c, de uma competência genérica para fazer
leis todas as matérias, salvo as reversadas ao GOV e podendo este último legislar
em todos os domínios reservados à AR (art.º 198/a), verificamos que, na esfera do
Estado-Pessoa não existem matérias que se encontrem horizontalmente subtraídas
à lei.

53
A situação revela ser bem mais complexa no plano vertical. Dispondo a lei de expressivo poder
de concretização na disciplina de uma dada matéria, importa saber se essa densidade
reguladora poderá ser de tal modo intensa que implique a expropriação por via legal do
domínio confiado constitucionalmente à autonomia privada, à atividade administrativa e à
atividade jurisdicional.

1.3.2. Síntese sobre a posição adotada: uma aceção estrutural de lei


limitada pelos domínios constitucionalmente reservados à
administração

A. Apreciação crítica às teses substancialistas

A construção substancialista exibe uma maior coerência quando conformada com posições
que fazem uma profissão de fé pletórica na lei geral, mas acabam lateralmente por conferir
generosas indemnidades às leis singulares.

Existem, contudo, algumas objeções de fundo ligadas à positividade do sistema constitucional


português que dificultam a aceitação dessa construção.

Em primeiro lugar, a aceção constitucional de lei tem necessariamente de partir daquilo que a
lei é no Direito Constitucional positivo e não de uma “mitologia da lei” radicada em soluções
de iure condendo. Assim sendo, os próprios princípios estruturantes do Estado como o da
separação de poderes e do Estado de direito democrático devem ser interpretados à luz do
sistema político de GOV vigente e da teleologia do exercício da função legiferante à luz da
Constituição concreta e positiva.

Em Portugal, o princípio da separação de poderes foi concebido, desde 1976, à luz de uma
lógica de intervencionismo legislativo governamental, o qual se estriba na outorga do GOV do
maior acervo de competências legislativas existentes num Estado da UE. A ideia de um ato
legislativo passível de abarcar qualquer conteúdo, mesmo o de um ato administrativo passível
de abarcar qualquer conteúdo, mesmo o de um ato administrativo passível de abarcar
qualquer conteúdo, mesmo o de um ato administrativo, fundou-se na lógica originária da
Constituição de 1976 que concebia o ato legislativo como um instrumento utilitário de
transformação e mudança e que reduzia radicalmente o espaço de autonomia da função
administrativa, relegado a uma subsidiariedade serviçal.

Pese as evoluções que foram sendo experimentadas pelo sistema jurídico, pela doutrina e pela
jurisprudência, nunca se tocou, e bem, na centralidade interventiva dos vastos poderes
legislativos governamentais, no primado estatutário da AR e na limitação vertical do poder
concretizador da lei. E, sintomaticamente, o TC acabou também por absorver esta realidade,
mantendo-se com algumas oscilações, fiel ao jurisprudência. Ora, pese as mutações operadas
em matéria de reprivatizações e da transformação do Estado-gestor num estado-regulador,
nada mudou no plano constitucional em sede de definições dos poderes legislativos do Estado
os quais se mantiveram intactos.

Em termos de direito constitucional positivo, a acessão de lei deve ser compreendida à luz do
que a Constituição dispõe sobre esse ato. Ora, desde a origem da Constituição de 1976, e com

54
maior precisão doutrinal depois da primeira revisão constitucional, a lei passou a ser definida
estruturalmente na base de elementos permanentes, como o conteúdo político, a forma e a
força.

E, salvo nos casos em que a própria Constituição impõe à lei, explícita ou implicitamente,
conteúdos gerais (leis de bases) ou gerais e abstratos (leis restritivas de direitos, liberdades e
garantias), ela exibe sensível indiferença sobre o conteúdo dos comandos legislativos,
habilitando implicitamente o decisor legislativo a desempenhar ou recortar esse mesmo
conteúdo. Daqui resulta que a construção a contrario sensu radica na lógica de que, salvo nas
áreas em que a Constituição não impõe generalidade ou abstração à lei, o conteúdo singular
desta não é proibido, emerge como um princípio geral favorável à liberdade relativa de escolha
do conteúdo legal fora do campo da reserva de lei material. Considerar, como faz a doutrina
substancialista em apreço, que a imposição constitucional de generalidade como condição de
validade normativa se aplicaria não só a essas situações determinadas, mas a todas as demais,
seria converter a imposição do art.º 18 numa previsão inútil

Em segundo lugar, a preceder de “jure constituto” a construção substancialista em exame, a


sua adoção pela justiça constitucional implicaria a inconstitucionalidade de todos os atos
legislativos singulares editados desde 1982.

Em terceiro lugar, é indubitável que o princípio do Estado de direito democrático supõe, na sua
relação conectiva com o corolário da separação de poderes que nenhuma função do Estado se
substitua a outra e ocupe o seu núcleo fundamental.

Só que, o poder expansivo das funções primárias ou dominantes é incomparavelmente maior


do que o das funções secundárias. Se uma lei constitucional, de conteúdo individual e
exequível por si mesmo, vier a preocupar o espaço que naturalmente caberia a um ato
administrativo, dificilmente se poderia falar na inconstitucionalidade, a não ser que violasse
um limite material de revisão constitucional. Do mesmo modo, em boa dispondo de um grau
menor de penetração, a lei ordinária, teve corporizar um elevado grau de concretização que é
muitas vezes sobreponível com o âmbito material da função administrativa, devendo é certo
deter-se, à luz do princípio da separação de poderes, nos casos em que, sendo oriunda da AR,
usurpa a reserva de poderes de direção e de superintendência do GOV (art.º 198/d).

Não é, pois, em conclusão, possível erigir a imposição genérica do paradigma de lei geral e
abstrata, sem mais, a parâmetro de constitucionalidade dos atos legislativos. Isto,
independentemente ser desejável, no quadro de uma futura recomposição das funções do
Estado, que é a intervenção legislativa na economia recue ainda mais em benefício da
regulação administrativa e que, pelo menos, as leis parlamentares devam assumir por força de
uma alteração da Constituição, conteúdo geral, em nome da exigência de subtração do
exercício da função administrativa à AR.

B. Síntese sobre a caracterização do conceito de lei na ordem


constitucional de 1976

A Positividade dos critérios constitucionais implícitos definição de lei favorece as teses que
caracterizam esta última em razão do seu conteúdo político, forma e força legal, a expensas
das construções que privilegiam a forma e a necessidade existencial de uma hipotética

55
“intenção de generalizar”, como sustenta Jorge Miranda. Isto porque a Constituição identifica
taxativamente a lei na base de uma tipificação orgânico-formal (art.º 112/1) e hierárquica
(art.º 112/5) e apenas impõe, cumulativamente, exigências de generalidade ou de abstração
ao seu conteúdo a um número circunscrito de leis.

Neste sentido, a caracterização de lei funda-se em critérios de ordem positiva e estrutural. A


essência estrutural da lei impõe que a respetiva caracterização se faça com necessário apelo a
atributos permanentes que se destaquem nos seus pressupostos, nos seus elementos
internos, ou nos seus efeitos prototípicos.

O conteúdo político do ato legislativo, como elemento caracterológico, deriva do critério


político de decisão que subjaz à deliberação da lei e radica natureza primária e dominante da
função legislativa. A liberdade de escolha das opções inerentes à tomada de decisões
conformadoras do Estado e da sociedade é algo que inere ao domínio do político e, como tal,
revela ser inseparável da politicidade dessa função.

No que respeita à forma, observa-se que o princípio da tipicidade das formas de lei (art.º
112/1) determina a inexistência de atos legislativos fora dos três tipos específicos nele
previstos. E liga-se, necessariamente aos procedimentos legislativos específicos que devem ser
seguidos pelos órgãos com reserva de competência legislativa para emitir as formas legais
conferidas no período anterior: a AR, o GOV e as ALRA.

Finalmente, a “força geral de lei” constitui um elemento consequencial integra igualmente a


caracterização de ato legislativo. Trata-se de uma noção compósita, resultante do nexo causal
entre a superioridade hierárquica da lei sobre as demais normas de natureza não política dos
poderes constituídos e a potência normativa que dela operativamente resulta, no plano das
relações com outros atos jurídicos. Trata-se, portanto de uma potência de valor. A ideia de
uma força unitária de lei determinada pelo valor hierárquico do ato estriba-se, quer no
princípio da legalidade, o qual supra-ordena os atos da função legislativa em face dos atos das
restantes funções constituídas (art.º 203 e 266/2), quer os efeitos relacionais do princípio da
tipicidade da lei (art.º 112/5), o qual proíbe a suspensão, alteração, integração ou revogação
desta por outros atos normativos de distinta natureza.

Em face dos atributos expostos, define-se ato legislativo como todo o critério político de
decisão produzido e revelado sob a forma de lei pelos órgãos titulares da função legislativa e
que exprime uma relação de supremacia sobre as demais normas internas e
infraconstitucionais, desprovidas de natureza política.

No que tange ao conteúdo legal, considera se que o legislador é livre de conferir à lei o
conteúdo que julgar oportuno ao ato legislativo que edita, salvo se:

 A Constituição impuser para leis que incidam sobre certos domínios, exigências de
generalidade ou de generalidade e abstração;
 A Constituição consagrar domínios reservados em favor da administração pública, que
vedem a intromissão vertical dos atos legislativos no núcleo da atividade regulamentar
ou em esferas reservadas de competência administrativa do GOV para a prática de
atos de administração.

Por consequência, a lei em sentido material, caracterizada pela sua generalidade e abstração,
encontra-se contida na noção mais ampla do lei em sentido estrutural, definida na base dos
critérios da politicidade, forma e força.

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2. A reserva de lei

2.1. Noção de reserva de lei em sentido amplo

A noção de reserva de lei em sentido amplo corresponde a um domínio material necessário de


legalidade o qual implica:

 Uma prioridade exclusiva da regulação legal, primária ou inovadora, relativamente a


determinadas matérias previstas na Constituição, daqui resultando um domínio
material necessário de ato legislativo razoavelmente detalhado ou denso que não
consente regulamentos independentes, mas apenas regulamentos de execução dessas
leis;
 A interdição de deslegalizações na esfera das matérias que a Constituição atribui à lei;
 Uma supremacia da lei sobre o regulamento que se traduz, tanto no imperativo desde
ser interpretado em conformidade com a lei e observar o conteúdo e fins da lei que
executa, como na faculdade de a lei poder revogar normas regulamentares por força
da sua superioridade hierárquica.

A reserva de lei funda-se no princípio da separação de poderes (art.º 111/1) já que este veda a
atos de funções subordinadas do Estado, uma incidência inovatória em matérias qualificadas,
cuja regulação seja exclusivamente cometida à lei, como norma de natureza primária e
dominante. Também o princípio da representação democrática, nas suas variantes de
representação direta (instituições parlamentares) e indireta (GOV), legitima a exclusividade do
exercício de poder de legislar nessas matérias.

3. A tipicidade da lei

3.1. Noção

A CRP alude à fórmula “lei” em vários dos seus preceitos, os quais remetem certas disciplinas
jurídicas para essa forma de ato. Essa forma legal é, contudo, nas diversas remissões
constitucionais, perspetivada em termos gerais no sentido de poder abranger, em razão da
competência, três formas específicas: lei, decreto-lei e decreto legislativo regional. A tipicidade
implica que seja um ato legislativo e não um auto de outra natureza a reger uma dada matéria.

No seu sentido amplo, a forma e a força de lei são valoradas no art.º 112/ 1 e 5 pelo princípio
da tipicidade da lei. Desse preceito decorre que:

 A fonte da lei (ou seja o seu modo de produção e revelação) reside essencialmente na
Constituição;
 A lei decompõe-se em três formas específicas: lei (parlamentar ou “formal”), decreto-
lei e decreto legislativo regional (art.º112/1);
 A lei não pode ser objeto de interpretação, integração, modificação, suspensão e
revogação com eficácia externa, por atos não legislativos, nem que ela própria o

57
autorize, daqui resultando a expressão de uma força geral de lei que lhe permite
revogar (e condicionar) outros atos não legislativos sem que o contrário suceda;
 Nenhum ato legislativo pode criar outras formas e categorias de atos legislativos, na
medida em que só a Constituição é fonte e título habilitante para esse efeito, sendo
pois de excluir que mesmo uma lei comum ou reforçada possa criar outra lei também
de valor reforçado, nomeadamente aumentando a sua força ou hierarquia;
 Certos tipos de deslegalização devem ter-se como manifestamente proibidos.

3.2. Pressupostos da admissibilidade das deslegalizações

A deslegalização consiste numa operação determinada pela lei, através da qual esta confere
natureza regulamentar a normas que, precedentemente, revestiam forma e valor legal.

Existem, à luz dos princípios da reserva de lei e da tipicidade legal, formas de deslegalização
claramente inconstitucionais.

É, em primeiro lugar. o caso de leis que desgraduam alguns dos seus próprios preceitos ou
preceitos de outras leis, para lhes conferir natureza regulamentar, pese o facto das mesmas
normas incidirem sobre domínios materiais que a Constituição comete à reserva de lei. É, por
exemplo, a hipótese de regulação do conteúdo essencial, âmbito de proteção e termos de
exercício de direitos, liberdades e garantias, bem como outros direitos de natureza análoga.

É, em segundo lugar, a situação em que uma lei rebaixa tacitamente alguns dos seus preceitos,
ao permitir sem mais a sua revogação ou modificação por normas regulamentares, situação
que viola o art.º 112/5.

É, ainda, em terceiro lugar, o cenário de um ato legislativo que deslegalize uma dada matéria
situada fora da reserva de lei, mas se limite a cometer a sua disciplina inovadora a um
regulamento de execução, como uma portaria quando, na verdade, a primariedade da referida
regulação reclamaria a forma de decreto regulamentar (art.º 112/5 a 7).

Finalmente, em quarto lugar, no plano regional, os estatutos desempenham por força da


Constituição, um papel importante como normas legais distribuidoras de tarefas no seio da
região, incluindo, nos termos do art.º 288/1, a função de atribuir certas matérias a uma
reserva de decreto legislativo regional, subtraindo-as à regulação administrativa autonómica.
Como tal, no caso de um decreto legislativo regional revogar um regime inovador contido
noutro decreto legislativo regional e respeitante a uma matéria de reserva de ato legislativo
regional enunciada no estatuto e remeter a disciplina de uma parte dessas opções gerais e
primárias para norma regulamentar, ele operará uma deslegalização ilegítima depois violará a
reserva de lei regional determinada pela lei estatutária sobre essa matéria.

Considera-se, contudo, admissível que, fora da reserva de lei, um ato legislativo desgradue
algumas das suas normas para um nível regulamentar, ou remeta para regulamento
administrativo a regulação de determinadas matérias, desde que o faça expressamente e fixe
com clareza critérios habitantes da produção regulamentar.

Tratando-se de uma matéria de competência do GOV que implique uma disciplina com algum
grau de inovação ela deve ser regida por regulamentos independentes sob a forma de decreto

58
regulamentar, cabendo aos regulamentos executivos como portarias e despachos normativos
concretizar decretos regulamentares e não substituir-se à função destes últimos.

3.3. O carácter taxativo da tricotomia das formas específicas de lei

O art.º 112/1 que é as três formas específicas de lei ordinária previstas na ordem jurídica
constitucional. Trata-se de uma enunciação taxativa.

Importa referir que, sempre que a Constituição alude a uma classe de ato legislativo, como leis
de valor reforçado, leis pressuposto de outras leis, leis de base, lei de autorização, ou estatutos
político-administrativos ela não qualifica novas formas específicas de lei, reportando-se apenas
a categorias legais que, dotadas de um regime jurídico próprio se reconduz às três formas
específicas.

Mesmo as leis orgânicas, peso o facto do art.º 166/2, lhes reconhecer um título e uma
numeração privativas, não constituem um tipo ou uma quarta forma de ato legislativo, antes
se definindo como uma categoria formal de lei parlamentar.

4. Lei, Reserva de lei e reserva de administração

A jurisprudência constitucional exclui, que na ordem jurídica portuguesa exista uma reserva
geral de regulamento administrativo, sem prejuízo de garantia de alguns domínios
regulamentares reservados à administração autónoma e à reserva de superintendência do
GOV sobre as administrações diretas e indiretas. A doutrina aceitando a existência de reservas
parciais de administração autónoma, admite a existência de uma reserva geral de
administração, nomeadamente no eixo das relações entre o legislador parlamentar e o GOV
como cúpula do poder executivo.

Ainda assim, a propósito da decantação de uma esfera de competência reservada ao poder da


direção do GOV, traduzida na imunização dos atos administrativos relativamente a certas
formas de pré-ocupação legal da AR, cumpre atentar nos posicionamentos doutrinais que têm
sido esgrimidos contenciosamente pelo GOV junto do TC.

Segundo um setor maioritário da doutrina, o princípio da separação de poderes imporia uma


reserva de funções que, não vedando ao legislador parlamentar pré-ocupar um espaço de
atividade executiva, não admite uma inferência legislativa que paralise os procedimentos da
administração pública, subvertendo ou diluindo os nexos de importação e responsabilidade
política que devem existir entre a AR e o GOV.

A separação de poderes não pode, assim, deixar de limitar a AR enquanto órgão legislativo,
face ao GOV, enquanto órgão da administração pública, não devendo o legislador respeitar um
espaço mínimo de intervenção autónoma da administração, já que a atividade administrativa
tem o seu título legitimador na Constituição, o qual garante um espaço reservado de decisão e
uma autoridade soberana paralela aos demais poderes do Estado.

Tal não significa a proibição de leis parlamentares de conteúdo singular. Significa antes que o
princípio da separação de poderes evita que a distribuição do poder pelo aparelho Público

59
conduza a situações de omnipotência. Uma coisa é admitir que a lei pode ter um conteúdo
individual e concreto quando traduza escolhas de primeiro grau, e portanto, de natureza
política e outra muito diversa é sustentar que pode descer ao nível da pura administração.

Em síntese, a separação de poderes não compromete a validade de leis formais da AR que,


ditando critérios de decisão e até comandos jurídicos singulares, assumem que caráter auto-
aplicativo. Inibirá a intromissão por via legal no poder de direção do GOV relativamente à
administração direta, mormente através de normas que reduzam o sentido útil desse poder de
direção ou de atos materialmente administrativos editados tacitamente pela AR sob a forma
de lei, não suscetíveis de constituir uma inversão nuclear do princípio da separação de
poderes. O mesmo critério que proíbe que o núcleo essencial do exercício de uma função,
cometido a um órgão de poder, seja usurpado pelos poderes qualitativamente diversos de
outro órgão que não tem acesso a esse núcleo, utilizando como expediente para essa
usurpação a forma de um ato de hierarquia superior.

O TC, em nome do princípio democrático-representativo e do primado da função legislativa,


sufraga um critério expansivo de lei parlamentar credenciando a faculdade de a mesma pré-
ocupar domínios ordinariamente cometidos à atividade administrativa.

Ainda assim o TC, por vezes em certos ibter dicta que não ocultaram uma evidente
condescendência em valor do longo alcance vertical da lei parlamentar, considerou a um
núcleo de reserva de administração reconhecido pela Constituição ao GOV foi retocando
gradual e muito restritivamente, os seus próprios critérios jurisprudenciais favoráveis
plasticidade do conteúdo da lei, censurando:

 Intromissões de lei parlamentar que ditem operações materiais aos serviços da


administração sem intervenção do GOV;
 Todas as formas de “intromissão intolerável da AR na esfera puramente administrativa
do GOV, em domínios que são próprios na esfera puramente executiva, sendo
evidente que o poder da hierarquia faz indissociavelmente parte de um núcleo
essencial da administração ou do executivo.

Fora destes domínios reservados constitucionalmente à administração, o TC exibe


relutância em traçar um limite objetivo ao poder concretizador das leis, num ordenamento
que foi concebido para admitir a sua singularização. A lei parlamentar continua a poder
dispensar em certos casos a prática de atos administrativos e assumir uma natureza
consumptiva ou auto-aplicativa, contando que não resuma o seu conteúdo a um ato dessa
natureza, impondo-se sempre a objetivação a um critério político de decisão subjacente ao
comando singular que terá de ser aferido pela justiça constitucional.

Mas o TC, mais recentemente, de um passo no sentido de uma maior aproximação à teoria
dominante, quanto à admissão de domínios móveis de reserva da administração do GOV
ancorados, positivamente, nas competências que a Constituição lhe reconhece. Nesse
sentido o TC reafirmou a necessidade de a lei parlamentar respeitar os poderes de direção
e superintendência do GOV e da sua autonomia, política e administrativa, em face da AR,
afastando a ideia de uma subordinação hierárquica.

Não é incomum que a AR, sempre que existem GOV minoritários, edite sob a forma de lei,
ordens ou injunções para, nomeadamente, o executivo negociar com sindicatos. Esse
expediente constitui um abuso da utilização da forma de lei para a AR se puder imiscuir
nas competências administrativas do GOV ínsitas no art.º 199/d, operando como se fosse

60
o seu superior hierárquico, ao ditar-lhe uma ordem para agir ou gerir estruturas da
administração de dependentes ou negociar num prazo determinado com estruturas
sindicais, a alteração de regulamentos ou decretos-leis. E esse abuso torna-se igualmente
claro quando age como um órgão administrativo, titular de um poder de superintendência
administrativa, ditando orientações sobre o conteúdo da negociação e o modo como o
diploma governamental deverá ser estruturado.

Ainda menos aceitável será a tentação do legislador parlamentar em substituir-se ao GOV


para dar ordens ou orientações específicas aos serviços da administração direta ou a
empresas e institutos públicos. Essa conduta não é admissível à luz do princípio da
separação de poderes, dado que a faculdade de dar ordens à administração é um poder
reservado ao GOV (art.º 199/d). A ser aceite essa inferência a AR poderia no limite gerir E
orientar através da forma de lei, respetivamente, os serviços da administração direta e os
órgãos diretivos da administração restaviando o estatuto constitucional dos poderes
executivos de um GOV minoritário.

Outro domínio da reserva da administração do GOV consiste no poder de execução


orçamental (art.º 199/b), que o mesmo executivo determina mediante decreto-lei com
conteúdo administrativo e que se encontra imune à intervenção político-legislativa da AR.

Em suma, tenho ganho dimensão doutrinária e jurisprudencial o recorte de uma reserva


movediça de ato administrativo na esfera dos poderes hierárquicos do GOV, decorrentes
das suas responsabilidades de direção dos serviços da administração direta do Estado, civil
e militar. Consideram-se, nesse contexto, feridas de inconstitucionalidade orgânica, leis
singulares do Parlamento que procedam, por exemplo, à nomeação, classificação ou
responsabilização disciplinar dos funcionários civis e militares; que contenham ordens ou
injunções das quais sejam destinatários órgãos e agentes administrativos; ou que
interfiram na gestão concorrente da administração.

Este entendimento tomou corpo na doutrina, mesmo na mais generosa relativamente ao


poder concretizador da lei parlamentar, configurando uma tendência que se irá
eventualmente reforçando à medida da verificação de situações patológicas chocantes em
sede de violação do princípio do art.º 111 por atos administrativos praticados sob a forma
de lei.

Seção II: Relações entre categorias de leis no ordenamento


português

Subseção I: Princípios estruturantes das relações inter-legislativas

Existe no tempo presente uma certa deriva supra positivista quando se argumenta em favor da
necessidade de o operador jurisdicional solucionar anomalias entre normas, não apenas com
base nos princípios positivos de carácter estruturante do ordenamento jurídico, mas também
com base fluidos enunciados jurídicos de conteúdo ético e político.

61
Neste sentido, por exemplo, a resolução de uma colisão entre duas leis poderia não ser
resolvida, necessariamente, com base nos critérios da hierarquia material ou da competência
mas sim com base em critérios de decisão extraídos topicamente ou mediante juízos de
ponderação, a partir de princípios constitucionais de conteúdo político ou axiológico como
será o caso do princípio do Estado de direito democrático, Do Estado unitário, da igualdade, do
livro desenvolvimento da personalidade, do mínimo existencial, da proibição de retrocesso
social e da dignidade da pessoa humana.

Esse entendimento cria o risco extremo de se vir a sustentar que uma lei comum não seja
julgada formalmente inconstitucional por revogar normas de lei reforçada pelo procedimento,
na medida em que a primeira veio repor condições indispensáveis a salvaguarda do mínimo
existencial no plano de prestações sociais que tenham sido suprimidos ou reduzidos pela
primeira lei. Ou que não seja julgada a inconstitucionalidade de uma lei regional que se
imiscua na reserva expressa dos órgãos de soberania tendo em vista a garantia, na região, do
suposto princípio do “não retrocesso social” vulnerando por legislação estadual de austeridade
que tenha suprimido prestações a idosos carenciados.

Semelhante deriva política-moralista, radicalizada pelas sensibilidades neo-constitucionalistas


em sistemas codicistas, cria o risco de gerar o desrespeito pela vontade do decisor
democrático. Isto, na medida que permite distorcer ou desaplicar o direito decidido com base
nas prés-compreensões políticas e filosóficas do intérprete jurisdicional, convertidas e medidas
de valor de “moderação política” que não compete aos tribunais. E mostra-se, igualmente
incompatível com o princípio da segurança jurídica que exige que, em face do direito decidido
seja possível aos operadores jurídicos e destinatários das normas anteciparem
comportamentos legais e calcularem, com um nível mínimo de segurança, o desfecho dos
processos judiciais. Tal não significa, como é óbvio, que os princípios constitucionais que
enunciam os valores estruturantes do Estado e dos direitos das pessoas que não sejam
convocáveis na interpretação, aplicação e controlo da validade do direito, questão à qual o
CBM dá uma resposta positiva. Os princípios constitucionalizados podem elucidar sentidos
indeterminados de certas regras e mesmo abrir normas fechadas.

Contudo, antes de se examinar a validade material de uma regra à luz dos princípios
constitucionais estruturantes do Estado de direito deve-se saber se a norma em questão tem
ou não condições lógicas, teleológicas ou orgânico-formais para ser convocada para esse
mesmo exame. Numa palavra, importa verificar: se essa norma já foi ou não revogada; se foi
privada de eficácia pela precedência de lei especial; ou se é ou não inconstitucional ou ilegal
por violação da reserva legislativa de competência de outro órgão, por ofensa a lei de
hierarquia superior ou por violação de outra regra mais rígida.

Neste sentido, os critérios estruturantes das relações entre leis, em caso de colisão entre
estas, ter procedência aplicativa sobre os princípios constitucionais de ordem substancial na
medida em que, antes de se examinar num controle de constitucionalidade, se uma lei é, no
plano material, proporcional ou respeitosa da dignidade da pessoa humana, importará
verificar se a mesma é juridicamente eficaz ou orgânica e formalmente válida. Sem a
observância destes princípios não é possível falar em dogmática jurídica, mas ao invés em
decisionismo judicial, autocracia jus-filosófica do direito ou, no limite, no direito achado na
rua.

62
1. As antinomias no contexto das relações inter-legislativas

As antinomias legislativas, em sentido amplo, podem definir-se como situações, reais ou


aparentes, de desconformidade ou colisão, total ou parcial, entre o conteúdo de atos
legislativos quando os mesmos atos prosseguem fins comuns ou idênticos e incidem sobre o
mesmo domínio material, espacial, pessoal e temporal.

O imperativo da coerência como fator de unidade do ordenamento mostra ser incompatível


com uma não resolução de antinomias.

As antinomias podem ser classificadas, como:

 Aparentes, quando solucionadas, no plano da eficácia, através de critérios de ordem


lógica imediatamente aplicáveis (princípio da cronologia);
 Perfeitas, quando a colisão entre leis não contraria o disposto na Constituição
 Imperfeitas, quando uma norma legal colide invalidamente com outra, com violação
de regras de competência;
 Totais, quando a colisão envolve integralmente dois preceitos normativos;
 Parciais, quando a mesma oposição se restringe a parcelas normativas.

Na ordem jurídica portuguesa enquanto aplicador judicial goza, por via da fiscalização concreta
da legalidade e constitucionalidade da lei, de um poder de solucionar antinomias improprias
no campo da validade, através de um livre apelo aos critérios teleológicos do ordenamento, já
o aplicador administrativo se encontra vedado em poder idêntico de controlo de validade das
normas.

2. Critérios estruturantes das relações inter-legislativas no ordenamento


português

A operatividade dos atos legislativos é guiada por princípios e critérios dogmáticos de ordem
logica e teleológica, destinados a solucionar eventuais antinomias entre as diversas categorias
legais. Enquanto os princípios lógicos emergem em qualquer ordem democrático-pluralista,
independentemente da sua constitucionalização explícita, dado que são condições imanentes
da sua coerência, unidade e vocação de completude, os princípios teleológicos resultam de
uma opção específica de programação da política constitucional para a estruturação das
relações entre leis no Estado em concreto. A sua consagração depende: da arquitetura do
sistema político de GOV; da divisão de tarefas entre órgãos e do modelo de organização
territorial; e do modelo de democracia instituída.

2.1. Critérios lógicos

2.1.1. O critério da cronologia

63
O fundamento primário do principio cronológico no Estado de direito contemporâneo,
previsto no art.º 1 e 2 do CC, funda-se especialmente, na inesgotabilidade da função legislativa
e na renovação do direito.

O sentido da inesgotabilidade da atividade legiferante impõe que o decisor possa legislar a


todo o tempo e que a manifestação mais recorrente da sua vontade se sobrepunha à anterior,
como solução lógica para uma incompatibilidade entre duas regras de direito que sejam
ditadas em momentos diversos, sobre a mesma situação de facto. Este princípio de preferência
da política mais recente, relativamente à vontade mais antiga, pressupõe que a atividade
legislativa seja exercida contínua e adaptativamente, prevenindo antinomias geradas por leis
incidentes sobre a mesma situação de facto, em tempos diferentes. Neste sentido, trata-se de
um corolário imanente à própria essência do direito como sistema imperativo de caráter
social.

Podendo o critério cronológico pontificar como critério típico de qualquer estado de direito ele
recebe uma justificação adicional no Esteio do Estado de direito democrático. Nos regimes
pluralistas, o princípio democrático, simplificado enunciado de que os mais devem governar os
menos e no seu corolário da alternância entre opções de GOV dispersas, pressupõe um
mandato ao decisor para que este possa executar os seus programas políticos e fazer
prevalecer uma vontade legitimada pelo consentimento popular, em relação às vontades
normativas que temporalmente a procederam. É um pouco o retorno à lei de que, pelo menos
no universo infraconstitucional, não terão do ser os mortos a regular a conduta dos vivos
contra a vontade destes e de que a vontade da maioria do passado não se pode impor.

São os seguintes, os pressupostos positivos da aplicação do princípio:

 Sucessão cronológica entre duas leis, ou seja, aprovação de dois outros legislativos em
momentos temporais distintos;
 Existência de um conteúdo isomórfico e isométrico de duas leis em tensão;
 existência de uma intenção revogatória expressa da lei mais recente ou de uma
oponibilidade ou colisão entre o conteúdo das suas leis, a qual propiciaria uma
revogação tácita

A “força Ativa de lei” transporta, embora não esgote, esse mesmo poder inovador que subjaz à
lei mais nova, o qual se exprime através de institutos de revogação, modificação e, também, da
suspensão da eficácia legislativa antecedente.

No que respeita aos seus pressupostos negativos, observa-se que o critério cronológico reviste
carácter supletivo em face dos demais, não se aplicando quando se encontra em concorrência
com um princípios teleológicos, ou mesmo, em certas circunstâncias, com o princípio lógico da
especialidade.

Serão as antinomias aparentas aquelas que se perfilam como objeto primário de incidência do
critério cronológico. Estando reunidos os pressupostos positivos e negativos do critério, uma
colisão resolve-se na base de uma “automaticidade” relativa, de carácter explícito ou implícito:
é explícito quando a lei sucessiva expressamente dispõe a cessação, alteração ou suspensão da
eficácia da lei precedente; implícita quando o intérprete infere, no silêncio do legislador e sem
grande margem para dúvidas, a cessação ou modificação da lei antiga.

64
2.1.2. O princípio da especialidade

O critério em observação, tomado no seu sentido amplo, reza que quando 2 leis de densidade
ou extensão distinta regularem de modo diverso a mesmo a situação de facto, o ordenamento
concede prevalência à previsão menos extensa sobre a mais extensa.

Uma lei que regula um objeto factual de relação mais ampla e que se denomina “lei geral” é,
necessariamente, não só, menos densa, detalhada ou pormenorizada, do que outra lei que
dispõe sobre factos particulares da mesma realidade, como também terá um si agregada uma
maior generalidade e abstração.

A “lei especial” envolve o regime normativos parcial, relativamente a uma dada de disciplina
legal que é mais ampla, incidindo limitadamente num dado setor regulado pela segunda, para
o qual determine uma disciplina própria ou diferente. Ao fixar um regime particular para
domínios da lei mais ampla, a lei especial exprime uma maior densidade reguladora e uma
menor extensão prescritiva do que a lei geral.

Importa destacar que seguimos a opinião dos que defendem que a “exceção” é uma
especialidade qualificada, com características próprias, na medida em que implica que o
regime particular determina uma solução não apenas diversa mas contrária à do regime geral.
O efeito será o mesmo: a aplicação preferencial da lei especial ou excecional sobre a lei geral.

Os fundamentos materiais da convocação do critério em referência começam por assentar em


justificações de ordem lógica, as quais são imanentes à natureza de um Estado de direito. Na
realidade, a coerência do ordenamento jurídico impõe que não se deixe espaço imediato para
uma dupla valoração da mesma realidade, sendo dada prioridade à disciplina do conteúdo
mais particular ou singular, já que a mesma atende às características próprias da situação de
facto por ela regulada.

Do mesmo modo, a doutrina entende que a passagem de uma lei mais extensa a uma menos
se justifica em exigências concretizadoras da justiça material e do princípio da igualdade,
mormente através do tratamento diferenciado daquilo que é diferente. Complementarmente,
em termos de política legislativa inerente ao Estado de direito democrático, considera se que
este busca no quadro de uma sociedade pluralista, dar satisfação a exigências de grupos,
pessoas coletivas portadoras de interesses próprios e situações distintas que exigem tutela
específica, em relação ao regime próprio respeitante às classes e entidades onde se inserem.

Quanto aos pressupostos positivos da aplicação do critério entende-se para além da presença
de uma isomorfia e isometria então dois atos se deverá assinalar a existência de uma relação
de cabimento da lei de conteúdo especial em relação à outra que detenha uma previsão mais
extensa.

No tocante aos seus pressupostos negativos pode sintetizar-se que o critério da especialidade
prevalecendo a título relativo, NOS termos expostos, sobre o princípio da cronologia, cede
perante um confronto com qualquer dos critérios de teleológicos previstos no ordenamento.

Em suma, as antinomias cobertas pelo critério da especialidade são perfeitas, impróprias e do


subtipo “total-parcial”, tal como este último se encontra definido pela doutrina juspublicista
clássica.

65
O princípio pode ser extraído do art.º 7/3 CC, a especial sucessiva prevalece tanto sobre a lei
geral antecedente, como sobre a lei geral sucessiva, salvo a existência, neste último caso, de
uma intenção inequívoca manifestada pelo legislador no sentido de ser conferida uma
prevalência revogadora à regra geral posterior de carácter geral.

A “queda” da eficácia de um segmento da lei geral, em razão da entrada em vigor da lei


especial ou da sua inaplicabilidade a domínios regidos por lei especial antecedente não inibe a
lei de conteúdo mais extenso de continuar a produzir os seus efeitos em relação às demais
situações jurídicas. Como tal, a lei especial não interroga a lei geral antecedente, mas antes
desaplica ou bloqueia durante a sua vigência, a eficácia das normas da primeira que
consagrarem para certas situações um regime diferente da segunda. Se ocorresse uma
derrogação cessaria a eficácia de uma parcela normativa da lei geral e se a lei especial viesse a
ser revogada sem substituição, a lei geral não poderia retomar de imediato a plenitude da sua
eficácia no domínio relativo a essa parcela já que a repristinação de direito revogado sem
experiência decisão do legislador é negada pelo art.º 7/4 CC. Daí que, se a doutrina coincide
com a ideia que em caso de revogação puramente supressiva de lei especial, a lei geral
antecedente retoma automaticamente a plenitude da sua vigência, então deverá aceitar que a
lei especial não derroga a lei geral, limitando-se a privá-la parcialmente da sua eficácia.

2.2. Critérios teleológicos

2.2.1. Princípio da hierarquia

A lógica positivista e normativista no desenvolvimento do critério hierárquico supõe uma


estrutura escalonada entre leis, no âmbito da qual as de escalão superior prevalecem sobre as
de escalão inferior. Verifica-se, contudo, que o princípio experimentou modernamente
algumas transformações nos Estados plurilegislativos, ligadas à divisão de tarefas entre órgãos
e as respetivas leis, e que levaram à criação de diferentes espécies de hierarquia que geram,
igualmente, efeitos jurídicos diferenciados entre normas subordinantes e subordinadas.

A. A hierarquia formal ou plena

O critério hierárquico-formal traduz-se na aptidão de uma lei, reconhecida pelo ordenamento


como detendo um grau superior, em poder revogar ou condicionado a validade de outra ou de
outras leis de grau inferior, sem que o inverso possa suceder.

Esse critério tem nos Estados unitários regionais um âmbito de aplicação muito escasso, tendo
em conta que, por vezes, apenas um número reduzidíssimo de leis ordinárias se superioriza
formalmente em face das restantes.

Dentro da multiplicidade de construções que procuram fundamentar doutrinalmente o


fenómeno da prevalência hierárquica entre leis ordinárias parece ganhar impressividade a tese
da norma de reconhecimento. Nos termos desta elaboração, uma lei posiciona-se num escalão
superior em face das demais, quando essa hierarquia, traduzida numa manifestação de

66
superioridade sobre as restantes leis, é reconhecida expressamente ou implicitamente por via
de norma superior.

Trata-se de uma construção compatível com o princípio da tipicidade da lei (art.º112/5) que
faz radicar apenas na Constituição, a capacidade para determinar a força dos diversos atos
legislativos ordinários. A elevação de uma categoria legal a um escalão deve, pois, depender de
uma intenção específica de política legislativa manifestada por parte do decisor constitucional.

Os estatutos político-administrativos de autonomia regional constituem, não sem controvérsia,


a única subcategoria legal no ordenamento português suscetível ou de ocupar uma posição de
norma legal ordinária de hierarquia formal superior às restantes. Isto porque a Constituição
(art.º 281/c e d) os destaca simultaneamente, dentro do seu objeto, como parâmetro material
vinculante e padrão de controlo da legalidade de todas as restantes categorias normativas,
tornando a validade da norma estatutária apenas tributária da mesma Constituição. Não
existe, deste modo, a possibilidade de se conceber a ilegalidade do estatuto por colisão com
outras leis reforçadas, dado que ele próprio constitui a única lei reforçada dotada de uma
hierarquia superior, em face das demais.

A superioridade “erga-omnes” acabada de expor, defendida complementarmente por um


procedimento especial e agravado de produção e que se destina a proteger essa supremacia
qualificada, detém consequências diversas na operatividade da lei estatutária. Pode, assim,
observar-se a mecânica da prevalência ditada pelo critério da hierarquia, tanto no campo da
validade como no da eficácia.

A hierarquia formal do estatuto é, simultaneamente, uma hierarquia bifrontal: incorpora a


dimensão diretiva da hierarquia material (parametricidade) traduzida numa vinculação “erga-
omnes” em relação ao conteúdo das restantes leis e integra uma dimensão formal, traduzida
num poder de revogar sem poder ser revogada no giro da respetiva reserva material, garantida
por uma força passiva invulgar.

A hierarquia formal tem, deste modo, um “quid pluris” em relação à hierarquia material já que
consome esta última e acrescenta uma força de lei suplementar no campo revogatório. Por
isso pode ser designada por hierarquia plena ou integral.

B. A hierarquia material

Trata-se da faculdade detida por certas leis-sujeito de natureza subordinante em poder


vincular o conteúdo de outras leis que com elas devam coexistir numa posição subordinante.

Em contraste com a hierarquia formal, que reveste caráter integral, a hierarquia material é, em
regra, uma hierarquia parcial já que a supremacia da lex superior se exprime,
fundamentalmente, no condicionamento por certas leis-parâmetro, do conteúdo categorias
específicas de atos legislativos que às primeiras se encontram expressamente subordinadas
por força da Constituição. Como tal, hierarquia material não se compagina, geometricamente,
com a configuração de uma pirâmide exibindo, ao invés, uma geometria variável.

Um exemplo ilustrativo, o estatuto político-administrativo de uma Região Autónoma exibe


uma hierarquia formal e integral, posicionando-se num patamar intermédio entre a
Constituição e as restantes normas legais direito interno. Já uma lei de bases de reserva de

67
competência da AR assume uma hierarquia Suprema em relação aos decretos-leis ou decretos
legislativos regionais que a desenvolveram, mas pode ser modificada ou contrariada por via de
uma lei de detalhe da mesma AR contra a qual não prevalece hierarquicamente. Contudo, essa
mesma lei parlamentar detalhe tem a mesma hierarquia dos decretos-leis e decretos
legislativos regionais de desenvolvimento.

O princípio da hierarquia material pôde revestir uma incidência impulsionadora e


subordinante:

 Impulsionadora, por que justifica a incidência positiva de leis inovatórias, destinada a


fazer brotar legislação sub-primária especialmente vocacionada em regular uma
multiplicidade de relações jurídicas, gerais ou especiais;
 Subordinante, já que condensa grandes orientações políticas, destinadas a servir um
denominador comum para as leis sub-primários, operando as respetivas normas como
parâmetros materiais e padrões de controlo de validade das segundas.

Os critérios de diretivação positiva e negativa convertem a lei subordinante no protótipo


matricial de outras leis atuando por via de uma síntese pré-ordenadora de “diretrizes”,
“princípios” e “orientações de ação”. A densidade reguladora das normas materialmente
paramétricas de outras é variável, sendo reduzida uma categoria legislativa com a das leis de
bases, sendo mais expressiva e pormenorizada das leis-quadro.

A prevalência material situa-no no cenário de as duas lis coexistirem dentro da mesma


matéria, na órbita da qual, cada norma legal regula um determinado domínio substantivo, mas
em que um dos atos legislativos goza de um “status” normativo de proeminência sobre o
outro, vinculando positiva ou negativamente o seu conteúdo. A prevalência material ocorre
em três quadros de concorrência previstos no ordenamento português:

 A concorrência complementar usualmente reconduzida à relação entre leis de bases e


leis de enquadramento, de um lado, e os atos legislativos de desenvolvimento e
concretização, de outro, subordinadas às primeiras;
 Concorrência derivada que integra a relação entre uma lei de autorização parlamentar
e atos legislativos autorizados a que a mesma habilita e condiciona, mas que podem
nos limites de autorização revogar normas legislativas previamente emitidas pelo
poder delegante;
 Concorrência alternada, no âmbito da qual leis de bases ou de enquadramento
vinculam o conteúdo de diplomas legais que as invoquem como seu parâmetro de
referência.

2.2.2. O princípio da competência

A. Noção

O princípio da competência como pressuposto de uma edição da lei justifica a atribuição a um


determinado órgão, com eventual exclusão dos demais, do poder de editar atos legislativos em
relação a uma matéria e se for caso disso, num espaço territorial determinado.

68
Os fundamentos constitucionais do critério da competência no ordenamento português, no
que respeita à atividade legislativa, repousa genericamente, no princípio da separação de
poderes. Em especial, assenta igualmente no quadro de divisão de poderes e colaboração
legislativa entre a AR e o GOV e na moldura específica de repartição da função legislativa entre
os órgãos de soberania e nas regiões dotadas de autonomia político-administrativa.

A competência, como núcleo do critério em observação, reveste estruturalmente uma


natureza mista, dado que abarca elementos de carácter orgânico-formal e material:

 Os elementos orgânico-formais assimilar os órgãos de poder, os procedimentos e as


legendas e os títulos legislativos que chancelam as normas aprovadas pelos mesmos
órgãos (art.º 112/1);
 Os elementos substanciais respeitam à titularidade do poder de legislar que é
cometida a certos órgãos, e à reserva material onde o referido poder incide; e ao
âmbito territorial e eventualmente temporal da sua incidência normativa.
 Assumindo-se como centro do processo de distribuição de competências legiferantes,
a titularidade define-se como a assunção por parte de um dado órgão, de um poder
específico que o habilita em nome próprio, ao exercício da função legislativa.

Pode a titularidade assumir duas modalidades principais: a titularidade competencial


primária e o titularidade competencial sub-primária.

Por titularidade primária entende-se a faculdade cometida constitucionalmente um órgão


para ditar os atos legislativos, de conteúdo inovatório, sobre determinadas matérias,
legislando sem vinculação a outras normas de direito interno que não a Constituição. A AR
é o órgão que detém a excelência deste tipo de titularidade, a qual contribui, em parte,
para que seja reconhecido o primado do poder legislativo.

A titularidade competencial pré-primária determina que o órgão que dela seja portador
deva uma necessária observância a limites paramétricos fixados por certas leis interpostas
entre a Constituição e as normas legais que foram adotadas ao abrigo do mesmo poder.

A título principal, os efeitos aplicativos do princípio da competência traduzem-se em


relações negativas, ou de separação, caracterizados pela indiferença ou lateralidade entre
atos legislativos, tendo em conta que os mesmos atos, ao fazerem incidir a sua regulação
em esferas materiais distintas, separadas por reservas próprias, não devem, por regra,
produzir por si uma tensão constitutiva pautada pela “força de lei”.

Existe, ainda assim. um efeito secundário e eventual do princípio da competência,


articulado com o da cronologia, o qual pressupõe fenómenos de tensão constitutiva entre
atos legislativos que se encontram normalmente lateralizados por reservas orgânicas de
poder. Trata-se do caso das autorizações legislativas, em que, por exemplo, o diploma
autorizado emitido pelo GOV como órgão eventual competente revoga, essencialmente
por razões lógicas, um conjunto de legislação precedente da AR como órgão normalmente
competente pudendo, por seu turno, o diploma autorizado ser revogado pelo órgão
normalmente competente, num quadro de avocação de poderes.

Importa fazer menção ao fenómeno já referido da concorrência paralela, a qual diz


respeito, nomeadamente, às relações de tensão entre os decretos legislativos regionais
comuns (art.º 227/a) e as leis da República que operam nas esferas das matérias
subtraídas à reserva expressa de competência exclusiva dos órgãos de soberania. Adota-se

69
a expressão “paralela” dado que, na mesma matéria, leis estaduais e regionais correm por
dois binários materiais potencialmente reservados a dois entes territoriais, binários esses
que se caracterizam por um paralelismo assimétrico e por vezes, incerto, de densidades
reguladoras. Por exemplo, em matéria de habitação, a legislação do Estado é eficaz em
todo o território menos no de uma Região Autónoma onde aspetos específicos dessa
matéria conexos com a sua configuração regional, e garantidos por estatuto, são regidos
por lei regional que desaplica a lei estadual.

O princípio da competência assume uma clara preponderância sobre os restantes critérios


dogmáticos de relação entre atos legislativos.

Na realidade, ele prevalece sobre os critérios lógicos e sob o critério da hierarquia e pôde
servir-se do princípio do procedimento agravado como auxiliar de demarcação do
tracejado identificador de certos domínios reservados, dotados de contornos difusos de
separação.

O mesmo princípio aplica-se a antinomias impróprias e traduz-se na inconstitucionalidade


orgânica das leis emitidas por determinados órgãos que violarem reservas de competência
atribuídas a outros órgãos.

B. Atributos do princípio da competência no subsistema legislativo


português

Resultando do princípio da separação de poderes (art.º 111), o princípio da competência


legislativa dos órgãos de soberania pressupõe um conjunto de corolários.

2.2.3. Princípio do procedimento agravado

a) Reserva de Constituição na delimitação das competências legislativas

Os poderes legislativos de cada órgão competente para o efeito que resulta da lei
constitucional, pelo que, não só os mesmos poderes não se presumem, como não podem ser
definidos através da lei ordinária (art.º 110/2). Não pode a lei, por exemplo, determinar o
direito que rege as um obras públicas (domínio concorrencial entre o GOV e a AR) passe a ficar
afetado à reserva exclusiva do GOV. Contudo, a partir do enunciado material fixado na
Constituição é possível retirar poderes ou competências implícitas, mormente, por conexão
material necessária com um poder que goze de um título mais forte, contando que não se
verifique uma apropriação por parte de um órgão, de núcleo de competência legislativa
reconhecido pela Constituição a outro órgão. É, igualmente duvidosa a regularidade
constitucional de certas leis de bases e leis-quadro que cometem especificamente a decretos-
leis o respetivo desenvolvimento, a sua integração e a regulação de uma matéria precisa pois
essa tarefa, de acordo com a jurisprudência constitucional, respeita a domínios de
concorrência entre os diversos órgãos com competência legislativa. Por conseguinte, as
normas de bases ou de enquadramento que procedem essa “reserva” de desenvolvimento ou

70
de disciplina específica por decreto-lei têm, no estrito plano legislativo, um conteúdo
puramente indicativo, carecendo de poder vinculante sobre os outros atos legislativos.

Quando muito podem essas remissões para decreto-lei na regulação de domínios específicos,
assinalar uma reserva de administração do GOV, ao invés, excluir a possibilidade de os mesmos
domínios serem regidos por regulamentos.

b) Consumpção de uma reserva de densificação total

Quando a um órgão é atribuída competência legislativa para reger normativamente o âmbito


integral de uma reserva ou um domínio parcial de uma matéria reservada, ele deve esgotar
essa reserva ou esse domínio com uma disciplina legal. É-lhe interdito limitar-se a editar bases
ou diretrizes gerais para pressupunham que outro órgão venha completar esses enunciados
através de uma disciplina legislativa inovadora a qual lhe será vedada pela própria natureza da
reserva.

c) Taxatividade constitucional das delegações legislativas

Do art.º 111/2 resulta que as autorizações legislativas de um órgão a outro dependem de uma
expressão habilitante constitucional. Tal, por maioria de razão, exclui fenómenos de
substituição ou devolução de poderes legislativos entre órgãos constitucionais, não utilizados
pela lei fundamental. Assim, no caso de o GOV ser beneficiário de uma autorização legislativa
da AR não pode o mesmo subdelegar o poder de legislar sobre essa matéria nas ALRA. Tão
pouco pode a AR renunciar às competências legislativas reservadas, transferindo-as para
outros órgãos. Ainda assim, pode falar-se numa delegação implícita de poderes quando uma
declaração presidencial de Estado de exceção se habilita o GOV a legislar em manteigas
específicas da reserva de competência parlamentar, suprindo a necessidade de se obter uma
autorização legislativa.

d) “Tempus regit actum”

Se as normas constitucionais atributivas de competências legislativas forem revogadas por


força de uma reserva constitucional, a supressão desses poderes não afetará a validade das
leis produzidas ao abrigo do direito constitucional antigo, valendo o efeito da revisão
constitucional apenas para o futuro.

Trata-se de uma imposição do princípio da segurança jurídica (que salvaguarda a subsistência


dos atos válidos no momento da sua produção e o investimento da confiança do poder e dos
cidadãos nessa validade) bem como o do critério do respeito pelo mandato democrático do
legislador ao tempo da aprovação dessas leis.

Assim, se uma revisão constitucional retirar ao GOV a competência para legislar sobre uma
matéria, os decretos-leis produzidas até à data da entrada em vigor da lei de revisão
constitucional serão conformes à Constituição. Apenas eventuais decretos-leis aprovados após

71
essa data serão supervenientemente inconstitucionais, com fundamento num vício orgânico
(art.º 282/2).

e) Restrições ao regime de fixação de limites à atividade legislativa

Um órgão só pode limitar o exercício da competência legislativa de outro, NOS temos estritos
da Constituição. Nem a AR pode fixar numa lei de autorização legislativa limites ao diploma
autorizado tão estritos e detalhados que retirem o sentido útil ao diploma autorizado ou
removam a discricionariedade legislativa do GOV e das ALRA (exceções de utilização); nem tão
pouco pôde restringir-se à enunciação geral de matérias objeto de autorização e à fixação de
meros princípios genéricos (autorizações em branco). As bases gerais da reserva parlamentar
não podem, igualmente, ser tão pormenorizadas que neguem a sua própria natureza de
normas incompletas de essência paramétrica ou frustrem o seu desenvolvimento por parte de
outros atos legislativos.

f) Ausência de inovação de diploma legal que transponha a reserva


parlamentar

No causa de um decreto-lei reproduzir sem alterações substanciais o conteúdo de uma lei


parlamentar editada ao abrigo da reserva de competências da AR o referido decreto-lei
carecerá de inovação e, como tal, atento o seu conteúdo meramente repetitivo, não
enfermará de inconstitucionalidade orgânica.

2.2.4. Princípio do procedimento agravado

O Critério em consideração justifica o regime jurídico traduzido por uma maior rigidez ou força
passiva libertada por certas leis ordinárias.

Essa rigidez decorre da associação entre uma reserva de competência absoluta atribuída a um
órgão, em regra parlamentar, e um procedimento especializado e agravado que a Constituição
determina para a tramitação do mesmo modo. Estamos diante do critério que fundamenta o
regime das leis reforçadas pelo procedimento. Trata-se, no fundo do princípio que garante a
força passiva superior das constituições rígidas e que também opera em favor de certas leis
ordinárias qualificadas.

A reserva das leis ordinárias é, no ordenamento português, uma reserva fechada de ato
legislativo dado que pressupõe que uma matéria se encontre exclusivamente afetada à
regulação de uma lei de tramitação especializada, encontrando-se, por seu turno, a mesma
esfera substancial , incerta concentricamente no domínio da reserva absoluta de competência
de um órgão parlamentar.

Veja-se por exemplo, em matéria do regime de associações e partidos políticos. O art.º 164/h
inclui-se na reserva absoluta de competência legislativa da AR, vedando a possibilidade do
GOV e ALRA, o mesmo mediante uma utilização, poderem dispor sobre a matéria através de

72
ato legislativo. Cumulativamente, o facto de a matéria integrar reserva de lei orgânica (art.º
166/2) proíbe qualquer outra lei da AR, não sujeita ao procedimento especializado e agravado
das leis orgânicas, de poder igualmente reger o referido domínio.

Resulta ser a essencialidade política da matéria coberta pela reserva que justifica a finalidade
da garantia atribuída pela Constituição à normação que rege a matéria integrada numa
“reserva clausurada”, procurando esse tipo de reserva corporizar o mais elevado grau de
exclusividade existente na legislação ordinária. Esta exclusividade traduz-se, não apenas na
impossibilidade de se proceder à disciplina da reserva reforçada pelo procedimento por via de
legislação delegada, mas igualmente no poder defensivo que a mesma oferece contra a
incursão de leis comuns oriundas do mesmo órgão parlamentar que careçam uma forma de
produção tão exigente como a que é fixada para a legislação reforçada.

No que concerne precisamente ao procedimento produtivo, este só releva como condição de


reforço de uma dada lei se sustentar não apenas na natureza especial, mas também de
carácter agravado.

O procedimento especial apresenta sempre um desvio em relação a um procedimento que a


Constituição fixa como principal, para efeitos da produção legislativa comum. Um
procedimento especial é agravado, se o trâmite adicional que acrescenta ao procedimento
principal se traduzir numa exigência formal que releve diretamente na limitação da vontade
política do decisor. É o caso das leis parlamentares resultantes de uma iniciativa reservada a
outro órgão (lei do orçamento de Estado), editadas mediante maioria qualificada (leis
orgânicas) e leis sujeitas a aprovação referendaria ou a parecer vinculativo de outros órgãos.

A tramitação agravada destina-se a produzir uma decisão que é política e normativamente


mais intensa do que a comum, em razão de maior dificuldade ou exigência na sua obtenção, a
qual reclama consensos políticos mais alargados, que tornarão mais complexa a criação,
revogação e alteração das normas correspondentes, as quais terão vocação para uma maior
durabilidade.

As leis com procedimentos agravado podem, no respeito do princípio da hierarquia formal e


da competência, revogar ou alterar leis de caráter comum, mas não podem no caso de
modificação, conferir ou transmitir a rigidez que lhes é própria às normas legais simples e cuja
alteração procedem. Daí que se considere inconstitucional, não apenas por violação do
princípio da segurança jurídica mas fundamentalmente pelo excesso de forma que, leis
portadoras de maior rigidez em razão do seu procedimento agravado incorporem de forma
solene, normas respeitantes a matérias que se integram no domínio legislativo ordinário ou
comum. Isto, sem embargo de o TC ter expressado uma orientação dominante no sentido de
não sustentar a tese da inconstitucionalidade e de parte da doutrina que defende essa mesma
inconstitucionalidade se pronunciar a favor da sua “irrelevância” e defender que a lei comum
pode revogar ou alterar o “cavaleiro reforçado” na medida em que este constitui também,
direito comum.

2.3. Cúmulo, colisão e preferência de critérios

73
O critério da competência afigura-se como princípio estruturante “mais forte”, limitando a
incidência dos demais (nenhuma norma pode incidir em matérias de reserva, formal ou
orgânica, de natureza alheia).

O critério hierárquico prevalece sobre os critérios lógicos, completa o critério da competência


e pode combinar-se, em relações várias, com o critério do procedimento agravando.

O critério do procedimento agravado promove relações de separação ou lateralidade entre


categorias legais atribuídos à competência do mesmo órgão. É, pois, um critério complementar
Em relação aos princípios da hierarquia e da competência.

Os critérios lógicos revestem a natureza supletiva em face dos teológicos, ocupando o critério
cronológico a última posição na cadeia de subjetividade.

Subseção II: Qualidades operativas dos atos legislativos

1. Noção de operatividade legislativa

A operatividade de um ato legislativo pode ser definida como “lei em ação”, ou seja, como um
conjunto de efeitos projetados pela norma legal, nas suas relações de tensão com outros atos
normativos, seja da mesma natureza, seja de natureza distinta. A operatividade funda-se num
conjunto de pressupostos e de elementos.

A “forma” e o “valor normativo” são pressupostos permanentes de operatividade da norma


legal. Já a força e parametricidade material configuram-se como os seus elementos
consequenciais que, sendo condicionados pelos pressupostos do ato legislativo, se exprimem
através dos efeitos jurídicos que o mesmo projeto sobre os atos.

Relativamente aos elementos, enquanto a força geral de lei, se assume como atributo
permanente da própria operatividade legislativa, já a parametricidade, que resulta das leis
dotadas de uma hierarquia material sobre outras, constitui um atributo de caráter eventual e
exclusivo desses atos legislativos hierarquicamente superiores.

1.1. Pressupostos

A. A forma de lei

A forma específica de lei é-nos dada pela determinação constitucional das 3 classes singulares
de ato legislativo envolvidas nos procedimentos de produção e a revelação previstos na
Constituição, são eles, a lei, o decreto-lei e o decreto legislativo regional (art.º 112/1).

O processo de identificação formal, ao crismar o ato com um título próprio, assume-se como
condição de ulterior valoração do regime produtivo da lei.

74
B. O valor normativo da lei

A Constituição refere-se à fórmula “valor de lei” para designar realidades distintas. Quando no
art.º 112/1 é determinado que estes atos têm o mesmo valor alude uma paridade hierárquico-
formal entre estes tipos de lei. Quando no nº3 alude ao “valor reforçado” de certas categorias
de legais, pretende referir-se ao regime operativo de certas leis nas relações de respeito que
impõe a outros atos legislativos.

É através do reconhecimento do regime jurídico de uma lei determinada, pressuposto por uma
dada forma e por um valor específico que se torna possível chegar à noção de “categoria
legal”. Esta define-se como um conjunto de atos legislativos que se caracterizam por um
regime jurídico específico que lhes confere uma produtividade própria.

A configuração do regime jurídico, resulta da incidência de critérios lógicos e teleológicos na


morfologia dessa categoria.

Compare-se por exemplo, a operatividade de uma lei de bases da reserva parlamentar com
uma lei aprovada por maioria de 2/3 que discipline a atividade de regulação da comunicação
social: a primeira vincula diplomas legais de desenvolvimento e pode ser revogada a todo o
tempo por qualquer lei parlamentar; a segunda esgota integralmente a sua reserva sem ter de
coexistir com outros atos legislativos aprovados por idêntica maioria. Por consequente, a
forma de lei da AR pode assumir uma multiplicidade de categorias, tais como a categoria
formal de lei orgânica, o estatuto de autonomia regional, a lei comum, a lei de bases, a lei de
autorização legislativa e uma sensível variedade de leis de valor reforçado pelo procedimento.

Os decretos-leis do GOV podem também diferenciar-se em diversas categorias, ditadas na sua


individualidade em razão do tipo de competências e fins constitucionais que lhes inerem.
Pode-se deste modo tomar como referência, decretos-leis imitidos no âmbito da competência
concorrencial, complementar, delegada e na esfera da competência exclusiva.

Finalmente, dentro dos mesmos pressupostos a forma de decreto legislativo regional pode
abarcar categorias pautadas por competências de tipo “comum”, “complementar”, “delegado”
e mínimo.

1.2. Atributos consequenciais

A. Atributos com natureza permanente: a força de lei

A forma específica de lei caracteriza-se por ser uma manifestação de prevalência ocorrida na
esfera das relações entre leis e que produz imediata e necessariamente consequências
jurídicas no universo eficácia. Traduz-se numa potência relacional que permite a uma dada lei
revogar, alterar ou suspender outro ato legislativo (força ativa), bem como, se for caso disso,
resistia à afetação da sua eficácia por parte de determinadas normas legais supervenientes
(força passiva).

75
A força de lei manifesta-se através de institutos próprios como os da revogação em sentido
amplo e da suspensão ou privação de eficácia de uma lei originária, por parte de uma lei
superveniente.

Impõem-se finalmente sublinhar que a “força de lei”, embora congregue, por regra, na sua
dimensão ativa uma qualidade inovadora, não se configura como um sinónimo de inovação.
Assim, se uma norma legal incidir sobre um domínio que antes não se encontrava coberto por
uma lei, ela inova nessa mesma esfera jurídica, mas não liberta uma força específica de lei,
pois não estabelece nenhuma relação de tensão com qualquer outra disposição normativa pré-
existente. Contudo ela inovará e libertará simultaneamente uma força específica de lei se
revogar ou alterar outra lei, já que modifica constitutivamente o direito pré-existente, o
mesmo quando o suprime sem substituição.

Contrariamente à força geral, que prima pela sua constância virtualmente uniforme, a força
específica reveste caráter variável, sendo a sua “voltagem” operativa Modulada pelo valor das
normas em tensão bem como do tipo de relação estabelecido entre elas.

A mesma categoria legal pode, deste modo, segregar forças de grau variável, em conformidade
com a categoria do ato legislativo com o qual se encontre em contraste com uma dada relação
particular. Uma lei comum da AR pode revogar um decreto-lei no âmbito das matérias da
competência concorrencial com o GOV mas não pode revogar uma lei orgânica, emitida pela
mesma AR, já que esta é aprovada através de um procedimento formativo mais exigente,
resistindo à revogação.

Finalmente, a força específica de lei, tal como sucede com a força geral, ostenta duas vertentes
já referidas: a força ativa (que habilita uma lei a afetar a eficácia de outros atos legislativos
anteriores) e a da força passiva (que lhe permite resistir à revogação ou suspensão por parte
de atos legislativos supervenientes). As leis reforçadas pelo procedimento agravado supõem
uma maior força passiva, como é o caso das leis orgânicas e a legislação aprovada por maioria
de 2/3 e de atos legislativos que pressupõe a existência de uma reserva heterónoma de
iniciativa no seu processo produtivo. A diferenciação de intensidade entre forças específicas de
lei na sua dimensão passiva é muito significativa: a rigidez legal revela ser muito mais elevado
no caso dos estatutos já que a inércia dos parlamentos regionais pode levar a uma perenização
temporal das normas estatutárias mesmo quando inconstitucionais; elevada, no caso das leis e
disposições legais aprovadas por maioria de 2/3; média no caso de qualquer totalidade de leis
orgânicas e a lei do orçamento.

Da força de lei deve distinguir-se a noção de “força a fim da lei”, expressão referencial que não
reveste caráter homogénico nas suas diversas manifestações, aproximando-se o seu “poder de
obrigar”, mais do fenómeno da imperatividade, do que da força legal em sentido próprio.
Assume aqui especial destaque a “força obrigatória geral” inerente às declarações de
inconstitucionalidade com eficácia “erga-omnes” ditada pelo TC.

B. atributos de caráter eventual: parametricidade como atributo


eventual da operatividade das leis investidas numa posição de
hierarquia material

76
A parametricidade material constitui um atributo eventual dos atos legislativos, tendo em
conta que só manifesta a sua presença em leis materialmente interpostas, ou seja, leis de
hierarquia material superior a outras.

Podemos defini-a como efeito de prevalência material que resulta da capacidade outorgada
constitucionalmente uma categoria legal para poder condicionar, em termos de validade, o
conteúdo de outra categoria de lei.

Semelhante tipo de instituto prossegue no plano político, aquela que é a doutrina italiana
qualificado como manifestações de poder jurídico-Público que pode revestir, seja natureza
puramente ordenadora seja, no caso da parametricidade legal uma qualidade juridicamente
subordinante de uma lei sobre outra. São, por exemplo, materialmente paramétricas, os atos
legislativos que, com as leis de base e autorizações legislativas, constituem pressuposto
normativo necessário de outras leis (art.º 112/3) ou seja, podem operar como o seu ato-
condição e vincular o respetivo conteúdo.

2. Distinção entre força de lei e parametricidade material

Uma determinada sensibilidade doutrinária solde a noção de “força específica” de lei à noção
de parametricidade material, não ficando, sequer, claro que nela se integre a rigidez das leis
reforçadas pelo procedimento. Força específica consistiria na peculiar consistência atribuída a
certas leis em face de outras, na medida em que não podem ser afetadas ou contraditas por
elas, à margem do postulado lex posterior. E dá como exemplos dessa força a subordinação às
leis de base e de autorização, dos atos legislativos de desenvolvimento e normas legais
autorizadas.

Não é possível concordar com este entendimento, por três ordens de razões.

Em primeiro lugar força de lei e parametricidade material não devem ser confundidas ou
assimiladas. Enquanto a força de lei constitui um atributo permanente da operatividade desta
norma, que comporta uma dimensão ativa e passiva, a parametricidade material firma-se
como um atributo eventual, apenas presente nas leis de hierarquia superior e que concentra
os respetivos efeitos numa dimensão ativa, no sentido do condicionamento do conteúdo e de
outras leis. Por outro lado, enquanto a força pode implicar, na dimensão de prevalência formal
ativa, a substituição de uma lei por outra na regulação de uma situação de facto, a
parametricidade destaca-se como um fenómeno de prevalência material, pautado pela
coexistência simultânea das normas que são sujeito e objeto da mesma relação (por exemplo,
a lei de bases ou a lei de enquadramento destinam-se a vigorar simultaneamente com os
decretos-leis que as desenvolveram. Por fim, enquanto a força de lei exibe
preponderantemente os seus efeitos na esfera de eficácia, e apenas muito circunscritamente
no da validade na esfera da força passiva, j parametricidade material liberta a sua
consequencialidade exclusivamente no universo da validade.

Em segundo lugar, se a posição doutrinária em apreço adota o propósito da quadricromia da


força de lei uma noção central da na eficácia da lei (potência para revogar, modificar,
suspender e resistir à revogação) não se entende como é que logra conciliá-la com uma noção
de força específica de lei que liga duvidosamente aos efeitos de uma parametricidade material
que, na sua dimensão ativa, não tem direitamente a ver com o poder de uma lei revogar ou

77
suspender outras leis, mas sim com as relações de vinculação e entre o conteúdo de leis de
diferente hierarquia substancial.

Em terceiro e último lugar, no plano doutrinal a parametricidade material nunca poderia ser,
em bom rigor, expressão de uma força específica ativa ou passiva de lei, nem à luz de toda a
doutrina comparada nem sequer a luz da quadricromia guisada pela ilustre posição doutrinária
em exame a respeito das forças de lei.

Quando, por exemplo, uma lei de bases inova, fá-lo nos mesmos termos de qualquer lei
comum com conteúdo primário, pelo que não exprime qualquer força específica de lei. E
quando revoga outra lei, exprime uma força ativa rigorosamente igual a de qualquer lei que
revoga outra, pelo que é possível defender que, por regra, todas as leis ordinárias dispõem da
mesma força ativa.

Quando se entende que uma lei de bases não pode ser revogada por um decreto-lei
complementar, tal impossibilidade não decorre de qualquer manifestação de força passiva
específica da mesma lei paramétrica, mas de um conjunto de critérios de outra natureza:

 Se a lei de bases se insere na reserva absoluta ou relativa de competência da AR, é o


critério da competência que impede primariamente essa revogação por um ato
legislativo do GOV, avulso ou complementar, e não a um qualquer princípio preclusivo
da prevalência da lex posterior;
 O facto de um decreto-lei comum e de pormenor poder revogar uma lei parlamentar
de bases na esfera de competência concorrencial entre o GOV e a AR reforça a
incidência do critério competencial e demonstra que essas leis de base não dispõe de
qualquer força específica passiva, e a impossibilidade de o mesmo decreto-lei poder
revogar a lei de bases no caso de voluntariamente a invocar como seu padrão de
referência estriba-se em razões de ordem lógica e finalística, decorrentes da
autovinculação à supremacia material da mesma lei (art.º 112/2);
 Se se tratar de uma autorização legislativa, é apenas um efeito da conjugação do
princípio da hierarquia material associado ao princípio de competência que veda a
revogação da lei de autorização pelo ato legislativo autorizado, isto na medida em que,
não só o ato subordinado não pode revogar o ato subordinante (art.º 112/2), mas
também porque, à luz do princípio da competência, o órgão eventualmente
competente não pode, sem autorização, ditar leis na esfera reservada do órgão
normalmente competente e, por maioria de razão, revogar leis habilitantes que o
tenham autorizado a legislar condicionalmente em matérias situadas na mesma
esfera.

78
Capítulo II: Categorias de atos legislativos

1. Atos legislativos comuns e atos legislativos com valor reforçado: noção geral

Os atos legislativos comuns, no ordenamento constitucional positivo português devem definir-


se como todos aqueles:

 Cujo procedimento formativo corresponda ao itinerário geral de produção ordinária


fixado na Constituição;
 Cujas normas se encontrem investidas numa hierarquia comum, no respeitante aos
demais atos legislativos.

Já as leis com valor reforçado, atenta a conjugação dos critérios previstos no art.º 112/3 e
281/b, são todas as normas legais que se devam fazer respeitar, passiva ou ativamente, por
outros atos legislativos, sob pena de ilegalidade.

A relação de respeito passivo é dada por procedimentos agravados de produção, como o das
leis orgânicas, das leis aprovadas por 2/3 e das leis geradas por reservas heterónomas de
iniciativa que aumentam a rigidez das respetivas normas e impedem a sua revogação por
outros atos produzidos através de um procedimento distinto. A relação de respeito ativo é
dada pela aptidão de certa leis em condicionarem o conteúdo de outras, constituindo-se como
seu parâmetro necessário, como sucede com as leis de base, leis de enquadramento e leis de
autorização.

As relações de respeito ativo e passivo entroncam em critérios que na maioria dos casos não
se cumulam entre si, sem prejuízo de o mesmo conjunto circunscrito leis reforçadas se
estribarem, simultaneamente, nos dois critérios (estatutos político-administrativos, leis das
grandes opções dos planos, lei de orçamento de Estado, lei quadro das reprivatizações e
algumas leis orgânicas de bases.

2. Introdução à génese das leis com valor reforçado no direito comparado e no


direito Internacional

2.1. Considerações gerais sobre as leis com valor reforçado no direito


comparado: introdução histórico-jurídica e uma noção de lei reforçada

A noção difusa de “lei reforçada” começou por assumir uma dimensão normativa
constitucional, tendo repousado na consciencialização, por parte de alguns autores, da
vulnerabilidade das constituições flexíveis relativamente à ação revogatória do legislador
ordinário. Carlo Esposito assinalou o facto de certas leis de revisão terem passado, depois de
1929, a ser objeto de um parecer obrigatório não vinculativo por parte de um órgão não
legislativo. Na sua opinião, esse parecer tornaria menos ágil o processo de revisão, pelo que as
vais de reforma constitucional foram designadas de “reforçadas”, tendo em conta o facto de

79
libertarem uma maior rigidez ou força passiva, a qual vedaria a sua revogação por leis
desprovidas do mesmo “iter” consultivo

O team a lei reforçada alcançou vigência com as constituições rígidas, a mesma rigidez foi
transportada para o campo de uma legislação ordinária que, ainda marcada pela tradição
inerente ao modelo do Estado liberal, exibiria uma notável simplificação no procedimento
produtivo e uma essência relativamente unitária no respeitante à sua potência.

A construção originária de lei reforçada deveu-se a Ferrari, tendo como pano de fundo a
Constituição italiana. Para esse autor, todos os atos legislativos que, nos termos daquela
Constituição, viessem adicionados ao respetivo procedimento produtivo pareceres
obrigatórios, referendos e outros trâmites suplementares em relação ao procedimento comum
seriam “reforçados” e, como tal, irrevogáveis por parte de outras leis desprovidas de idêntico
“iter”. A “força passiva” majorada de que estas leis seriam detentoras, posicioná-las-ia num
escalão superior ao do das restantes leis ordinárias, dentro da construção clássica, segundo o
qual, a força estaria sempre agregada à hierarquia.

A tese de Ferrari foi recomposta por uma doutrina mais atualista, a qual, privilegiou a
necessidade de uma constitucionalização dos trâmites formais especializados; determinou os
mesmos trâmites uma maior exigência em termos de agravamento e o limitou a necessária
relação casual entre maior força passiva e hierarquia.

Por lei reforçada nos sistemas jurídicos estrangeiros entende-se todo o ato legislativo que,
NOS termos constitucionais discipline uma matéria que lhe é exclusivamente reservada e seja
produzido, revogado, alterado ou suspenso, na observância de um trâmite formal agravado
em relação ao procedimento legislativo comum, trâmite que se mostre suscetível de relevar
diretamente na potenciação da respetiva força.

2.2. A noção de lei reforçada no texto constitucional em vigor

A. Uma identificação pretoriana de lei reforçada centrada na


construção dualista

A Revisão constitucional de 1997 optou por conceder uma noção de lei com valor reforçado
pautada pela intenção pragmática de criar um bloco composto por leis de regime heterogéneo
que pudesse funcionar como padrão de controlo de legalidade de outras leis. O decisor acabou
por convocar todos os critérios doutrinários examinados, aproximando-se da posição dualista.
Esta convoca simultaneamente critérios ligados à parametricidade material e ao procedimento
agravado, como requisitos alternativos e não necessariamente cumulativos de qualificação de
valor reforçado.

A. Dois critérios procedimentais

Por um lado, mediante a inserção de dois critérios formais, o art.º 112 passou a identificar,
explicitamente como reforçadas, as leis orgânicas e leis aprovadas por maioria de 2/3. Em

80
suma, leis cujo reforço se centra na maioria qualificada para a sua aprovação e por isso são
dotadas de maior rigidez ou força passiva do que as leis comuns.

B. O critério material da parametricidade pressuposta

Por outro lado, mediante um terceiro critério, este material, foi inserido um conceito jurídico
indeterminado que permite que, por via da interpretação, fossem identificadas como
reforçadas as “leis que sejam pressuposto normativo necessário de outras”, as leis de base; as
leis de autorização legislativa e as leis de enquadramento. Do art.º 112/2 retira-se a natureza
“pressuposta” das mesmas leis a qual assenta no seu poder subordinante em relação ao
conteúdo de decretos-leis que às mesmas se encontram submetidos.

C. O critério estrutural residual da imposição ativa e passiva de respeito

Através de um critério misto de caráter residual determinou-se que seriam reforçadas as leis
que “por outras devam ser respeitadas”. Trata-se de um conceito indeterminado que absorve
aparentemente os outros anteriormente referidos e abarca outras leis reforçadas
extravagantes. Ela permite atribuir valor reforçado a:

 Leis que, não sendo ato-condição ou pressuposto necessário da emissão de outras,


devam fazer-se respeitar nos termos constitucionais por certos atos legislativos que
venham a ser emitidos, o que será o caso das leis de base e de enquadramento do
universo concorrencial quando invocados por decretos-leis e decretos legislativos
regionais como se o parâmetro;
 Leis duplamente reforçadas, seja por força passiva ditada por um procedimento
agravado, seja em função da sua parametricidade material relativamente a outros atos
legislativos: é o caso dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas, lei-
quadro das reprivatizações, leis das grandes opções dos planos, leis do orçamento de
Estado e decretos legislativos regionais que aprovam os orçamentos das regiões
insulares

Estes quatro critérios estão previstos no art.º 112/3, acabaram por se reconduzir
teleologicamente a dois critérios centrais, passíveis de se acumularem na mesma norma.
Trata-se afinal:

 Da atribuição de valor reforçado a leis que, em razão do seu procedimento especial e


agravado, soldado a uma reserva parlamentar, ostentem uma maior rigidez ou força
passiva do que a legislação comum;
 A da atribuição de valor reforçado às leis que sejam parâmetro material de outras, seja
por constituírem seu pressuposto necessário, seja porque devam ser respeitadas pelas
segundas.

B. Opção constitucional por um critério não dogmático de definição


de lei com valor reforçado

81
Nada existe em comum no regime jurídico das leis apenas rigidificadas pelo procedimento
(como é o caso da maioria das leis orgânicas) e das leis que apenas operam como parâmetros
materiais de outras (leis de base e leis de autorização legislativa).

Conjugando o art.º 112/3 com os art.º 280 e 281 infere-se que o único objetivo visível que terá
assistido aos autores da revisão, terá residido na intenção de criar com o conceito de valor
reforçado, um padrão normativo unificado para efeito de o mesmo servir de parâmetro de
fiscalização da legalidade de outras normas.

Lei com um valor reforçado equivalerá, deste modo, à noção de “bloco legal de
constitucionalidade” aqui as doutrinas espanhola e francesa fazem menção. Em Portugal, esse
complexo normativo assume a característica particular de “bloco de legalidade qualificada”,
pelo facto de o mesmo complexo de leis reforçadas constituir um padrão de fiscalização da
legalidade de leis, que se define como um controlo de validade normativo paralelo ao controle
de constitucionalidade.

A lei com valor reforçado passou, portanto, a ser definida, não em razão de atributos
estruturais e permanentes de caráter próprio, mas sim em função de um regime jurisdicional
extrínseco às mesmas, mas que garante contra violações perpetradas por atos legislativos de
distinta natureza.

Assim, são consideradas leis com valor reforçado os atos legislativos que, NOS termos da
mesma Constituição, devam ser respeitados por outras leis, constituindo o sistema de
fiscalização da legalidade, o instituto de garantia jurisdicional que assegura essa exigência de
respeito.

C. Observações críticas à noção de lei com valor reforçado plasmada


pela revisão de 1997

Semelhante concessão de lei reforçada gerada pela revisão de 1997 merece um conjunto de
severos aparos.

 Desfigurou-se uma noção dogmática para existente de lei reforçada centrada na


rigidez de certas categorias legais, para converter o novo conceito num “albergue
espanhol” de leis com regime totalmente dissemelhante, apenas com o fim de
reanimar a fiscalização da legalidade das leis que consiste num sistema de controlo
normativo inútil;
 Utilizou-se para a identificação das mesmas leis uma criteriologia tecnicamente
deficiente pautada pela mistura não cumulativa de critérios formais (leis orgânicas
atos inominados sujeitos a tramitação agravada por 2/3) e um critério material (o do
conceito jurídico indeterminado da lei pressuposta), podendo um quarto critério, o da
relação de respeito, englobar redundantemente todas as subespécies reforçadas;
 Criou-se pragmaticamente uma noção de lei reforçada “para todas as estações”, que
mostra ser portadora de uma empobrecedora tautologia caracterológica, a qual leva a
que a definição de lei reforçada não possa ser operada sem o apelo ao conceito do
controlo da legalidade e controlo da legalidade não possa ser definido sem a
convocação da categoria de lei com valor reforçado. A lei reforçada nasce para ser
respeitada por outras leis, sob pena de ilegalidade das restantes leis; e a ilegalidade

82
surge para se firmar como relação de desvalor que atinge os atos que violam as leis
reforçadas.

D. Leis reforçadas em sentido próprio e em sentido impróprio e leis


duplamente reforçadas

No plano da estrutura normativa, enquanto as leis reforçadas pelo procedimento estribam o


seu valor normativo em elementos constitutivos orgânico-formais (reserva parlamentar
exclusiva associada a um procedimento agravado), a hierarquia material ou parametricidade
assume-se como um atributo puramente substancial (supremacia funcional do conteúdo
diretivo de uma lei sobre outra).

Tomando Como referência a esfera político-institucional do poder legislativo, enquanto que as


leis reforçadas pelo procedimento constituem uma expressão exclusiva do poder parlamentar,
as leis reforçadas pela hierarquia material resultam de uma titularidade pluri-institucional da
função legiferante. Na verdade, as leis materialmente paramétricas podem ser emitidas por
diversos órgãos.

No que concerne ao respetivo regime operativo, enquanto as leis reforçadas


procedimentalizadas constituem atos de densidade variável que manifestam os seus efeitos
excludentes da incidência de outras normas legais através da rigidez presente na sua dimensão
passiva, já as leis materialmente paramétricas albergam normas incompletas, que exprimem a
se sua operatividade por via do seu lado ativo, vinculando o conteúdo de outros atos.

No que respeita à respetiva finalidade as leis reforçadas pelo procedimento destinam-se a


limitar o decisor maioritário, favorecendo através de uma “democracia de acordo”, tanto a
codecisão entre maiorias e minorias, como concertos fiduciários entre poderes supremos, em
matérias caracterizadas pela sua maior essencialidade política. Já a grande maioria das leis
paramétricas-diretivas respeitam antes a partilha ou divisão de tarefas no exercício da função
legislativa bem como à determinação de denominadores comuns de ação normativa que
reduzam à unidade, legislação dispersiva.

É importante subdistinguir:

 Leis reforçadas em sentido “próprio” que correspondem às leis ordinárias rigidificadas


pelo procedimento (caso da maioria das leis orgânicas e leis de enquadramento e
ainda leis de autorização legislativa);
 Leis Reforçadas em sentido impróprio, que não são atos legislativos materialmente
paramétricos na medida em que estabelecem por imposição constitucional relações de
hierarquia substancial sobre outros atos legislativos;
 Leis duplamente reforçadas, as quais cumulam os predicados das duas categorias, ou
seja, são portadoras, em razão do seu procedimento agravado, de uma maior rigidez
do que a legislação comum e, simultaneamente, vinculam materialmente o conteúdo
de outras normas (estatutos político-administrativos, lei do orçamento de Estado e um
conjunto de leis orgânicas e algumas leis orgânicas que operam como leis de bases e
de leis de enquadramento

83
3. Apreciação na especialidade às categorias legais com valor reforçado

3.1. Leis reforçadas em sentido próprio ou “procedimentalizadas”

3.1.1. Finalidade constitucional dos procedimentos agravados na fase de


aprovação

As leis agravadas na sua fase constitutiva através de uma maioria qualificada têm por fim
valorizar o “status” das minorias políticas intraparlamentares, em geral, e o das oposições, em
especial.

O critério maioritário de decisão legislativa define-se como uma unidade de conta seletiva que
permite a legitimação de uma decisão adotada pela maioria simples dos votos obtidos num
colégio determinado, configurando a maioria mínima passível para suportar uma deliberação.
Sendo um facto que, sob um ponto de vista utilitário, ele consiste no método mais adequado
para servir tal governabilidade, tal realidade só por si não confere uma dimensão axiológica,
dado poder servir em abstrato qualquer tipo de ordem de domínio.

É o “princípio democrático” no seu sentido político que emerge como fundamento legitimador
da democracia representativa e, por interposição desta, do critério maioritário de decisão.

Em termos da organização política do Estado, o princípio democrático pressupõe que seja


através do consentimento popular que o poder político venha a receber a sua legitimação para
poder decidir em nome de uma dada coletividade. De entre os corolários que integram o
código político da democracia emerge o da equivalência, autodeterminação e alternativa de
opções; a igualdade das vontades eleitorais expressas que são objeto de agregação; a seleção
positiva da opção que reúna a maior preferência de vontades; e a salvaguarda futuro e da
alternância política.

É, também, da necessária congruência entre o princípio da democracia política, o sistema


representativo e o critério maioritário, como seu o método de decisão, que este último obtém
o fundamento material.

Critérios de decisão sustentados em maiorias qualificadas favorecerão o protagonismo


bloqueador de minorias intensas, na génese e na alteração do direito.

A elevação do “quantum” de presenças e de soma de vontades necessárias à formação da


decisão legislativa num cenário parlamentar conformado por maiorias consociativas,
catalisadas por um sistema eleitoral de um tipo proporcional, constitui uma importante técnica
de controlo intraorgânico. Ela valoriza o papel dos parceiros minoritários das coligações,
parceiros de acordos parlamentares ou então codecisões entre a bancada maioritária e a
bancada oposicionista.

Pretende-se, igualmente, pacificar e estabilizar, pelo consenso, certas disciplinas normativas


que direta ou instrumentalmente se repercutem no regime político e económico, no sistema
político e na forma de Estado.

84
3.1.2. As leis orgânicas

A. Introdução

Única categoria unitária de lei reforçada cujo valor foi expressamente reconhecido pela
Constituição, a lei orgânica.

B. Objeto da reserva material

Desde a revisão de 1997 as leis orgânicas passaram a abarcar os seguintes domínios (art.º
166/2, conjugado com os art.º 164 e 255):

 Matérias político-institucionais de âmbito nacional;


 Disciplina de direitos fundamentais de natureza política;
 Matéria relativa à autonomia territorial, as quais se podem decompor em três
domínios: de natureza eleitoral, de natureza financeira e de natureza organizativa.

No espectro das leis orgânicas dotadas de objeto político-institucional de âmbito nacional será
possível subdistinguir: leis orgânicas relativas à formação da vontade política geral; leis
orgânicas atinentes à segurança nacional e leis orgânicas concernentes à garantia jurisdicional.

C. Mecânica operativa da reserva de lei orgânica

Integrando a reserva absoluta da AR as leis orgânicas acabam por corporizar uma “reserva de
ato” expressivamente “fechada”.

Tal facto pode ser demonstrado através de uma delimitação precisa das suas fronteiras
materiais. Assim:

 A reserva absoluta de competência exclui a possibilidade de decretos-leis ou decreto


legislativos regionais poderem dispor sobre a matéria correspondente (sob pena de
inconstitucionalidade orgânica);
 A reserva de procedimento agravado, que constitui um elemento protótipo da lei,
predica inconstitucionalidade formal, de qualquer lei parlamentar aprovada com
distinto de procedimento sobre o domínio material reservado da lei orgânica.

Como exceções relativas às referidas relações de pura lateralidade impostas pelo regime
reforçado destas leis, temos o caso duas leis orgânicas que são materialmente paramétricas de
outros atos legislativos, como é o caso da lei orgânica de bases prevista no art.º 164/d e a lei
quadro acolhida no art.º 164/t. Estas leis orgânicas revestem natureza duplamente reforçada
pois, a par da sua força passiva em relação às demais leis parlamentares, favorecem um
quadro relacional de hierarquia material entre esta subclasse legal e legislação complementar
que procede ao respetivo desenvolvimento.

85
D. Requisitos formais

a) Título formal específico e numeração privativa

Enumeração exclusiva do art.º 166/2.

No que respeita ao trâmite agravado do seu procedimento produtivo assinala-se a existência


de um conjunto de atributos de reforço de carácter permanente, e outros de carácter
eventual.

b) Aprovação

O trâmite principal e agravado e permanente que determina a maior força jurídica passiva ou
rigidez da lei orgânica e que conforma o atributo central da sua identidade, radica na fase
constitutiva da sua edição e reside na aprovação, em votação final global, pela maioria
absoluta dos deputados em efetividade de funções (art.º 168/5).

Outros requisitos de agravamento permanente, embora circunscritos apenas a certas


subclasses de leis orgânicas, projetam-se na fase de aprovação da lei na especialidade. Em
regra, a votação na especialidade processa-se mediante a aprovação das normas por maioria
simples (art.º 116/3). Contudo ocorrem exceções:

 Existem leis orgânicas contendo disposições normativas referentes às matérias


previstas no art.º 148 e 149 e 239/2, as quais devem ser aprovadas na especialidade
em plenário por maioria de 2/3;
 Ainda existem leis orgânicas sujeitas à aprovação integral na especialidade por maioria
absoluta deputados efetivos (art.º 255).

Ainda dentro das especialidades circunscritas a certas leis desta natureza salienta-se o caso
singular das leis orgânicas relativas à eleição dos deputados das ALRA sujeitas a uma reserva
de iniciativa atribuída a parlamentos regionais, em tudo idêntica ao processo de produção das
revisões dos estatutos político-administrativos das regiões insulares (art.º 226/4)

c) Controlo de mérito: o veto qualificado

Um agravamento geral com caráter eventual, mas relevante emerge na fase de controlo de
mérito, na medida em que, nos termos do art.º 136/3, se o PR vetar politicamente o decreto, a
superação do mesmo veto processa-se mediante confirmação do diploma por maioria de 2/3
dos deputados presentes desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade
de funções (veto presidencial qualificado).

d) Fiscalização preventiva

86
Fora do círculo produtivo em sentido estrito, embora entremeado no seu procedimento de
formação, emergem algumas especialidades no processo de fiscalização preventiva das leis
orgânicas.

Trata-se, em primeiro lugar, do alargamento do espectro de órgãos legitimados a iniciar


semelhante processo de controlo ao PM e a 1/5 dos deputados da AR (art.º 278/4). E trata-se,
em segundo lugar, no regime de “promulgação vedada” que impede ao PR de promulgar o
decreto:

 Durante o prazo de 8 dias volvido sobre o envio do mesmo diploma ao PM e aos


grupos parlamentares pelo PAR, para que os mesmos possam ter um prazo suficiente
de reflexão para suscitar a fiscalização preventiva;
 Tendo sido desencadeado o processo de fiscalização preventiva enquanto o TC não se
pronunciar sobre a questão (art.º 278/7).

E. Critérios temporais de qualificação das normas legais orgânicas

As leis ordinárias aprovadas em momento anterior à revisão constitucional de 2004 que


disciplinavam as matérias que têm vindo a ser integradas na reserva orgânica não assumem
tecnicamente natureza de lei orgânica, por efeito automático para essas revisões, embora
sejam corretamente designadas como tal. Tal conclusão decorre do facto de as mesmas não
integrarem objetivamente os elementos típicos de identificação e qualificação das leis
orgânicas, já que foram produzidas antes da criação desta categoria pela Constituição,
mediante um procedimento legislativo comum.

3.1.4. Leis e disposições de leis aprovadas por uma maioria de dois terços

A. Uma diferenciação de institutos normativos

Embora sejam qualificadas no art.º 112/3 como leis que carecem de maioria de 2/3 as normas
previstas no art.º 168/6 não podem ser na sua totalidade designadas como “leis”.

Nas normas com o referido preceito, é preciso distinguir:

 Duas “leis” que na sua disciplina jurídica necessária carecem, em tese, de ser
aprovadas por maioria de 2/3 (como a entidade reguladora da comunicação social e o
direito de voto dos cidadãos portugueses para a eleição do PR, com relevo para os que
residem no estrangeiro), nos termos do art.º 168/ a e c;
 Uma diversidade de normas ou disposições de leis que regulam, respetivamente: os
limites à renovação sucessiva de mandatos dos titulares a cargos políticos executivos
(art.º 118/2); as disposições de leis que regem o número mínimo e máximo de
deputados da AR (art.º 148) e a definição dos círculos eleitorais relativos à AR, bem
como o número de deputados (art.º 149); entre outros.

87
B. Subespécies de atos legislativos “hiper-reforçados” pelo
procedimento

a) As leis aprovadas pela maioria de dois terços

O regime procedimental previsto no art.º 168/6 que consagra a aprovação de leis e normas
legais por maioria de 2/3, tem em primeiro lugar por objeto as leis previstas no art.º 168/6 a e
c.

A Constituição não esclarece se a fase de aprovação que requer maioria qualificada se resume
à da votação final global ou engloba também a votação na especialidade e na generalidade.
Julga-se devido à sintaxe da norma que esta operará em todas as votações.

Assim o art.º 168, apesar de haver uma divergência no setor doutrinário, não hesita nenhuma
das três votações, a votação na especialidade conforma um momento decisivo da génese da
lei, onde a mesma é votada norma a norma, fazendo sentido que o assentimento alargado se
faça em relação a cada norma, por identidade de razão com a aprovação das normas de
revisão constitucional; e a ser dispensado um estádio de votação esse seria o da votação na
generalidade, o qual constitui um mero filtro dos diplomas submetidos ao subsequente estádio
de votação e que não garante a aprovação de qualquer norma.

Persiste, ainda, uma clara ambiguidade constitucional sobre se “a lei” que regula o exercício do
direito do art.º 121/2 será uma lei orgânica sujeita à aprovação na generalidade, especialidade
e votação final global por maioria de 2/3 ou será, antes, o ato legislativo inserido na categoria
dos atos aprovados por 2/3. Julga-se, independentemente do que possa ter sido
erroneamente decidido pelo legislador parlamentar, que a segunda posição parece material e
sistematicamente a mais correta, dado que:

 Textualmente, a lei em consideração nos termos do art.º 168/6/c conjugada com o


art.º 121/2 regula o exercício de um direito, o direito fundamental de voto dos
cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, definindo nomeadamente os seus
pressupostos, pelo que não deverá ser qualificada “a se” como uma lei eleitoral
respeitante à designação do PR, a qual é reserva de lei orgânica, mas uma lei que
guarda uma relação de instrumentalidade necessária em relação a um ato eleitoral;
 Textual e sistematicamente, o art.º 112/3 reporta-se, com autonomização em relação
às leis orgânicas, às leis que carecem de aprovação por maioria de 2/3, tendo-se o art.º
168/6/c e o proémio deste último preceito referido expressamente a esse ato, como
uma “lei” que carece de aprovação por maioria 2/3;
 O denominador comum das leis orgânicas traduz-se, no plano formal, na sua
aprovação por maioria absoluta dos deputados efetivos em votação final global, pelo
que se a lei em causa fosse crismada como orgânica, ela derrogaria disfuncionalmente
o atributo comum identitário das leis orgânicas, previsto no art.º 168/5, o que não
parece fazer já que não são admissíveis leis orgânicas fora do catálogo;
 Mesmo fosse tida como lei de objeto eleitoral, o referido ato constituiria uma
derrogação ou exceção constitucional a regra do art.º 164/a articulado com o art.º
166/2, o qual atribui à reserva de leis orgânicas a eleição dos titulares dos órgãos de
soberania, na medida em que o art.º 168/6/c atribuiria a uma lei de maioria mais

88
exigente do que a prevista para as leis orgânicas, a disciplina e uma dimensão do
regime eleitoral do PR.

b) Disposições de leis aprovadas na especialidade pela maioria de dois terços

Quanto a estas normas legislativas, haverá que considerar duas subespécies:

 Uma variante inserida como incidente, na votação na especialidade das leis orgânicas,
que incidam sobre matérias dos art.º 148 e 149 e 239/3;
 Uma variante introduzida, virtualmente, na votação na especialidade de uma lei
ordinária comum, respeitando ao domínio do art.º 164/o.

Trata-se de uma maioria móvel que, no caso de se registar a presença de todos os deputados
em efetividade de funções, atingirá um quantum idêntico àquele previsto para a aprovação de
leis de revisão constitucional.

No caso das disposições legislativas, a Constituição explicita em qual das fases de aprovação
tem um lugar o “iter” agravado. Parece-nos claro que apenas a votação na especialidade se
encontra pautada pelo quórum de deliberação agravada, processando-se as restantes votações
pela maioria fixada pela Constituição para a lei que transporta essas disposições. Isto porque,
em primeiro lugar, a Constituição alude a “normas” e a “disposições de leis”, ou seja, preceitos
constantes de leis e já não às próprias leis (art.º 168/6/a e c) só tendo sentido conceder a sua
deliberação por maioria qualificada, na votação na especialidade, depois:

 É nessa fase que um diploma deve ser votado norma a norma e, como tal, é nesse
estádio que se justificará que a disposição normativa reforçada possa ser objeto de
aprovação com uma maioria distinta das restantes normas que integram um mesmo
diploma;
 No que respeita às disposições que figurem como incrustações em leis orgânicas, caso
se adote a primeira doutrina, gerar-se-ia uma lacuna de colisão, tendo em
consideração o facto de o mesmo domínio dever revestir natureza de lei orgânica faria
a AR confrontar-se com duas maiorias distintas, para efeitos da votação final global.

c) A problemática do “veto qualificado”

Não deixa de causar perplexidade, pelo menos no caso de uma das leis aprovadas
integralmente por maioria de 2/3, que a mesma não se encontre sujeita a um veto qualificado.
Na verdade, a propósito das leis orgânicas que são aprovadas em votação final global por
maioria absoluta dos deputados efetivos, verificamos que o art.º 136 exige uma maioria
parlamentar mais onerosa para a superação do veto presidencial. Contudo, no caso das leis
aprovadas por 2/3 a Constituição é omissa, não as inscrevendo no bloco de atos e matérias do
art.º 136/3, para cujos decretos se requer em caso de veto a respetiva confirmação por uma
maioria pelo menos superior ou igual à da aprovação.

Esta lacuna constitucional poderia levar o intérprete a inserir essas leis no âmbito de aplicação
do art.º 136/2, o qual contém uma regra geral para o efeito da superação do veto simples, do
qual resultaria que a maioria absoluta de reversão de um veto aposto a essas duas leis seria,

89
ininteligivelmente, menos onerosa ou exigente do que a maioria da sua aprovação originária
ou seja, a maioria de 2/3. Tratar-se-ia de uma solução anacrónica sob o ponto de vista lógico e
teleológico.

Se no caso da lei que regula o voto dos portugueses residentes no estrangeiro para a eleição
do PR é possível “forçar” a sua confirmação por maioria de 2/3, igual à da aprovação, já que na
lei que aprova o regime da identidade reguladora da comunicação social, a maioria de
confirmação do diploma em caso de veto resultaria ser claramente menos exigente do que a
maioria de aprovação o que seria ilógico. Sendo a aprovação final global das duas leis do que
onerosa as leis orgânicas , considera-se que, por maioria de razão, as mesmas devem ser
submetidas ao regime agravado de confirmação das segundas, e não ao regime geral de
confirmação dos demais atos legislativos.

Já no tocante às leis orgânicas ou leis ordinárias simples onde se encontram incrustadas,


apenas, algumas disposições aprovadas por 2/3 a situação é distinta. Isto na medida em que
essas disposições são aprovadas na especialidade pela referida maioria qualificada e o critério
geral que preside no art.º 136 à escolha da maior onerosidade das maiorias de confirmação
reporta-se, não à maioria fixada na Constituição para a votação da especialidade, mas sim à
maioria prescrita para a votação final global dos referidos diplomas parlamentares ou então à
presença de determinadas matérias no conteúdo da referida legislação.

3.2. Leis reforçadas pela sua parametricidade material ou leis reforçadas em


sentido impróprio

3.2.1. As leis de bases

A. Noção

As leis de bases consistem numa categoria legal que contém princípios e diretrizes genéricas,
designados de “bases gerais”, que traçam as opções políticas primárias e fundamentais de um
determinado regime jurídico, cuja disciplina carece de ser desenvolvida e concretizada por
legislação subordinada de carácter comum.

Neste termos, as leis de base:

 São normas primárias de caráter incompleto, na medida em que os seus princípios


normativos e as suas diretrizes não revestem natureza auto-aplicativa, carecendo de
mediação e desenvolvimento por parte da legislação subordinada;
 São normas dotadas de uma supremacia hierárquica material, traduzida numa supra-
ordenação funcional em relação à legislação, que proceda ao desenvolvimento no
âmbito da mesma matéria;
 São normas portadoras de um “indirizzo político”, traduzido na definição de linhas
estruturantes e irradiadoras de uma disciplina uniforme para uma dada matéria,
constituindo um instrumento impositivo de uma generalidade normativa qualificada e
incompleta, que opere como ponto de união de multiplicidade de regimes legais
diversos.

90
B. Competência para a respetiva aprovação

Tanto a AR como o GOV como, ainda, as ALRA podem aprovar leis de bases. Cumpre, contudo,
referir que o círculo de maior essencialidade das bases gerais dos regimes jurídicos, em razão
da importância da matéria regulada, integra-se no âmbito da reserva de competência
legislativa da AR, consistindo numa manifestação do seu primado legiferante.

No espectro da edição desta categoria legal, a AR dispõe da faculdade de emitir leis de bases:

 No âmbito de duas matérias da sua reserva absoluta de competência (art.º 164/d e i);
 No âmbito da sua reserva relativa de competência (art.º 165/f, g, n, t, u e z);
 No âmbito da sua competência concorrencial alternada com o GOV e concorrência
paralela com as ALRA incidentes sobre matérias não numeradas na Constituição.

O GOV, por seu turno, pode também aprovar decretos-leis de bases:

 Mediante uma autorização legislativa, na esfera de reserva relativa da competência


legislativa da AR, nos domínios onde esta possa aprovar leis de base (art.º 198/b);
 No âmbito da concorrência alternada com a AR e concorrência paralela com as ALRA.

Quanto às ALRA, estas podem aprovar mediante autorização legislativa, decretos legislativos
regionais de bases nas matérias respeitantes a bases gerais previstas na reserva relativa de
competência da ar, com a exclusão de um conjunto determinado de matérias mencionadas no
art.º 227/b.

C. Competência para o desenvolvimento das leis de bases e seus


pressupostos

a) Competência alargada aos órgãos de soberania e parlamentos regionais

Resulta ser juridicamente pacífico que o GOV e as ALRA dispõe de competência para
desenvolver bases gerais aprovadas pelos próprios ou pela AR, na medida em que tal se
encontra explicitamente consagrado, respetivamente, no art.º 198/c e 227/c.

Registam-se, contudo, na doutrina, divergências teoréticas sobre se a AR pode, em


concorrência com o GOV, desenvolver leis de bases por si mesmo e editadas, bem como
decretos-leis de bases aprovados pelo GOV.

Trata-se de um matéria polémica que o TC já tomou uma posição. Pese a posição de princípio
que o CBM assume sobre a questão e que é favorável a uma reserva implícita de
desenvolvimento atribuída ao GOV, concede-se que o TC extrai do art.º 161/c a competência
genérica da AR para legislar sobre todas as matérias incluindo as referentes ao
desenvolvimento das leis de bases por ele aprovadas, seja no domínio reservado a este órgão,
seja na esfera concorrencial.

91
O TC começou por considerar que o desenvolvimento de leis de bases deveria ser feito “pelo
menos”, sob a forma de decreto-lei. Nestes termos, e pese o facto de essa faculdade de
desenvolvimento se ter como rara, ela encontra-se presente no discurso do mesmo TC e de
alguma prática pontual ocorrida nesse mesmo sentido. O facto é que uma lei parlamentar que
desenvolva uma lei de bases aprovada pela própria AR e contrarie as respetivas bases gerais
não será inválida porque este órgão é simultaneamente competente para aprovar os dois atos
legislativos e porque o art.º 112/2 não estabelece uma relação de subordinação entre as bases
e as leis comuns da AR.

Em face do exposto, a nossa defesa de princípio quanto à existência de uma reserva


governamental de desenvolvimento migrará para o campo do debate científico.

b) Reserva de ato legislativo no que respeita às nomas de desenvolvimento de


bases gerais

Todos os órgãos que dispõem de competência para desenvolver bases gerais não podem
proceder a esse identificação, senão através de ato legislativo. Trata-se de uma imposição
constitucional que deflui do art.º 198/c e 227/c, bem como do art.º 112/2. Será, deste modo,
inconstitucional o desenvolvimento de princípios de bases gerais mediante regulamento
administrativo.

D. Categorias de lei de bases e respetivo regime

a) Introdução

É possível subdistinguir duas categorias de lei de bases: as bases gerais editadas ao abrigo das
competências concorrenciais entre o GOV e a AR e as bases que integram é reserva de
competência da AR.

b) As bases gerais reservadas à AR

No que tange às bases gerais inscritas na reserva de competência legislativa da AR vimos que
podem as mesmas ser aprovadas é exclusivamente pela mesma AR (art.º 164) ou serem
também aprovadas pelo GOV e, em certas matérias, pelas ALRA (bases do art.º 165 conjugado
com art.º 198/b e 227/b).

As cadeias normativas inerentes a uma ou outra subcategoria de leis de bases reportadas à


reserva parlamentar são distintas, na medida em que as bases gerais autorizadas têm como
norma legal parâmetro, no topo da cadeia, não uma base geral mas uma lei de autorização
legislativa que vinculará o ato legislativo utilizado que aprove as referidas bases.

As bases gerais, nos termos do art.º 112/2 e 3 são ato-pressuposto da respetiva legislação de
desenvolvimento, assumindo por essa circunstância, valor reforçado. Dessa sua natureza

92
resultam consequências relevantes na relação entre as mesmas bases e a legislação
subordinada:

 No tocante à primeira consequência, regista-se que a legislação de detalhe do GOV ou


da AR só pode ser emitida numa matéria de reserva parlamentar de lei de bases caso
essas bases gerais pré-existam nesse domínio.
Com efeito, sendo as bases ato-pressuposto de decretos-leis e decretos legislativos
regionais às mesmas subordinados e devendo de acordo com o art.º 198/3 e 227/4, os
decretos-leis e decretos legislativos regionais complementares invocar expressamente
as bases que concretizam, sob pena de inconstitucionalidade formal, parece
inequívoco que as bases são ato-condição para aprovação de legislação
concretizadora;
 A segundo a consequência da natureza das bases como lei reforçada e ato-pressuposto
de outra legislação subprimária a editar na mesma matéria, é de que, vigorando uma
lei de bases respeitante à reserva parlamentar, o GOV e as ALRA devem
necessariamente observá-la, sob força do art.º 112/2, sob pena de ilegalidade w
inconstitucionalidade orgânica;
 A terceira consequência, que opera em termos negativos, consiste na impossibilidade
de o GOV ou das ALRA disporem inovatoriamente sobre o domínio de normação de
princípios ou diretrizes gerais da reserva de competência parlamentar, mesmo que a
AR tenha omitido a fixação das correspondentes bases incorrendo o ato legislativo
subordinado que proceda essa incursão, em inconstitucionalidade orgânica, fundada
em apropriação indevida da matéria de reserva da AR.

Outra questão juridicamente fosca tem a ver com a faculdade da AR poder:

 Legislar no plano de detalhe sobre de uma matéria, prescindindo da invocação das


bases gerais da reserva parlamentar vigentes neste âmbito;
 Aprovar uma disciplina primária de pormenor, sem a pré-existência de bases gerais;
 Derrogar ou alterar através da legislação simples bases gerais editadas por ela própria
ou pelo GOV ao abrigo de uma autorização legislativa.

Na perspetiva, defendida pela doutrina maioritária e de algum modo pelo TC segundo o qual o
desenvolvimento de bases de reserva parlamentar se situa no universo concorrencial,
podendo a AR, ao abrigo do art.º 161/c, legislar sobre todas as matérias, uma interpretação
textual dos preceitos constitucionais aplicáveis permite extrair as seguintes conclusões:

 Devendo os decretos-leis, como vimos, invocar as leis de bases parlamentares e cujo


desenvolvimento procedeu ou aquelas que deveriam respeitar, tal obrigação já não se
impõe às leis da AR que concretizem bases gerais ou disponham sobre uma matéria
previamente regulada por bases gerais, na medida em que a Constituição não lhes
impõe uma formalidade de invocação;
 Encontrando-se, igualmente, os decretos-leis do GOV obrigados a respeitar as bases
gerais a cujo desenvolvimento procedem ou deveriam proceder (art.º 112/2),
semelhante não estará prevista na Constituição para as leis da AR que desenvolvam
bases gerais ou que sejam editadas, com conteúdo detalhado, numa matéria onde
pré-existam bases gerais;
 Existirá, deste modo, uma diferença de estatuto jurídico entre leis e decretos-leis, no
que concerne ao desenvolvimento de leis de bases de reserva parlamentar: os

93
decretos-leis podem invocar e respeitar as leis de bases, não se encontrando, contudo,
as leis de bases sujeitas a idêntica obrigação constitucional;
 Relaciona-se com a operatividade do princípio da competência: se a AR e
simultaneamente competente para aprovar tanto leis de bases como a legislação de
detalhe densifica as mesmas bases, tal justifica que as suas leis de desenvolvimento
possam prescindir de invocar essas bases gerais ou mesmo de as observar, na medida
em que a parametricidade das leis de bases vincula decretos-leis e decretos legislativos
regionais, mas não a legislação parlamentar;
 Nada parece impedir que a AR legisle sobre um universo potencialmente
complementar de uma lei de bases da sua reserva, sem invocar essas bases e, até, em
dessintonia com o conteúdo das mesmas , valendo a regra de que a lei posterior (de
detalhe) revoga a lei anterior (a referente às bases gerais);
 Pode, ainda, a situação implicar que a AR renuncie a emitir uma lei de bases sobre uma
matéria em que a disciplina de bases se encontra cometida à AR, optando por dispor
apenas sobre regime de detalhe primário que esgote toda a matéria, ou um regime
misto, composto por princípios e normas de pormenor;
 É certo que se poderia defender o entendimento diverso, segundo o qual, a legislação
de detalhe parlamentar que se situa no hemisfério da concretização de bases gerais
deveria sujeitar-se às mesmas exigências a que estão submetidos os decretos-leis de
desenvolvimento, dado que se está diante de um domínio de legislação concorrencial,
a qual deve encontrar sujeita às mesmas normas-parâmetro;
 Só que essa simetria de regimes não parece fazer grande sentido, no contexto da linha
interpretativa em exame, não só porque a AR é um órgão simultaneamente
competente para aprovar toda a legislação que esgota a matéria da reserva, mas
porque a Constituição omite qualquer vínculo dessa legislação parlamentar detalhe em
relação às bases gerais, fazendo imperar um critério de competência parlamentar
omnímoda para aprovar leis sobre toda a matéria.

Dir-se-á que este entendimento, que glosa a jurisprudência constitucional, comporta defeitos
de diversa ordem, cumpre destacar:

 A possibilidade da AR limitar o poder legislativo do GOV, omitindo a edição de leis de


bases e esgotando simultaneamente toda a matéria com legislação de detalhe que,
pese o facto de não impedir o GOV de emitir legislação sub-primária derrogatória da
legislação parlamentar, criaria dificuldades competenciais ao GOV que não pode
legislar na reserva parlamentar de bases sem bases pré-existentes, que semelhante
opção da AR esvaziaria e defraudaria a competência complementar do executivo;
 A proliferação de leis parlamentares mistas que sejam a título principal leis de detalhe,
mas que possam conter implicitamente normas legais de bases, apreensíveis por via
interpretativa, para além de ostensivos defeitos no plano da legística, lança a maior
incerteza no processo de aplicação do direito pelos tribunais e pela administração
pública bem como na identificação dessas bases pelo legislador governativo e regional;
 A situação absurda de leis de bases revogadas tacitamente por leis de detalhe
parlamentares que prescindam das primeiras ou decretos-leis de bases autorizados
derrogados por leis parlamentares detalhe que procedem a avocações tácitas de
poder, com caráter parcial, configura uma técnica legislativa aberrante e geradora da
maior incerteza no ordenamento

94
Apenas uma construção jurisprudencial, ousada, que submetesse as normas legais de
pormenor da AR, ao mesmo regime vinculativo dos decretos-leis complementares das leis de
bases poderia mitigar esse quadro potencialmente disfuncional, desequilibrado e propiciador
de insegurança.

c) As bases da esfera concorrencial

Os atos legislativos que contenham bases gerais em matéria da esfera de concorrência


legislativa entre a AR e o GOV podem ser, indistintamente, e editados por estes dois órgãos de
soberania ao abrigo das normas que fundamentam as respetivas competências concorrentes
(art.º 161/c e 198/a). Esta faculdade supõe a possibilidade de leis e decretos-leis com natureza
de bases se poderem revogar, derrogar ou suspender reciprocamente.

Por outro lado, no que tange à relação entre os atos legislativos de bases e a legislação
complementar importa atentar nos seguintes pontos:

 Como as bases numa matéria de âmbito concorrencial não são objeto de previsão
expressa na Constituição, o GOV e a AR podem legislar do plano do detalhe, mesmo
sem que tenham sido aprovadas, previamente, essas bases gerais, as quais não
constituem um ato-pressuposto necessário mas sim um ato puramente eventual na
regulação das mesmas matérias;
 Existindo um ato legislativo de bases adotado pelo GOV ou pela AR que regule uma
matéria determinada, os dois órgãos podem escolher livremente entre: editar um
diploma de desenvolvimento dessa lei; proceder à sua revogação seja através de um
novo ato legislativo de bases, seja através de um diploma de detalhe que prescinda dei
essas bases; ou aprovar um ato legislativo de conteúdo parcialmente contrário a lei de
bases que não proceda ao desenvolvimento e que, tacitamente o derrogue.

No que, em particular, respeita ao poder legislativo do GOV existem dois cenários.

No primeiro, se um decreto-lei, facultativamente, invocar uma lei de bases como seu


parâmetro normativo de referência deve subordinar-se aos seus princípios e diretrizes, já que
essa subordinação é imposta pelo art.º 112/2. Na verdade, este preceito não restringe a sua
aplicação às leis de bases reservadas à AR, ocorrendo um fenómeno de autovinculação
normativa, do qual decorre a ilegalidade do decreto-lei que não respeite essa relação
subordinante a uma lei de valor reforçado (art.º 112/2 e 3 e 281/1/b).

Em suma, se um decreto-lei se autoqualificar como ato legislativo de desenvolvimento de uma


lei de bases deve, por conseguinte, respeitar a hierarquia material do conteúdo dessa lei, NOS
termos da Constituição.

Contudo, impede um decreto-lei que invoque uma lei de bases preexistente como seu
parâmetro, de a revogar ou alterar expressamente, editando bases gerais substitutivas. Nada
parece, igualmente, inibir um decreto-lei que não invoque as bases gerais preexistentes de a
revogar ou derrogar tacitamente, editando um regime de pormenor que a contrarie, já que, ao
optar por não desenvolver as bases gerais constantes dessa lei, o GOV não se encontra sujeito
à vinculação estatuída do art.º 112/2.

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A lei de bases da área concorrencial é, deste modo, uma lei de valor reforçado enfraquecida,
na medida em que: não se encontra protegida por uma reserva de competência parlamentar; a
legislação de detalhe não se lhe encontra, necessariamente, subordinada; e a sua capacidade
de vinculação depende de uma autolimitação do diploma de desenvolvimento, o qual decide
invocá-la como parâmetro material.

Seria em tese possível, questionar a natureza reforçada deste tipo de leis. Na verdade o art.º
112/3 determina que são reforçadas as leis que, por força da Constituição sejam pressuposto
normativo necessário de outras leis. Nada na Constituição determina a necessidade existencial
de bases no domínio concorrencial e, a existirem essas bases, já verificámos que o GOV é LIVRE
para as invocar ou para as revogar ou derrogar. Ou seja, as bases da esfera concorrencial não
são pressuposto normativo necessário de outros diplomas legais.

Contudo, também são reforçadas nos termos do art.º 112/3, as leis que, por força da
Constituição, devam ser respeitadas por outras. Ora, o nº2 impõe uma relação de
subordinação às leis de bases por parte dos decretos-leis que as desenvolvam, situação que
abrange os decretos-leis que se propunham expressamente identificar bases do domínio
concorrencial. A natureza reforçada decorre, depois, do quarto critério do art.º 112/3.

Finalmente, as bases aprovadas no domínio concorrencial entre os órgãos de soberania


vinculam a legislação comum das regiões autónomas, a qual as não podem derrogar ou
contrariar (art.º 227/1/c).

E. Uma aceção material de conceito constitucional de bases gerais

Se uma lei se definir como lei de bases, mas o seu preceituado apenas contiver algumas
normas de princípio que coincidam com a caracterização de “bases gerais”, se que as restantes
normas portadoras de um conteúdo mais denso, e exequível por si próprio, podem ser
qualificadas como bases?

Em muitas das leis de bases afiguram disposições que, em razão do seu conteúdo determinado
auto-aplicativo, não podem ser configuradas como “bases gerais”, mas sim como regras de
pormenor, insuscetíveis de serem desenvolvidas por outras leis.

Estas regras, nos casos em que a Constituição fixa uma reserva legal de bases, são estranhas à
mesma reserva, seja porque incidem sobre matérias anódinas ao objeto da matéria em causa,
seja porque são já, elas próprias, atenta a sua alta densidade reguladora, normas de
desenvolvimento das referidas bases.

No art.º 112/2 reporta-se à vinculação dos decretos-leis de desenvolvimento às “bases gerais


dos regimes jurídicos”, ou seja, a normas de princípio e critérios diretivos considerados
individualmente, independente da lei onde constem. Existe, assim, uma opção constitucional
implícita por uma noção material de bases: estas definem-se em razão de sua morfologia
conteudística e finalística e não por critérios de ordem formal.

Não se a pelo facto de uma lei se auto-qualificar como bases que ela será. Por outro lado uma
lei que não se auto-qualifique como regime de bases poderá, ainda assim, conter bases gerais
dos regimes jurídicos.

96
O TC sufragou uma noção material de bases, referindo a propósito da lei que aprovou o serviço
nacional de saúde que não seria pertinente o necessário que a mesma se tivesse definido
como uma lei de bases, dado que o essencial seria que a mesma contivesse preceitos passíveis
de qualificação como normas de bases e, como tal, carentes de desenvolvimento legislativo.

Embora se aceite em abstrato a validade desta construção, a mesma não abonará em favor de
imperativos de segurança jurídica, na medida em que existem leis que contêm regras carentes
de concretização por outras normas, não sendo claro se essa concretização deva ser feita por
lei ou por regulamento. Exigências de segurança jurídica e de redução possível a essas mesmas
bases das leis que vertam sob uma reserva parlamentar de bases (dando corpo ao disposto no
art.º 198/1/c), sem pertinência em tempos onde as regras de legística se impõe cada vez mais
ao decisor.

F. Em que consiste e não consiste as bases gerais do regimes


jurídicos

As bases gerais consistem em “opções políticas fundamentais de um regime jurídico”


vinculativas de outras disposições legais vocacionadas para a tutela de regimes gerais mais
densos, bem como de situações especiais situadas no mesmo campo material.

Na medida em que, num domínio reservado às leis de bases da esfera parlamentar, um ato
legislativo misto contenha princípios vinculantes do conteúdo de outras normas, comandos
dirigidos a outras leis, ou critérios diretivos que suponham a sua necessária densificação
normativa mediante juízos de estimação política, estaremos em princípio diante de bens
gerais.

As orientações constantes das bases consistem em opções fundamentais de política legislativa


radicadas em:

 Princípios normativos, como enunciados de valores ou de interesses de ordem política


fundamental contidos em disposições de reduzida densidade e cujo núcleo substantivo
deve ser observado pelo legislador infra-ordenado;
 Diretrizes, ou critérios gerais de decisão dirigidos ao legislador subordinado e que se
traduzem frequentemente em “ideias-força” ou normas abertas e de reduzida
densidade.

As diretrizes emergem, deste modo, como uma miniatura pré-ordenadora de um complexo


normativo, ou como um protótipo matricial que condensa normativamente linhas sumárias de
ação, designadas a ser cumpridas condicionalmente, através de leis editadas, em regra, por um
centro de poder titular de uma competência legislativa sub-primária. As diretrizes assumem
uma maior densidade ou determinabilidade do que os princípios.

Assim, o art.º 6 da lei geral do trabalho em funções públicas, cujo art.º 3 reconduz a uma base
geral, consiste numa diretriz, pois define trabalho em funções públicas e respetivas
modalidades de vínculo, critérios que irão estribar a legislação complementar que verter, por
exemplo, sobre vínculos de emprego público.

O TC revela-se, por vezes, errático e pouco inovador quando se reporta à definição de bases.
Algumas definições são mesmo marcadas por uma pobreza tautológica: “são de presumir,

97
como leis de bases, as leis da AR naquelas matérias em que a reserva de lei se limita
justamente às bases dos regimes jurídicos, previstos nos art.º 164 e 165.

Não podem ser consideradas leis de bases, as normas que se passa seguidamente a
mencionar:

 A noção de princípio e diretrizes gerais dos regimes jurídicos, na qualidade de bases


gerais , reclama a edição de leis de carácter complementar que as desenvolvam, pois
não pode ser tida como base uma norma geral que regula toda uma matéria e não se
quer depor fixação de orientações a outras leis.
Se as bases constituem normas-diretriz e princípios normativos não exequíveis por si
próprios as mesmas bases não são naturalmente aptas a produzir efeitos diretos sobre
os destinatários, regulando diretamente relações intersubjetivas. Podem ser
diretamente invocáveis em juízo, mas apenas como parâmetro de outros atos
legislativos.
Por conseguinte, as exposições normativas cuja densidade reguladora seja tão intensa
ou detalhada que não consinta uma efetiva liberdade conformadora do legislador
completar para criar regimes jurídicos portadores de opções políticas fixadas em
normação legal subprimária, não são bases gerais, pois as normas legais com uma
especificação quase total não podem ser tidas como parâmetros de outros atos
legislativos;
 Não assumem, igualmente, a natureza de bases as normas, mesmo abertas, que não
consintam qualquer hipótese útil de normação legislativa de desenvolvimento o que
apenas consintam a edição de leis-medida ou atos legislativos que se traduzam numa
pura a execução dessas normas, sem qualquer conteúdo político;
 Tão pouco serão bases as normas legais que procedam a meras remissões de regime
para outras leis. O TC considerou que um diploma que contém bases gerais sobre o
estatuto das empresas públicas, não contem uma base ou diretriz geral que vise
submeter todos os titulares dos respetivos órgãos de administração ao mesmo corpo
estatutário de responsabilidades e deveres, Mas antes uma norma de mera remissão
tem o decreto-lei que aprova o Estatuto do Gestor Público, fazendo-o em termos tão
“definitivos” que não deixaria espaço útil de desenvolvimento;
 Não serão seguramente bases, leis com essa qualificação que regulam matérias de
reserva absoluta ou relativa de competência da AR cujas correspondentes normas
constitucionais não prevejam legislação de bases ou de enquadramento
O Princípio da competência proíbe, na verdade, a decomposição de uma matéria que
deva ser regulada exclusivamente por uma lei comum de detalhe da AR, num domínio
básico e no outro de desenvolvimento.
Daí que, se o legislador parlamentar emitir uma lei de bases de uma área da sua
reserva em que as bases não sejam consentidas, o decreto-lei que as desenvolva
incorre em inconstitucionalidade orgânica pois invade a esfera de competências
exclusivas da AR, a qual reclama a emissão de uma disciplina de detalhe sobre essa
matéria. Por seu turno, essa suposta lei de bases incorre em inconstitucionalidade
material fundada em desvio de poder, pois habilita indevidamente outros órgãos a
legislarem numa matéria relativamente à qual a Constituição impõe da identificação
total por lei parlamentar.

98
Conexa com bases aparentes surge, também, no domínio da competência concorrencial
alternada, o fenómeno de decretos-leis ou leis ordinárias de tipo comum que reclamam a sua
densificação por regulamentos administrativos, mas que acabam por ser concretizadas, não
por um regulamento, mas por um decreto-lei. Esses decretos-leis que pré-ocupam domínios de
vocação material administrativa, mas que são estruturalmente atos legislativos, invocam
frequentemente como fundamento da sua emissão, as disposições relativas ao art.º 198/c que
habilitam o desenvolvimento de leis de bases. Este tipo de qualificações normativas constitui
um fator de insegurança sobre o valor da legislação aplicável e faz crescer inutilmente a esfera
do contencioso constitucional.

Finalmente, na medida em que a opção não seja estranhamente julgada inconstitucional, será,
em tese, possível de cantar materialmente bases gerais em leis de autorização.

Observe-se uma situação em que uma lei de autorização legislativa, ao fixar o objeto, a
extensão e o sentido do decreto-lei autorizado para disciplinar um domínio de bases da
reserva relativa de competência legislativa parlamentar, fixa em certas matérias parâmetros
estão detalhados que os mesmos precludem, objetivamente, que o mesmo decreto-lei se
atenha a uma disciplina necessariamente incompleta de diretrizes gerais e princípios.

Dir-se-á que existirá uma inconstitucionalidade material fundada em desvio do poder: a lei da
utilização, no fundo, afasta-se do seu fim constitucional de norma habilitante e opera como
uma lei de bases, quando a Constituição distingue os 2 tipos de normas legais.

Numa perspetiva diversa, centrada no aproveitamento de atos, poderá sustentar-se que a


mesma lei se assume, simultaneamente, quanto a certas matérias, como uma lei de
autorização e uma lei de bases. Quanto ao decreto-lei autorizado, podendo conter em relação
a determinados domínios alguma bases gerais, passa a operar quanto a outros em que as
bases já constam da lei de autorização, como ato legislativo de desenvolvimento dessas bases
e, ainda, como diploma regulador de matérias não reservadas à AR.

A aberração legística que resulta desta e de outras “salganhadas” de atos legislativos ditos
“compositórios” com carácter diferenciado, cuja constitucionalidade é admitida pela justiça
constitucional. Estas normas misturam, sem identificação devida, bases gerais com normas de
desenvolvimento das mesmas bases e com regras querem antes de concretização. Semelhante
técnica legislativa, ou falta dela, queria condições passíveis de gerar vícios de competência nos
diplomas de desenvolvimento e a maior insegurança no operador jurídico no tocante à
identificação da natureza das normas.

G. Vicissitudes inerentes à relação de dependência entre as bases


gerais e a respetiva legislação complementar

Cumpre estudar as vicissitudes inerentes à relação de dependência e entre as bases gerais e a


respetiva legislação complementar:

 A faculdade de uma lei de bases poder, ou não, revogar legislação complementar;


 Os efeitos que a revogação de uma lei de bases pode ter na subsistência da legislação
complementar;
 As consequências de alterações introduzidas numa lei de bases na correspondente
legislação complementar;

99
 O impacto jurídico da não edição de leis de bases da reserva parlamentar, bem como
da não aprovação de legislação que complemente bases gerais previamente
introduzidas.

A. Da revogação de legislação complementar por uma lei de bases

Importa assinalar que o papel constitucional das leis de bases não é o de revogar legislação
complementar mas de coexistir com ela, num quadro de prevalência material. Contudo, a
problemática da revogação pode colocar-se, se uma lei de bases nova decidir revogar
substantivamente ou alterar uma lei de bases precedentes.

Nesse caso, parece evidente que, na esfera concorrencial entre o GOV e a AR, uma lei de bases
oriunda, de um ou de outro órgão, pode revogar quer a legislação que subsistia antes mesmo
de existirem bases gerais sobre a matéria, quer leis complementares da lei de bases revogada.
Vigora, neste universo, irrestritamente, os princípios da cronologia e especialidade e as suas
decorrências ordinárias.

No campo específico das bases de reserva absoluta de competência da AR a possibilidade


meramente supressiva de uma norma legal de bases parlamentar contém uma disposição
revogatória de legislação complementar de uma lei de bases que por ela seja revogada ou
modificada seria juridicamente admissível ao abrigo da competência genérica da AR.

B. Revogação supressiva de lei de bases não determina caducidade automática da


respetiva legislação complementar

Perguntar-se-á se uma lei de bases em vigor, desenvolvida por diversos decretos-leis e


decretos legislativos regionais vier a ser revogada sem a substituição, será que a sua cessação
de vigência determina a caducidade dos diplomas legais que a complementavam?

Considera-se que essa caducidade não tem lugar. O ato legislativo de desenvolvimento, pese o
facto de ter sido condicionado na sua emissão ordinária por uma lei de bases, não faz
depender a sua vigência da subsistência da mesma lei-parâmetro, na medida em que depende
da respetiva lei-pressuposto quanto ao seu conteúdo e quanto à credenciação da sua emissão
originária mas revela se autónomo daquela em termos da sua permanência em vigor, a qual
depende das normas constitucionais que credenciam a sua emissão. O art.º 112/2 decorre
uma relação de subordinação material entre lei-sujeito e lei-objeto (impõe que o conteúdo do
diploma de desenvolvimento se subordine ao conteúdo da lei parâmetro), mas não emerge
uma relação de dependência formal que determine necessariamente a caducidade da lei
objeto se a lei sujeito for revogada, com ou sem substituição e a nova lei de bases não contiver
uma cláusula revogatória da legislação complementar anteriormente vigente. Observe-se
ademais que, em termos de segurança jurídica, a solução da caducidade seria excessiva e
desnecessária já que poderia deixar sem regulação um conjunto de situações que dela
necessariamente careceriam. Veja-se o caso da revogação da lei de bases da segurança social,
o mesmo com substituição por outro regime diferença, a qual implicaria a caducidade de
inúmeros diplomas, privando, durante um tempo indeterminado, os beneficiários da
atribuição de pensões.

100
A praxis legislativa e a jurisprudência do TC referem que a subordinação de um decreto-lei de
desenvolvimento a uma lei de bases não cria entre as duas normas uma ligação indissolúvel,
na medida em que o correspondente nexo de ligação seria puramente funcional, excluindo a
solução da caducidade. Gera-se assim, uma nova relação de complementaridade entre a nova
lei de bases e a legislação complementar pré-existente que, não tendo naturalmente de
invocar a primeira para subsistir em vigor, deve ser constrangida a adaptar o seu conteúdo a
esse ato legislativo-parâmetro no caso de se registarem desconformidades substanciais.

C. Efeitos da declaração de uma lei de bases na respetiva legislação complementar

Relativamente aos efeitos de alterações introduzidas numa lei de bases na correspondente


legislação complementar, considera-se que as referidas alterações não determinam a
caducidade das normas legais de desenvolvimento, mas obrigam à alteração destas últimas de
forma a assegurar a conformidade com os parâmetros objeto de modificação, sob pena de
ilegalidade superveniente.

D. Da emissão de legislação de detalhe sem prévia aprovação de uma lei de bases num
domínio da reserva parlamentar

As consequências jurídicas da omissão de edição de leis de base na reserva parlamentar bem


como da não aprovação de legislação que complemente bases gerais previamente produzidas,
observamos que existirá uma diferença entre bases gerais e legislação complementar, se as
duas categorias legais se assumirem como instrumento indispensável tem a sua exequibilidade
as normas constitucionais não exequíveis por si próprias. Por exemplo, no contexto da
incumbência do Estado em organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social
unificado e descentralizado, a edição de legislação não poderia esgotar na aprovação de bases
gerais, dado que estas carecem de imediação de legislação de desenvolvimento para se
aplicarem aos destinatários. Daí que a inconstitucionalidade por omissão, à luz do art.º 283, se
afira no caso em apreço, em relação a todas as regras legais da cadeia normativa indispensável
para dar exequibilidade à previsão constitucional, abrangendo, como tal, quer a falta de
legislação de bases, quer a falta de legislação complementar.

101
102
3.2.2. As leis de enquadramento

A. Noção

Os atos legislativos de enquadramento ou leis-quadro não se encontram definidos na


Constituição portuguesa, no entanto a doutrina e jurisprudência veio a considerar que as leis-
quadro são os atos legislativos paramétricos de outras leis que estabelecem vínculos
normativos de densidade variável às normas legais que as concretizam, fixando tanto bases
gerais como regras procedimentais, nomeadamente, sobre aspetos da produção das segundas.

Nos termos desta caracterização:

 As normas legais de enquadramento são normas primárias sobre a normação que


projetam vínculos de ordem material e também procedimental sobre legislação de
conteúdo mais detalhado que por elas é pressuposta e que com elas coexiste na
regulação de uma dada matéria;
 As leis-quadro encontram-se investidas de uma supremacia hierárquica material em
fase dos atos legislativos que a elas estão subordinados, fundando-se na nessa
supremacia: seja em imposição e tarefas atribuídas pela Constituição às leis-quadro da
reserva parlamentar (art.º 106/1), seja por força do art.º 112/2, no que tange aos
diplomas que livremente decidam invocar essas leis no âmbito da esfera concorrencial,
sendo-lhes aplicável analogicamente o referido preceito, por identidade de razão com
o regime das leis de bases;
 São leis de parametricidade heteróclita ou variável, na medida em que podem ser
idênticas às leis de bases quando ficção princípios e diretrizes gerais ao conteúdo de
outras leis, sem prejuízo de poderem, também, introduzir regimes gerais e normas
procedimentais de mais elevada densidade que regulem aspetos secundários da
feitura da legislação complementar que elas habilita.

No fundo, as leis-quadro são leis materialmente paramétricas de outras, de natureza análoga


às leis de base mas que, podem assumir um conteúdo mais pormenorizado do que estas,
quando definem a moldura de um regime jurídico que deverá ser desenvolvido, integrado e
concretizado por atos legislativos que se lhes encontram vinculados.

B. Competência para a edição das leis de enquadramento e os seus diplomas


de desenvolvimento
a) O pode de aprovação de leis-quadro

De acordo com um setor da doutrina, um atributo que caracterizaria as leis enquadramento e


que as distinguiria das leis de bases, consistiria no facto de todas elas integrarem
necessariamente a reserva de competência da AR.

Esta posição radica no entendimento de que as leis-quadro previstas na Constituição integram


a reserva absoluta exclusiva da AR:

103
 Art.º 293;
 Art.º 227/i, relativa a lei-quadro relacionada com a adaptação do sistema fiscal
nacional às especificidades regionais;
 Art.º 164/n que se reporta à criação, modificação e extinção de autarquias locais e que
vincula as leis que as criam em concreto;
 Art.º 164/r sobre a legislação de enquadramento orçamental estatal e regional;
 Art.º 255 da lei orgânica, a qual é reconhecida uma função material de
enquadramento tendo sido como tal designada.

O facto é que, a circunstância de na Constituição figurarem menções avulsas a leis-quadro


relativas a matérias de reserva exclusiva da AR não significa que não possam ser editadas leis
de enquadramento na esfera concorrencial das competências entre o GOV e a AR. Competirá
aos dois órgãos emitir a referida legislação.

Se a consagração de leis de bases no âmbito da reserva parlamentar não inibiu a plena


validade (admitida pacificamente pela jurisprudência constitucional) de atos legislativos desta
natureza no âmbito das competências concorrenciais de tipo alternado, o mesmo deve
suceder, por identidade de razão com a lei-quadro, que é uma lei afim das leis de bases ou
subcategoria das mesmas.

Na realidade, no art.º 161/c e 198/a cabem aos legislativos de conteúdo diversiforme, nele se
podendo compreender, sem que haja qualquer limite negativo que precluda, a legislação de
enquadramento. E o facto é que a praxis legislativa confirma a existência de decretos-leis e leis
de enquadramento produzidos no campo material da concorrência legislativa entre o GOV e a
AR.

Entende-se, assim, que o ordenamento admite a existência de leis-quadro, seja no âmbito das
matérias reservadas à AR, seja na esfera concorrencial entre este e o GOV, sendo os seus
regimes idênticos, respetivamente, aos das leis de bases da reserva parlamentar e da esfera
concorrencial.

b) O poder legislativo de desenvolvimento e concretização das leis-quadro e a


subsistência dos diplomas complementares em face de vicissitudes nas leis-parâmetro

No que concerne às matérias do hemisfério concorrencial de competências entre o GOV e a AR


aplica-se às leis-quadro as considerações que foram feitas relativamente ao desenvolvimento
das leis de bases: os 2 órgãos podem em tese proceder à edição de bases e proceder,
reciprocamente, ao respetivo desenvolvimento, de densificação e revogação.

No que concerne às leis de enquadramento previstas na Constituição e que integram a reserva


exclusiva de competência da AR, a atribuição do poder de as densificar dependerá do regime
que às mesmas leis se encontram especificado. Assim:

 O art.º 227/f, que prevê a existência de uma lei-quadro sobre a adaptação do sistema
fiscal nacional às especificidades regionais, supõem que os atos de adaptação sejam,
exclusivamente decretos legislativos regionais;
 O art.º 164/n, sem mencionar a sua natureza de lei-quadro, assume materialmente
essa função, já que institui o procedimento e fixa os princípios gerais que presidem à

104
criação, modificação e extinção de autarquias locais os quais devem ser observados
pelas leis que as criam ou extinguem em concreto (art.º 249/f e 227/l);
 O art.º 164/r sobre a legislação de enquadramento orçamental estatal e regional
supõe que as leis por ela habilitadas e sujeitas a uma especial vinculação sejam,
respetivamente, a lei do orçamento de Estado aprovada pela AR e os decretos
legislativos regionais que aprovam os orçamentos das regiões;
 O art.º 292 relativo à lei-quadro das reprivatizações nada é referido a propósito da
natureza dos atos que procedem a cada reprivatização determinando, conteúdo, a lei-
quadro em vigor que os mesmos atos revestem a natureza de decretos-leis;
 O art.º 256/1 relativamente à instituição em concreto de cada região administrativa,
em harmonia com a lei de enquadramento do art.º 255, a Constituição não define a
sua natureza, mas a importância da matéria e a circunstância de a lei-quadro
corresponde especificar que se trata de ato parlamentar.

A revogação não substitutiva de uma lei-recuado não tem como efeito a caducidade da
legislação dela dependente, aplicando-se neste caso também as considerações feitas a
propósito de idêntico fenómeno nas esfera das leis de bases. Em regra, a substituição de uma
lei-quadro por outra ou alterações nas normas de enquadramento, impõe modificações nos
diplomas legais delas dependentes, sob pena de ilegalidade sobreveniente dos segundos, dado
que a atribuição de valor reforçado destas leis corre, por identidade de razão, nos termos das
leis de bases. Contudo, existem situações em que as alterações, em razão do regime jurídico
específico de parametricidade da lei-quadro não pressupõe a necessidade de adaptação da
legislação habilitada de pela normação de enquadramento. Assim, no caso de se verificarem
alterações na lei de enquadramento orçamental após o início de vigência da lei do orçamento
de Estado, verifica-se que esta não carece de alterações, na medida em que, atento o princípio
da anualidade do ciclo orçamental, a mesma lei orçamental terá sido elaborada, organizada,
votada e executada de acordo com o teor da lei de enquadramento que vigorava ao tempo em
que foi produzida, vigorando intocada até ao fim desse ciclo se não se registar alguma
alteração orçamental livremente proposta pelo GOV. Todavia, no caso de se ter aprovado um
orçamento retificado em momento subsequente a uma alteração da lei de enquadramento
orçamental, a lei correspondente deve ater-se ao conteúdo paramétrico das referidas
alterações.

A mesma lógica opera no tocante à lei-quadro das reprivatizações, relativamente às empresas


já reprivatizadas, entendendo-se que essa lei só vinculará a legislação que lhe dá consecução
até à conclusão do processo reprivatizador de cada empresa.

C. O conteúdo normativo das leis-quadro

O conteúdo heteróclito das normas legais de enquadramento é admitido pela jurisprudência e


pela doutrina.

Alguns autores referem que para além dos princípios, estas leis fixam “com algum pormenor”
regras jurídicas estruturantes que devem ser respeitadas por outros. Outros expoentes
doutrinais consideram, no âmbito das leis-quadro da reserva parlamentar, que as mesmas
devem ser normativamente da densificadas; podem conter disposições procedimentais e
normas sobre a prática de outros atos jurídico-públicos; e não dispensam ato legislativo

105
subsequente. Outros, ainda, admitem que as leis-quadro podem conter alguns atributos
prototípicos das leis de bases, não se limitando contudo aos mesmos pois, mediante normas
adotadas de algum detalhe e densidade, estabeleceriam os parâmetros e procedimentos a
observar por outros atos legislativos.

A jurisprudência constitucional admite que o caráter paramétrico e habilitante da lei-quadro


não obsta a que um grau de densificação das suas normas possa variar em razão da sua função
específica. Em certas leis desta natureza, como por exemplo a lei-quadro das reprivatizações
cujo conteúdo é determinado pela CRP, imporia ao legislador parlamentar um determinado
grau de densificação normativa, podendo efetuar essa concretização “com maior ou menor
detalhe, desde que garanta sempre um núcleo essencial de tradução legislativa das regras
constitucionais em causa.

Sem assumir uma posição clara sobre a densidade variável das normas legais de
enquadramento, o TC entende que deve devem constar regulamentação inovatória, de caráter
essencial a qual não pode figurar uma legislação à mesma subordinada.

Em síntese, este é o teu normativa das leis-quadro não é uniforme em termos de densidade,
dado que nada obsta a que possa conter, em razão da respetiva fonte habilitante e diretiva:

 Verdadeiros princípios e bases gerais dos regimes jurídicos;


 Normas procedimentais detalhadas que podem estabelecer regras secundárias e
adjetivas que rejam a produção de atos legislativos por ela habilitados e a ela
vinculados;
 Em tese, critérios gerais inovatórios de caráter essencial para a definição de um regime
jurídico que podendo no limite conter regras suficientemente densas para serem
diretamente aplicáveis, coexistem com leis especiais que não podem contrariar as suas
opções estruturantes.

Importa relembrar que as regras procedimentais de natureza essencial sobre a produção de


atos legislativos devem constar da Constituição, pelo que na lei de enquadramento apenas
devem figurar subprocedimentos que se não traduzem por um aumento da rigidez ou da força
passiva dos atos produzidos. Em nome do princípio da tipicidade da lei reforçada pelo
procedimento agravado não pode uma lei quadro, que é uma lei ordinária, impor reservas
heterónomas de iniciativa na produção legal ou maiorias qualificadas de produção de atos
legislativos a elas subordinados, já que tal implicaria uma modelação da força passiva desses
atos legislativos que apenas à Constituição compete determinar. Em suma, uma lei de
reforçada não tem credencial constitucional bastante para criar outras categorias de leis
reforçadas, pelo que se deve ter como inconstitucional ou, no mínimo parametricamente
irrelevante uma disposição procedimental constante da lei de enquadramento que estipule
essas maiorias, podendo a mesma ser desacatada ou derrogada pois não assume natureza
paramétrica.

Do exposto, retira-se que existem, no plano funcional, diversas categorias de leis-quadro: leis
integradas na reserva parlamentar que a Constituição define explicita ou implicitamente como
de enquadramento mas que incidem sobre matéria respeitante às bases gerais reservadas à
AR; e as que são emitidas no universo concorrencial entre a AR e o GOV e que assim se auto-
qualifiquem.

106
D. O desvanecimento de elementos distintivos entre leis quadro e leis de
bases

Setores da doutrina portuguesa, aquando da introdução das leis-quadro na Constituição,


chegaram a defender o entendimento segundo o qual as mesmas não guardariam uma
diferença de natureza em relação às leis de bases, tendo alterado a sua posição em termos de
marcação de uma distinção entre as duas categorias legais.

Para além de todos os argumentos caracterológicos das leis de bases já referidos, o elemento
distintivo é de recorte material e prende-se à morfologia das leis parâmetro que constam
dessas 2 categorias de leis: enquanto as leis de bases assumiriam uma natureza paramétrica
puramente substancial, as leis-quadro acrescentariam o “quid pluris” da previsão de regras
procedimentais detalhadas sobre a produção de outras leis.

Só que, como assinalam diversos autores, certas leis contendo bases gerais dos regimes
jurídicos, como as do ensino, desporto, ambiente e função pública, assumem, no seu
conteúdo, mais uma lógica de enquadramento do que um regime básico, fixando
determinados procedimentos.

Por outro lado, leis que incidem sobre a reserva parlamentar de bases gerais, assumem-se
expressamente como leis-quadro, como é ou foi o caso da lei-quadro sobre as leis de
programação militar, a lei-quadro de água, a lei-quadro dos institutos públicos, a lei- quadro
dos museus, a lei-quadro das regiões demarcadas vitivinícolas e a lei-quadro da educação pré-
escolar.

Estas leis, algumas das quais já não se encontram em vigor operam como leis de bases, com a
fixação de princípios e regras gerais que criam autoridades e definem as respetivas
competências, não prevendo procedimentos particulares para a criação de diplomas
complementares, o peso o facto de admitirem regimes especiais sobre certas matérias, não
sendo certo se em parte do preceituado não operam como regimes gerais. Outras, como a lei-
quadro dos museus nada têm de conteúdo enquadrador pelo que, salvo um domínio de
princípios e definições, preveem na essência do seu articulado um verdadeiro regime geral dos
museus portugueses com um disposições auto-aplicativas que dispensam imediação legal, sem
prejuízo da existência de regimes especiais, os quais a mesma lei, contudo, não prevê neste
âmbito. Diversamente, outras ainda, como a lei-quadro das regiões demarcadas vitivinícolas
contém verdadeiras bases e normas sobre a organização administrativa e fixam alguns
procedimentos adjetivos para a produção de decretos-leis, sendo aquelas que mais se
aproximam de um regime de enquadramento, tal como foi definido sob um ponto de vista
teórico.

Surgem, desde logo, leis paramétricas “mestiças”, que comprometem uma distinção rigorosa
entre bases gerais, leis quadro e regimes gerais. Uma praxis legislativa de duvidosa qualidade
no plano da legística operou uma confusa e atrabiliária mistura entre duas categorias legais,
próximas mas diferentes, o que, não deixa de pôr em causa a utilidade da autonomia
constitucional concebida à figura das leis de enquadramento.

A dinâmica legislativa criou, desde logo, os pressupostos para uma gradual integração das leis-
quadro na categoria mais vasta das leis de bases operando como uma subcategoria.

107
Com efeito, esta prática defeituosa foi objeto de alguma atenção do TC que recordou que as
leis-quadro não se limitam a definir as bases do respetivo regime jurídico, depois estabelecem
ainda os parâmetros dos ulteriores atos de execução legislativa.

3.2.3. O duvidoso valor reforçado dos “regimes gerais”

Os Regimes gerais são normas legislativas de reserva de competência da AR aplicáveis a uma


pluralidade indeterminada e indeterminável de destinatários que estabelecem uma disciplina
substancial sobre o mandado da matéria, mas que admitem a emissão de leis especiais que
regulem de modo diverso mas não incompatível.

Estamos perante um tipo de leis que:

 Diversamente das leis de bases e leis de autorização, contêm normas que, a par de
princípios, são diretamente exequíveis junto dos destinatários, não carecendo estas
últimas normas, necessariamente, de imediação legal complementar, produzindo
efeitos diretos intersubjetivos.
 Contém 2 tipos de normas: disposições de princípio e critérios gerais estruturantes do
domínio fundamental de um regime jurídico que não podem ser contrariadas por
legislação especial; e normas gerais sobre domínios acessórios e adjetivos que podem
ser inobservados por legislação especial que verta sobre essa matéria;
 Integram a reserva de competência da AR, depois compete a esta aprovar regimes
gerais no âmbito da sua reserva absoluta (art.º 164/r) e reserva relativa (art.º 165/d, e,
h)

Não repudiamos por razões utilitárias a doutrina e a jurisprudência dominantes que defendem
a natureza paramétrica e implicitamente reforçada, dos regimes gerais. Sem embargo não
estarmos convencidos sobre um ponto de vista lógico-jurídico, dos argumentos favoráveis a
esse parametricidade, ancorada numa extensão transformada das bases gerais da reserva
parlamentar, aos regimes gerais.

De acordo com o referido entendimento, o regime geral coexiste com legislação especial mas
não consente a emissão de normas legais excecionais, ou equivalentes que derroguem ou
contrariem os seus princípios essenciais ou subvertam os seus fins principais de política
legislativa.

Através da jurisprudência é possível retirar as seguintes asserções:

 A reserva parlamentar que integra um regime geral não restringe a “princípios,


diretivas ou standards funcionais” mas comporta também normas mais densas que
modelam e estribam esse regime;
 Essas normas de maior densidade integram “aspetos significativos, ou seja,
verdadeiramente substantivos, do regime legal” que, primando pelo seu caráter
politicamente relevante, não podem deixar de integrar a competência parlamentar e
devem aplicar-se a todas as situações cobertas por esse regime, podendo o GOV e as
ALRA regular aspetos “adjetivos” dessas matérias, mediante diplomas de conteúdo
especial;

108
 Se assim não fosse e os regimes legislativos especiais do GOV e das ALRA pudessem
contrariar os regimes gerais, ficaria esvaziada ou desfigurada a reserva de competência
legislativa da AR.

O CBM acha dogmaticamente duvidoso reconhecer valor reforçado a estas leis.

Por um lado, atento o disposto no art.º 112/3, os regimes gerais não são instituídos pela
Constituição como normas-pressuposto dos regimes especiais, nem a Constituição impõe que
os segundos devam respeitar os primeiros, não se encontrando reunidos os critérios exigidos
para atribuir valor reforçado à luz de um critério de parametricidade.

Por outro lado, resulta ser difícil e incerto, no plano da segurança jurídica, de cantar numa
dada matéria o domínio que integra o que se entende como matéria essencial e politicamente
importante e o domínio do que é adjetivo, parecendo ser desproporcionado reduzir os regimes
especiais a uma esfera puramente “regulamentar” ou “processual”, porque uma lei especial
coexista com uma lei geral nada tem de regulamentar.

Em qualquer caso, está-se diante de uma generalidade qualificada com pretensões expansivas
e amuralhadas por uma reserva competencial.

Preferível será, por conseguinte, não incluir os regimes gerais no domínio das leis reforçadas a
justificar apenas o respetivo defeso e regime operativo à luz do princípio da competência. À AR
caberá, no âmbito da sua reserva relativa, a aprovação de uma lei geral portadora de
disposições inderrogáveis relativamente aos eixos estruturais desse regime, o qual coexistirá
com um domínio material de concorrência entre a mesma AR, o GOV e a ALRA aos quais, no
tocante aos dois últimos órgãos, caberá editar legislação especial que deverá mover NOS
limites desses eixos estruturantes fixados em lei da AR ou decreto-lei autorizado.

Essa legislação especial ou excecional do GOV e da ALRA apenas poderá desaplicar no regime
geral, as normas adjetivas ou complementares que não se afigurem como disposições reitoras
das grandes opções políticas do legislador parlamentar, suscetíveis de operar como
denominador comum, sob pena de inconstitucionalidade orgânica por invasão da reserva de
competência da AR. Já é mais duvidoso estabelecer entre os dois regimes, o geral e o especial,
uma relação de subordinação hierárquica o qual a Constituição não credencia.

No plano da prática legislativa existem decretos-leis que invocam indevidamente o art.º 198/c
quando estabelecem regimes especiais sobre matéria anteriormente regida por regimes
gerais, mimetizando os decretos-leis que desenvolvem ou concretizam leis de bases e leis de
enquadramento. Esta não é tecnicamente duvidosa, já que a Constituição não atribui a esses
regimes valor reforçado.

Importaria que os operadores legislativos e jurisdicionais diferenciassem os “regimes gerais”


da figura dos “regimes jurídicos” da reserva parlamentar, os quais consistem em simples
disciplinas de pormenor que consomem uma dada matéria quer no plano substantivo quer no
adjetivo (art.º 164/t, u, v). Aqui, a reserva parlamentar não se estende às linhas estruturantes
e opções políticas fundamentais e mais relevantes a uma matéria, como sucede nos regimes
gerais.

Sem embargo o legislador já aprovou regimes gerais em matérias que se reportam a regimes
jurídicos, esbatendo-se na prática legislativa, indevidamente, a diferença entre as duas figuras
tal como a Constituição a consagra.

109
3.2.4. As leis de autorização legislativa

A. Noção

Nos termos do art.º 165/b e 227/2, a AR pode, relativamente a todas as matérias da sua
reserva relativa de competência, conferir autorizações legislativas ao GOV e, pode-se também,
sob algumas dessas matérias, conferia autorização legislativas às ALRA.

Ultrapassando o teor de debates doutrinais passados sobre a natureza jurídica das


autorizações legislativas considera se que estas assumem a natureza jurídica de uma delegação
de poderes, já que supõem:

 Uma norma habilitante que permite a um órgão normalmente competente autorizar


um órgão eventualmente competente a exercer poderes públicos sobre as matérias
atribuídas à competência do primeiro;
 A faculdade de o órgão normalmente competente poder condicionar o exercício de
poderes cometidos ao órgão eventualmente competente;
 A sustentabilidade de o órgão normalmente competente poder avocar, ou seja,
chamar a si ou recuperar a todo o tempo, os poderes condicionalmente atribuídos ao
órgão eventualmente competente.

Verifica-se que a delegação de poderes prevista na Constituição:

 A AR, como órgão titular de uma competência primária e originária dispõe de uma
liberdade plena para, querendo poder delegar faculdades legislativas sobre uma
matéria que lhe está reservada, no GOV e nas ALRA;
 Nesta relação jurídica de delegação normativa, a AR atua como órgão normalmente
competente e os órgãos beneficiários da autorização como órgãos eventualmente
competentes no caso de decidirem utilizar a autorização recebida;
 Os atos legislativos autorizados não podem ser emitidos antes da entrada em vigor da
lei delegante que é seu pressuposto necessário e devem subordinar-se aos limites que
a AR fixar, encontrando-se a mesma lei habilitante investida numa hierarquia material
em relação aos primeiros diplomas, que serão inconstitucionais e ilegais no caso de a
violarem (art.º 112/2 e 3 conjugado com 281/1/b);
 O GOV e a ALRA, ao tomarem condicional, mas voluntariamente o lugar da AR na
regulação dos mesmos domínios, entram com ela no eixo de uma concorrência
derivada, na medida em que, respetivamente, podem revogar ou desaplicar normas
legais parlamentares anteriormente existentes no objeto e âmbito da autorização;
 Deve, por regra, ser o órgão beneficiário da autorização a solicitá-la, embora não
existe norma que vede a possibilidade de a AR Tomar a iniciativa de delegar poderes
legislativos não sendo, contudo, essa a prática constitucional.

B. O conteúdo necessário da lei de autorização

110
a) Uma lei subordinante e delimitadora do exercício de competências alheias

Tal como decorre da doutrina de referência e da jurisprudência, a lei de autorização legislativa


não é uma lei puramente formal, mas uma lei-parâmetro de outros atos legislativos que
projeta nestes, o seu conteúdo normativo subordinante, dado que, de acordo com o art.º
165/2, deve definir o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização.

Não podendo regular diretamente as situações da vida, mas operar apenas através da
legislação delegada, o conteúdo da lei de autorização é necessariamente incompleto, tal como
sucede como sucede com a generalidade das normas legais que vinculam ou dispõem sobre o
conteúdo de outras leis.

A tenção entre lei de autorização e decreto-lei ou decreto legislativo regional autorizado é


regulada pelos princípios da competência e da hierarquia material: da competência, na medida
em que a lei de autorização delimite o âmbito das matérias onde o órgão delegado pode
legislar; e da hierarquia material, no sentido em que a primeira lei pode fixar diretrizes e
princípios vinculantes, mais ou menos densos, ao conteúdo do diploma autorizado, as quais
este deve acatar sob pena de invalidade.

Embora os 2 princípios se relacionem de forma recíproca torna-se possível separar a sua


incidência a propósito dos limites que a lei da autorização, nos termos do art.º 165/2, pode
fixar aos diplomas autorizados.

Se o decreto-lei autorizado não observar o “sentido” da autorização, ou seja, princípios,


diretrizes e até outros limites mais detalhados ao seu conteúdo, estará a violar vínculos
materiais de subordinação e como tal o princípio da hierarquia substancial inerente às leis de
autorização.

Como tal, se o diploma delegado violar o sentido da autorização ele deve ser tido como ilegal,
nos termos do art.º 281/b, dado que está em causa a violação substancial de lei com valor
reforçado por parte de outro ato legislativo. Verifica-se, contudo, que o TC tenho optado por
consumir em sede de inconstitucionalidade orgânica a infração de todos os limites da lei
habilitante, incluindo os parâmetros inerentes ao sentido da autorização, o que constitui outro
argumento adicional contrário à subsistência da figura espúria da fiscalização da ilegalidade de
leis.

A prática legislativa não permite, frequentemente, recordar os âmbitos substanciais dos


parâmetros que respeitam ao sentido e à extensão da utilização. Isto, porque a estrutura
destas leis delegantes costuma, após fixar o objeto da autorização em artigo autónomo,
amalgamar algo indiferenciadamente no mesmo preceito, o sentido e a extensão, o que
dificulta a disjunção entre as normas subordinantes de hierarquia material (sentido) e os
limites de competências (extensão).

Por conseguinte, se o ato legislativo ultrapassar o “objeto” e a “extensão” (art.º 165/2) da


mesma autorização, lesará o princípio da competência , pois perpetrará uma incursão indevida
no domínio de uma matéria reservada a outro órgão, pelo facto de a matéria regulada não se
encontrar coberta pela lei de autorização que circunscreveu o âmbito material onde o órgão
delegado poderia legislar.

No caso específico de não observar os limites temporais da autorização, registar-se á, também


uma inconstitucionalidade orgânica, pois o órgão delegado legislará sem cobertura habilitante,

111
sobre uma matéria de reserva alheia que se lhe encontra vedada depois de transcorrido um
determinado prazo.

É através da delimitação do objeto, extensão e duração do campo regulatório da lei delegada


que a lei delegante recorta horizontalmente os domínios substantivos de uma determinada
matéria, os quais coloca na disponibilidade de regulação da primeira durante um tempo
determinado.

b) O domínio material necessário dos limites fixados pela lei de autorização: o conteúdo
mínimo do objeto, extensão, sentido e duração

O ordenamento não admite autorizações legislativas em branco. Isto significa que uma lei de
autorização, para que possa ser tida conforme o art.º 165/2, não pode esgotar-se na
enunciação de uma matéria e dos seus limites fronteiriços gerais, agregada à enunciação de
princípios de reduzida densidade que se limitem a ditar valores merecedores de respeito. Tal
implicaria uma renúncia indevida da AR na qualidade de legislador originário, ao poder-dever
de edição de leis condicionantes das normas legais emitidas por outros órgãos sobre matérias
da sua reserva de competência.

Tão pouco admite autorizações implícitas, já que a vontade de autorizar terá de se encontrar
presente numa norma que se reporte de forma percetível, mesmo em termos genéricos, à
matéria onde podem recair os poderes delegados, sendo inadmissível extrair pretensas
habilitações de fórmulas vagas ou standard onde caiba qualquer tipo de previsão material.

Existe, ainda, um conteúdo mínimo exigível na lei de autorização, quanto à densidade


necessária das regras que delimitam as matérias sobre as quais recai a delegação dos critérios
que valoram o conteúdo possível da legislação delegada. Neste sentido, o sistema português
seria mais próximo do paradigma alemão, do que do italiano que exige normas mais
detalhadas na fixação desses limites.

Em especial, quanto ao objeto da autorização, este consistirá na enumeração da matéria sobre


a qual a mesma delegação irá incidir e que se reporta a uma área expressamente prevista no
art.º 165/1.

A determinação do objeto pode, de acordo com a jurisprudência constitucional, abarcar mais


de um tema ou assunto, operar por via remissiva, e segundo alguma doutrina, pode ser feita
explícita ou implicitamente, por referência a atos legislativos pré-existentes.

No que respeita à extensão, importa referir que a mesma constitui uma delimitação horizontal
e vertical do objeto. A extensão especifica os aspetos da disciplina jurídica da matéria onde irá
incidir a autorização, podendo verter-se sobre a totalidade da matéria ou apenas sobre o
parcela.

No que concerne ao sentido, este implicará a configuração do conteúdo do diploma delegado


através determinação do seu fim e da fixação de limites positivos e negativos à legislação a
adotar.

Considera a jurisprudência constitucional portuguesa que bastará a lei habilitante ditar com
clareza os fins axiais ou estruturantes a prosseguir pela lei delegada, com o mínimo de
objetividade, não sendo exigível ir tão longe como no ordenamento espanhol e italiano, NOS

112
quais se reclama a fixação de princípios e critérios de orientação. Claro está que uma lei de
autorização pode determinar diretrizes que estabeleçam limites e fixem um sentido
particularmente preciso à legislação delegada. Contudo, a mesma lei não será inconstitucional
se se contiver na especialização dos fins do ato autorizado em termos que permitam a
perspetivação objetiva das transformações que irão ser introduzidas na ordem jurídica, em
razão da delegação. Essa necessidade de contenção não obsta à legítima inclusão no diploma
autorizado, de soluções inovadoras que não colidam ou não se desviem manifestamente dos
fins traçados pela lei habilitante.

Finalmente, quanto à duração da autorização, a qual deve afigurar expressamente na lei


delegante, a Constituição é omissa relativamente à fixação de limites máximos. Estes, em tese,
podem compreender o período de uma legislatura (art.º 165/4).

Admite a doutrina a possibilidade de serem fixados prazos implícitos. Dado que a Constituição
exige que a lei de autorização estabeleça a duração da delegação de poderes, considera-se
que, por regra, o prazo deve ser certo e quantificado. Ressalva-se a possibilidade de a lei da
autorização condicionar a duração da autorização, dentro do tempo de uma legislatura, à
ocorrência de eventos certos e determinados.

Uma praxis Constitucional tem conduzido a que o pedido de autorização legislativa formulado
pelo GOV seja acompanhado por um anteprojeto de decreto-lei a autorizar, sendo certo que
no respeitante às autorizações legislativas cometidas às ALRA, a apresentação do anteprojeto
é verdadeira obrigação constitucional, firmando-se como uma condição para a AR aprovar a
mesma utilização.

Esta tramitação permite, ao legislador que aprova a lei delegante, configurar o conteúdo do
diploma que o órgão eventualmente competente pretende editar e especificar os limites da
autorização no sentido de habilitar ou não, e em que temos, a assunção desse conteúdo. O
facto de a lei de autorização permitir a emissão de um diploma delegado de conteúdo igual ao
do anteprojeto, não significa que o diploma autorizado tenha de ser efetivamente decalcado
nesse anteprojeto, dado que os limites da lei habilitante condicionam, apenas, em abstrato,
um ato legislativo futuro, o qual se vincula apenas aos mesmos limites e não a atos
preparatórios que procederam a elaboração destes últimos.

O anteprojeto vale apenas como um ato instrutório de feitura da lei delegante e no caso do
GOV e a AR, como manifestação política de uma relação fiduciária entre dois órgãos
legislativos, não existindo qualquer obrigação jurídica do legislador delegado emitir um ato
legislativo igual ao do anteprojeto. Bastará, na verdade, que a normação autorizada que vier a
ser aprovada caiba, sem grandes equívocos, nos limites da lei de autorização. Claro está que o
rigor com que será controlado o eventual desvio desses limites, seja no plano da apreciação
parlamentar, seja na esfera da fiscalização da constitucionalidade, será muito maior no âmbito
das autorizações para as ALRA do que nas autorizações ao GOV.

Importa finalmente reter que se a lei de utilização em cumprir com os requisitos mínimos de
densificação dos limites que deve, nos termos constitucionais, impor ao diploma autorizado,
ela incorre em inconstitucionalidade material, com fundamento em desvio de poder: os fins
constantes da lei habilitante desviam se por defeito, daqueles que são assinalados no art.º
165/2.

113
C. Cessação da autorização legislativa e outras vicissitudes normativas
conexas

a) Utilização

A autorização legislativa, nos termos do art.º 165/3 conjugado com 227/2 e 3, não pode ser
utilizada ou exercida mais de uma vez, de acordo com o princípio da irrepetibilidade. Isto
significa, por exemplo, no âmbito das autorizações legislativas ao GOV, que se a autorização
for esgotada por decreto-lei autorizado, esse decreto-lei não poderá ser alterado ou revogado
inovadoramente por outro decreto-lei aprovado dentro ou fora dos limites temporais da sua
utilização.

A utilização plena da autorização predica a cessação de vigência desta última, pelo que, se o
órgão que dela for beneficiário pretender modificar ou revogar o ato legislativo delegado
através de outro, deve obter uma nova autorização para o efeito. O que foi exposto não
prejudica, de acordo com o mesmo preceito, que a utilização da autorização opere
parceladamente. Tal significa que o âmbito material da autorização pode ser dividido em várias
parcelas, domínios materiais ou áreas substantivas. A regulação de cada uma dessas áreas
pode ser operada por distintos atos legislativos autorizados e emitidos em tempos diferentes.

b) Caducidade

A autorização plena cessa por virtude do termo do prazo fixado para a sua utilização, ou em
razão de vicissitudes que afetem os órgãos normal e eventualmente confortante.

A menção feita ao art.º 165/2 à duração da autorização, significa que se os decretos-leis


autorizados não forem aprovados, promulgados e referendados dentro do prazo-limite para a
sua utilização, a lei de autorização caduca por decurso do prazo, não podendo ser mais
utilizada.

O decreto-lei autorizado não pode ser emitido após a publicação de correspondente lei de
autorização. Se esta tiver uma vacatio legis alargada, o diploma delegado só produzirá efeitos
após a vacatio terminar e a lei delegante entrar em vigor.

No que respeita aos centros de poder legislativo envolvidos na delegação, importa relembrar
que as autorizações legislativas implicam uma relação, em regra fiduciária, entre um órgão
normalmente competente e um eventualmente competente. Daí que vicissitudes ocorridas
com os órgãos se repercutam, necessariamente, na subsistência das referidas autorizações.

Em consequência do exposto, as autorizações legislativas caducam com o termo da legislatura


ou com a dissolução da AR, com a demissão do GOV ou o termo do legislatura ou dissolução
das ALR (art.º 165/4 e 227/3).

No caso das autorizações legislativas orçamentais que se encontram cometidas na lei do


orçamento de Estado, sempre que incidam em matéria fiscal, as mesmas só caducam com o
termo da legislatura (art.º 165/5). Faz-se prevalecer a estabilidade do ano económico inerente
ao ciclo orçamental, sobre a relação fiduciária entre o GOV e a AR. Como tal, do âmbito
específico da matéria tributária constante do orçamento do Estado, poderia ser, em tese,

114
utilizadas mais de uma vez, já que o art.º 165/5 determina que as autorizações legislativas
constantes da lei do orçamento observam o disposto “no presente artigo” e em matéria fiscal
“só caducam” no termo do ano económico.

c) Revogações

A AR pode fazer cessar a autorização legislativa revogando a lei delegante antes da sua
utilização, ou seja, antes de emitido o ato legislativo autorizado que a esgote, não podendo,
em consequência, o diploma autorizado vir a ser emitido.

Já a revogação da lei de autorização, em período posterior à sua utilização, não produz


qualquer efeito na vigência do diploma autorizado, dado que a componente autorizativa da
primeira lei já tinha cessado com a referida utilização. O referido poder revogatório funda-se
no facto da AR ser, como autoridade normalmente competente, o órgão titular do poder
primário para legislar sobre a matéria pelo que a revogação de autorização antes da sua
utilização equivale uma avocação de poderes, ou seja, a um ato em que a AR chama a si a
plenitude das suas competências legislativas sobre o domínio considerado.

Importa contudo referir que, se a autorização tiver já sido utilizada em parte, a revogação da
lei delegante apenas impedirá o órgão eventualmente competência de legislar sobre a matéria
que integra o objeto da delegação, relativamente à qual ainda não tenha sido emitida
legislação subordinada.

Se a AR aprovar uma lei sobre o objeto da autorização, antes desta ter sido utilizada, entende-
se que revogou tacitamente a lei delegante, salvo se tiver atribuído à primeira lei uma vigência
transitória até que se verifique a mesma utilização.

A AR, também no quadro de uma avocação de poderes, pode revogar o diploma autorizado, da
mesma forma em que pode fazer cessar a sua vigência no contexto de uma apreciação
parlamentar, nos termos do art.º 169/1 e, remissivamente, do art.º 227/4, implicando essa
revogação, o termo da autorização, salvo se o diploma revogado incidir apenas sobre uma
parcela do objeto da delegação.

A AR pode alterar os decretos-leis autorizados na qualidade de órgão normalmente


competente. É duvidoso, contudo, que o possa fazer em relação aos decretos legislativos
regionais autorizados, os quais se reportam à regulação de domínios materiais de âmbito
regional. No compete à AR integrar com normas estaduais modificativas o preceituado de
legislação regional, na medida em que a disciplina de matérias de âmbito regional compete
apenas às regiões, nos termos do art.º 112/4. No mesmo sentido, não se considere admissível
a introdução de emendas em diplomas regionais autorizados, no contexto de um processo de
apreciação parlamentar regido pelo art.º 169.

Ainda assim, integra-se na esfera de competência da AR, no quadro de uma avocação de


poderes, uma decisão que tenha como fundamento a supressão do âmbito regional sobre uma
dada matéria que tenha sido objeto de autorização legislativa às regiões, procedendo a AR à
revogação puramente supressiva ou integralmente substitutiva por normação estadual, do
diploma regional autorizado. Entender que o ato legislativo regional autorizado seria
irrevogável por lei estadual equivaleria a convocar uma delegação de competências numa

115
transferência de poderes, figura não carenciada pela Constituição nas relações legislativas
entre o Estado e as regiões.

Se a AR modificar a lei de autorização antes da sua utilização, as alterações vinculam para o


futuro os atos legislativos delegados que venham a ser emitidos nas ferra da referida
autorização, sendo estes últimos inconstitucionais ou ilegais se não ativerem aos novos limites
que lhes foram fixados. No caso de as autorizações serem introduzidas após a utilização Da
autorização legislativa, os diplomas autorizados não terão de se ater a novos limites que
tenham sido fixados já que a autorização cessou. Nesta última situação, modificação ou
remissão dos limites de uma lei de autorização apenas terá sentido lógico e utilidade prática
no contexto de uma execução parcelada da mesma autorização, e relativamente a diplomas
delegados que ainda não tenham esgotado o objeto da sobredita delegação de poderes
legiferantes.

Se a lei de autorização for inconstitucional, essa inconstitucionalidade propaga-se, a título


consequente, aos diplomas por ela habilitados.

Entende-se, finalmente, que uma lei de autorização não revoga “diplomas sobre matérias de
autorização”. É certo que, por regra, o não pode fazer em relação aos atos legislativos
autorizados. Contudo, nada impede, em termos constitucionais, que uma nova lei de a
autorização concebida, por exemplo, ao GOV, contenha uma norma legal revogatória ou
derrogatória de um de lei autorizado que tenha sido objeto de uma lei de autorização
precedente, embora essa revogação se possa ter, normalmente, como espúria dado que iria
ocorrer por força da entrada em vigor do novo decreto-lei autorizado.

d) Dispensa de autorização em atos legislativos não inovadores que reproduzem leis


respeitantes à reserva de competência legislativa parlamentar

O princípio da constitucionalidade, conjugado com o princípio da separação de poderes, veda


da ao GOV a possibilidade de aprovar decretos-leis em matérias de reserva absoluta e reserva
relativa de competência parlamentar. E este limite vale, como se viu, para percludir a
possibilidade de o GOV revogar ou modificar um decreto-lei autorizado depois de esgotada a
autorização legislativa.

Sem embargo, o TC entende que se o decreto-lei não assumir natureza primária ou inovadora,
reproduzindo legislação parlamentar precedente, não haverá nele a assinalar uma
inconstitucionalidade orgânica.

O mesmo TC admitem igualmente que havendo um decreto-lei emitido ao abrigo de uma


autorização legislativa e cujo conteúdo seja incorporado por um decreto-lei posterior,
desprovido de conteúdo inovador na esfera da reserva parlamentar e que proceda à revogação
do primeiro, este último decreto-lei não será inconstitucional.

Cabe, finalmente, notar que o TC já considerou que a inconstitucionalidade orgânica não


procede quando a AR, em sede de apreciação parlamentar de decreto-lei, manifesta
inequivocamente a vontade de manter na ordem jurídica as normas organicamente
inconstitucionais que foram submetidas à sua apreciação. A mesma solução ocorre quando a
AR incorpora normas organicamente inconstitucionais em lei que aprove alterações a um
decreto-lei.

116
O TC considero existir no caso de um apreço um fenómeno de “novação de fonte” mediante
intervenção parlamentar sobre o conteúdo do diploma governamental organicamente
constitucional. Trata-se de um entendimento que não coincide com o pensamento doutrinal
clássico em sede do regime de inconstitucionalidade, o qual entende que as normas nulas,
com fundamento em inconstitucionalidade são insanáveis ou inconvertíveis. Ora, a sobredita
novação da fonte por via de intervenção legislativa parlamentar, como forma de preservar um
decreto lei organicamente inconstitucional, consiste numa forma de sanação de invalidades.

De qualquer modo, é muitíssimo duvidoso que essa sanação implique a preservação


automática, com efeitos retroativos, dos atos anteriormente praticados à sombra do decreto-
lei inconstitucional. Essa salvaguarda, por razões de segurança jurídica, equivale o interesse
Público qualificado só pode ser assegurada pelo TC ao abrigo do art.º 282/4.

3.3. As leis duplamente reforçadas

3.3.1. Os estatutos político-administrativos

A. Noção

Os Estatutos político-administrativos das regiões autónomas consistem numa categoria legal


que simultaneamente se caracteriza pela sua natureza reforçada e pela sua hierarquia formal
superior em relação às demais.

O estatuto político administrativo caracteriza-se como uma lei estruturante da organização e


funcionamento das instituições das coletividades regionais insulares. Trata-se De uma lei
estadual que, operando como título jurídico legal da autonomia regional, complementa uma
posição naturalmente subordinada, é Constituição, que é metanorma reitora do regime de
autonomia insular.

B. Objeto

a) A reserva de estatuto

O TC há muito reconheceu a existência de uma reserva de estatuto considera em


jurisprudência restritiva que a mesma reserva se circunscreve genericamente ao
desenvolvimento, explicitação e concretização das normas contidas na parte reservada à
regiões autónomas na Constituição.

A Constituição permite, por via positiva e negativa, a delimitação explícita de diversos


domínios do objeto estatutário.

Com efeito, a Constituição determina, explícita ou implicitamente, que sejam definidas em


estatuto:

117
 A natureza dessa entidade e os princípios estruturantes que informam o regime
autonômico de uma região;
 Delimitação do âmbito geográfico das regiões, pois a noção constitucional de cláusula
de competência legislativa regional configurada no conceito de “âmbito regional”
limite, positiva e negativamente, o âmbito do exercício dos poderes regionais definidos
no estatuto;
 Os “direitos” e obrigações das regiões bem como a definição ou concretização dos
seus poderes enunciados no art.º 227, em especial relevo para as matérias sobre as
quais incide a competência legislativa regional de natureza comum;
 Os órgãos de GOV próprio das regiões, suas competências e regras fundamentais
relativas ao respetivo funcionamento, bem como o modo de designação e estatuto dos
titulares desses órgãos;
 Aspetos procedimentais inerentes a aprovação de atos jurídico-públicos autonômicos
não remetidos pelo estatuto para normas regimentais;
 Regras estruturantes de organização e funcionamento interno da administração
regional, nela compreendida a administração financeira fiscal e patrimonial.

b) Défice estatutário

A ausência ostensível de previsão no estatuto de uma das matérias expostas predica uma
inconstitucionalidade por omissão, fundada no défice estatutário.

Por outro lado, se leis estaduais ou regionais dispuserem inovatoriamente em matéria de


reserva necessária de estatuto as mesmas serão, respetivamente, formal organicamente
inconstitucionais. Do mesmo modo leis estaduais que esvaziem competência legislativa
regional garantidas no estatuto serão ilegais por violação de “direitos regionais”.

A Constituição determina, igualmente, a existência de matérias que, pudendo, numa primeira


leitura e em abstrato, figurar nos estatutos como norma organizativa, acabam por ser
necessariamente subtraídas do seu objeto e diferidas para disciplinar de outras categorias
legais reforçadas pelo procedimento. Tal será por exemplo, o caso das regras relativas à
eleição dos deputados das ALRA e o das leis que regulam as relações financeiras e entre a
República e as regiões, as quais se integram na reserva orgânica.

Existem outras matérias reguladas em lei comum de reserva parlamentar, como é o caso da
definição e regime dos bens do domínio público regional (art.º 165/v e 84/2) que não integram
a reserva de estatuto, pelo que, se afigurem em normas nesta lei, essas normas podem ser
revogadas ou alteradas por lei comum da AR.

c) Os cavaleiros estatutários

O fenómeno da inclusão nos estatutos de matérias estranhas ou anódinas ao seu objeto e


cujas normas se designam por “cavaleiros estatutários” é gerador de insegurança jurídica, na
medida em que leva os órgãos regionais a reivindicar como direitos regionais, o conteúdo
normativo de preceitos que não passam de normas parasitas e que se encontram desprovidas
de valor reforçado próprio dos estatutos.

118
A indulgência da AR, catalisada pela influência desproporcionada dos primeiros ramos
regionais dos dois principais partidos políticos, no que concerne à admissibilidade de
“cavaleiros estatutários” propostos pelos ALRA no processo de revisão dos estatutos, em
associação com uma posição tolerante da justiça constitucional em relação à não
inconstitucionalidade desses “cavaleiros”, foi de algum modo responsável por uma espúria
incerteza jurídica que implicou nos anos mais recentes, sucessivas intervenções do TC e uma
escusada tensão entre as regiões e a República.

Uma norma inserta nos estatutos que não diga respeito àquilo que integra o objeto estatutário
por natureza mas sim em matérias do universo da legislação comum não reforçada teria sido,
no entendimento do TC, qualificada erradamente pelo legislador como norma estatutária,
encontrando-se em excedência de estatuto. Embora uma parte da doutrina, defenda a
inconstitucionalidade destas normas parasitárias dos estatutos, com fundamento em excesso
ou desvio de forma, algumas doutrina e o TC numa jurisprudência pouco afeiçoada à legística e
em contracorrente em relação à jurisprudência dominante na Europa, invocam a “fluidez de
normas” para se considerar esses “cavaleiros” inconstitucionais. Adverte, contudo o TC para o
facto de essas normas não possuírem o valor normativo próprio dos estatutos, pelo que serão
inaptas para determinar a ilegalidade ou a inconstitucionalidade de normas não estatutárias
que se encontrem ou derroguem. O legislador não estatutário competente em razão da
matéria estaria, assim habilitado para poder contrariar essas disposições normativas ou
proceder à sua revogação. O TC já qualificou, por exemplo, como normas de direito comum
estranhas à reserva de estatuto e, como tal, passíveis de derrogação por leis não estatutárias:

 A matéria de direito eleitoral, nomeadamente, no que respeita ao número de


deputados a eleger por círculo eleitoral, o que ocorreu antes desta matéria ser incluído
na reserva de lei orgânica;
 A matéria respeitante à organização e funcionamento dos tribunais administrativos e
fiscais;
 A matéria das relações financeiras entre a República e as regiões autónomas, por ser
observado a competência legislativa da AR o regime de finanças nas regiões
autónomas, de acordo com o estatuído nos art.º 164/t e 229/3.

Ainda assim, o TC entrou em evidente contradição com a sua própria jurisprudência a respeito
da suposta inconstitucionalidade de cavaleiros estatutários. O ac. nº 403/2009, que escrutinou
a terceira revisão dos estatutos dos Açores, julgou a inconstitucionalidade de uma norma
intrusa com fundamento em excesso de estatutos.

O facto é que quer o estatuto, quer a lei que regula a utilização da bandeira nacional são as
inscritas na reserva de competência da AR, apenas com a diferença de o estatuto ser uma lei
com valor reforçado constante da reserva absoluta de competência parlamentar e a lei que
regula os símbolos nacionais uma lei comum, também inscrita na reserva absoluta da AR.
Assim sendo, o que impedirá o TC de considerar que o art.º 4/4 dos estatutos da RAA que
disponha sobre o uso de bandeira nacional, na qualidade de cavaleiro estatutário poderia ser
revogado a todo o tempo por lei parlamentar comum?

A par de outros argumentos laterais e de alguma fundamentação, o TC invocou uma razão de


“forma”: a AR o que não pode fazer é impor, sob a forma de estatuto, o uso de símbolos
regionais, nas instalações próprias dos órgãos de soberania, já que tal a precludiria de regular
com exclusividade do uso desses símbolos. Ora, se este entendimento corresponde ao que
sempre defendemos, já o mesmo não casa com a orientação que o TC sempre defendera até

119
ao momento em nome da “fluidez de normas”, dado que, na linha de pensamento dessa
posição, nada impediria a AR de regular com exclusividade essa matéria, derrogando o
cavaleiro estatutário através da lei comum sobre a matéria.

Não interessa aqui se o TC alterou a sua anterior posição ou se se tratou, antes, de uma
decisão furtiva e casuística, preparando-se o mesmo órgão para regressar à jurisprudência
anterior quando tal lhe seja conveniente. O facto é que essa divergência de orientações
jurisprudenciais não pode ser abandonada a opções futuras ditadas pela tópica. Considera-se
que a LTC deveria atribuir expressamente ao TC a competência para qualificar a natureza não
reforçada das normas parasitárias constantes em leis reforçadas pelo procedimento, onde se
incluem os estatutos, do âmbito de um processo de impugnação, da sua inconstitucionalidade
por razão de forma, cabendo ao mesmo TC, em razão da gravidade do vício, pronunciar-se pela
sua invalidade ou pela sua simples irregularidade, da qual não decorreria qualquer sanção.

d) Cavaleiros de lei reforçada pelo procedimento inseridos indevidamente nos estatutos

Diversamente da situação anterior, em que se refere a normas de direito comum presentes em


lei estatutária, se os normas de estatuto que vertem inovatoriamente sobre matérias
integradas na reserva de outras leis reforçadas pelo procedimento, com é o caso da reserva de
lei orgânica.

Veja-se, à partida, o caso das leis orgânicas. Estas, a par de uma forma ou legenda e
numeração próprias, são aprovadas em votação final global pela maioria absoluta dos
deputados efetivos da AR, uma maioria de deliberação mais exigente do que a maioria simples,
estipulada para aprovação final global dos estatutos. A par desse trâmite , as leis orgânicas são
ainda sujeitas a veto qualificado do PR e a especialidades do controlo preventivo que não se
aplicam aos estatutos. Não podendo o estatuto, como lei parlamentar reforçar de hierarquia
formal superior ser ilegal por violação da lei orgânica ele enfermará, contudo, de
inconstitucionalidade formal, por regular matéria reservada à lei orgânica, através de normas
cujo processo de formação é distinto do iter formativo desta categoria legal, constante do art.º
168/5.

A mesmo a mesma regra vale para incursões estatutárias na reserva de outras leis reforçadas
pelo procedimento, como seria o caso da lei-quadro das reprivatizações, as leis aprovadas em
votação final global por 2/3 e a lei do orçamento de Estado.

Nas situações descritas, o TC tem sido consequente no julgamento de inconstitucionalidade


formal destes cavaleiros estatutários de lei reforçada, como por exemplo, do regime das
finanças das regiões em que uma norma estatutária invadiu um domínio de reserva orgânica.

A AR pode deliberar que a votação se faça apenas sobre mais um artigo simultaneamente ou,
com fundamento na complexidade da matéria ou nas propostas de alteração apresentadas, se
faça por números (art.º 152/1 RAR)

 Da disciplina na terceira revisão do EPARAA da matéria própria do regime do


referendo regional, sendo a mesma penetrado indevidamente na reserva material de
lei orgânica que deve regular essa matéria.

120
Importa referia que este cenário de inconstitucionalidade formal não tem lugar no caso de
uma norma estatutária dispuser originariamente sobre uma matéria que ulteriormente uma lei
de revisão constitucional inscreva numa reserva de lei orgânica, a norma estatutária deixa de
possuir para o futuro valor estatutário e poderá ser revogada por lei orgânica superveniente,
não sendo inconstitucional. O que não será constitucionalmente admissível será a alteração
dessa norma estatutária por outra da mesma natureza, posteriormente a referida revisão
constitucional, que verta sobre reserva já pré-fixada de lei orgânica.

C. Hierarquia e rigidez

Hierarquia e rigidez são, na lei estatutária, dois atributos complementares, mas relativamente
autónomos.

A hierarquia formal e material, deriva da “parametricidade erga omnes” do estatuto (art.º


281/1/c e d), constante de uma norma superior de reconhecimento que permite à lei
estatutária vincular, no estrito campo material do seu objeto, qualquer outra norma ordinária
do ordenamento português, o mesmo reforçada. É esta singular supra-ordenação expressa em
constitucional que reconhece implicitamente essa hierarquia que permite extrair das normas
estatutárias, não apenas uma superioridade material, mas igualmente uma hierarquia formal
que lhe permite, em tese, revogar normas legais que se insiram no âmbito do seu objeto
necessário, seja como disposições sobreponíveis, seja como disposições subordinadas.

Esse valor normativo do estatuto foi reconhecido já em diversas situações pelo TC que
qualifica o estatuto como a lei básica da região e acrescenta que outras normas que integrem
essa lei básica detém, pelo lugar, hierárquico e funcional, que a Constituição lhes atribui
legitimidade bastante para serem a primeira expressão da autonomia político-legislativa da
região.

Quanto à rigidez esta destina-se, designadamente, a garantir o valor hierárquico, impedindo a


sua subversão através de uma hipotética revogação ou desvitalização das leis estatutárias por
parte de outras leis parlamentares sucessivas, de caráter comum. Essa mesma rigidez é, NOS
termos do art.º 226, como sequência de dois tipos de agravamento procedimental, um de
ordem geral (envolve todas as normas do estatuto) e outro de natureza parcial (abarca,
apenas, as normas relativas a algumas matérias específicas).

O agravamento produtivo geral, que assume caráter principal, caracteriza-se numa reserva de
iniciativa das ALRA, carece de qualquer condicionamento temporal, realidade que deposita
integralmente a escolha do momento da alteração estatutária, no domínio do poder
autonómico. Este tramite agravado de ordem geral conecta-se, procedimentalmente, com
outro de natureza secundária e confirmativa do primeiro: trata-se de um parecer obrigatório
não vinculativo, produzido pelas ALRA, o qual terá lugar na eventualidade da AR, como órgão
competente para aprovação da lei estatutária, rejeitar o projeto deliberado por aqueles órgãos
autonómicos, ou introduzir-lhe alterações.

Perguntar-se-á se será legítimo que, à margem da Constituição, o estatuto possa conter regras
procedimentais sobre a sua própria revisão Como Seria o caso da fixação de maiorias
qualificadas para o processo de deliberação do projeto de revisão estatutária pelas ALRA. A
este propósito consagrou-se no art.º 47/4 do EPARAA.

121
Impugnada pelo PR junto do TC este pronunciou-se, com diversos votos de vencido, pela sua
não inconstitucionalidade, vejamos:

 O TC considerou, em primeiro lugar, que a norma referida não violava o princípio da


tipicidade constitucional das leis com valor reforçado porque não estaria em causa a
atribuição a um ato previsto, de efeitos não previstos, mas apenas a regulação de um
aspeto procedimental das duas categorias de leis, não se tratando de conferível do
reforçado a leis que não tivessem esse estatuto;
 Não é assim. Na verdade, uma reserva de iniciativa heterónoma das ALRA aprovada
por maioria de 2/3 obriga a consensos muito exigentes dos quais resulta uma restrição
severa da iniciativa regional de revisão. Ora, dificultar a fase impulso de revisão
estatutária, que integra o procedimento legislativo, por uma maioria híper-qualificada,
redunda num aumento da rigidez ou força jurídica passiva do estatuto, devendo
considerar-se que é a determinação do grau de força normativa das leis constitui uma
reserva de Constituição (art.º 112/3 a 5) não podendo resultar de uma disposição de
lei ordinária, reforçada ou não.
 Não só não se trata de um mero “aspeto procedimental” mas também, diversamente
do que defende o TC, está-se perante a atribuição a um “ato previsto, de efeitos não
previstos”: o estatuto, como ato previsto e com a força jurídica também prevista ou
concebida na Constituição possa a ver acrescida sua força passiva, não por via de uma
alteração constitucional mas sim por vontade própria, ou seja, através de uma norma
estatutária, autoinvestindo-se assim o estatuto de uma maior resistência à sua
mudança. Em suma, o aumento da sua força, que constitui um dos fundamentos do
respetivo valor reforçado, não ocorre por força da Constituição, mas de lei ordinária
(art.º 112/3).
 Neste ponto cumpre registar uma evidente contradição entre este entendimento
jurisprudencial e aquele que lhes pediu o tribunal igualmente sobre o estatuto dos
Açores, quando o art.º 140/2 EPARAA pretendeu limitar o poder da AR quanto ao
objeto e âmbito de revisão. Tendo julgado a inconstitucionalidade do preceito, o TC
disse que não pode o estatuto “uma norma de direito ordinário estatuir o nível de
rigidez de que a mesma norma se encontra revestida quando esse nível de
imperatividade decorre de uma norma de hierarquia superior, como a norma
constitucional”.
 TC não considerou violado o art.º 116/3, porque no seu entendimento, é Constituição
não regularia as maiorias exigidas nas votações das ALRA, abrindo espaço para a
própria lei estatutária disciplinar essa matéria.
Tão-pouco parece um argumento convincente. Sendo o art.º 116/3 um princípio
subsidiário que cede perante outras maiorias fixadas na própria Constituição, na lei ou
em normas regimentais, o facto é que a subsidiariedade do critério democrático de
decisão não se pode aplicar a uma lei estatutária cujo procedimento é regulado nos
seus momentos essenciais pela Constituição, com o meu caso dos estatutos (art.º
226). Ao autorregular essa fase de iniciativa, o estatuto da Região Autónoma dos
Açores entrou numa clara reserva constitucional de procedimento e modelou a sua
própria força criando um precedente para outras leis introduzirem especialidades
agravadas no seu processo formativo passíveis de transformarem arbitrariamente a
respetiva eficácia.
A aceitar outro argumento do TC, segundo o qual a Constituição não regularia as
maiorias de deliberação das ALRA, seria então legítimo, nesta lógica, os estatutos

122
fixarem uma maioria absoluta ou de 2/3 para a iniciativa ou aprovação dos decretos
legislativos regionais para ALRA, excecionando desta forma o critério da maioria,
previsto no art.º 116/3, pelo critério da minoria, que confere a minorias intensas a
faculdade bloquearem a feitura ou a revisão das leis produzidas a seu respeito.
 Dizer, finalmente, que a introdução de uma maioria de 2/3 é uma exigência suportável
pela competência parlamentar, como fundamento de um juízo de ponderação
constitui uma valoração de mérito estranha às funções do TC, a qual nem sequer
parece convincente na “ratio” da sua fundamentação: semelhante maioria qualificada
é um convite à omissão da revisão estatutária e, se reporta para a RAM que vive em
estado quase sempre permanente de omissão, significa alguma carta branca à ou
petrificação perpétua dos estatutos, potenciando a multiplicação de
inconstitucionalidades supervenientes.

Uma outra questão, que se coloca a propósito da fase iniciativa estatutária é de saber se da
reserva de iniciativa parlamentar regional resulta qualquer efeito colateral na rigidez da norma
ligada à delimitação das matérias passíveis de serem revistas pela AR. Numa palavra, importa
aferir se os deputados da AR podem alterar normas do estatuto que não resultem das
propostas contidas no projeto de lei estatutário deliberado pelas ALRA.

O CBM inclina-se no sentido de o projeto de revisão dever limitar o objeto e o âmbito das
normas passíveis de serem alteradas pela AR já que entendemos que tal seria uma
consequência lógica e teleológica da reserva de iniciativa. Esta ficaria subvertida no fim
garantistico se, por acaso, pretendendo uma ALRA apresentar um projeto de revisão para
alteração de dois preceitos, a AR viesse a aproveitar este impulso para modificar todo o
estatuto em vigor, contra a vontade da ALRA. Foi alias o pretenso temor de uma situação deste
tipo que durante anos os órgãos de GOV próprio da RAR se negaram a propor alterações no
respetivo estatuto.

O TC a propósito de outra lei produzida com base numa reserva de iniciativa heterónoma, a lei
do orçamento de Estado, considera que a iniciativa de revisão da mesma lei por parte do GOV
limitaria o objeto normativo das disposições passíveis de alteração por parte dos deputados,
que ficariam condicionados quanto à delimitação do espectro material de sua iniciativa
derivada.

Contudo, a propósito do art.º 140/2 do EPARAA na terceira revisão e impugnado pelo PR, o TC
exprimiu uma opinião diversa. Considerou que o TC, nos termos do art.º 226/2 a 4, o poder
parlamentar de discussão e aprovação dos estatutos e projetos de revisão estatutária não se
assumiria a um poder de concordância ou discordância com esses atos de iniciativa regional.
Eles seriam mais amplos e não caberia a uma norma de direito ordinário, como o estatuto,
delimitar ou definir os poderes da AR expressos na Constituição relativos ao processo
estatutário ou estatuir o nível de rigidez que a norma se encontra revestida, quando esse nível
decorre da própria Constituição. O TC declarou assim a inconstitucionalidade do preceito com
força obrigatória geral.

Existe finalmente, um agravamento produtivo especial, enunciado no art.º 168/6/f, relativo às


normas estatutárias das regiões autónomas que “enunciem as matérias que integram o
respetivo poder legislativo”. Trata-se, na essência, na definição dos domínios materiais de
âmbito regional, suscetíveis de serem regidos por atos legislativos regionais imitidos ao abrigo
da competência comum dos entes territoriais.

123
De acordo com o preceito referido, essas normas carecem de ser aprovadas, na especialidade,
pelo voto favorável de 2/3 dos deputados presentes, desde que superior a maioria absoluta
dos deputados em efetividade de funções. Uma maioria quase tão exigente como a requerida
para a revisão constitucional. Importa, contudo, advertir para o facto de que pese esse trâmite
agravado na votação na especialidade, a lei estatutária carece de ser aprovada pela AR em
votação final global, apenas pelo voto de maioria simples dos deputados que constituam um
número legal dos membros, tal como sucede com a maioria das leis ordinárias (art.º 116/3).

Nestes termos, o estatuto, como efeitos da sua hierarquia formal e material, é uma lei
duplamente reforçada, nos termos do art.º 112/3.

No plano procedimental, a natureza reforçada de norma estatutária resulta de um concerto


pluripessoal e desigual de vontades o qual permite, por um lado, a iniciativa autonómica
conferir às ALRA a possibilidade de marcarem o tempo de revisão e, por outro, outorgar ao
poder a provatório da AR a última palavra sobre a configuração normativa de uma lei que se
repercute sobre os interesses soberanos do estado. O expressivo poder dado a cada um dos
protagonistas institucionais faz supor a existência de “acordos políticos” de revisão, prévios à
gênese normativa, realidade que confere tendencialmente à lei estatutária um caráter político
“pactuado” ou “consociativa”.

Se a inércia dos poderes regionais é geradora de uma expressiva rigidez e durabilidade destas
leis. a definição do âmbito material das competências legislativas regionais reclama,
igualmente, um assentimento larguíssimo dos deputados da AR portadora de uma força
passiva de dureza equiparável.

No plano da parametricidade material, a lei estatutária, em razão da vinculatividade “erga


omnes” das suas normas legais relativamente às demais no âmbito de certas matérias, a qual é
nomeadamente imposta pelo art. 281/b.

3.3.2. As leis grandes opções dos planos

A. Objeto

Nas leis das GOP importa elucidar o caráter “poroso” da respetiva reserva, tendo em conta que
o núcleo do respetivo objeto, atinente a orientações de ordem económica, social, cultural,
ambiental, ecológica e educacional (art.º 90), mostra ser de tal modo vasto que se torna difícil
proceder à sua limitação fronteiriça.

B. Parametricidade

A fraquíssima densidade das suas diretrizes, a ausência de poder de aderência em relação a


outras leis que não a do OE, e isso a sobreponibilidade com uma pluralidade imensa de normas
legais, constituem fatores de desproteção radical das suas normas legais da gop, quando uma
colisão com diferentes atos legislativos.

No tocante à relação com o OE existe:

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 Uma precedência indicativa das leis das gop em relação à lei do OE, deduzindo-se da
necessidade de a OE se dever “harmonizar” com as leis das gop (art.º 105/2), o
imperativo de se estabelecer, uma prioridade cronológica da segunda em relação à
primeira, sem prejuízo da possibilidade da sua elaboração e publicação serem feitas
simultaneamente;
 Uma certa forma de compatibilização da elaboração do OE às leis das gop, na medida
em que o art.º 105/2 estabelece a necessidade da elaboração da lei do orçamento ser
feita “de harmonia” com a lei da gop anual, disposição que fixou uma relação pré-
ordinatória de caráter material entre 2 atos, na qual a segunda assumiu o caráter de
norma sujeito.

Se comparada literalmente com outras expressões constitucionais que definem relações de


parametração condicionamento outras leis, mormente com as previstas no art.º 112, haverá
que conceder que as leis das gop anuais libertam um poder vinculante de intensidade mínima.

Foi precisamente esta intensidade fraca, presente no texto constitucional, que acabou por ser
confirmada com uma prática ou por um esboço incipiente de costume “secudum legem”. Não
se registando com o tempo pressupostos bastantes para que viesse a poder defender um
costume derrogatório da imposição de conformidade determinada do art.º 208/2, reuniram-
se, apesar de tudo, índices favoráveis, a uma redução efetiva de vigor, no que concerne ao
poder de aderência das leis das gop em relação às leis do OE.

A vaguidade das diretrizes contidas nas leis das gop; a omissão de precedência de algumas
dessas leis em relação a diversas leis do OE e a subsequente relutância da justiça constitucional
em declarar a invalidade das segundas, por ausência da respectiva norma pressuposta; e
ainda, a utilização fática da lei orçamental, não apenas como quadro de previsão contabilístico,
mas também como “plano” estratégico concreto de orientação financeira, constituíam razões
para a sedimentação de uma prática interpretativa, que confirmou a baixa aderência
vinculante das leis das gop.

Ainda assim, no contexto de um GOV minoritário, se as leis das GOP fixarem regras precisas de
conteúdo limitativo em relação às opções orçamentais não seria inverosímil que normas do OE
inequivocamente desconformes a essa regra podessem ser impugnadas com fundamento em
ilegalidade.

C. Rigidez

No que concerne aos trâmites agravados de produção deste tipo de lei, regista-se que a
reserva de iniciativa governamental corporiza o agravamento da natureza principal (art.º
161/g).

São cumuláveis ao mesmo, duas especializações obrigatórias mas secundárias como é o caso
da submissão da proposta de lei a participação instrutória e consulta não vinculativa Do
Conselho económico e social e acompanhamento da mesma proposta por um relatório relativo
às grandes opções globais (art.º 92/1 e 91/2).

A Imprecisão da reserva de ato e a débil parametricidade material da lei levam a que o


respetivo carácter reforçado apenas a imunize contra revogações e alterações parlamentares
expressas por outras leis carentes das necessárias exigências produtivas. De todo o modo, por

125
razões de ordem lógico-material e formal e no plano dos princípios, deve ter-se a mesma lei
com inderrogável por parte do ato que tem por objeto vincular e que é a lei do OE.

3.3.3. A lei do orçamento do Estado

A. Objeto

A reserva material de lei do orçamento de Estado é caracterizada por um núcleo muito mais
compacto do que o das leis das Gop, encontrando-se determinado no art.º 105.

Importa referir que, diversamente do que sucede com a maioria das restantes leis reforçadas,
a reserva orçamental poderá ser alargada a outras áreas materiais conexas, mormente por via
da lei de enquadramento orçamental, a qual, vinculando o conteúdo da OE, fixa regras
relativas à sua organização e funcionamento.

É da conjugação entre o disposto no art.º 105 e das disposições organizatórias inseridas na lei
do enquadramento orçamental, que se torna possível aprender duas dimensões de conteúdo
de reserva orçamental:

 Um primeiro plano emerge o núcleo orçamental (ou “reserva necessária de


enquadramento” que é composto por receitas necessárias para cobrir as despesas Do
Estado e da segurança social, fazendo do mesmo porte os mapas descritivos das
especificações do Balanço previsto no orçamento e as regras organizatórias e
ordenadoras da gestão orçamental;
 A “reserva potestativa de orçamento” é integrada pelas chamadas “matérias
orçamentais conexas” ao núcleo do orçamento, conexão que pode assumir uma
natureza diversa (por “complementaridade essencial”, por “acessoriedade” e “por
mera determinação legal”); trata-se de matérias financeiramente importantes, como é
o caso da fixação de taxas e benefícios fiscais nos diversos impostos, as quais, embora
instrumentalmente exógenas ao orçamento se revelam indispensáveis para a
regulação completa e coerente de núcleo orçamental.

A geometria relativamente variável da reserva da LOE não compreende os chamados


“cavaleiros orçamentais” definidos como normas legais que, sendo integradas por razões de
oportunidade na LOE reveste e um conteúdo complementarmente anódico ao núcleo
orçamental, não podendo assumir pelo reforçado.

B. Parametricidade material

A LOE contém diretrizes materiais avulsas, tais como limites anuais de endividamento às
regiões autónomas e autorizações legislativas ao GOV que vinculam materialmente os atos
legislativos que lhes dizem respeito. O art.º 165/5 determina que as autorizações legislativas
em matéria fiscal só caduca no termo do ano económico a que respeitam, regra que permite
garantir, mediante uma regra de estabilidade, o princípio da anualidade orçamental
relativamente a vicissitudes como a demissão do GOV ou a dissolução da AR.

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C. Rigidez

a) Por força do procedimento agravado de produção normativa

Abordando o procedimento especializado de produção da LOE, assume-se que, tal como


sucede nas leis gop e na reserva de iniciativa do GOV que incide o iter principal de
agravamento genérico (art.º 161/g). À mesma iniciativa qualificada agregam-se outros
mecanismos complementares que concorrem para a rigidificação interna do ato, como é o
caso da “norma-travão” (art.º 167/2 e 3).

Importará reter que o percurso produtivo da LOE é apenas determinado, quanto aos seus
estádios fundamentais, pela Constituição, pelo que a lei de enquadramento não estará
habilitada em introduzir no referido processo senão especialidades adjetivas, insusceptíveis de
revelar a título principal na força passiva do ato, dado que tal colidiria com o art.º 112/5,
preceito que de modo algum se pode considerar implicitamente derrogado pelo art.º 106/1.

A rigidez da LOE destina-se a blindar uma norma estruturante das finanças públicas estaduais
contra um poder parlamentar que, à revelia da vontade do GOV, a procurasse alterar durante
a respetiva fase de execução.

A Constituição reserva exclusivamente ao GOV a iniciativa legislativa na tramitação da LOE,


considerando a doutrina que a mesma lei é instrumento político-financeiro anual do GOV
reconhecendo a Constituição que a definição e a prossecução da política económico-financeira
Do Estado compete ao GOV, embora sujeita à aprovação parlamentar.

A Constituição reserva, por seu turno, à AR a competência exclusiva para aprovar a LOE
proposta pelo executivo, podendo a AR, nesta fase inicial, alterar como pretender a proposta
governamental, assim como modificar a LOE em vigor, também sob proposta originária do
GOV. Ainda assim, de acordo com a jurisprudência constitucional, as iniciativas derivadas os
deputados em sede de tramitação de um orçamento retificado devem respeitar os limites
ínsitos na iniciativa do executivo.

Por conseguinte, no que tange à proposta de lei governamental do orçamento geral do Estado,
os deputados e grupos parlamentares podem livremente, à luz do princípio democrático-
representativo que há muito pontifica em matéria fiscal e de recurso ao crédito, não só rejeitar
a iniciativa do executivo, como alterar a proposta de lei, reduzindo ou aumentando as receitas
e despesas e que pode implicar a desfiguração dessa proposta. Este é o momento parlamentar
por excelência e têm indiscutível potência de ordem política, como com prova a rejeição da
proposta de OE para 2022, registada em outubro de 2021, a qual conduziu à dissolução da AR
pelo PR e a convocação de eleições antecipadas.

Ainda assim, de acordo com a jurisprudência constitucional, o momento governativo na


tramitação orçamental reside na reserva de iniciativa que lhe é conferida para aprovação
originária e alteração orçamental, bem como pela norma-travão. A rigidez que resulta da
reserva de iniciativa e da norma-travão constitui um defeso contra a desfiguração do OE
durante a sua execução.

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Este procedimento complexo de feitura do orçamento que garante a sua estabilidade através
de mecanismos potenciadores da sua rigidez, conforma uma decorrência do princípio da
separação com interdependência de poderes (art.º 111/1). A competência partilhada entre o
GOV e a AR na produção orçamental reflete uma relação fiduciária entre os mesmos no campo
das finanças públicas, o qual não obstante uma delimitação de reserva de competência
diferenciadas entre esses órgãos em todo o ciclo de produção e a execução orçamental.

b) O impacto da norma-travão na rigidez da Lei do Orçamento do Estado

O art.º 167/2 é chamada “norma-travão”, assim designada atenta a tradição legal e


constitucional sobre a matéria. A força e imperatividade deixa norma manifesta-se, em síntese,
nos seguintes termos e circunstâncias:

 A LOE é insusceptível de alterada no decurso da sua execução por uma lei resultante
da iniciativa originária dos deputados ou grupo parlamentares;
 No caso do GOV apresentar uma proposta de lei de alteração de um orçamento em
execução à AR, esta encontra-se inibida de, por iniciativa dos deputados e grupos
parlamentares, de proceder a alteração da disposição normativa de OE não abrangidos
pela mesma proposta, já que tal adulteraria o finalismo da reserva iniciativa do GOV;
 Encontram-se proibidas iniciativas legislativas, originárias ou derivadas, provenientes
de deputados ou grupos parlamentares que se traduzam numa afetação, de sentido
negativo, do equilíbrio orçamental, seja por via de uma alteração da LOE em exercício,
seja através da modificação ou aprovação de legislação avulsa;
 Essa proibição aplica-se há alterações de iniciativa parlamentar a decretos-leis por via
da apreciação parlamentar das quais resulte um desequilíbrio negativo do OE em
vigor;
 O art.º 167/3 alarga o efeito preclusivo da norma travão a propostas referendárias que
aumentem despesas e reduzam receitas.

No que respeita aos fundamentos e alcance do regime da norma-travão, importa dar nota de
alguns pontos fortes do argumentário do PM no pedido de fiscalização de constitucionalidade
onde o GOV obteve ganho, e o TC julgou a inconstitucionalidade de leis parlamentares
violadoras daquele preceito constitucional.

 A norma-travão é uma regra jurídica pois conforma um comando determinado,


definido e imperativo no seu sentido proibitivo, não se reconduzindo, por
consequência, à natureza do seu princípio constitucional. Como tal a Constituição no
concede margem para ponderações ou balanceamentos entre essa regras e princípios
de ordem programática respeitantes a direitos sociais.
A admitir-se diversamente, que a norma-travão seria um princípio, o mesmo ficaria
exposto a um balanceamento casuístico nos tribunais com outros princípios
constitucionais, colocando em causa os critérios estruturantes de equilíbrio, coerência
e unidade orçamental, que resultam na Constituição (art.º 105/3 e 4), os quais
reclamam a estabilidade do orçamento.
 A exigência de estabilidade orçamental repudia o poder dos deputados em poderem
alterar, a todo o tempo, o equilíbrio do mesmo orçamento, pelo que a norma-travão
configura uma “justa garantia da estabilidade da execução e do equilíbrio orçamental”.

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Admitir o contrário será expor o estado ao défice, pois “portanto a redução de receitas
como o aumento de despesas, feitos de forma inesperada e sem previsão de uma
compensação correspondente, colocaria em risco todo o trabalho de execução
orçamental, Hoje tanto uma como outra situação daria azo a um défice orçamental.
 No que consegue a propostas de lei de alteração de um OE em execução, as iniciativas
legislativas supervenientes dos deputados incidentes na proposta não podem propiciar
o aumento das despesas ou a redução das receitas, mas estão vedados projetos
oriundos dos mesmos que diminuam as despesas e aumentem as receitas.
Esta regra, tal como foi referida, proibe iniciativas legislativas avulsas dos deputados e
grupos parlamentares, que comprometam, indiretamente, a execução do orçamento
em vigor. Compreende-se, também, nesta mesma proibição, tal como foi antecipado,
propostas de emenda legislativa a decretos-leis em sede apreciação parlamentar (art.º
169) dado que a proscrição de “propostas de alteração” ao OE que desequilibrarem
negativamente o OE encontra cobertura literal no art.º 167/2.
 No equilíbrio de poderes inerentes à feitura do OE e da sua garantia através de
mecanismos como a norma-travão, defende-se, sobretudo, execução orçamental por
GOV minoritários. Estes encontram-se, claramente, mais expostos a uma
desconfigurarão, da LOE em vigor e uma desconstrução do plano financeiro anual das
suas políticas públicas foi um maioria de oportunidade.
 Em face de projetos de leis que aumentem a despesa, é indiferente que as despesas
possam ser tidas pelos deputados como necessárias ou justas, pois o dispositivo da
norma-travão, como regra proibitiva, é “cego” à natureza da despesa e ao seu escopo.
 A norma-travão torna, igualmente, irrelevante que o GOV em sede da sua
competência exclusiva de execução orçamental possa, impelido por leis da AR, ir
acomodando a despesa criada pela iniciativa dos deputados, mediante transferências
financeiras entre rubricas ou aumentando as despesas de cada missão de base
orgânica, mormente, mediante o uso de saldos de anos procedentes. Isto porque é a
LOE atenta a sua rigidez e parametricidade, que vincula perclusivamente as leis de
iniciativa dos deputados que aumentem a despesa inscrita nas suas normas e não o
inverso.

c) A semi-rigidez de algumas normas orçamentais

A LOE É envolvida por um fenómeno atenuado de Semi-rigidez. Assim, o art.º 59/1 da lei de
enquadramento orçamental enumera as matérias integrativas do OE que se encontram
sujeitas a alteração pela AR. Contudo, o nº3 atribui ao GOV competência para proceder, por
decreto-lei, a alterações orçamentais não cometidas à AR.

Trata-se de uma semi-rigidez atípica e constitucionalmente não isenta de dúvidas (na medida
em que não parece ter norma constitucional habilitante) tendo em conta que a regulação
direta das mesmas matérias continua a ser vedada a iniciativas legislativas de ordem intra-
parlamentar.

Pode, contudo, defender-se o caráter materialmente administrativo das rubricas alteradas e a


faculdade governamental de as modificar ao abrigo do seu poder de execução parlamentar.
Com efeito, na fase de execução, domínio da função administrativa do executivo (art.º199/b),
embora concretizada em decreto-lei, domina o poder do GOV, sendo nela que se manifesta

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com maior acuidade o valor reforçado do ato, como processo de defesa da norma contra
iniciativas de alteração com origem parlamentar que se mostrem suscetíveis de perturbar o
ciclo orçamental, a unidade de ação e os recursos à administração pública, as expectativas
tributárias dos particulares e as previsões das empresas quanto ao ano económico em curso.

D. Um lei de conteúdo vinculativo

Tal como foi observado, a LOE encontra-se material e procedimentalmente vinculado a lei de
enquadramento orçamental, nos termos do art.º 106/1, assumindo-se a segunda como uma lei
reforçada pela circunstância de ser seu pressuposto-necessário. Temos, deste modo, uma
cadeia de leis reforçadas e leis ordinárias, em que a lei de enquadramento opera como
“cabeça” ou norma de referência do conjunto.

A situação de emergência financeira gerada pela crise iniciada em 2008, a situação de


assistência financeira em que os estado português foi colocado em 2011 e a ratificação do
Tratado sobre a estabilidade, coordenação e governação na União económica e monetária
iniciado no ano 2012 foi acompanhado por alterações a LOE que implicam uma maior
vinculação do conteúdo orçamental a regras estritas em matéria do controlo de despesas a
uma maior dependência do processo orçamental nacional em relação à supervisão política Da
União Europeia.

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