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8.

7 As normas universais (globais ou nacionais), as normas regionais e as nomas locais

Além das classificações já referidas, as normas jurídicas podem ainda classificar-se com base
no critério da sua aplicabilidade territorial.

Assim, temos normas jurídicas que vigoram em todo o território nacional- aplicáveis em
Portugal continental, Madeira e Açores-, pelo que as classificaremos como normas globais,
universais ou nacionais.

Se a norma jurídica apenas se destinar ao território de uma região autónoma será uma norma
regional, que é o que sucede com os atos legislativos regionais.

Se uma norma jurídica tiver o seu campo de aplicação circunscrito a uma zona delimitada do
território, classificar-se-á de norma local, como é o caso das normas aplicáveis nas autarquias
locais, por exemplo, num concelho. Contudo, uma norma local pode ou não coincidir com o
concelho todo e destinar-se apenas a uma união de freguesias ou pode até extrapolar o
território de um só concelho e abranger todo um distrito, contudo continua a ser local, se não
for uma norma nacional ou regional.

8.8 Normas autónomas e normas não autónomas

Consoante uma determinada norma jurídica contenha ou não contenha um sentido pleno nela
própria enunciado sem necessidade de ser entendida com o recurso ou a conjugação com
outras normas, poderemos classificar as normas como autónomas ou não autónomas.

Quando se retira um sentido completo do que vem determinado numa só norma diremos que
ela é autónoma. Aqui podemos relembrar o artigo 130º que diz “aquele que perfizer dezoito
anos de idade adquire plena capacidade de exercício de direitos, ficando habilitado a reger a
sua pessoa e a dispor dos seus bens”. Outro exemplo bem claro é o artigo 1690º que
determina que “qualquer dos cônjuges tem legitimidade de contrair dívidas sem o
consentimento do outro”.

Mas se a norma jurídica, por si só, não tem um sentido completo na medida em que tem de
ser articulada com outras normas para o obter, diremos que é não autónoma. Por exemplo,
quanto à responsabilidade civil das pessoas coletivas o artigo 165º diz que elas respondem nos
mesmos termos em que os comitentes respondem pelos atos ou omissões dos seus
comissários. Portanto, o artigo 165º, sozinho, não decide nada. Para o efeito remete para uma
outra norma que regula esta responsabilidade. Por isso, para sabermos os precisos termos da
responsabilidade das pessoas coletivas temos que recorrer ao artigo 500º e aplicar as regras aí
estabelecidas.

Desta distinção, ressalta a necessidade de certas normas jurídicas terem de ser conjugadas
com outras para poderem conferir um regime jurídico completo para uma determinada
situação jurídica.

O legislador confia que os destinatários das normas sabem conjugar as normas jurídicas para
obterem um regime completo capaz de solucionar uma determinada situação e serão capazes
de perceber as remissões efetuadas entre normas dentro do ordenamento jurídico.

9. Assim, e para compreendermos melhor esta técnica legislativa, que consiste em efetuar
remissões entre normas jurídicas, vamos analisar as diferentes remissões legais possíveis. Um
bom intérprete da lei sabe que, ao aplicar a lei e seguir as suas remissões deve ter sempre em
conta a unidade do sistema jurídico (como resulta também do artigo 9º, nº 1)
Para o efeito vemos primeiro como o legislador insere as normas jurídicas e as organiza
sistematicamente em diferentes contextos legislativos, e aqui principalmente no âmbito de um
“código”.

9.1 Como “código” entende-se um conjunto de normas jurídicas organizadas que disciplina de
forma ordenada todo um ramo de direito. Normalmente um código é a consequência de uma
evolução científico-jurídica. Um “código” não é, portanto, uma mera compilação de leis, como
sucedeu com as Ordenações, mas todo um tecido normativo sistematicamente concebido.

Ao não disciplinarem de modo fundamental um ramo de direito, distinguem-se de um código,


por terem uma menor amplitude regulativa, os estatutos, que visam determinadas atividades
profissionais (por exemplo, o Estatuto da Ordem dos Advogados) e as leis orgânicas (por
exemplo, a Lei Orgânica do Ministério Público). Ainda existem os chamados microcódigos, os
quais estão centrados em matérias limitadas (Novo Regime do Arrendamento Urbano).

De acordo com a sua natureza de abarcar um regime abrangente, um código é uma lei com
uma perspetiva ou finalidade de longo alcance, para vigorar por muito tempo.

Um código não equivale a um ponto final da evolução, embora constitua sempre um marco de
consolidação.

Um código estabelece um padrão geral, uma conceção geral, assente em princípios e valores
comuns tanto do legislador como dos seus destinatários, orientações legislativas
fundamentadas nas experiências do passado, mas viradas para o futuro; por isso, um Código
está inevitavelmente sujeito a atualizações constantes.

9.2 Para preservar a sua longevidade, o tecido normativo de um código pode ser atualizado
por vários procedimentos, escolhidos oportunamente conforme as necessidades da respetiva
época, sendo as atualizações um reflexo das modificações da realidade social com a qual o
código se há-de corresponder.

Então, poderemos ter:

a) A substituição de um código por um novo (revoga o anterior ao entrar em vigor);

b) Alterações pontuais, “cirúrgicas”, com uma maior ou menor extensão, que atualizam
sucessivamente o texto do Código, respeitando a sua sistematização, lógica e finalidade.
Conforme a “sensibilidade” da matéria codificada em comparação com a evolução social, as
alterações afetam um Código de uma maneira muito diferenciada;

c) Leis avulsas ou complementares relativas a matérias que o legislador não quis logo inserir na
codificação, mas cuja ulterior inclusão no Código Civil sempre será possível;

d) O recurso a cláusulas gerais e a conceitos jurídicos indeterminados – cujo “conteúdo


aberto” permite atualizações valorativas ou conceptuais – que a própria codificação, em
abstrato, desde logo antecipou ao incluí-los no seu texto. Como um código não pode estar
fechado a mudanças sociais, tanto mais que a qualquer legislador é de todo impossível antever
a evolução futura, inclui tais cláusulas e conceitos que fazem com que uma codificação não
seja um sistema terminado e fechado, mas um “projeto em execução”.

Já referimos estas cláusulas e conceitos no contexto de, aparentemente, colocarem em causa


a necessária segurança jurídica. Agora vemo-las nas suas funções de atualização e adaptação.
Obviamente e essencialmente, uma codificação, dentro da sua lógica e perspetiva (ou
finalidade) de vigorar por muito tempo, precisa, como parte de uma ordem jurídica cuja
finalidade é criar certeza e segurança, de assentar em conceitos jurídicos claros e estáveis com
conteúdos definidos. Sem possuir estes conceitos uma codificação não pode cumprir a sua
função. Designadamente quando está em causa a determinação de estados civis das pessoas
singulares ou o reconhecimento das pessoas coletivas, a definição de obrigações, os conceitos
jurídicos têm que ser claros e possuir um conteúdo determinado. É neste sentido que a lei dá
noções e define os conteúdos de direitos e obrigações. As pessoas às quais um código se dirige
(os destinatários das suas normas) precisam de saber o que vale sob pena de não terem
liberdade para agir por não poderem medir os efeitos das suas decisões face a uma lei
imprecisa.

Todavia, quando a sistematização de um código e a redação das suas normas atingem um alto
nível de abstração que já não deixa transparecer os princípios e pressupostos valorativos e as
preocupações sociais em que se baseia, o código, devido à sua qualidade técnico-jurídica,
presta-se a servir ou a ser utilizado em realidades políticas e sociais nunca imaginadas pelo
legislador originário.

9.3 Posto isto, torna-se necessário fazer algumas referências às técnicas legislativas que são
utilizadas para a aplicação prática de um código, tendo em conta que este é ao mesmo tempo
amplo quanto à matéria incluída no seu tecido e conciso na sua redação, ordenação e
concentração.

Em primeiro lugar, temos as ditas “partes gerais” (ou “disposições gerais”) como elementos
sistemáticos de uma lei ou de uma codificação. Vemos isto logo na sistematização do Código
Civil.

O Título I do seu Livro I vai para muito além do direito civil ou privado, incluindo regras
relevantes para todo o ordenamento jurídico. Deste modo, a sua matéria, devido à sua
especificidade abrangente, bem podia ter sido regulada fora do Código Civil numa lei
autónoma (por exemplo, numa lei de introdução).

Sendo assim, no fundo é o Título II do Livro I que é verdadeiramente a Parte Geral do Código
Civil que estabelece as regras comuns para os Livros II a V da codificação.

Não pode deixar de ser realçado que a primeira norma com que o Título II, dividido em cinco
subtítulos que correspondem aos elementos da relação jurídica, abre o articulado do Código é
precisamente o artigo 66.º, dedicado ao começo da personalidade da pessoa humana, que
coloca o homem à cabeça da codificação. Fica assim manifesta a orientação do Código Civil na
primazia da pessoa humana.

A técnica de antepor disposições gerais às subsequentes normas especiais perpassa todo o


Código Civil. Os respetivos articulados são precedidos para evitar repetições.

Fora disso, além de manter o Código conciso e praticável, esta técnica serve ainda para manter
a unidade do sistema normativo. De facto, na técnica legislativa utilizada na ordenação da
matéria jurídica do Código Civil, o direito apresenta-se-nos em complexos normativos
diferentes, sistematizados e articulados ou estruturados, mais ou menos harmoniosamente,
entre si como mostram os exemplos: Temos assim as regras a respeito dos direitos de
personalidade (artigos 70.º - 81.º); o regime (os complexos normativos) dos menores e
maiores acompanhados (artigos 122.º - 156.º) e, dentro deste, o regime da condição dos
menores (artigo 122.º - 129.º); o regime do negócio jurídico (artigos 217.º - 294.º) e, dentro
dele, as normas a respeito de faltas e vícios da vontade e a ordem pela qual são enumeradas
(artigos 240.º - 257.º) ou o regime da invalidade e seus efeitos (artigos 285. – 294.º); ou, no
âmbito do direito das obrigações, o Capítulo I integrado no Título II dos contratos em especial
que regula todo o complexo do regime do contrato de compra e venda (artigos 874.º - 939.º),
sendo este subdividido em 11 secções.

Estes complexos normativos não são o resultado de meras opções do legislador, mas na sua
estrutura respeitam a lógica do real. Neste contexto o direito chega mesmo a aceitar
estruturas ordenadoras que lhe são pré-existentes, não criadas por ele, como podemos
observar no exemplo da realidade multifacetada da família, sobre as quais a lei constrói o seu
regime normativo a condizer com a instituição “família”. Pois é um dado empírico que uma lei
que julga poder ignorar (ou até contrariar) a realidade social, não indo ao seu encontro, acaba
por não ser acatada pelos seus destinatários que perdem o respeito por ela, ficando assim a lei
votada ao fracasso.

Por outro lado, desta técnica legislativa resulta que, para resolvermos um caso, temos que
percorrer vários conjuntos normativos sistemáticos da lei.

9.4 Na lógica da técnica “disposições gerais → normas especiais” temos as remissões, que
pretendem, à semelhança das disposições gerais, contribuir para uma aplicação uniforme das
leis e evitar repetições e, com isso, racionalizar a aplicação da lei.

9.4.1 Aqui temos que distinguir:

a) Uma remissão feita para uma previsão ou hipótese legal onde a situação já se encontra
regulada. Por exemplo, para evitar uma enumeração das causas que justificam a revogação de
uma doação por ingratidão do donatário, o artigo 974.º remete para o elenco das causas da
indignidade sucessória, feito no artigo 2034.º, que considera comparáveis; um outro exemplo
encontramos no artigo 251.º que não estabelece pressupostos próprios para a relevância de
um erro e remete para o artigo 247.º, última parte;

b) Uma remissão feita para uma estatuição já definida nas normas para as quais se remete; por
exemplo, estando em causa a validade de doações não permitidas, o artigo 953.º remete para
o regime das ilegitimidades relativas, reguladas nos artigos 2192.º - 2198.º para disposições
mortis causa, que determinam a sua nulidade; temos também a remissão feita pelo artigo
678.º, quanto ao penhor, para as respetivas normas da hipoteca que passam a ser aplicáveis
também ao penhor;

c) Dupla remissão; exemplo: artigo 433.º (quanto aos efeitos da resolução) → remissão para o
artigo 289.º, n.º 1 (prevê os efeitos da anulação: retroatividade e restituição) → 289.º, n.º 3
(para o caso da destruição ou perda da coisa a restituir aplica-se o regime que vale para as
relações entre possuidor e proprietário) → 1269.º (critério da boa fé); quer dizer, no caso da
destruição ou perda da coisa que deve ser restituída a lei, atenta ao critério da boa fé, remete
para o artigo 1269.º ao criar deste modo um regime uniforme para todas as três situações em
que há lugar a restituições.

d) Remissões para um instituto subsidiário; exemplo: o artigo 913.º, n.º 1, que contempla os
efeitos da venda de coisas defeituosas e, não decidindo nada, remete para o regime da venda
de bens onerados (onde temos defeitos jurídicos da coisa);
e) Remissões que estendem um regime-padrão a outras situações; exemplo: o artigo 939º
determina que o regime-padrão do contrato de compra e venda é aplicável a outros contratos
onerosos (nomeadamente quando se trata de uma venda de coisa alheia regulada no artigo
892º);

f) Remissões gerais subsidiárias: Código Comercial → Código Civil; Código do Processo de


Trabalho → Código do Processo Civil. Sirva como exemplo para estas remissões gerais o
disposto no artigo 3.º do Código Comercial: “Se as questões sobre direitos e obrigações
comerciais não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei comercial, nem pelo seu espírito,
nem pelos casos análogos nela prevenidos, serão decididas pelo direito civil”.

g) Remissões para assinalar que existem exceções ou prioridades; o artigo 123.º que refere
“salvo disposição legal em contrário” os menores carecem da capacidade de exercício; ou o
artigo 285.º que estabelece que as regras aplicáveis à nulidade e à anulabilidade de um
negócio jurídico apenas são aplicáveis “na falta de um regime especial”.

h) E por fim as remissões para fora do sistema jurídico interno. Temos aqui, por um lado, a
previsão do artigo 8.º, n.º 1, da Constituição que determina que “as normas e os princípios do
Direito Internacional geral ou comum fazem parte integrante do Direito Português” e, por
outro lado, o artigo 1625.º do Código Civil que determina que “o conhecimento das causas
respeitantes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não
consumado é reservado aos tribunais e às repartições eclesiásticas competentes”. Portanto, as
decisões relativas a validade e dissolução do casamento católico para os casos previstos no
artigo 1625.º são da competência exclusiva do direito canónico, restando ao direito português,
para que as decisões canónicas se executem na ordem interna portuguesa, a sua verificação e
confirmação (artigo 1626º, nº 1).

9.4.2 Se nas várias normas remissivas é utilizada a expressão “com as necessárias (ou devidas)
adaptações” ou “devidamente adaptada”, a norma não afeta conteúdo ou finalidade da norma
para que se remete, mas visa apenas determinas expressões suas que devem ser trocadas ou
substituídas.

Temos como exemplo o artigo 953º – inserido no regime das disposições gratuitas (doações)
entre vivos – que remete para os artigos 2192º a 2198º – inseridos no regime das disposições
gratuitas por morte. Estes artigos falam – como estão em causa doações por morte – do
testador, mas para o artigo 953º – que contempla doações entre vivos – quem é relevante é
agora o doador.

O artigo 974º, por seu lado, remete quanto aos pressupostos da revogação de uma doação por
ingratidão do donatário para o regime que justifica a deserdação que obviamente se refere a
um herdeiro (artigo 2166º).

Em ambos os casos as remissões são lógicas se tivermos em conta o paralelismo das situações
em que liberalidade, a atribuição patrimonial gratuita, não se justifica ou deixou de ser
justificável.

9.5 Ainda vamos referir outros meios de técnica legislativa no contexto da aplicação de um
“Código”:

9.5.1 Como sabemos para fazer valer um direito é sempre necessário invocar uma norma
precisa que confere o direito. Para o efeito, a lei pode enumerar os seus pressupostos
casuisticamente, um por um, ou pode, em vez disso, utilizar cláusulas gerais.
Quanto a enumerações casuísticas devemos distinguir:

i. Enumerações taxativas em que temos um elenco completo (fechado) de fundamentos, como


por exemplo, o artigo 1978.º, n.º 1, alíneas a) – e), o artigo 1889.º, n.º 1, ou o já
supramencionado artigo 2034.º, alíneas a) – e), o antigo artigo 4.º da antiga Lei do Divórcio de
1911, aliás uma lei muito avançada para a época, que enumerava taxativamente as dez causas
legítimas do divórcio, a começar pelo adultério da mulher ou do marido e a terminar com a
doença contagiosa reconhecida como incurável ou uma doença incurável que importe
aberração sexual. Neste contexto o artigo 127.º é uma norma híbrida na medida em que –
para além do seu elenco próprio – remete ainda para outros atos previstos na lei com que o
seu elenco fica fechado.

ii. Enumerações exemplificativas onde o elenco permite ser completado o que acontece
sempre quando a lei o admitir ao dizer “designadamente”, ou “especialmente”, ou “entre
outros”, como por exemplo os artigos 1418.º, n.º 2, 1422.º, n.º 2, ou o artigo 1722.º, n.º 2.

A técnica legislativa de recorrer a normas casuísticas não exclui que estas não possam conter
conceitos indeterminados.

Por outro lado, em muitos casos a técnica da lei, para permitir a invocação de um direito ou
para indicar os pressupostos para a aplicação de uma norma, em vez de enumerar
casuisticamente os respetivos fundamentos, recorre à utilização de cláusulas gerais, como
sucede, por exemplo, com os pressupostos necessários para a inibição das responsabilidades
parentais que consistem em “infringir culposamente os deveres para com os filhos” sem que a
lei proceda a uma concretização ou exemplificação deste comportamento (artigo 1915.º, n.º
1). Estas cláusulas, já referidas em contextos diferentes acima, ou seja, no contexto de
aparente colisão com a exigência da segurança jurídica e na sua função de acompanhar a
evolução e manter atualizadas as codificações, surgem agora em mais um contexto legal,
diferente, em oposição a enumerações casuísticas.

Quase em contraste com as cláusulas gerais e em ordem a contribuir para a segurança jurídica,
dando estabilidade e previsibilidade à aplicação das normas, o Código Civil recorre com grande
frequência a definições legais (noções) (artigo 270º, 874º, 1543º).

As definições legais têm apenas carácter prescritivo indireto porque a decisão do legislador de
dar uma definição de certa situação ou facto jurídico por si só não permite, proíbe ou
prescreve nada, apenas condiciona a aplicação da hipótese legal em que a noção aparece
inserida no sentido da orientação normativa que é determinada pela definição legal.

9.5.2 As ficções legais

Fazem parte da técnica legislativa ainda as ficções ou equiparações legais.

Com o recurso a ficções, a lei “inventa” uma realidade que não existe ou “ignora” uma
realidade que existe ou chega mesmo a “negar” a existência de uma realidade. Quer dizer,
uma ficção não corresponde à realidade.

Assim, poderemos concretizar as seguintes ficções legais:

a) A lei finge a verificação de um facto ou acontecimento que na realidade não existe ou que
não sucedeu como se o facto existisse ou se tivesse verificado, recorrendo para o efeito a
expressões “é tido (havido) como”, “é considerado” ou “tem-se por”, etc.; temos aqui um
exemplo, antigo e da maior relevância, que é a ficção “nasciturus pro iam nato habetur”, ou
seja, para efeitos sucessórios, no momento da abertura da sucessão pela morte do seu autor,
um nascituro (já concebido) é considerado como se já tivesse nascido, isto na pressuposição de
que venha a nascer com vida, que está na base dos artigos 66.º, n.º 2, e 2033.º, n.º 1, pois na
lógica do fenómeno sucessório é óbvio que o sucessor sobreviva ao autor da sucessão, facto
que na realidade ainda não se verifica em relação a um nascituro em gestação;

b) Também pode suceder que a lei negue a existência de uma relação ou de um facto embora
este na realidade exista. Sirva como exemplo o célebre antigo § 1589 n.º 2 BGB que vigorou
até 30 de Junho de 1970 que, para evitar que um filho nascido fora do casamento fosse
herdeiro legal do seu pai devido ao parentesco com este, determinava, isto é ficcionava, que
em relação ao seu pai e os seus parentes o filho nascido fora do casamento não é havido como
parente. Isto é, o filho não é havido como parente no sentido da lei civil para evitar a sucessão
legal, mas como é óbvio, a sucessão testamentária pode verificar-se sempre se o pai assim o
entender e instituir o seu filho como herdeiro. Para todas as restantes leis e seus efeitos,
evidentemente, o filho é parente.

Aliás, temos uma situação semelhante no direito português que é a inatendibilidade, por força
da lei, de factos jurídicos verificados em relação ao estado civil de uma pessoa quase como se
os factos ou relações não existissem enquanto não forem registados, tendo deste modo
efeitos meramente latentes: Por exemplo, o artigo 2.º do Código do Registo Civil e o artigo
1669.º do Código Civil determinam que um casamento não registado não é juridicamente
atendível. Também encontramos uma ficção no artigo 2029.º, n.º 1, que diz que a partilha em
vida, onde há um acordo entre todos os intervenientes, não é havida por contrato sucessório.

c) A lei também pode, a favor de determinadas pessoas, ignorar certos factos ocorridos que se
verificaram indubitavelmente como sucede como resultado da conjugação dos artigos 7.º e
4.º, n.º 1, do Código do Registo Predial que fingem, mas tão-só a favor de um terceiro
adquirente de boa-fé!, a continuação de uma situação jurídica que, na realidade, já deixou de
existir, como sucede no caso de um registo de um bem patrimonial em que a inscrição de um
direito a favor de um titular está desconforme com a realidade uma vez que o direito inscrito
já foi transmitido e deixou de pertencer ao titular inscrito.

Através da consagração de ficções legais, o legislador, implicitamente, leva-nos a aplicar um


determinado regime jurídico previsto para algo que não ocorreu na realidade, ou para que se
siga o regime jurídico como se algo que ocorreu não tivesse ocorrido, ou seja, o legislador
ficciona uma realidade para se lhe aplicar o regime jurídico dessa realidade fingida como se
fosse a real. Diz-se que as ficções legais são normas não autónomas porque não regulam a
realidade sobre que versam diretamente, antes remetendo para as normas que a regulam. A
finalidade das ficções é, portanto, aplicar ao facto fingido o regime jurídico do facto real.

Ler: J. Baptista Machado, pp. 99-111

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