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conceito de pessoa é um dos mais relevantes para o direito ocidental, porém,

paradoxalmente são quase nulos os estudos jurídicos dedicados a investigar com


profundidade a elucidação histórica e os sucessivos conteúdos teóricos sobre a temática.
Grande parte dos estudiosos parece considerar a noção como sendo inata, assim o
conceito de pessoa seria um dado, que tem sempre existido. Mas, é indispensável para a
resolução de dilemas no campo do direito contemporâneo e para efetiva proteção jurídica
do indivíduo que se possa investigar adequadamente o conceito de pessoa.

De fato, não é nossa pertinência à espécie homo sapiens que nos faz pessoas. Na seara da
linguística, por exemplo, estudiosos apontam que nas sociedades ocidentais é trivial a
ocorrência de esvaziamento semântica da grande maioria das palavras.

O referido esvaziamento semântico é associado à própria dicotomia que se dá entre


conservadorismo e mudança, binômio que expressa os fatores estáticos e dinâmicos da
linguagem, assegurando a comunicação entre os seres humanos.

O mesmo esvaziamento semântico acomete a noção de pessoa, que por ser de difícil
apreensão na sua essencialidade, é hoje carregada de vários conteúdos, em função das
formulações jurídicas, políticas e até mesmo filosóficas que foram se construindo ao longo
do tempo.

O conceito de pessoa aplicar-se-ia, então, no rol das expressões e afirmações


universalizadas, que passam para a convergência internacional porque todos as utilizam, de
tanto repetidas vão gastando o sentido.

E quando há o questionamento sobre o que realmente significam, verificamos que são


fórmulas vazias, afirmações sem conteúdo, porque este se foi desgastando ao longo dos
tempos nas bocas e nos ouvidos.

A referência universalizada à pessoa, assim como a dignidade da pessoa humana tem se


mostrado oca em sua essência. O que problematiza a existência de referenciais de validade
para a construção do conceito de pessoa hodiernamente, central no campo do direito, pois
todo direito assenta na pessoa.

A noção de pessoa é relativamente recente na evolução da humanidade e de acordo com


Ascensão não encontramos na civilização clássica anterior à greco-cristã nenhum indicio de
conceito.

Numa inicial investigação sobre a origem etimológica da palavra pessoa, bem como o
sentido correto em que fora utilizada no pensamento antigo continue sendo questão aberta
no campo das conceituações, seu processo de elaboração nos remete à duas fontes
argumentativas.

A primeira fonte onde a definição da personagem representado pelo ator no teatro precede
a de pessoa, o que confirma que nas antigas civilizações ocidentais não se atribuiu o
mesmo nível de generalidade que os conceitos atuais de pessoa ou de indivíduo
comportam, prendendo-se apenas ao campo de atributos e das funções exteriores.
O termo “pessoa” percorreu diversos territórios semânticos, advindo desde a linguagem
teatral, onde provavelmente reside sua origem, passando pela linguagem das profissões,
pela gramática, retórica e, por fim, pela linguagem jurídica e teológica para vir se fixar
finalmente na linguagem filosófica.

O conceito etimológico mais difundido da palavra pessoa é originário em Boécio, filósofo


cristão de formação grega, que aponta a origem em persona, cujo sentido genérico é de
máscara de teatro e representada pelo som de sua voz, uma personagem.

Aceita-se que persona esteja relacionada ao verbo latino personare que significa soar,
passar através da voz do ator, através da persona, da máscara.

Com idêntica equivalência ao termo grego prosôpon que se refere também às máscaras de
representações teatrais, mediante as quais o mesmo ator representava diferentes papéis,
em um contexto em que o alcance filosófico do uso aparecia com maior clareza, persona
apontaria algo exterior, mais precisamente para o papel que o homem vive, para algo
acrescentado ao ser humano.

Daí prosôpon passou a designar o próprio papel representado pelo ator, e, posteriormente,
passou a significar a função ocupada pelo indivíduo na sociedade, sem vir a significar o
indivíduo em si mesmo.

Para os autores, sobretudo cristãos que preferiam usar a palavra hypóstasis, um paralelo do
latim substantia, ao invés do tradicional prosôpon. Contudo, também hypóstasis no fundo
poderia ser interpretada - pelo menos etimologicamente - como o que estava sob a
máscara: no teatro, indicaria então não o ator, mas o personagem que ele representava,
simbolizada e identificada com a máscara.

Percebe-se que o pensamento grego se interessava pela individualidade, ainda que, por
outro lado, a considerasse uma imperfeição. E, também o direito teria se influenciado na
designação do sujeito de direitos pessoais em distinção ao sujeito de direitos reais, ligado
às coisas, uma vez que o mesmo homem poderia ter diferentes personae, quer dizer,
diferentes papéis sociais ou jurídicos.

Na Roma Antiga, por exemplo, apenas os cidadãos tinham direitos pessoais, e seria apenas
o varão, livre que poderia ser considerado sujeito de direitos e deveres. O que não incluía
nem as mulheres e nem as crianças.

Assim o conceito de pessoa é algo além de um fato de organização, mais do que o nome ou
o direito reconhecido a uma personagem e mais do que uma máscara ritual, traduzindo-se
num fato fundamental do direito.

Dizem os juristas que nada há além das personae, das res e das actiones, e tal princípio
ainda governa as divisões de nossos códigos. Todos os homens livres de Roma foram
cidadãos romanos, todos tiveram a persona civil: alguns tornaram-se personae religiosas,
algumas máscaras, nomes e rituais permaneceram ligados a algumas famílias privilegiadas
dos colégios religiosos.
A outra fonte argumentativa sobre o conceito etimológico de pessoa ressalta a grande
diferença existente entre máscara e pessoa, em sentido estrito. Não há oposição entre "eu
verdadeiro" e o "eu mascarado". Pelo contrário, a pessoa é o mais “verdadeiro eu” que pode
existir, fruto da singularidade do ser humano, em sua plenitude.

Segundo Park apud Stancioli, o homem está sempre e em qualquer lugar representando um
papel e, é nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros, que nos conhecemos a nós
mesmos. Claro, não considerando a advertência de Freud quanto a existência do
inconsciente (id) que fundamentou a frase: "não somos donos nem da nossa própria casa".

Na medida em que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos -
o papel que nos esforçamos para chegar a viver - esta máscara é o nosso mais verdadeiro
eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final, a concepção que temos de nosso papel
torna-se uma segunda natureza e parte integrante de nossa personalidade. Entramos no
mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas.

Sublinhando-se a acepção de pessoa como papel social e resgatando-se o lugar da


teatralidade, permitindo ao indivíduo orgânico, que é o social, existir, possibilita-se entender
melhor o porquê das primeiras conceituações da palavra "pessoa".

O verdadeiro sentido e utilidade do conceito de pessoa está, sobretudo, na capacidade de


opor o indivíduo humano concreto, particular, à ideia universal de humanidade. A sua
individualidade revela-se, neste contexto, um papel, uma máscara viva no palco do mundo
e, não mais do que isto.

A visão da pessoa no século XX é substituída pela ideia de humanidade, deixando de


atender ao homem concreto.

A filosofia antiga não sistematizou um conceito ôntico de pessoa, e a resposta parece estar
na enorme dificuldade que o pensamento antigo tinha em lidar com as realidades individuais
em face da visão monista da realidade.

Na cultura arcaica grega, a existência humana se harmonizava com a organização geral do


cosmos, pois não havia separação entre o conhecimento físico e a reflexão sobre os valores
relativos à dinâmica do mundo natural.

A concepção de pessoa pautada em uma unidade física e orgânica, não permitia a


percepção dos outros homens como existência singular. Os gregos percebiam a
individualidade intrinsecamente e alinhada à concepção de ser parte de um todo
harmonioso, a partir do qual e somente em referência ao qual se podia perceber o indivíduo.

Platão e Aristóteles aplicaram os conceitos de substância, natureza e essência ao homem


sem se referirem concretamente à pessoa. Apesar disto, foram tais filósofos que
inauguraram o período antropológico da filosofia, desenvolvido pelos gregos a partir da
cosmologia segundo a qual o ser humano é compreendido como a realidade natural mais
elevada.
Já na acepção sociológica da pessoa que se desenvolvem a priori na reflexão sobre o
homem na sua dimensão exterior, uma acepção de natureza ontológica para o termo
pessoa começa a ser construída nas disputas trinitárias e cristológicas da Antiguidade.

Decifrar o sentido da sua individualidade no seio da humanidade, nesta visão a pessoa


passa a ter um lado metafísico relacionado com a alma individual e sua porção espiritual
passa a ser um fato reconhecido socialmente, permitindo que o conceito de pessoa aplicado
ao homem, como possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais, com sua
consequente dignidade, venha a ser desenvolvido.

Foi com o advento do Cristianismo, mais precisamente no âmago da filosofia patrística, de


evangelização e na maior defesa da religião cristã que ganhou destaque a pessoa dentro da
teologia trinária, perfazendo uma antropologia teológica.

Bem mais tarde tal conceito de pessoa fora aprofundado pelos escolásticos quando se
superou a visão monista da realidade e se dotou de teor metafísico o conceito de pessoa,
no sentido de ser a singularidade substancial ou o princípio último de individualização.

A noção filosófica de pessoa só fora verdadeiramente aprimorada pela Escolástica,


estimulada pela necessidade de enquadramento das pessoas divinas.

A Escolástica fundamentada nas reflexões cosmológicas gregas, erigidas no século VI


d.C., que definiu a pessoa como indivíduo que subsiste na natureza racional. E, se parte da
verdade revelada, dentro do pensamento teológico, procurando entendê-la, ilustrá-la e
explicá-la racionalmente, deixando o homem de ser objeto para passar a ser sujeito e,
portanto, portador de valores.

Na concepção teológico-cristã o conceito de pessoa se encontra ligado a três de suas


grandes questões, a saber: a natureza da Santíssima Trindade (Deus ou três Deuses, ou
manifestações divinas); a Encarnação do Verbo (Deus ou o gomem); e a semelhança
ontológica entre o Homem e Deus.

Heidegger salienta que o ser humano apresenta essa característica peculiar de um ser em
permanente inacabamento. E, neste sentido, o homem é o único ser incompleto pela sua
própria essência, posto que não tenha substância, no sentido clássico que o termo possui
na filosofia grega, medieval e moderna.

Entende-se pessoa sob um viés transdisciplinar e multidisciplinar, onde se alinha as


reflexões filosóficas atuais ao caráter mutável da pessoa, demonstrado nas continuidades e
rupturas de sua trajetória histórica.

O conceito de pessoa deve ser investigado em seus elementos quais sejam: corpo, valor, e
elementos incontornáveis, como a autonomia, alteridade e dignidade . Tal concepção de
pessoa seria um projeto inacabado, em construção intersubjetiva constante, uma vez que
ser pessoa significa ser um fluxo de valores em eterna mudança.
Para a teoria jurídica e para o sistema jurídica de tutela de direitos humanos as
consequências desse conceito de pessoa são relevantes para a finalização de um conceito
de pessoa humana onde se enfoca o caráter único, insubstituível de cada ser humano, de
portador de um valor próprio, e que veio demonstrar que a dignidade da pessoa existe
singularmente em todo indivíduo.

A contemporânea noção de pessoa acentua como algo permanentemente mutável, como


ser em contínua transformação, portanto, sendo incompleto e inacabado, naturalmente
evolutivo, num vir-a-ser em contínuo devir.

Na perspectiva atual de pessoa ancora-se a noção de dignidade da pessoa humana e que


coloca o desafia aos civilistas e a todo direito privado, pois é a capacidade de ver a pessoa
em sua ampla dimensão ontológica, restaurando a primazia da pessoa humana, nas
relações civis, relações sociais e relações essencialmente jurídica.

A defesa da dignidade humana é a condição primeira de adequação do Direito à realidade e


aos fundamentos primaciais que justificam existir Estados, nações e pátrias.

Referências

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categoria ontológica. Disponível em:
http://faa.edu.br/revistas/docs/RID/2013/RID_2013_16.pdf Acesso em 22.02.2016.

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REBOUÇAS, Marcus Vinícius Parente; PARENTE, Analice Franco Gomes. A Construção


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SARLET, Ingo. Os direitos fundamentais, a reforma do judiciário e os tratos internacionais


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