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18 Pericardites

Bráulio Luna Filho


Ja py Ang elini Oliveira Filho

ANATOMIA E FUNÇÃO cos têm demonstrado, no entanto, que na maioria das


vezes esses episódios são causados por infecções virais
O pericárdio é uma estrutura constituída por duas do tipo echovirus ou coxsackie. Embora esse diagnósti-
membranas em forma de saco, que envolve o coração: co possa ser realizado pela determinação sérica dos an-
uma membrana serosa mais interna que se adere à pare- ticorpos virais na fase aguda e na convalescença, não é
de externa do coração — o pericárdio visceral; e uma a rotina na prática clínica. Assim, na maioria das vezes
membrana mais externa e fibrosa — o pericárdio parie- o termo pericardite viral e idiopática é utilizado indife-
tal. Separando essas duas camadas, existe o líquido pe- rentemente. Recentemente, tem-se destacado o aumen-
ricárdico com volume aproximadamente de 50ml. to de pericardite em pacientes portadores do vírus da
As principais funções do pericárdio são: 1) fixação HIV, relacionados à tuberculose e à infecção bacteria-
do coração dentro do mediastino; 2) redução do atrito na, devido principalmente à baixa da resistência imu-
entre o coração e as estruturas vizinhas; 3) barreira con- nológica nessa população.
tra infecções em estruturas adjacentes como os pul- Não existe tratamento específico para esse tipo de
mões; e 4) prevenção contra dilatação extrema do cora- pericardite. As manifestações e manuseios serão des-
ção durante elevação súbita do volume intracardíaco. critos quando abordarmos o diagnóstico e tratamento
No coração normal, a pressão intrapericárdica varia du- geral das pericardites.
rante a respiração, de – 5cm durante a inspiração até +
5cm H2O na expiração. Todavia, circunstâncias patoló-
gicas que o enrijecem ou acumulam líquidos no seu in- Pericardite Tuberculosa
terior podem produzir anormalidade da pressão com A tuberculose constitui uma das principais causas
sérias repercussões hemodinâmicas. de pericardite em nosso meio. Particularmente em indi-
víduos com AIDS é a causa mais importante. Surge
PERICARDITES AGUDAS
pela reativação de focos em nódulos linfáticos medias-
A pericardite aguda é a forma mais comum das tinais ou pulmonares. O microrganismo também pode
afecções pericárdicas e se caracteriza pela inflamação alcançar o pericárdio por via hematogênica. Seus sinto-
dos seus folhetos. Muitas doenças e agentes etiológicos mas são insidiosos e inespecíficos e raramente existe
produzem esta síndrome. As mais freqüentes estão des- sinal de atrito pericárdio. A demonstração da presença
critas na Tabela 18.1. do bacilo da tuberculose, quer por coloração quer por
cultura, é possível em menos 50% dos casos. Por con-
ETIOLOGIA seguinte, o diagnóstico freqüentemente presuntivo é
Pericardite Viral e Idiopática realizado através da história clínica. O nível de elevado
de ADA (atividade da deaminase adenosina) no líquido
A pericardite aguda é geralmente de origem idio- pericárdio tem sido sugerido como teste específico para
pática ou causa desconhecida. Estudos epidemiológi- tuberculose. Geralmente, o diagnóstico da pericardite

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Tabela 18.1 Em geral é doença grave, mas dificilmente afeta in-
Causas mais Comuns de Pericardites Agudas divíduos hígidos. Manifesta-se com febre alta, sudorese,
Infecciosas calafrios, e com poucas manifestações específicas tipo
Viral (Coxsackie B, Echovirus, HIV, mononucleose etc.) atrito pericárdico. Habitualmente existe leucocitose com
desvio para esquerda e RX de tórax revelando aumento
Tuberculose
da silhueta cardíaca. Como pode ocorrer tamponamento
Infecção bacteriana aguda (pneumococos, estafilococos, cardíaco de instalação rápida, o diagnóstico e tratamento
sepses etc.)
devem ser feito e iniciado o mais breve possível. Devido
Não-infecciosas
à alta mortalidade, de 65% a 75%, a pericardite bacteria-
Pós-infarto agudo do miocárdio na deve ser considerada uma urgência médica.
Uremia

Doenças do tecido conjuntivo (LES, AR, ES, DMTC etc.) Pericardite na Síndrome da Imunodeficiência
Neoplasias — Metastáticas: pulmão, mama, linfoma Adquirida
— Primárias: sarcoma, mesotelioma

Radiação — Induzida
O derrame pericárdio assintomático é a forma de
apresentação mais freqüente, e tamponamento cardíaco
Droga — Induzida (Hidralazina, Procainamida, Fenilbutazona
etc.) também tem sido relatado. Devido à baixa resistência
imunológica dos portadores desta síndrome, uma am-
Mixedema
pla variedade de agentes infecções pode, oportunistica-
Outras mente, ocorrer. Por conseguinte, uma vez estabelecido
o diagnóstico deve-se proceder a uma investigação em
tuberculosa é realizado retrospectivamente em pacien- busca dos possíveis agentes etiológicos infecciosos,
te com quadro de com pericardite constritiva (ver a se- não excluindo a possibilidade de neoplasias.
guir) e história de tuberculose. A mortalidade neste ce-
nário, em paciente não tratado, é de 80%. O tratamento Pericardite Pós-Infarto Agudo do Miocárdio
específico para tuberculose deve ser estabelecido pelo
prazo médio de um ano. Existe controvérsia sobre o uso Há duas formas de pericardite associada ao infarto
de corticosteróide porque, até ao momento, não há evi- agudo do miocárdio (IAM). Nos primeiros dias após
dências de benefício quando associado ao esquema trí- esse evento, 10% a 15% dos indivíduos podem apre-
plice de tratamento da tuberculose. A pericardiocente- sentar pericardite. Esta decorre de inflamação miocár-
se está indicada naqueles pacientes com grandes derra- dica em área contígua a infarto transmural extenso. O
mes. Cerca de 1/3 dos pacientes necessitará dessa abor- prognóstico do IAM não é afetado por esse tipo de in-
dagem terapêutica, não obstante o tratamento quimio- tercorrência, mas se deve estar atento para essa possibi-
terápico específico. lidade ao se proceder ao diagnóstico diferencial com a
recorrência da isquemia miocárdica. A incidência des-
se tipo de pericardite tem declinado após o advento da
Pericardite Bacteriana Não-Tuberculosa terapêutica trombolítica, possivelmente pela redução
(Purulenta) do tamanho dos infartos.
A segunda forma, conhecida como síndrome de
A pericardite bacteriana tem se tornado mais rara, Dressler, instala-se geralmente após a segunda semana
principalmente após o advento dos antibióticos. Os do IAM. É de causa desconhecida, mas se tem aventa-
pneumococos e os estafilococos são os agentes mais do a possibilidade de origem auto-imune, possivelmen-
freqüentes. Por outro lado, tem aumentado a incidência te pela liberação de antígenos das células miocárdicas
por bactérias Gram-negativas que se associa com grave necróticas. Forma similar de pericardite pode ocorrer
prognóstico. As causas mais comumente relacionadas semanas ou meses após cirurgia cardíaca (pericardite
com esse tipo de pericardite são: trauma torácico com pós-pericardectomia).
perfuração; contaminação em cirurgia torácica; exten-
são de infecção intracardíaca (endocardite); contami- Pericardite Urêmica
nação por contigüidade de pneumonia ou infecção sub-
diafragmática, e propagação de infecção a distância por É uma complicação grave da insuficiência renal
via hematogênica. crônica de patogênese desconhecida. Vários estudos

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não têm demonstrado correlação entre o nível plasmáti- flamatórias locais que podem resultar em derrame peri-
co de uréia e creatinina com a incidência desse tipo de cárdico e fibrose. A terapêutica por radiação é atual-
pericardite. mente uma das principais causas de pericardite constri-
tiva.
Pericardites Associadas ao Tecido Conjuntivo
Pericardite Induzida por Droga
O envolvimento do pericárdio é comum nas doen-
ças do colágeno. No lúpus eritematoso sistêmico (LES) As drogas que mais comumente induzem este tipo
a pericardite é a forma mais freqüente de envolvimento de manifestação são a procainamida (antiarrítmico car-
cardíaco, ocorrendo geralmente na fase de atividade da díaco) e a hidralazina (vasodilatador). Esta forma de
doença. Cerca de 40% a 80% dos pacientes desenvol- pericardite regride após a suspensão da droga relacio-
vem pericardite durante o curso da doença. Enquanto o nada.
tamponamento cardíaco pode complicar a evolução clí-
nica dessa doença, a pericardite constritiva é muito
Mixedema
rara. Este tipo de pericardite tende a melhorar em cons-
sonância às manifestações sistêmicas e em resposta ao Derrame pericárdio pode ser encontrado em 1/3
tratamento com corticosteróide e imunossupressores. dos pacientes com mixedema. A freqüência desta ma-
A pericardite é pouco diagnosticada na artrite reu- nifestação está relacionada à gravidade e duração do hi-
matóide (AR), no entanto, achados post-mortem reve- potireodismo. Como o acúmulo de líquido no saco pe-
laram que 40% dos pacientes apresentavam essa mani- ricárdico se faz muito lentamente, o tamponamento é
festação. Os pacientes com nódulos reumatóides têm raro. O ECG geralmente apresenta baixa voltagem e o
mais chances de desenvolver pericardites. Na AR ela líquido pericárdico, caracteristicamente, tem alto teor
pode ser tratada com antiinflamatório não-hormonal. de colesterol.
Assim como na AR, a pericardite da esclerose sis-
têmica (ES) é um achado mais freqüente em necropsia.
ASPECTOS PATOLÓGICOS E PATOGÊNICOS
O derrame pericárdico assintomático é encontrado em
até 40% do pacientes, e o prognóstico em geral é ruim. A pericardite, à semelhança dos demais processos
inflamatórios, apresenta-se em três fases: 1)
Pericardite Relacionada à Neoplasia vasodilatação local — com transudação pobre em
proteínas e células no saco pericárdico; 2) aumento da
Os tumores primários do pericárdio são raros. permeabilidade vascular — com perda de proteínas para
Assim, os tumores envolvendo o pericárdio resultam dentro do líquido pericárdico e 3) exsudação leucocitária
comumente de disseminação metastática ou invasão lo- — inicialmente rica em neutrófilos e, posteriormente,
cal de câncer pulmonar, de mama ou linfoma. Os derra- em células mononucleares. A aparência do pericárdio
mes de origens neoplásicos são em geral de grandes vo- dependerá da severidade e da causa subjacente do
lumes, hemorrágicos e, freqüentemente evoluem para o processo inflamatório. Assim, a pericardite serosa
tamponamento cardíaco (ver a seguir). Tipicamente, o caracteriza-se pela escassa presença de neutrófilos e
diagnóstico de malignidade se faz quando se detecta a linfócitos. O exsudato nesta circunstância é um líquido
presença do derrame. Só raramente, o derrame peri- translúcido, fino, secretado pelas células mesoteliais que
cárdio é a primeira manifestação. O diagnóstico nesta si- revestem a superfície serosa do pericárdio. Este tipo
tuação é estabelecido pelo ecocardiograma e exames representa a resposta inflamatória inicial em todos os
citológicos do líquido pericárdico, que é positivo em tipos de pericardites agudas. A pericardite serofibrinosa
80% dos casos. é a mais comumente observada. O exsudato pericárdio
não somente contém proteínas mas também
Pericardite Induzida pela Radiação fibrinogênio e fibrina, o que produz uma aparência
rugosa e grosseira denominada “pericardite em pão com
A pericardite pode ser uma complicação tardia — manteiga”. Segmentos do pericárdio visceral e parietal
um ou mais anos — de tratamento por radiação em tu- podem se espessar e se fundir, originando um processo
mores do tórax, especialmente quando a dose cumulati- de cicatrização que em muitos casos pode evoluir com
va da radiação administrada ultrapassa os 4.000rads. restrição do enchimento diastólico das cavidades
As lesões induzidas pela radiação causam respostas in- cardíacas — pericardite constritiva. A pericardite

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hemorrágica está freqüentemente associada à tubercu- pio e o paciente inclinado para a frente em expiração
lose e a neoplasias. Já a pericardite purulenta é resultado forçada. Na sua manifestação mais completa, o atrito
de processo inflamatório intenso inerente a algumas pericárdico é formado por três componentes: a contra-
infecções bacterianas. ção ventricular, o relaxamento ventricular e a contra-
Vale destacar que não raro o processo inflamatório ção atrial. Caracteristicamente, este sinal é muito fugaz
não se restringe aos folhetos pericárdicos, podendo e pode ora estar presente ora ausente entre um exame e
com freqüência se estender para o epimiocárdio, ocasio- outro (Tabela 18.2).
nando, inclusive, alterações segmentares da contratili-
dade miocárdica. Em 15% a 32% dos casos pode haver DIAGNÓSTICO E EXAME LABORATORIAL
recorrência da pericardite. O mecanismo desse fato é
desconhecido, embora se admita que seja secundário à A natureza dos aspectos clínicos depende da doen-
resposta auto-imune. ça de base. A pericardite viral, por exemplo, surge ge-
ralmente após quadro de infecção das vias aéreas supe-
riores. Já a pericardite por tuberculose apresenta-se de
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS modo insidioso e sintomas não específicos de febre,
As pericardites são mais comuns nos homens do mal-estar, anorexia e fraqueza.
que nas mulheres e em adultos do que em crianças. É A dor torácica é um dos aspectos mais importantes
diagnosticada em uma de cada 1.000 internações hos- da pericardite (Tabela 18.2). Já a dispnéia ocorre devi-
pitalares e dados de necropsias estimam sua prevalên- do à necessidade de o paciente respirar superficialmen-
cia entre 2% e 6%. Estes números, não obstante, estão te por causa do quadro doloroso. Pode ser agravada
subestimados, considerando as dificuldades diagnósti- pela febre e compressão de estruturas pulmonares. Ou-
cas dos quadros insidiosos ou pouco expressivos que tros sintomas, como tosse produtiva, perda de peso, al-
muitas vezes inicia essa doença. terações articulares e de pele etc., podem ocorrer decor-
rentes da doença de base.
Os sintomas mais freqüentes na pericardite aguda
são dor torácica e febre. A dor torácica é um das mani- Ao exame físico, o atrito pericárdico praticamente
festações mais importantes. Em geral é precordial, po- faz o diagnóstico. É um ruído desarmônico, evanescen-
dendo irradiar-se para a borda do músculo trapézio es- te, que muda entre um exame e outro e com a posição
querdo, com características pleuríticas. Piora com os do paciente. Pode ter três componentes auscultatórios:
movimentos respiratórios ou torácicos, mas alivia quan- a sístole atrial (em torno de 70% dos casos); a sístole
do o paciente senta-se inclinado para frente — posição ventricular, quase sempre presente, e o enchimento rá-
de prece maometana. Pode durar horas ou dias e variar pido do ventrículo na diástole, presente em menos de
de intensidade com a mudança de postura. A dispnéia é 60% dos casos. O encontro dos três componentes ocor-
usual, mas não está relacionada com o esforço físico, e re raramente.
possivelmente resulta da relutância do paciente em res-
pirar mais profundamente por causa da dor pleurítica. EXAME LABORATORIAL
Exame Físico. O atrito pericárdio é comum na pe-
ricardite aguda e é produzido pela movimentação das ECG. As alterações eletrocardiográficas são va-
membranas inflamadas do pericárdio. A ausculta do riáveis e é imprescindível a associação com o quadro
atrito deve ser realizada com o diafragma do estetoscó- clínico. Alterações típicas ocorrem durante o curso da

Tabela 18.2
Características da Dor Torácica na Pericardite e na Angina Pectoris

Dor Angina Pectoris Pericardite

Local Retroesternal, ombro esquerdo e braço Precordial, borda trapézio esquerdo

Tipo Pressão, queimação Pleurítica, opressiva


Mov. torácica Sem efeito Piora

Duração Minutos — horas Horas — dias

Esforço Pode piorar Sem relação

Postura Sem efeito Melhora ou piora

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pericardite aguda (Fig. 18.1). A seqüência das modifi- ocardiopatias, mas às vezes pode-se ter uma “pista dia-
cações eletrocardiográficas podem ser divididas em gnóstica” do processo pericárdico, por exemplo, tumor
quatro estágios: de pulmão, tuberculose etc. Uma radiografia de tórax
Estágio 1. Elevação do segmento ST com conca- normal não exclui a presença de pericardite, porque au-
vidade para cima em todas as derivações, exceto aVR e mentos e alterações na silhueta cardíaca só ocorrem
V1, mas com ausência de alterações recíprocas do seg- quando o volume do derrame pericárdico ultrapassa
mento ST. Neste estágio as ondas T podem ser altas e 250ml.
pontiagudas e o segmento PR pode se apresentar infra- Ecodopplercardiograma. É útil para detectar
desnivelado (achado muito sugestivo de pericardite derrames pericárdicos mesmo quando pequenos. Não
aguda, apesar de ocorrer em outras situações raras, é, entretanto, um exame diagnóstico porque existem
como o infarto atrial). Também nesta fase pode ocorrer pericardites secas, sem derrame, e os derrames pericár-
baixa voltagem do complexo QRS. dicos podem ter etiologias as mais variadas (Fig. 18.2).
Estágio 2. Retorno do segmento ST à linha de base O hemograma pode revelar leucocitose e aumento
e achatamento da onda T. da hemossedimentação de intensidade variável com o
Estágio 3. Ocorre inversão da onda T. agente etiológico. Testes sorológicos para doenças reu-
Estágio 4. Resolução gradual da inversão da onda máticas, endócrinas, assim como a investigação meti-
T, porém dependente da etiologia, podendo ficar inver- culosa para doenças neoplásicas, devem estar subordi-
tida por um longo período de tempo. nados à suspeita etiológica, orientada pela história,
As arritmias, como a fibrilação e o flutter atrial, são exame clínico e evolução do paciente.
raras na pericardite. Em geral refletem o comprometi- As enzimas cardíacas em geral são normais,
mento simultâneo do miocárdio. A taquicardia sinusal porém quando existe miocardite, com significante
decorre do próprio processo inflamatório e a bradicar- comprometimento muscular, pode haver elevação
dia sinusal pode ocorrer em grandes derrames devido à sérica da CPK-MB. Esta situação, felizmente rara,
acentuação do tônus vagal. não permite o diagnóstico diferencial com o infarto do
A presença de bloqueios AV, bloqueios de ramo e miocárdio.
arritmias ventriculares sugere a presença de outra do-
ença cardíaca concomitante, pois não são aspectos ca- TRATAMENTO
racterísticos da pericardite aguda.
O diagnóstico eletrocardiográfico diferencial da O tratamento das pericardites agudas deve almejar
pericardite aguda deve ser feito entre várias condições: tanto o alívio dos sintomas como a resolução da causa
IAM, repolarização precoce, miocardite, embolia pul- etiológica. As pericardites virais ou idiopáticas, que
monar, acidente cerebrovascular, pneumotórax, aneu- são as mais freqüentes, apresentam em geral curso au-
risma ventricular, hipercalemia etc. A história clínica, o tolimitado de uma a três semanas e bom prognóstico.
exame físico e a avaliação laboratorial adequada habi- Além de repouso para reduzir a interação entre as
tualmente estreitam essas possibilidades diagnósticas. membranas inflamadas do pericárdio, administra-se
Todavia, não é raro haver dúvida diagnóstica entre o também drogas antiinflamatórias não-hormonais para
IAM e a repolarização precoce (padrão juvenil) com a alívio dos sintomas dolorosos. Entre as mais utilizadas
pericardite aguda, principalmente, em situação de está o ácido acetilsalicílico, na posologia de 300 a
emergência. Com o intuito de facilitar a interpretação 600mg a cada quatro ou seis horas. Raramente se neces-
do ECG nesta situação, recomendamos a análise da sita de codeína ou analgésicos mais potentes para o alí-
Fig. 18.1. Dentro os sinais úteis para a confirmação da vio da dor. Quando não há resposta, recomenda-se a uti-
suspeita de pericardite aguda, destacamos o infradesni- lização da indometacida na dose de 25 a 75mg a cada
velamento do segmento PR (com exceção da derivação seis horas. Em geral a resposta terapêutica ocorre em
V1 e aVR) e a razão entre a elevação do segmento ST menos de 24 horas, mas habitualmente são necessários
em milímetro dividida pela altura da onda T. O resulta- de seis a sete dias para o paciente tornar-se assintomáti-
do dessa divisão quando superior a 0,25mm é sugestivo co.
de pericardite. Os corticosteróides são empregados naqueles ca-
RX do Tórax. A radiografia de tórax é inespecífi- sos em que a pericardite faz parte de síndromes nas
ca, sendo normal a área cardíaca quando o derrame for quais este medicamento é necessário ou quando não
inferior a 250ml. Podem ocorrer graus variáveis de car- houver melhora sintomatológica ou remissão do derra-
diomegalia, adquirindo imagem indistinguível das mi- me pericárdico. Também são prescritos nos casos reci-

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Fig. 18.1 — Eletrocardiograma característico de pericardite aguda.

Tabela 18.3
Comparação das Alterações Eletrocardiográficas na Pericardite Aguda, Infarto do Miocárdio e na Repolarização Precoce

ECG Pericardite Aguda IAM Repolarização Precoce

Padrão ST Côncavo ↑ Convexo ↑ Côncavo ↑

Onda Q Ausente Presente Ausente

ST recíproco Ausente Presente Ausente

Derivações membros e
Local do ST ↑ Área da artéria envolvida Derivações precordiais
precordiais

Depressão PRi Presente Ausente Ausente

Voltagem R ↓ Ausente Presente Ausente

Ratio ST/T: V6 > 0,25 N/A < 0,25

divantes. A terapêutica deve então ser iniciada com al- introdução. De maneira geral, o tratamento antiinfla-
tas doses de prednisona (60mg/dia) e ser reduzida pau- matório da pericardite aguda deve perdurar por um a
latinamente a partir da segunda ou terceira semana da dois meses.

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Fig. 18.2 — Ecocardiograma mostrando derrame pericárdico.

Quando a pericardite faz parte de uma doença ge- TAMPONAMENTO CARDÍACO


neralizada, o tratamento específico deve ser instituído.
Na pericardite urêmica, administram-se procedimentos O tamponamento cardíaco é uma situação de extre-
dialíticos; nos processos infecciosos ou parasitários, os ma gravidade, que ocorre quando a pressão intraperi-
antibióticos adequados. Sabe-se que muitos antibióti- cárdica se eleva em decorrência do acúmulo de líquido
cos não atingem níveis satisfatórios no saco pericárdi- no saco pericárdico, comprometendo o enchimento do
co, portanto, na presença de líquido purulento reco- coração e, em conseqüência, prejudicando o débito car-
menda-se instalar a drenagem por cateter. díaco. Tem relação com o volume de efusão, a taxa de
Na pericardite supurativa devem ser utilizados an- acúmulo e a elasticidade do pericárdio. Caracteristica-
tibióticos específicos em altas doses, além da drena- mente, a elevação rápida da pressão intracardíaca limi-
gem cirúrgica obrigatória. Nessa situação, devido ao ta o enchimento ventricular e reduz dessa forma o débi-
alto índice de constrição pericárdica, deve-se conside- to cardíaco.
rar a possibilidade da pericardectomia total como parte Praticamente todos os agentes etiológicos das peri-
do tratamento. Por outro lado, as doenças malignas po- cardites podem produzir tamponamento. Os mais co-
dem ser tratadas com agentes antineoplásicos aplicados muns são as doenças neoplásicas (32%), idiopáticas ou
sistemicamente ou no interior do mesmo. virais (14%), uremia (9%), pós-infarto agudo do mio-
Na pericardite tuberculosa utiliza-se o esquema trí- cárdio em uso de heparina (9%), bacterianas (7%) e tu-
plice por pelo menos nove meses (por exemplo, a isonia- berculose (5%).
zida, a rifampicina e a estreptomicina ou etambutol), e Entre os achados clínicos destacam-se taquipnéia
vigilância a longo prazo por causa das complicações: (80%), taquicardia (77%), pulso paradoxal (75%), au-
há tendência aumentada para tamponamento e pericar- mento da pressão venosa (56%), hepatomegalias
dite constritiva. O uso associado de corticosteróides é (55%), pressão arterial sistólica inferior a 100mmHg
controverso, porém alguns autores o recomendam (36%), abafamento de bulhas (34%) e atrito pericárdi-
quando há derrame persistente ou recorrente. A ressec- co (29%). O pulso paradoxal, descrito por Kussmaul
ção cirúrgica do pericárdio está indicada nos casos de em 1873, como “o paradoxo do desaparecimento do
recorrência, tamponamento ou quando a pressão veno- pulso durante a inspiração enquanto os batimentos car-
sa permanece elevada. díacos estão normais”, significa de maneira prática a

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queda da pressão arterial sistólica superior a 9% a 12% PERICARDITE CONSTRITIVA
dos valores basais durante a inspiração normal. Em pa-
ciente normotenso isto significa queda da pressão arte- ASPECTOS PATOFISIOLÓGICOS E ETIOLÓGICOS
rial sistólica em torno 10mmHg. Este importante sinal É principal complicação da doença pericárdica.
pode estar ausente se associado ao tamponamento hou- Decorre na maioria das vezes da evolução inadequada
ver disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, hiper- da pericardite aguda, em que há organização do líquido
tensão pulmonar ou hipertrofias cardíacas. Por outro pleural e fusão das membranas pericárdicas, formando
lado, pode aparecer em outras situações clínicas, como aderências, calcificação e enrijecimento do pericárdio.
doença pulmonar obstrutiva crônica grave, tromboem- Embora potencialmente possa originar-se de qualquer
bolismo pulmonar, miocardiopatias restritivas, hipovo- processo inflamatório do pericárdio, destacam-se a ci-
lemias severas e no choque. rurgia cardíaca, radioterapia e pericardite idiopática.
O eletrocardiograma pode apresentar as mesmas Esta última é considerada a causa mais comum. Ou
alterações da pericardite aguda com complexos de bai- seja, meses ou anos após um episódio de pericardite
xa voltagem e, em alguns casos, alternância elétrica do aguda viral ou idiopática esta complicação se manifes-
complexo “QRS”, onda “P” ou “T”, sugestivo de derra- ta. A tuberculose, embora menos importante nos países
me volumoso. industrializados, ainda hoje é uma das causas prevalen-
O ecodopplercardiograma é um bom exame diag- tes nos países em desenvolvimento.
nóstico. Pode encontrar colapso diastólico do átrio di- Os transtornos patofisiológicos da pericardite
reito ou esquerdo, colapso diastólico precoce do ventrí- constritiva resultam do encarceramento do coração
culo direito, aumento anormal inspiratório do fluxo tri- dentro de um pericárdio espessado, rígido, muitas ve-
cúspide e diminuição do fluxo mitral. zes calcificado, pouco complacente, prejudicando o de-
A remoção imediata do líquido pericárdico deve ser sempenho cardíaco. Na diástole, o sangue atravessa o
feita através da pericardiocentese percutânea. Se isto átrio e atinge o ventrículo direito, que se expande rapi-
não pode ser feito imediatamente, deve-se infundir volu- damente alcançando o limite imposto por um pericár-
me, que é benéfico por elevar a pressão arterial, o débito dio não complacente. Neste ponto, o enchimento ven-
cardíaco e a perfusão renal e miocárdica (Fig. 18.3). tricular é subitamente interrompido, cessando o retorno

Fig. 18.3 — Ecocardiograma de tamponamento cardíaco. Notar colabamento do ventrículo direito.

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Fig. 18.4 — Ecodopplercardiograma de tamponamento. Notar a variação do fluxo da mitral com a respiração.

venoso para o coração direito. Ocorrem, então, eleva- do retorno venoso acumula-se nas veias sistêmicas to-
ção da pressão venosa central e falência do coração di- rácicas, causando ingurgitamento jugular durante a ins-
reito. Simultaneamente, há prejuízo do enchimento piração — sinal de Kussmaul. Isto é o oposto ao espera-
ventricular esquerdo com redução do débito cardíaco e do nas condições normais, quando durante a inspiração
da pressão arterial. há redução do pressão venosa jugular, à medida que as
veias drenam o sangue para o coração.
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS EXAMES LABORATORIAIS
Os sintomas e sinais da pericardite constritiva le- O RX de tórax pode revelar silhueta cardíaca nor-
vam anos para se manifestarem. Eles resultam da redu- mal ou com pequeno aumento; mas calcificação peri-
ção do débito cardíaco, com fadiga, hipotensão, taqui- cárdica, sugestiva de pericardite constritiva, pode estar
cardia reflexa; e da elevação da pressão venosa central,
com estase jugular, hepatomegalia com ascites e ede-
mas nos membros inferiores. Não raros esses pacientes
são confundidos como portadores de cirrose hepática
ou tumores abdominais. Por conseguinte, a avaliação
cuidadosa das vasos do pescoço e do coração é funda-
mental para o diagnóstico diferencial.
A ausculta cardíaca caracteriza-se por ruído tipo
knock precoce na diastólico, nos pacientes com calcifi-
cação severa. Diferente da tamponamento cardíaco,
não apresenta pulso paradoxal. Todavia, na pericardite
constritiva a geração da pressão intratorácica negativa
durante a inspiração não é transmitida através do peri-
cárdio rígido para as câmaras cardíacas direitas. Em
conseqüência, não ocorre aumento do enchimento ven- Fig. 18.5 — Ressonância magnética mostrando espessamento
tricular direito durante a inspiração. Assim, o aumento pericárdico.

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Tabela 18.4 sangue atravessa as valvas atrioventriculares há súbita
Diagnóstico Diferencial Hemodinâmico entre Pericardite elevação da pressão intraventricular, cessando preco-
Constrictiva e Miocardiopatia Restritiva
cemente o enchimento ventricular; 3) os traçados pres-
Critérios: Pericardite Constrictiva Acurácia (%) sóricos dos átrios mostram onda Y descendente proe-
Diferença entre PD2 VE e PD2 VD < 5mmHg 85 minente.
Pressão sistólica do VD > 50mmHg 70 Não devemos esquecer que todos os sintomas, si-
Razão da PD2 VD / PS VD > 0,33 76
nais e avaliação laboratorial relatados para a pericardite
constritiva podem ser superponíveis aos encontrados
Interpretação:
na cardiomiopatia restritiva. Na Tabela 18.4 podem ser
Presença de três critérios: pericaridite
91 vistos os critérios hemodinâmicos que podem ajudar no
constrictiva
diagnóstico diferencial.
Ausência dos três critérios: cardiomiopatia
94
restritiva
TRATAMENTO
VE — Ventrículo esquerdo; VD — Ventrículo direito; PD2 —
Pressão diastólica final; PS — Pressão sistólica
O único tratamento efetivo para a pericardite cons-
trictiva severa é a remoção cirúrgica do pericárdio. Os
presente em 50% dos pacientes. Mesmo sem apresentar sintomas e sinais podem não regredir rapidamente, por
calcificações, o pericárdio pode tornar-se muito espes- causa do comprometimento do miocárdio, apresentan-
sado, razão pela qual proporciona a grande dificuldade do-se atrófico pelo longo período de encarceramento.
para o enchimento diastólico (Fig. 18.4). Mas em cerca de 90% dos pacientes é esperado impor-
O ECG mostra alteração inespecífica do ST-T. As tante melhora clínica durante a evolução.
arritmias atriais são freqüentes. O ecodopplercardio-
grama, embora não tenha alta especificidade, poderá
BIBLIOGRAFIA
demonstrar espessamento pericárdio, e encontrar na
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