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ATUALIZAÇÃO EM MIOCARDITES

MYOCARDITIDES UPDATE

ESTÊVÃO LANNA FIGUEIREDO* BRUNNO DE AMÉRIO NEY** FIDEL CASTRO ALVES DE MEIRA** HEIGLER VINÍCIUS FRANCO ZACARIAS LEITE** RAPHAEL
CRUZ MOURÃO** TEÓFILO EDUARDO DE ABREU PIRES**

RESUMO sistêmicas, drogas e toxinas são causas conhecidas desta


As miocardites (inflamações do músculo cardíaco, podendo afecção (Quadro 1).
envolver os miócitos, o interstício, estruturas vasculares e/ou o
pericárdio) são importantes causas de morte súbita e inesperada Quadro 1 - Etiologias da miocardite
em adultos com menos de 40 anos de idade e atletas jovens. Têm
etiologia diversa, incluindo vírus, bactérias, protozoários, drogas e
Infecciosas Imunológicas Tóxicas
doenças sistêmicas. Sua fisiopatologia envolve a ativação prolon-
gada das imunidades celular e humoral. Seu curso geralmente é Coxsackievírus Doença de Chagas Antracíclicos
assintomático ou insidioso, havendo considerável dificuldade no HIV Sarcoidose (doxorrubicina)
Adenovírus Esclerodermia Etanol
estabelecimento do diagnóstico, devido à inespecificidade de seu
Enterovírus Lupus eritematoso Cocaína
quadro clínico e à baixa sensibilidade dos exames complementa-
Trypanosoma cruzi sistêmico
res. O tratamento é basicamente suportivo e direcionado às pos- Corynebacterium diphtheriae
síveis complicações ou às causas de base. Possuem prognóstico
variável, dependendo da causa-base, sendo pior nas doenças Fonte: SAME/PSM
sistêmicas e na infecção pelo HIV.
Palavras-chave: Miocardite/epidemiologia; Miocardite/diag-
nóstico; Miocardite/quimioterapia. Entre os agentes infecciosos destacam-se os vírus. Por
meio da reação em cadeia da polimerase (PCR), genomas
EPIDEMIOLOGIA virais são detectados em menos de 20% dos pacientes com
quadro clínico de miocardite e de 10% a 34% daqueles com
As miocardites são definidas clinicamente como infla- miocardiopatias dilatadas. Os vírus específicos mais comu-
mações do músculo cardíaco, podendo envolver os mióci- mente associados à patogênese das miocardites em adultos
tos, o interstício, estruturas vasculares e/ou o pericárdio1,2. são os adenov í rus, coxsakievírus e os enterovírus. O vírus da
A miocardite é doença insidiosa que, geralmente, é imunodeficiência humana (HIV-1) causa miocardite em
assintomática. Estudos post mortem sugerem que a miocar- 46% a 52% dos pacientes com AIDS3,4. Mais raramente, o
dite é importante causa de morte súbita e inesperada, apro- citomegalov í rus, o vírus da hepatite C e o vírus da dengue
ximadamente 20% dos casos, em adultos com menos de 40 podem causar lesões miocárdicas.
anos de idade e atletas jovens, apesar de ser mais freqüente Infecções bacterianas são menos freqüentemente asso-
em crianças. Outros estudos têm identificado inflamações ciadas às miocardites em pacientes imunocompetentes. A
no miocárdio de 1% a 9% das necropsias.2 miocardite mais comum em todo o mundo é a chagásica.
As estatísticas nem sempre são confiáveis, entre outros Várias drogas provocam inflamação no miocárdio, tanto
fatores pela dificuldade em se diagnosticar corretamente essa por efeito tóxico direto no miócito quanto por mecanismos
entidade. Para tentar uniformizar o diagnóstico foram cria- imunológicos. Uma das mais freqüentes é a produzida pelo
dos os critérios histológicos de Dallas (Tabela 1), que prova- agente antitumoral doxo r rubicina. A cocaína é uma droga
velmente subestimam a real incidência das miocardites, já que, cada vez mais, tem sido associada a disfunções agudas
que o grau de variabilidade intra-observador é grande. Na do coração, possivelmente por seus potentes efeitos vaso-
verdade, menos de 10% dos pacientes nos quais há suspeita constritores. Deve ser lembrado, ainda, o álcool, de grande
clínica de miocardites têm biópsias positivas por esta classi- consumo social e importante causador de miocardite2.
ficação histológica2. Pelos critérios histológicos de Dallas
existe miocardite, seguramente, quando são encontrados
infiltrado linfocitário e miocitólise. O diagnóstico é duvido-
so quando somente o infiltrado linfocitário está presente e a *Especialista em Clínica Médica (Sociedade Brasileira Clínica Médica) e Cardiologia (Sociedade
Brasileira Cardiologia), mestrando em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina / UFMG, cardio-
biópsia endomiocárdica é considerada negativa para miocar- logista dos Hospitais Governador Israel Pinheiro (IPSEMG), Mater Dei e Felício Rocho
**Acadêmicos do curso de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
dite se nenhuma dessas alterações for observada. Realizado na Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte/MG
Endereço para Correspondência
Embora, freqüentemente, muitos casos de miocardite Rua Ceará, 195, sala 701, Bairro Santa Efigênia, CEP: 30150-
permaneçam sem etiologia definida, vários agentes infec- 310, Belo Horizonte/MG.
E-mail: estevao@cardiol.br
Data de submissão: 23/10/03
Data de aprovação: 04/11/04
ciosos (vírus, bactérias, protozoários e até larvas), doenças

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FISIOPATOLOGIA mo, uso de corticosteróides e hipoxemia são condições rela-


Os conhecimentos sobre a fisiopatologia das miocar- cionadas à miocardite. Alguns autores sugerem que, além
dites advêm, em grande parte, de estudos com camun- da exposição a estes vários fatores, é necessário que os
dongos (Figura 1). Estes são infectados por vírus cardio- pacientes tenham predisposição genética para desenvolve-
tróficos, como os coxsakievírus. Esses microorganismos rem miocardite e, subseqüentemente, dilatação miocárdica2.
replicam-se no citoplasma dos miócitos, causando necro-
se, e são fagocitados por macrófagos, numa primeira fase, DIAGNÓSTICO
podendo levar à morte em quatro dias. Em alguns O quadro clínico é bastante variado, incluindo
camundongos, a fase inicial não-inflamatória não é ime- pacientes assintomáticos com alterações eletro c a rdio-
diatamente letal e é seguida por miocardite significativa gráficas, pacientes com sinais e sintomas de insuficiên-
entre quatro e 14 dias de infecção. Essa segunda fase da cia cardíaca e grave disfunção ventricular esquerda, com
infecção viral é caracterizada por infiltrado inflamatório, ou sem dilatação cardíaca. Os pacientes podem se apre-
incluindo células natural killer e macrófagos, com a sub- sentar com história de quadro gripal recente, acompa-
seqüente expressão de citocinas pró-inflamatórias2. nhado por febre, mal-estar e artralgia. Achados labora-
toriais comuns são leucocitose, elevação da ve l o c i d a d e
de hemossedimentação (VHS), eosinofilia e aumento
dos marc a d o res séricos de necrose miocárdica. O eletro-
c a rdiograma pode re velar arritmias ve n t r i c u l a res, blo-
queios cardíacos e pode simular alterações do infarto
agudo do miocárdio ou da pericardite1,2.
A presença de taquicardia é usual, sendo às vezes
d e s p ro p o rcional ao grau de elevação da temperatura
corporal. A primeira bulha cardíaca freqüentemente é
abafada e pode haver terceira bulha. Um sopro sistólico
apical, transitório, pode aparecer, mas é rara a ocorrê n-
cia de sopros diastólicos1.
A biópsia endomiocárdica permanece como o padrão-
Figura 1 - Linha de tempo da miocardite viral experimental em ratos ouro para o diagnóstico de miocardite, apesar de sua limi-
Fonte: Adaptado de Feldman & McNamara (2000). tada especificidade e sensibilidade. Mas o diagnóstico não
d e ve se basear no quadro histológico isoladamente,
A ativação dos macrófagos provavelmente resulta da devendo-se pesquisar a presença de marcadores auto-imu-
liberação de partículas virais no interstício, e de interfe- nes e estudos de histocompatibilidade1,2.
ron-g pelas células natural killer. As citocinas pró-infla- A fração miocárdica da creatinofosfoquinase (CKMB)
matórias têm importantes papéis no desenvolvimento de freqüentemente se eleva, assim como as troponinas T e I,
como evidências de lesão miocárdica com alta sensibilida-
inflamação crônica. O fator de necrose tumoral ativa
de, sendo úteis na investigação de casos suspeitos.
células endoteliais, recruta células inflamatórias e exerce
Pelo fato de os pacientes com doenças imunológicas sis-
significativo efeito inotrópico negativo. Mas, em contra-
têmicas (lúpus eritematoso sistêmico, polimiosite e esclero-
partida, é importante para a eliminação das partículas
dermia) poderem se apresentar com miocardite, deve-se
virais. Os interferons combatem a proliferação dos vírus, dosar a VHS e testes reumatológicos em pacientes com
o que também é realizado por imunidade celular (infiltra- insuficiência cardíaca inexplicável e sinais e sintomas de aco-
dos de células T antígeno-específicas, linfócitos T-helper metimento do tecido conjuntivo. Esses pacientes têm, tipi-
CD4 e CD8, anticorpos antivirais)2. camente, um ventrículo hipofuncionante, mas de tamanho
Apesar de as respostas imunes normalmente funcio- normal, além de dispnéia e hipóxia de esforço, que são des-
n a rem para eliminar os vírus e permitirem a cicatriza- proporcionais ao grau de disfunção cardíaca1,2.
ção, em muitos casos da infecção do miocárdio, elas Estudos recentes sugerem que a pesquisa de genomas
p rovocam ainda mais lesões aos miócitos e ativação virais pela PCR, em biópsias endomiocárdicas, pode for-
imunológica agre s s i va. necer informações importantes quanto ao diagnóstico e
Estudos recentes identificaram vários achados em prognóstico das miocardites, além de poder diferenciar
pacientes com miocardiopatia dilatada idiopática que suas causas virais e auto-imunes. Por exemplo, a persistên-
suportam a hipótese infecciosa-imune dos estudos animais. cia de RNA de enterovírus em pacientes com miocardio-
Há um desequilíbrio entre células T-helper e citotóx i c a s , patia dilatada é forte fator de pior prognóstico3.
uma superexpressão de complexos de histocompatibilidade Várias abordagens não-invasivas são usadas para iden-
e produção aumentada de auto-anticorpos no soro. Idade, tificar pacientes com miocardite. Cintilografia antimiosi-
exe rcício físico, desnutrição, gravidez, puerpério, alcoolis- na pode identificar inflamação miocárdica na ausência de

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evidências histológicas, evidenciando especificidade supe- vacinas antivirais poderiam ser úteis no seu tratamento.
rior, mas sensibilidade inferior às análises imuno-histoló- Ainda não há conclusões definitivas a esse respeito2,6,7.
gicas. A ressonância nuclear magnética e o ecocardiogra-
ma digital também podem localizar e estimar a extensão CONCLUSÕES
da inflamação em pacientes com quadro presumível de
miocardite. O diagnóstico desta afecção é dependente, Embora as miocardites sejam reconhecidas há dois
séculos, seu curso insidioso, a baixa sensibilidade dos
em grande parte, da suspeita clínica1,2.
métodos diagnósticos e a complexidade da resposta
Estudos recentes descrevem pacientes com miocardite
imune dificultam o desenvolvimento de estratégias tera-
aguda mascarando quadro de infarto agudo do miocár-
pêuticas. Novas opções de tratamento compreendem os
dio. Geralmente são jovens e sem fatores de risco para
antivirais, vacinas e aparelhos de suporte hemodinâmico.
doença coronariana, juntamente com sinais, sintomas e
A recente descoberta das bases genéticas da doença cardía-
alterações eletrocardiográficas consistentes com isquemia
ca imunológica pode fornecer pistas importantes para a
miocárdica ou infarto. O diagnóstico correto, nestes
compreensão e tratamento desta entidade.
casos, inclui o cateterismo cardíaco2.
ABSTRACT
TRATAMENTO
Myocarditis are defined as inflammation of the cardiac
Cuidados suportivos são as primeiras medidas a serem
muscle, which may involve the myocite, the interstitium, the
tomadas na terapêutica dos pacientes com miocardite.
vascular structures and/or the pericardium. They are impor-
Aqueles pacientes com sintomas de insuficiência cardíaca
tant causes of sudden and unexpected death in adults and in
devem ser internados para receberem terapêutica farmaco- young athletes. There are many known etiologies for myocar-
lógica adequada, sob monitorização. A digoxina aumenta a ditis, including virus, bacteria, pro t o zoan, drugs and systemic
expressão de citocinas pró-inflamatórias e a mortalidade diseases. Its pathophysiology involves the continuum activa-
em modelo animal de miocardite viral, devendo ser pre s c r i- tion of humoral and cellular immunity. The course of the
ta com muita cautela e somente em baixas doses2. disease usually is assymptomatic or insidious, clinical mani-
Em pacientes com sintomas de descompensação cardía- festations are quite non-specific and complementary exams
ca grave, pode ser necessário o emprego de drogas inotró p i- show poor sensibility and specificity, making diagnosis diffi-
cas endovenosas ou de dispositivos de assistência ventricular, cult. Treatment is basically supportive and addressed to the
bem como o implante de desfibriladores, na presença de possible complications or its causes. The prognosis is some-
arritmias ventriculares graves. O repouso absoluto no leito what variable, depending on the underlying cause, being
deve ser encorajado na fase de viremia, e deve-se evitar, ao worse in systemic diseases and in HIV infections.
máximo, o uso de drogas pouco necessárias, para se re d u z i- Key-words: Myocarditis/epidemiology, Myocarditis/diag-
rem as chances de miocardite alérgica1,2, 5. nosis; Myocarditis/drug therapy.
Apesar de a fisiopatologia da miocardite envolver a ati-
vação prolongada das imunidades celular e humoral, o
REFERÊNCIAS
uso de imunossupressores não é preconizado rotineira-
mente, exceto nos casos de doença auto-imune sistêmica. 1. Wynne J, Braunwald E. The cardiomyopathies and myocar-
Tal medida se apóia no fato de a resolução histológica da ditis. In: Braunwald E, Editor. Heart disease: a textbook of
c a rd i ovascular medicine. 5th ed. Philadelphia: WB
inflamação miocárdica não se correlacionar com a melho-
Saunders; 1996. p.1404-63.
ra da função ventricular. Além disso, a incidência de
2. Feldman AM, McNamara D. Myocarditis. N Engl J Med
melhora espontânea no desempenho funcional do ventrí- 2000; 343 (9):1388-96.
culo esquerdo é significativa2. 3. Mc C a rthy RE 3rd, Boehmer JP, Hruban RH, Hutchins GM,
A evolução dos pacientes com miocardite é bastante Kasper EK, Hare JM, Baughman KL. Long-term outcome of
variável. Alguns estudos recentes têm sugerido que, para- fulminant myocarditis as compared with acute (nonfulmi-
doxalmente ao que poderia ser esperado, aqueles pacien- nant) myocarditis. N Engl J Med 2000; 342 (9): 690-5.
tes que se apresentam com quadro clínico de miocardite 4. Karliner JS. Fulminant myo c a rditis. N Engl J Me d
fulminante (mais sintomáticos e gravemente debilitados) 2000;342(9):734-5.
e que são adequadamente tratados apresentam evolução 5. Ba r b a ro G, Di Lore n zo G, Grisorio B, Barbarini G.
Incidence of dilated cardiomyopathy and detection of HIV
mais favorável em relação àqueles que se apresentam com
in myocardial cells of HIV-positive patients. N Engl J Med
a forma aguda ou subaguda6,7. O prognóstico é variável, 1998; 339(16):1093-9.
dependendo da causa base, sendo pior nas doenças sistê- 6. Lipshultz SE. Dilated cardiomyopathy in HIV-infected
micas e na infecção pelo HIV6. patients. N Engl J Med 1998; 339(16):1153-4.
A freqüente associação de miocardites com infecção 7. Liu PP; Mason JW. Advances in understanding of myocardi-
por vírus tem levantado a hipótese de que as terapias e tis. Circulation 2001;104:1076-82.

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