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Parte A
Das tribulações1 que Lixboa padecia per mingua2 da mantiimentos
Estando a cidade assi cercada na maneira que já ouvistes, gastavom-se os mantiimentos
cada vez mais, por as muitas gentes que em ela havia, assi3 dos que se colherom4 dentro, do
termo5, de homeẽs aldeãos com molheres e filhos, come dos que veerom na frota do Porto; e
alguũs se tremetiam6 aas vezes em batees e passavom de noite escusamente7 contra8 as
5 partes de Ribatejo, e metendo-se em alguũs esteiros9, ali carregavom de triigo que já achavom
prestes10, per recados que ante mandavom. E partiam de noite remando mui rijamente, e al-
gũas galees11 quando os sentiam viinr remando, isso meesmo remavom a pressa sobre eles;
e os batees por lhe fugir, e elas por os tomar, eram postos em grande trabalho.
Os que esperavom por tal triigo andavom per a ribeira12 da parte de Exobregas13, aguar-
10 dando quando veesse, e os que velavom, se viiam as galees remar contra 8 lá, repicavom 14
logo por lhe acorrerem 15. Os da cidade como16 ouviam o repico, leixavam o sono, e tomavom
as armas e saía muita gente, e defendiam-nos aas beestas se compria17, ferindo-se aas
vezes dũa parte e doutra; […]
Em esto gastou-se18 a cidade assi apertadamente19, que as pubricas esmolas come-
15 çarom desfalecer20, e neũa geeraçom 21 de pobres achava quem lhe dar22 pam 23; de guisa24
que a perda comum 25 vencendo de todo a piedade, e veendo a gram mingua 2 dos mantii-
mentos, estabelecerom deitar fora as gentes minguadas 26 e nom perteencentes27 pera de-
fensom; e esto foi feito duas ou tres vezes, ataa28 lançarem fora as mancebas mundairas29
e Judeus e outras semelhantes, dizendo que pois 30 taes pessoas nom eram pera pelejar 31,
20 que nom gastassem os mantiimentos aos defensores; mas isto nom aproveitava cousa que
muito prestasse. […]
Como nom lançariam fora a gente minguada e sem proveito, que o Meestre mandou
saber em certo pela cidade que pam havia per todo em ela, assi em covas 32 come per outra
maneira, e acharom que era tam pouco que bem havia mester 33 sobr’elo conselho?
LOPES, Fernão, 1980. Crónica de D. João I (textos escolhidos; apresentação crítica, seleção, notas
e sugestões para análise literária de Teresa Amado). Lisboa: Seara Nova / Editorial Comunic ação (pp. 193-195)
1. tribulações: adversidades, aflições; 2. mingua: falta; 3. assi: tanto; 4. colherom(-se): recolheram(-se); 5. termo: limite, referência à área do con-
celho de Lisboa; 6. se tremetiam: se metiam dentro; 7. escusamente: secretamente; 8. contra: para, em direção a; 9. esteiros: braços estreitos de
rio; 10. prestes: pronto; 11. galees: galés (dos castelhanos); 12. ribeira: margem; 13. Exobregas: Xabregas, localidade de Lisboa; 14. repicavom:
tocavam (os sinos); 15. acorrerem: socorrerem; 16. como: assim que; 17. se compria: se era necessário; 18. gastou-se: consumiu-se; 19. aperta-
damente: desesperadamente; 20. desfalecer: faltar; 21. geeraçom: família; 22. dar: desse; 23. pam: pão; 24. guisa: modo, maneira; 25. a perda
comum: as privações comuns a todos; 26. minguadas: carentes, miseráveis, deficientes; 27. nom perteencentes: incapazes; 28. ataa: até; 29.
mancebas mundairas: prostitutas (amantes/raparigas mundanas); 30. pois: já que; 31. pelejar: lutar. 32. covas: silos, celeiros subterrâneos; 33.
mester: necessidade.
1. Explicite o «grande trabalho» (l. 8) em que se envolviam, por vezes, «Os da cidade» (l. 11),
atendendo ao conteúdo dos dois primeiros parágrafos.
3. Mostre como, no contexto das «tribulações» vividas na capital, se evidencia a consciência coletiva. Fun-
damenta a tua resposta com elementos textuais.
NOTAS
1
Que João Palerma! Que parolo!
2
Vejam o esforço que ele faz para se sentar na cadeira.
3
A maior parte do gado.
4
Primogénito, herdeiro de todos os bens familiares.
5
Tenho muito gado.
6
E eu, por outro lado, também sou homem de bem.
7
Se aparece alguém melhor do que eu.
8
No fundo do capelo.
9
Inês, segurai no capuz.
10
Cordas com que se prendem os animais.
5. Indique dois traços caracterizadores de Inês no excerto apresentado, fundamentando cada um deles com
uma transcrição pertinente.
6. Explicite o sentido da pergunta do verso 15, bem como o motivo que leva a personagem a colocá-la.