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WAMBIER, Luiz Rodrigues.

Curso avançado de processo


civil (livro eletrônico): teoria geral do processo. Volume I. 5 Ed.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

2.1.2. Direito material e direito processual


Outra das formas de classificar os diversos ramos do direito consiste em
dividi-lo em dois grandes âmbitos: direito material e direito processual.

Quando as partes têm um conflito e o levam ao juiz, há dois conjuntos de


normas a se observar.

Por um lado, há as normas que regulam o modo como os juízes e tribunais


devem desenvolver o processo em que a tutela jurisdicional será prestada.
Essas normas disciplinam também a forma de atuação dentro do processo das
partes (autor e réu) e de todos os outros sujeitos que por alguma razão tenham
de intervir no processo. Essas são as normas processuais.

Por outro lado, existem as normas que o juiz precisa aplicar para saber
quem tem razão quanto ao conflito que ele deve resolver. Ou seja, as regras
incidentes sobre o caso litigioso que foi levado até ele. Essas são as normas
materiais.

Então, em termos bem simplificados, pode-se afirmar que as normas


jurídicas de direito material tratam das relações jurídicas que se travam no
mundo empírico, na vida cotidiana, antes e independentemente de haver um
processo. Por exemplo, são materiais, as regras e princípios que regulam a
compra e venda de bens, que disciplinam o modo como deve ocorrer o
relacionamento entre vizinhos, que regulam os deveres dos cônjuges durante
o casamento, que definem como se opera um negócio no âmbito financeiro etc.
Essas normas materiais, em geral, já estão incidindo enquanto as relações
entre os sujeitos são travadas. Se vier a surgir um conflito entre esses sujeitos
e eles recorrerem ao Judiciário, caberá a esse definir quais normas materiais
efetivamente incidiram no caso conflituoso. Mas como visto no cap. 1, isso não
é feito de modo instantâneo. Estabelece-se um processo jurisdicional para
resolvê-lo, o juiz terá de ouvir as partes, investigar, produzir provas (e deixar
que as partes as produzam) - enfim, terá de desenvolver todas essa atividade
para definir quais foram as normas materiais que incidiram no caso, para assim
poder dizer quem tem razão no conflito.

As normas que regulam toda essa atividade que precisa ser previamente
desempenhada para a jurisdição poder dizer quem tem razão são processuais.
Ou seja, elas regem o modo como o Judiciário será provocado para atuar,
definem como as partes exercerão a ação e a defesa, disciplinam a produção
das provas e a formulação de argumentos e recursos - enfim, tratam do
desenvolvimento do processo jurisdicional.

As normas processuais também proporcionam a criação, modificação e


extinção de direitos e deveres. A diferença está em que lá, nas normas de
direito material, há disciplina das relações jurídicas travadas nos mais
diferentes ambientes (familiar, negocial etc.), ao passo que aqui, no que diz
respeito às normas de direito processual, são disciplinados os fenômenos
endoprocessuais (que ocorrem dentro do processo) e a própria relação jurídica
em que consiste o processo.

O relacionamento entre esses dois ramos do direito - direito material e


direito processual - é de instrumentalidade do segundo diante do primeiro, na
medida em que é por intermédio do processo que se consegue dar rendimento
à norma jurídica de direito material que foi desrespeitada por um dos sujeitos
do litígio. Vale dizer: o processo é instrumento de realização do direito material.
Não há exagero em dizer que o direito processual está a serviço do direito
material.

Visto sob o prisma de sua própria finalidade, o direito material cuida apenas
das relações jurídicas em que o cumprimento da norma se dá
espontaneamente por aqueles que estejam a isso obrigados, seja por força de
lei, seja em razão de contrato. Diante do descumprimento de determinada
norma jurídica ou do inadimplemento de determinado dever, o direito material
nada pode fazer (isto é, não tem o direito material mecanismos capazes de
restabelecer a harmonia rompida pelo descumprimento ou pelo
inadimplemento), restando ao interessado buscar a tutela jurisdicional para seu
interesse violado.

Imagine-se que Fulano causa um dano a Beltrano, em decorrência de um


acidente de veículos. As normas de direito material, previstas nos arts. 186 e
927 do CC, dispõem que "aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito" (art. 186) e "aquele que, por ato ilícito
(arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo" (art. 927).
Que conduta deverá ter Beltrano se Fulano se negar a reparar o dano? Sendo
proibida a autotutela, resta a Beltrano buscar a tutela jurisdicional, o que fará
mediante o ajuizamento de uma ação, ou seja, iniciando um processo, que
servirá de instrumento para que Beltrano alcance a realização de seu direito à
reparação do dano que sofreu.

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