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defeitos pelo exercício da correção fraterna: porque 0
seu desejo de ajudar por esse meio - uma prática que
remonta aos primeiros tempos do cristianismo - virá à O CUIDADO DOS PORMENORES
tona na cordialidade e no afeto com que adverte, sem-
pre consciente de que ela mesma pode cair no defeito
que se propõe corrigir no outro.
Disto falaremos mais adiante, mas desde já pode-
mos dizer que só uma pessoa humilde sabe como
exercer essa prova de fina caridade, porque ela mesma
procura, aceita e agradece que a ajudem a superar os
seus muitos defeitos. E assim como ela mesma deseja
ser advertida com delicadeza, sabe usar dessa mesma Ordinariamente, os defeitos dos nossos semelhan-
delicadeza quando é ela que cumpre esse dever para tes não são coisas grandes, capazes de causar um ho-
com os outros. micídio, de desfazer uma comunidade, uma empres_a
Para ~_humilde, os defeitos alheios não são, pois, ou uma família. Normalmente, manifestam-se em coi-
uma ocas1ao de enaltecer-se ou de desprezar - "eu não sas muito pequenas que, por si mesmas e a curto pra-
sou como os outros" -, mas diríamos de humilhar-se zo, não terão consequências trágicas.
p~nsa~do que, se. Deus o abandonasse, seria pior qu~ No entanto, como incomoda conviver com uma
nmguem. E com 1ss~ cresce numa virtude que lhe ga- pessoa que habitualmente descuida os pormenores! E
rante um lugar no ceu. Pode-se querer mais? como essas falhas pequenas podem azedar o relacio-
namento ou frustrar planos de importância!
Não se trata de pensar na nave espacial que se de-
sintegrou devido a uma falha tão pequena que nem os
olhos dos técnicos nem os aparelhos mais sofisticados
foram capazes de detectá-la, e que custou vidas huma-
nas. Trata-se de coisas tão corriqueiras como uma pa-
lavra a mais ou a menos numa conversa intranscen-
dente, de uma explosão de nervos a propósito de nada,
de uma extrema suscetibilidade quando se tocam cer-
tos assuntos, de desordem nos objetos pessoais, de
atrasos de cinco minutos nos compromissos... Nada
disso são deficiências próprias para desencadear, em
situações normais, um drama familiar e muito menos
uma tragédia nacional. Mas mortificam os que convi-
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vem conosco ou lhes tomam a vida menos grata. Que saem aos pais, devemos imitá-lo ou ao menos esfor-
partido podemos tirar dessa espécie de defeitos? çar-nos por imitá-lo. _
Em primeiro lugar, não aborrecer-nos, não ficar de Nos nossos dias, espalhou-se o que se poderia <le-
cara amarrada nem criticar, sequer interiormente, os sionar por lei do "assim já dá". Provas dela temo-las
que caem nessas fraquezas. As pequenas fraquezas todos os dias: um serviço de limpeza que não varre os
dos outros, que tantas vezes envenenam ou tiram o cantos ou todos os móveis, a revisão de um carro que
bom humor no convívio familiar ou profissional, de- pouco depois volta a enguiçar, o conserto de um ele-
vem ser sinais vermelhos que nos alertam para a ne- trodoméstico que resolve em parte ou por pouco tem-
cessidade de crescermos em magnanimidade, uma vir- po, um relatório encomendado pelo diretor da empresa
~de que nos faz muita falta em tantos outros campos. que não reúne todos os dados nem toca t?d~s _os pon-
E um bom exercício aproveitarmos essas picuinhas tos, a informação incompleta de um func10nano sobre
alheias para cultivar um espírito generoso que não dá os documentos necessários e que nos obriga a voltar
importância ao que objetivamente não a tem e que outro dia; e as esperas: pelo ônibus que não chega;
tantas vezes é mero produto de um modo de ser que pelo médico que marca hora de consulta e já se sabe
não é o nosso, ou de um descuido ou de um espírito que só seremos atendidos depois de folhearmos nervo-
desatento, de uma pressa ou precipitação, mas de ma- samente, na sala de espera, todas as revistas de há
neira nenhuma é mal-intencionada. As pequenas fa- mais de seis meses; pela única moça do caixa que,
lhas alheias incomodam-nos na medida em que vemos ainda por cima, se levanta e desaparece, e a fila vai
nelas uma intenção de incomodar-nos ou desrespei- engrossando; pela companhia do seguro de saúde, do
tar-nos, o que geralmente é uma injustiça. carro, dos serviços telefônicos, que manda ligar de nú-
Depois, devemos procurar nós mesmos esmerar- mero em número até que por fim ... é preciso recome-
-nos em viver pessoalmente esse cuidado em tudo o çar a tentativa, etc., etc.
que fazemos. Vale a pena, a este propósito, deter-nos Parece que a vida moderna, tão evoluída sob tan-
a pensar nas nossas obras de cada dia. tos aspectos, tão veloz em tantos outros - on-line, diz-
Se a alguma delas falta um detalhe é uma obra im- -se -, adoece de indelicadeza e da falta de humanida-
perfeit_a. Uma coisa perfeita é, por definição, aquela a de: de algum modo, desumanizou-se. E isso alastra-se
que nao falta nada, que está totalmente acabada. As e "contagia": contagia o empregado a quem o chefe
obras ª:abadas c~usam-nos uma grande satisfação; as não dá nem "bom dia", o aluno que vê o professor
que estao mal feitas ou por terminar causam-nos de- descuidado em preparar as suas lições, os filhos que
sassossego e mal-estar. não veem o pai fazer-lhes uma pergunta pessoal ou a
Mas a razão mais importante para não cairmos nós mãe que é a desordem personificada e se irrita com a
noDmau acabamento é que desse modo desagra damos moleza e a bagunça dos seus pequenos ...
• Jesus não cumpriu a sua missão dizendo "assim já
a eus, que e a suma perfeição· as suas ob
fi · ( f · ras sao per- dá": ensinei, fiz milagres, dei a conhecer Deus-Pai,
e1tas c r. Deut 32 ' 4) , e nós , como bons filh
1 os que
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que mais podia fazer? Pelo contrário, amou-nos até 0 do que é normal, o amor que tendes por Jesus
fim e deu o arremate à sua obra oferec~n~o-nos o ho- Cristo" 17 -
locausto da cruz, a sua morte e ressurre1çao, em teste-
munho da Verdade. Os espíritos rudes e raquí~icos n~o vêem os ~eta-
E insistiu-nos, Ele que era Deus, o Senhor do uni- lhes· os preguiçosos e comodistas nao querem ve-los.
verso: Quem é fiel no pouco também é fiel no muito Ma; os que procuram a maturidade e a perfeição pres-
(Lc 16, 10). E na parábola ~os talentos (Mt 25, 14-30) tam-lhes a máxima atenção e esforçam-se com garra
felicitou os servos que se tmham esforçado por fazer por não os deixar passar por alto em cada uma das
render o pouco que lhes entregara e indignou-se com suas obras. Compreendem que "as almas grandes têm
aquele que, por preguiça, o havia enterrado. muito em conta as coisas
'
pequenas "18 .
Há muitos homens que pensam que não vale a
pena deter-se em detalhes. Eles foram feitos para coi- "Xavier, de oito anos, estava preocupado. A
sas ..grandes"! Reproduzem à sua maneira a aventura sua mãe, mulher habitualmente alegre e otimista,
de Tartarin de Tarascon, o Quixote francês do roman- estava de cama passando os últimos dias de uma
ce de Alfonse Daudet, que se obcecou pela ideia de gravidez complicada. A preocupação do men.ino
caçar leões e, corno não os encontrava na sua terra era ver a mãe abatida. Queria fazer alguma coisa,
nem queria sair dela, se entregou à fantasia de caçá- mas o quê?
-los pelos corredores da sua casa. "Lembrou-se então de que seu pai oferecia de
vez em quando à mãe uma flor, e que isso a ale-
"Pensando naqueles que, com o passar dos grava. Foi ao seu quarto, esvaziou o mealheiro
anos, ainda andam sonhando - com sonhos vãos das suas economias e, com as poucas moedas na
e pueris, como Tartarin de Tarascon - em caçar mão, foi ao florista da esquina e pediu-lhe uma
leões pelos corredores da casa, onde porventura rosa. O dono, que conhecia o menino e a sua fa-
não há senão ratos e pouco mais; pensando neles, mília, mostrou-lhe uma rosa bonita, mas sem
insisto, recordo-vos a grandeza do caminhar à nada de especial. O rapazinho não se deu por sa-
maneira divina no cumprimento fiel das obriga- tisfeito e, apontando com o dedo um ramo de ro-
ções habituais da jornada, com essas lutas que sas escolhidas, disse:
cumulam de alegria o Senhor e que só Ele e cada "- Quero uma daquelas. É para minha mãe,
um de nós conhecemos. que está de cama.
"Con_vencei-vos de que, geralmente, não en-
contrareis espaço para façanhas deslumbrantes
porque, entre outras coisas, não costumam apre- ( 17) São Josemaria Escrivã, Amigos de Deus, 2ª ed., Quadrante,
s~~tar-se. Em contrapartida, não vos faltam oca- São Paulo, 2000, n. 8.
s1oes de demonstrar através do que é pequeno, (18) São Josemaria Escrivã, Cami11ho, n. 817.
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"- Essas rosas são muito caras. Tem dinheiro grandes. Um professor de uma zona rural ensinava aos
suficiente? seus alunos a importância dos pormenores com este
·•- É claro. Se não o tivesse, não teria vindo versos:
comprá-la.
"O florista tirou u!na das rosas do ramo, en- Pouquinho a pouquinho,
volveu-a em papel brilhante e deu-a ao menino. a velha tece a lã.
Com cara de satisfàção, Xavier entregou as moe- Gota a gota sem parar,
dinhas - não somavam dois reais - e foi-se, le- um tonel pode transbordar.
vando a rosa de vinte e cinco reais. Um cliente Palhinha a palhinha, o passarinho
que presenciou o diálogo, comovido, ofereceu-se faz o seu ninho.
para pagar a rosa: Letra a letra, por fim o menininho
"- Deixe-me pagá-la. Gostaria de conhecer a consegue aprender a ler.
mãe desse menino que é capaz de inspirar-lhe Trabalhando com carinho,
sentimentos tão nobres. quanto chegarás a saber!
"- De maneira nenhuma - respondeu-lhe o
florista-. Nunca vendi uma rosa com tanto gosto. Se vivermos com atenção e esmero os mil detalhes
"Quando o pai do menino regressou a casa e de que se compõe a vida ordinária, sem ficar à espreita
viu a rosa no quarto da esposa, foi imediatamente de que os outros o façam, sem os julgar se os es-
à loja para pagá-la, mas o florista recusou-se a quecem - levantar-se para ceder o lugar no ônibus, cui-
cobrar nada mais: dava-se por bem pago com as dar da ordem na sala de estar, ser pontual nos encon-
moedinhas" 19 • tros marcados, etc., etc. -, só com isso saberemos con-
tribuir para que os outros saiam do seu desmazelo.
Como resumo, poderíamos afirmar que as almas
"pequenas" só veem as coisas grandes, ao passo que
as "~ndes" têm_ul"I! â~gulo de visão tão aberto que
apre~1ai:n a magm~ce~c~a do que é gigantesco e a im-
portanc1a do que e mmusculo. Em uma coisa e outra,
encontram a pegada de Deus, que é tão grande que
cabe no pequeno .
. Viver e, com o exemplo, ensinar a viver o amor às
coisas pequenas, que são a porta que se abre para as
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vos e O deixam pelo menos de mau-humor . e irritadi-
? Se aquele meu amigo, homem virtuoso, escor-
SERENIDADE ;~gou numa casca de banana tã? corriquei~a, e além
disso pouco depois de ter atendido_ confissoes e per-
doado em nome e na pessoa de Cnsto, e de ter ceie-
brado a missa, que nao~ se passara' conosco ?.
Realmente, os defeitos alheios podem ser o detona-
dor de um momentâneo ou permanente estado de
guerra. Assim o vemos na vida das famílias e nos cí~-
culos de convivência: esposos que se tratam aos gn-
tos, filhos e pais que provocam ~ituações tens~s; vizi-
nhos do andar de cima ou de baixo que azucrmam os
Por ocasião da festa de Todos os Santos, fui ajudar nossos ouvidos; condiscípulos que sentem prazer ~m
outro sacerdote, meu amigo, que tem a seu cargo vá- ferir-se mutuamente com piadas que exasperam; dis-
rias paróquias. O seu inflamado zelo pastoral levou-o cussões nos bares, nos campos de esporte, em reu-
a programar um dia muito intenso de atos religiosos. niões de "trabalho", no Congresso Nacional ou no Su-
Recebeu-me com cara sorridente, como querendo di- premo Tribunal de Justiça; brigas ideológicas em polí-
zer-me: " Hoje, os dois juntos, vamos dar uma grande tica, nas empresas familiares; rivalidades agressivas
alegria ao Senhor". Depois de passarmos um bom no meio universitário, entre os docentes de história, de
tempo atendendo confissões e de termos celebrado a educação, de economia, nos clubes, nas associações de
missa, dirigimo-nos à casa paroquial para tomar o des- classe ...
jejum e combinar os atos do dia. Vive-se em estado bélico, de alfinetadas, de difa-
No entanto, mal abriu a porta, o rosto do meu ami- mações, de calúnias, que não só machucam os prota-
go alterou-se e saíram-lhe da boca umas palavras du- gonistas, mas envenenam o ambiente e a sociedade.
ras e. exal~adas. Eram contra uns rapazes que, no dia Se a pessoa é virtuosa, domina-se e consegue que as
antenor, ti~ham deixado a casa em completa desor- consequências não sejam demasiado desagradáveis; se
dem._E mais ~e acalorou quando viu que o padeiro não a sua virtude não é sólida, tem-se a impressão de que
lhe tmha traz1d? o pão. Procurei acalmá-lo e ele esfor- pode acontecer qualquer coisa.
çou-se por somr, embora me parecesse que fazia mais Você e eu temos de aproveitar os defeitos alheios
para compraz~r-me do que por vontade. Depois do al- para aumentar o nosso amor pela paz, para ser pacifi-
moço , despedi-me
. . , mas fiq ue1· com a 1mpressao
· ~ de que cadores, portadores de paz no nosso meio.
aqueles pnme1ros arrebatamentos não t· h Cristo é a nossa paz (Efes 2, 14) e veio trazê-la
gado de todo. · se m am apa- aos homens de boa vontade (cfr. Lc 2, 14). Não a paz
A quem as falhas dos outros na~o desa tam os ner- como a do mundo, que muitas vezes não é senão um
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equilíbrio de forças antagônicas, mas uma paz que . s temos para alcançar o autodomínio que
Que meio . b d d ? ve·a
resulta da unidade com Deus e com os demais ho- 1 d potências intenores em or ena as . J-
mens, e que, como consequência, se manifesta em se- resu ta asd1·z Georges Chevrot no seu livro As peque-
mos o que
renidade. nas virtudes do lar:
Diz Santo Agostinho que a paz é a tranquilidade da
ordem. Para tê-la e comunicá-la, é preciso que o nosso "A não ser que os destemperas e arr~?at~-
interior esteja em ordem, isto é, que as nossas ideias e mentos sejam ocasionados por uma defic1encrn
os nossos sentimentos obedeçam a uma hierarquia que fi1s1•ca, são indício de fraqueza, de vontade. A for-
. M t d
ponha em primeiro lugar o mais importante e valioso ça manifesta-se no, auto~omm10. _as o au o ~-
em segundo o que vem em segundo lugar, e assim su~ mínio não é inato; e preciso aprende-lo. a~qu1-
cessivamente. Essa ordem leva a pôr: re-se de duas maneiras: através das conv1cçoes e
através do exercício. . _
* Deus acima de tudo; "Em primeiro lugar, a conv1cçao. Uma -:ez
* depois, a nossa alma; que as nossas impaciências [as nossas e~plosoes,
* a seguir, o nosso próximo; diríamos neste caso] costum_am antec1pa~-se a
* depois, o nosso corpo; qualquer reflexão, importa_ cnarmos, ~m nos um
* por fim, as coisas ou seres irracionais. estado de espírito que facihte o dom1mo sobre os
nossos primeiros impulsos. .
_ Quando uma pessoa não respeita esta hierarquia, "A uma pessoa de fé, _eu aconselh_ar1a um
mstala-se a desordem dentro dela e daí nasce e ali- meio muito eficaz, que consiste em atuahzar com
menta-se no seu interior um estado de mal-estar e frequência o sentido da prese1_1ça ~e Deus e ~le
intranquilidade que muitas vezes é a causa dos confli- dirigir-se por um movimento mt~nor. Este hab1~0
tos que provoca ou que não sabe conter. Indo ao es- é excelente em si, pois, por mais breve que_ seJa
sencial, pode-se dizer que um homem que viva em es- uma elevação do espírito a Deus, const1tu1 um
tado de pecado, portanto de inimizade com Deus in- ato de adoração; por outro lado, situa-nos num
clinar-se-á a tratar os outros também como inimig~s - clima de serenidade, que amortece o c~oque
subjugando-os ou maltratando-os -, a ser duro com inesperado das contrariedades. [... ] Considera-
eles, a usar de uma violência que depois o deixará as- mos todos os acontecimentos como «mestres que
sustado a ele próprio. O mesmo se pode dizer dos ou- Deus nos envia», segundo o conselho de Pascal
tros degraus dessa escala de valores. Quem sacrifica [... ]. . ..
os bens da alma aos do corpo - à intemperança em "Temos assim criado o nosso chma espmtual.
qualquer campo - acaba por perder o autocontrole Trata-se agora de adotar dois exercícios de uso
com extrema facilidade, e com isso não será semea- quotidiano [... ]: calar-se e esperar. .
dor de paz, mas de discórdia. "Para aprendermos a calar quando nao e hora
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de falar, precisamos esforçar-nos sempre por não Tenhamos sempre diante dos olhos a "vingança"
falar antes de tempo. Deixemos os outros expri- de Cristo contra os que o odiaram e levaram à morte:
mirem os seus pensamentos [no nosso caso, os abriu-lhes serenamente os dois braços no madeiro, en-
motivos das suas exaltações] sem interrompê-los: quanto pedia a Deus: Pai, perdoa-lhes porque não sa-
depois, pensemos durante alguns segundos antes bem o que fazem (Lc 23, 34).
de responder-lhes. Este hábito, uma vez adqui-
rido, evitar-nos-á muitas respostas precipitadas.
Já que são necessários dois para brigar, a sabedo-
ria está em não sermos o segundo [... ]. Um agri-
cultor não semeia o trigo em dia de tempestade.
Falaremos esta noite, quando a calma tiver volta-
do. Deixemos para amanhã o que seria mal feito
hoje.
"E saber esperar. Este é outro exercício sau-
dável. Não é verdade, minha senhora, que se ti-
ver o marido ao seu lado, cheio de pressa para
que lhe pregue um botão, não será capaz nem de
enfiar a linha na agulha? E acabarão por impa-
cientar-se os dois" 2º.
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de si mesmo, quem não se priva de nada e se obceca
MORTIFICAÇÃO em satisfazer o que lhe pedem o egoísmo, a carne, o
orgulho, a comodidade do supérfluo, contrariando os
mandamentos de Deus, não é de admirar que sofra
com os defeitos alheios: ao fim e ao cabo, são resis-
tências ao seu desenfreio de homem animal: O homem
animal não percebe as coisas que são do espírito de
Deus; são para ele loucura e não as pode entender ( l
Cor 2, 14) .
. Tudo o qu~ acaban:ios de ver, c?mo meio de apro- Tenho falado com frequência da necessidade do
veitar os defeitos alheios para praticarmos as virtudes domínio próprio a pessoas que de nada se privam,
a eles opostas, assenta numa peça fundamental que se imersas como estão num hedonismo asfixiante, e vi
pre~de com o _c?njunto do nosso processo de amadu- que reagiam com um sorriso trocista. São os mesmos
recimento espmtual. Essa peça chama-se espírito de que, por motivos puramente humanos e às vezes desu-
mortificação 21 • manos, se submetem a uma disciplina exigente à custa
Por que as fraquezas alheias nos machucam ou ma- de duros sacrificios. Muitos homens e mulheres fazem
goam tant?? Em grande medida, porque nos apanham por nada o que, feito com espírito de domínio desse
d~sprevemdo~. Estamos tão habituados a procurar o "homem animal" - para dar espaço aos valores does-
pírito e de obséquio a Deus-, lhes daria uma fortaleza
f~c1l, o a~davel aos sentidos, a posse e fruição hedo-
capaz de tomá-los imunes à dor que causam as fraque-
~1sta, o exito no que fazemos, que criamos uma pele
mcapaz de suportar a simples picada de um mosquito. zas alheias.
Esse autodomínio de que acabamos de falar desaba
::te a !11enor _contrarie~ade provocada pelos outros. E "Um hippie - ou os seus sucedâneos ou imita-
_do sao queixas, reaçoes destemperadas espírito de dores - não corta o cabelo. Os antigos nazarenos
vmgança
. ' impaciencias
·• · e mau-humor. Numa ' palavra deixavam o cabelo longo como sinal de pertença
sofrimento. ' a Deus, mas os hippies fazem-no por simples es-
Cll!11nhpr~~-se rigo!osa~ente as palavras de Santo pírito contestatário ou como compromisso com a
Agost1 o. Quem nao da a D moda. Hoje muitos jovens vão com roupas sujas,
o que deve dá-lh .eus O que deve, fazendo como um nobre medieval arrependido que, em
' e essas coisas sofrendo o que de-
reparação a Deus pelos seus muitos anos de pom-
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pas mundana~, se vesti~ com farrapos de mendi- ria para mortificarmos as nossas reações pura_mente
gos; mas hoJe faz-se isso mesmo por simples temperamentais diante de~sas fraquezas! J\:ias s? tere-
desmazelo e em nome da liberdade. Passar fome mos forças para nos dominarmos nessas s1tuaçoes se,
para domar o corpo e submeter os instintos é coi- à margem delas, nos precavermos acostumando-nos .ª
sa inconcebível para o homem contemporâneo· contrariar de vez em quando os nossos gostos, culti-
mas se o faz uma mulher para conservar a linha' var hábitos de austeridade n_o~ gast~s, de sobne~a~e
merece geral aprovação. Arrancou aplausos d~ no comer e no beber, de domm10 da lmgua, da cunos1-
admiração o jovem estudante de Praga que se dade, de amor ao aproveitamento do tempo ... Um ho-
suicidou ateando fogo à sua roupa para protestar mem assim está "blindado" contra todas .ª~ flechas
contra a invasão russa; mas não se entende que que lhe disparem os outros com as ~uas deb1hdade~. E
um homem faça penitência para combater a tira- sobretudo cresce na imitação de Cnsto, que prefenu o
nia das suas paixões" 23 • caminho árduo da cruz carregada pessoalmente para
libertar os homens da escravidão das suas fraquezas.
Não é que tenhamos de fazer sacrificios semelhan- O Senhor podia ter salvo o mundo por um SiJ?1ples
te~ aos dessas pessoas para suportar com garbo os de- ato da sua vontade. Seria igualmente eficaz se disses-
feitos _d?s outros. Mas são muitas as fraquezas do nos- se: "Quero que o mundo seja salvo neste instante", tal
so prox,mo que nos oferecem ocasiões constantes de como fez quando tirou o seu amigo Lázaro do sepul-
dominar-nos e "fazer do limão uma limonada" trans- cro, dizendo em alta voz: Lázaro, vem para fora! (Jo
formando o sinal negativo em positivo. ' 11, 43). Mas preferiu uma vida sacrificada: trinta anos
de trabalho sem brilho - antes de ir porque quis ao en-
Imagine que o seu marido é tacanho irascível de-
contro de uma morte sangrenta e humilhante -, três
sord7nado, indeciso, autosuficiente, chei~ de pequ~nas
manias ... anos de paciência para formar os Apóstolos.
Temos uma ideia do que lhe deve ter custado
. Ou que a sua esposa é queixumenta, gastadora, aguentar a inépcia, a mente estreita, os sentimentos
cmmenta, frívola ...
terra-a-terra daqueles Doze? Conviviam com Ele, ex-
Ou que ª sua nora é absorvente, displicente, sem- plicava-lhes as coisas, decifrava-lhes o sentido das pa-
pre do contra, desagradecida ...
rábolas, com um "autodomínio", digamo-lo assim, que
Ofiu que n~ sua_ empresa imperam o egoísmo a des- evitava as impaciências, as censuras destemperadas, as
con
lh 1ança: .a mve•a. J ' a dºistn·butçao
. . , . do• traba-
arb1trana recriminações ácidas, os gestos de desagrado e de de-
o, as cnt1cas as suas costas ...
cepção ... E eles não o entendiam ou entendiam-no ao
Quantas oportunidades não nos oferece a vida diá- contrário. E Cristo jamais se exasperou.
Por aí foi Ele e por aí temos nó,s que ir. Como ad-
(23) Fedcrico Suárez, Lapa• d . . verte sabiamente Santa Teresa de Avila: "Não queira-
83-84. · os e1o, Rialp, Madrid, 1973, págs. mos ir por caminho não andado, porque nos perdere-
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mos" 24 • Esse andar por onde Cristo andou, em su de? (Jó 2, 1O). Deveríamos poder repetir as ~ala-
companhia, pode ser resumido em alguns aspectos: ª vras de São Paulo: Trazemos sempre em nos a
mortificação de Jesus, a fim de que a vida de Je-
l) progredir em atos de autodomínio mediante os pe- sus se manifeste na nossa carne mortal (cfr. 2 Cor
quenos exercícios. Os atletas, por exemplo não 4, 8-10).
param de tre_i~ar e, ao cabo de pouco tempo, ~lcan- 3) saber encontrar nesses pequenos mas constantes
çam uma ag1hdade que os faz ir superando as mar- atos de renúncia, ao comodismo e à satisfação dos
cas anteriores. A experiência demonstra que, quan- sentidos, um motivo de amor. Não são algo negati-
to mais concessões façamos ao nosso corpo e aos vo antes meio necessário para assegurarmos a per-
seus impulsos, mais exigentes se tornam. E vice- feita convivência com os homens, mas em primei-
-versa, quanto mais os dominemos, maior a leveza ro lugar a intimidade com Deus, que é a verdadei-
de espírito e a generosidade do coração para aco- ra raiz e fonte dessa convivência harmoniosa. "A
lher os outros com alma grande; alma sacrificada é um holocausto, uma hóstia; e
2) exercer autodomínio sobretudo no trato com os assim não somente o seu holocausto se une ao de
outros. E necessário saber dominar os estados de Cristo, mas funde-se com o dEle e é para Deus,
ânimo que nos fazem ser diferentes . consoante com Cristo, um único holocausto gloriosíssimo" 25 •
acordamos bem ou mal dispostos, conforme temos Do holocausto de Cristo, que não se explica senão
~as ou má~ notícias, o dia se apresenta bonito ou pelo amor com que Ele nos amou, a pessoa que
feio, tranquilo ou cansativo. A isso se chama equa- ama o sacrifício extrai o amor e a ternura que de-
nimidade. pois vaza na sua relação com os homens .
. Eis o elogio que uma testemunha fez de São
Vicente de Paulo, um santo sumamente atarefado
em º?ras de zelo: "Monsieur Vincent é sempre
m~nSieur Vincent", sempre o mesmo: risonho e
afavel, manso e confiante. São Francisco de Sales
fala-nos dos arrulhos da pom ba que tem • sempre a
mesma toada, tanto nos bons c~mo nos maus mo-
~e:s
men~s; e_~e Jó, que bendisse a Deus na bonança e
~enra~1 adde: Aceitamos a felicidade da mão de
, o evemos ace,·tar tam bem
. a infelicida-
(24) Santa Teresa de Jesus O st I . (25) Marie-Vincent Bemardot, De la Eucaristia a la Trinidad, Pa-
4, 12. ' ca e O interior, Sétimas moradas,
labra, Madrid, 1983, págs. 76-79.
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seus defeitos. A bondade substancial das pessoas não
fica comprometida pelas suas_ fraquezas.
AMOR,ORAÇÃO,EXEMPLO ' Impressiona ver como Cnsto retrata o desvelo do
bom pastor - Ele mesmo - na parábola da ovelha tres-
CORREÇAO FRATERNA malhada: quando a encontra, carrega-a aos ombros,
cheio de júbilo (Lc 15, 5), um júbilo que nunca tinha
experimentado até esse ponto com as outras, e devol-
ve-a carinhosamente ao aconchego e segurança do re-
dil. E o mesmo júbilo se vê na parábola do filho pró-
digo: uma alegria que leva o pai a ter com esse filho
pormenores que antes não tivera, e a fazer uma festa
pelo seu feliz regresso (Lc 15, 1-24). Por quê? Porque
havia no pastor e no pai um amor que se manifestou e
diríamos que cresceu diante das fraquezas .
Vemos isso a cada passo, quando a TV nos relata o
•A_ noss~ atitude ~m- face das debilidades do nosso amor de uma mãe pelo filho drogado, que gasta o que
prox1mo nao deve hm1tar-se à prática de umas virtu- tem e o que não tem para livrá-lo da dependência, ou
des que redundem apenas no nosso proveito, mas há pelo filho a quem visita sem falta na prisão, seja qual
te levar-nos~ procurar o bem dos que padecem dessas for o crime que ele tenha cometido. Por maiores que
~quezas. Nao podemos ficar indiferentes ante os de- sejam os desvios de conduta dessa pessoa, a mãe não
tiellos
• que .pe ssoas proximas
· · de nós, possivelmente
nd deixa de ser mãe: é ainda mais mãe.
mmto que ªs ou de relevo na vida pública arrastam E o mesmo vemos no tocante episódio dos filhos
tempos e tempos , pondo em nsco . '
a sua relação com
0 eus e o valor e eficácia da sua existência. de Noé: Noé, que era agricultor, plantou uma vinha.
- Como posso a· d' l ? , Tendo bebido vinho, embriagou-se e ficou nu na sua
veríamos f: ~u a- as·, e a pergunta que nos de- tenda. Então os filhos, Sem e Jafet, tomando uma
azer.
De diversos modo s, que podemos ver brevemente. capa, [... ] foram cobrir a nudez de seu pai, andando
de costas; e não viram a nudez do pai, pois tinham os
seus rostos voltados (Gên 9, 20-23).
Não esqueçamos que tendemos a pensar que nós
AMAR OS OUTROS COM
OS SEUS DEFEITOS somos o modelo e que os outros têm que ser como
nós. E assim erramos. Cada qual é único, tem o direito
de ser único, com os seus defeitos, mas com um fundo
Não devemos amar os d . de bondade que esses defeitos não anulam, ainda que
amar os outros com os seus defeitos
efe"t dos outros , mas
1 os, nao apesar dos às vezes o sufoquem. O único modelo é Cristo.
66
67
Como os filhos bons de Noé, devemos não ve m inauditos presságios de traição, de
a mo rte , Co • n
defeitos alheios: cobri-los com uma desculpa 0 / os
abando no , de imolaçao; a flconversa
. , apaga-se, e -
sorriso, evitar sublinhá-los ironicamente em públi~rn quanto a palavra de Jesus u1 contm_ua,_ nova, ex-
impedindo que o interessado se sinta humilhado 0 °' tre mamente
doce tensa em confidencias supre-
, "d "26
que c~i~ no ridic~lo_. E ale~-nos com as qualidade~ mas que adejam assim entre a v1 a e a morte .
e os_ ex1tos do prox1mo, c01sa_ custa mais do que
entnstecer-nos com as suas m1senas. E foi nesse clima que O Senhor nos ·deu o Manda-
. Jesus dá-nos exemplo de carinho e ternura espe- mento novo: Um mandamento novo vos d~u, qu~ vos
c_1almente nos momentos duros da despedida durante a ameis uns aos outros; como eu vos am_e,, amai-vos
Ultima Ceia. Pouco antes, como também naquelas também uns aos outros. Nisto conhecerao todos que
mesmas horas, os Apóstolos dão mostras de pouca sin- sois meus discípulos (Jo 13, 34-35). .
tonia com os sentimentos do Mestre, que os evangelis- Há uma consideração que nos pod~, aJ~d'.11" a esse
tas não escondem: a rivalidade entre eles, na ânsia de "amar os outros como Cristo !1ºs amou . D121amos no
saber quem seria o maior; o protesto de Pedro quando começo que muitos dos defeitos das pessoas ganham
o Senhor se ajoelha diante dele para lavar-lhe os pés; a corpo aos nossos olhos quando es5:1s pesso_as n~s
perplexidade aflita ante o anúncio de que um deles o caem mal. Como neutralizar esse sentimento difuso.
trairia: Cada um começou a perguntar: Sou eu, Se- A verdadeira solução para um cristão é encarar to-
nhor? (Mt 26, 21-22), sinal talvez de que não estives- dos - os que nos são antipáti~os tanto como os qu7
sem muito seguros da sua fidelidade; a traição de Ju- nos são simpáticos - com sentido sobrenatural. fe
das; o não terem compreendido que Ele e o Pai eram diz-nos que cada uma das pessoas com quem conv1~e-
um só; enfim, a estreiteza mental que provocou a sua- mos é, acima de tudo, tão filha de Deus_ como nos,
ve queixa: Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas amada por Ele como nós, com as suas virtudes e ~s
agora não as podeis suportar... (Jo 16, 12). seus defeitos. Essa condição deveria levar-nos a olha-
No entanto, o clima foi de total confiança. -la com respeito e mesmo com ad~iração. . .
Então substituiríamos a simpatia ou a ant1pat1a na-
."O p~óprio Senhor - diz o papa Paulo VI - turais por uma visão afetuosa como a das mães boas,
quis dar ~quela reunião tal plenitude de significa- que amam todos os filhos sem distinçà~.
do, tal nqueza de recordações, tal comoção de Sabemos muito bem que todos deseJamos uma pa-
palavras e de sentimentos, tal novidade de atos e lavra de alento quando as coisas não nos correm bem;
de preceitos, que nunca acabaremos de meditá- e a compreensão dos outros quando, apesar da boa
-los e ~xplorá-los. uma ceia testamentária; é vontade, voltamos a errar; e que reparem no que te-
uma ceia afetuosa e intensamente triste ao mes-
mo tem~ _que imensamente revelador~ de pro-
messas divinas, de visões supremas. Avizinha-se (26) Paulo VI. Honrilia da Sexta-Feiro Sa111a, 27.3.1975.
68 69
mos de positivo • mais do..dque no que temos de negati-. coração, isto é, das energias e sentimentos que nele se
vo; e que seJamos ex1g1 os no nosso trabalho encontram: Oferece-me, meu filho, o teu coração, pe-
. . , ~i ,mas
com bons modos, . e que, nmguem 1a e mal pelas nossas de Deus (cfr. Prov 23, 26). Os defeitos não combatidos
costas; _e_ que haJa 1guem que nos defenda quando so- são consequência de o nosso ser - o nosso coração -
mos cnticados e nao estamos presentes ... não estar possuído por Deus, mas distraído e atraído
...Tanta coisa, em que, podemos e devemos tratar os pelo que passa, pelo efem,:ro, em ~ez de s~ o_rientar
ou~os como nos querenamos ser tratados! A isso n unitariamente para a relaçao patermdade-fihaçao que
obi:iga a segunda parte do primeiro mandamento
Lei de Deus: Amarás o próximo como a ti mesmo.
~! temos com o Senhor.
Nessa perspectiva, não importa tanto que tenhamos
muitos ou poucos defeitos, mas dar a batalha de reor-
denar as nossas capacidades intelectivas, afetivas e vo-
REZAR PELOS OUTROS litivas em direção à plenitude dos laços de filiação.
Daí resultará - como efeito - uma vida em que as fra-
A fé ensina-nos que o fator decisivo para a mudan- quezas serão encaradas como empecilho ao livre curso
ça das pessoas é a graça de Deus. do amor de filhos e nessa medida arrancadas ou pelo
menos amortecidas: Eis como sabemos que o conhece-
"O cristianismo não é um moralismo um sistema
mos - e não se pode conhecer a Deus sem amá-lo-:
ético. O cristianismo é antes de tudo um' dom", diz o
se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz
papa Bento XVJ2'. Se conhecesses o dom de Deus!
conhecê-lo e não guarda os seus mandamentos é men-
(cfr. Jo 4, 10), disse Jesus à samaritana que vivia em tiroso (1 Jo 2, 3-4). Os defeitos consentidos são a
estado de pecado. Não começou por falar-lhe da sua grande mentira da nossa vida, enquanto incongruência
conduta, por recriminá-la. Fê-la ter sede do Deus vivo, com relação ao amor de Deus que nos foi revelado em
a quem se adora em espírito e verdade. Esse é o pro-
Jesus Cristo.
blema dos defeitos em nós e nos outros: não reside Tudo isto centra o nosso olhar sobre os outros, por-
tanto em que mancham e aviltam o comportamento que o que realmente há de doer-nos neles não é que
mas em que sao - o esquecimento de um Deus que nos'
ama. violem umas regras e assim nos incomodem ou ma-
goem, mas que tenham o coração longe de Deus. E
Por isso,.ª luta contra os defeitos não se situa num para podermos ajudá-los a dar a batalha nessa raiz dos
camP? legahs13: de obediência ou desobediência a uns seus defeitos, a primeira coisa que temos de fazer não
preceitos
. · morais ' mas no aco1h1mento
. ou recusa do
dom divmo que nos ele · • é dirigir-lhes palavras bem alinhavadas e raciocínios
Deus em Cristo E . you a condição de filhos de esmagadores, mas obteF para eles a graça de Deus que
· isso e questão de uma entrega do muda os corações e faz aceitar o dom divino.
É preciso, pois, rezar pelas pessoas carregadas de
(27) Bento XVI, Homilia, 20.3.2008. defeitos: quanto mais graves e mais arraigados os te-
70 71
nham, mais intens! deve se~ a_ oração por elas, não ao • m nós uma espécie de automatismo pelo qual, a
contrário. A oraçao de petiçao fa;i: de~terem-se os criar e , - ,
cada defeito que observassemos, nao reagissemos com
montes como cera (cfr. Sal 97, 5). E preciso pedir para crítica - por palavras ou mesmo em pensamento-,
essas pessoas a graça da conversão do coração com a uma _ . d'
com uma oraçao ime iata pe1a pessoa que o ma-
confiança e perseverança daquela mãe que aparece no mas
nifestou. E assim um d'ia e outro, meses e anos, se fior
Evangelho, a mulher siro-fenícia, cuja filha estava preciso ...
possuída pelo demônio. E o Senhor acabou por aten-
dê-la. Como acabou por atender à oração e lágrimas
de tantos anos de Santa Mônica pela conversão do seu O EXEMPLO
filho Agostinho, afundado na miséria de uma vida
desregrada. E junto com a oração, o ex~mplo na luta pessoal
Conta-nos o bispo de Hipona que a sua mãe, santa- por erradicarmos os nossos defeitos.
mente preocupada com a sua conversão, não cessava Não é um fator plenamente condicionante para que
de chorar e rogar por ele. Um dia, um bom bispo dis- possamos ajudar o próximo: se tivéssemos de esperar
se-lhe estas palavras que tanto a consolaram: "Vai em até não ter nenhum defeito para ir em ajuda dos ou-
paz, mulher!, pois é impossível que se perca o filho de } tros nunca teríamos. ocasião de praticar a caridade.
tantas lágrimas". Mais tarde, o próprio Agostinho dirá: Não se trata de chamar a atenção para a perfeição
"Se eu não pereci no erro, foi devido às lágrimas coti- da nossa conduta - o único modelo é Cristo, repeti-
dianas cheias de fé da minha mãe" 28 • mos - mas de dar testemunho suficientemente explí-
No fim da .sua vida, a santa mulher dizia ao seu fi- cito d~ que lutamos por combater os nossos defeitos:
lho: "Filho, pelo que me diz respeito, já nada me atrai o dever de dar bom exemplo começa por não dar mau
nesta vida. Já não sei o que faço nela nem por que es-:- exemplo.
tou aqui, morta para toda a esperança do mundo. Ha- É uma luta que, mais do que procurar alcançar uma
via uma só coisa pela qual desejava continuar um pou- utópica impecabilidade - afinal, morreremos com de-
co nesta vida, e era ver-te cristão católico antes de feitos-, põe o acento em crescer no amor, um amor
morrer. O ~eu Deus concedeu-me isto superabundan- que cubra as nossas misérias, que seja cautério.
temente, pois, desprezada a felicidade terrena, te vejo Isto é algo que muitas vezes se esquece. Esquece-
seu servo" 29• mos o episódio da mulher de má vida que entrou_ e!'1
Com essa fé confiante e perseverante, deveríamos casa do fariseu que recebera Jesus para uma refeiçao
e, ajoelhando-se aos pés dEle, s~ p_ôs a chorar e ba..
nhar-lhe os pés com as suas lagnmas, a enxuga-los
com os seus cabelos, a beijá-los e ungi-los com perfu-
(28) Cfr. Francisco Femández-Carvajal, Falar com Deus, 3ª ed.,
Quadrante, São Paulo, _2005, vol. 4, pág. 324. me. Ante os pensamentos escandalizados do fariseu,
(29) Santo Agostmho, Confissões, IO, l l , 26 _ Jesus disse-lhe: Vês esta mulher? Entrei em tua casa e
72 73
não me deste água para lavar os pés; mas esta com a reitos Afinal de contas, insistimos, o amor é
seus de 1' •
suas lágrimas regou-me os pés e enxugou-os com / maior que as nossas falhas.
seus cabelos{ ... ) Por isso te digo: os seus muitos pe~
cados foram-lhe perdoados porque amou muito (Lc 7
36 e segs. ). ' A CORREÇÃO FRATERNA
. Desse ensin~e~to se. fará eco São João quando
disser na sua pnme1ra Epistola que, se o nosso cora- Na nossa preocupação por ajudar os nossos inn~os
ção nos censura, Deus é maior que o nosso coração a vencer os seus defeitos, desempenha um papel mu1t~
(cfr. Jo 3, 20). Do amor por ~le tiraremos forças importante a correção fra!e;.na, ~II.la das obras de,,m1-
pa~ ir superando os nossos defeitos, e esse é O pri- sericórdia espiritual, que e comg1r os que erram .
meiro exemplo que devemos dar aos outros, indican- Quantas vezes sucede que, ante os d:feitos q~e ~b-
do-lhes a verdadeira fonte de energias para que supe- servamos em alguém das nossas relaçoes, a pnmetra
rem os deles. coisa que nos ocorre é criticá-1~. E com qu~ frequên-
Mas não basta procurannos "afogar" no amor a cia não nos limitamos ao que vimos, mas d1fund1mos
Deus os nossos defeitos: esse amor dar-nos-á forças 0 que nos disseram sem tennos visto e sem verificar
também para adquirir as virtudes que nos faltam. San- se era verdade! E assim vamos dando a conhecer a
ta Teresa exprime assim essa meta às suas filhas: "É toda a gente as fraquezas reais ou imaginárias do nos-
mister não pôr o vosso fundamento apenas em rezar e so próximo, menos ao interessado, que era o único
contemplar; porque, se não procurais virtudes e não há que deveria sabê-las.
exercício nelas, sempre ficareis anãs, e praza a Deus Pelo contrário, deveríamos sentir verdadeira alergia
que não_ seja só não crescer, porque bem sabeis que, diante de frases tão manuseadas como esta: "Sabe?
quem nao cresce, decresce, pois tenho por impossível Disseram-me que fulano ..." O modo correto de proce-
que o amor~ con!ente em estar onde está" 3º. O que a der é o que nos indica Jesus Cristo: Se o teu irmão pe-
santa quer dizer e que o amor verdadeiro não está car contra ti, vai e corrige-o a sós (Mt 18, 15-17).
"quie!o", mas move a pessoa a lutar por adquirir no- Com frequência, as pessoas caem em faltas que po-
vas virtudes e aperfeiçoar as que tem. dem escandalizar e ser um mau exemplo para os ou-
Essa luta pelas virtudes dará à nossa vida de cris- tros. De umas não têm toda a consciência, de outras
tãos um tom eminentemente positivo e otimista e será têm consciência, mas não conseguem forças para reti-
esse o melhor modo de mostrarmos aos outrds pelo ficá-las. Que fazer?
exemplo' 0 camm · hO que devem seguir para superar
' os Depqis de estannos seguros de que se trata de uma
falta habitual - ou esporádica, mas que pode ter sérias
consequências imediatas -, começamos por rezar pela
(30) Santa Teresa de Jesus o . . pessoa e pedir a Deus que saibamos adverti-la da ma-
4, 9. • COS/e1O mter1or, Sétimas moradas,
neira mais adequada e no momento mais oportuno.
74 75
Depois, procuramos a ocasião em que o interessado o pela sua autoridade, mas como verdadeira
esteja bem disposto e, a sós, sempre a sós, comunica- menosPrez . · d b
• d E os superiores devenam sempre partir a ase
mos-lhe o que é do caso com as palavras imprescindí- aJU a. A · d
e têm defeitos ou se enganam. cettan o a~ cor-
de qu - so, nao
- perd em auton d a de
veis, com toda a clareza e com todo o afeto: "Quando reções e corrigindo-se, nao
é preciso corrigir, deve-se atuar com clareza e amabili- e prestígio, mas os aumentam. , . . •
dade; sem excluir um sorriso nos lábios, se for oportu- Isaac Newton ( 1642-1727), matemat1co mgles que
no. Nunca - ou muito raras vezes - aos berros"l•. As- descobriu a lei da gravitação ~niversal do~ co9>os ce-
sim o corrigido agradecerá a atenção que se teve com lestes, sentia um grande_ respeito p~los amma1s. Con-
ele e esforçar-se-á por combater essa falta ou, se já ti- tam que, na sua residência, tmha dois gatos: um grande
nha consciência dela, mas se via sem forças, agora e outro pequeno. Chegou um momento em que se preo-
sim, encontrará nessa correção a energia de que preci- cupou, porque esses animais ~stav~m ~empre encer-
sava. Se lhe dermos tempo e não insistirmos nesse rados na casa e não podiam sair ao Jardim. Chamou o
pont_o .a horas e a desoras, veremos como acaba por carpinteiro que cuidava da manutenção e disse-lhe:
comgir-se. - Faça dois buracos na porta, um para o gato ?T~-
Não é necessário que se faça a correção imediata- de e outro para o pequeno; assim cada um podera sair
mente depois da falta; pode-se esperar um ou mesmo ao jardim quando quiser.
vários dias. Uma correção feita no momento traz o ris- Perplexo, o carpinteiro quis replicar, mas não se
co de nos deixarmos levar pelos nervos ou pela preci- atreveu. Newton animou-o:
pitação, de não pensarmos nas palavras justas e exa- - Tem alguma coisa a dizer-me? Vê algum incon-
~• de ~ o s de ironia ou rispidez, com o que hu- veniente?
milhamos o mteressado, provocamos nele - se não é Timidamente, o carpinteiro respondeu ao insigne
m~ito humilde - um ressentimento dificil de apagar, e sábio: ·
n~s mesmos ~imos num defeito maior que o que de- - Acho que um só buraco grande seria suficiente,
SCJamos comgir. porque por ele poderiam sair o gato grande e o peque-
Não pense~os que a correção seja um dever unica- no.
mente d~s pais em rel~ção aos filhos, dos superiores - Mas é claro! Tem razão. Não tinha reparado. Fa-
em relaçao aos subordinados. Os pais deviam agrade- ça como diz!
cer qualquer observação sobre o seu comportamento Quem recebe bem uma correção não sai diminuído
que lhes façam a esposa ou os filhos, ainda que muitas e quem a faz sai engrandecido: venc~u o custo que su-
vezes sem 3:5 cautelas que acabamos de referir: não põe corrigir alguém que o supera muitas vezes em tan-
podem considerar essas observações como crítica ou tas coisas.
76
<31 ) São Joscmaria Escrivã, Sulco, n. 823.
l 77
'pio porque não havia lugar para eles na
num pre Se '
hospedaria (cfr. Lc 2, 8).
Em Belém, a yirgem Maria depa:ou com pess_o~s
A SANTÍSSIMA VIRGEM compreensivas com as necessidades do prox1-
PERANTE OS DEFEITOS DOS HOMENS poucoUma mulher consciente de que a qualquer mo-
rno ' , · d
· to pode chegar a hora de dar a luz, precisa e um
:~himento afetuoso, não somente por ela, mas s_o-
bretudo pelo filho que vai nascer. ~' no c~so de _Mana,
0 seu sentimento de dor deve ter sido mmto mais agu-
do porque sabi~ que o !ilho das s?a~ entranhas _era .º
Messias prometido, o Filho do Alt1ss1mo, que remana
eternamente na casa de Jacó (Lc 1, 32). Mas como
reagiu?
A Santíssima Virgem não teve nenhum pecado ou Criticou o imperador por aquela ordem que os
mesmo imperfeição; mas teve de relacionar-se com obrigara, a José e a ela, a ir da Galile~a até _à _J~deia;
pessoas que tinham muitas fraquezas. E depois da sua Censurou os conterrâneos pela sua msens1b1hdade.
Assunção aos céus, manteve-se de uma maneira sobre- Adivinhamos Maria sorrindo para José depois de este
natural ao lado dos homens, que também estão cheios receber um não, ajudando-o serenamente a encontrar
de fraquezas e defeitos. um lugar o menos inadequado possível e conforman-
Qual foi a sua atitude? Vale a pena finalizarmos do-se por fim com um estábulo. A sua atitude de:7e ter
estas páginas detendo-nos brevemente no que a nossa confortado José, evitando-lhe qualquer sensaçao de
Mãe do céu nos ensina a este respeito. Oxalá o seu fracasso.
exemplo seja um poderoso estímulo que nos leve a ver Não custa ver aqui como nos devemos comportar
como podemos tirar proveito dos defeitos dos outros. ante a falta de sintonia e a indiferença do próximo
para com as nossas carências e urgências. Não cor~-
preendem? Não estendem a mão? Rejeitam-n?s? Mm~
COM OS HABITANTES DE BELÉM to bem. Qual terá sido o pensamento de Mana e Jose
naquela circunstância? Sem ?úvida o de que Deus
, Relata São Lucas que São José foi de Nazaré a Be- sabe o que faz ou o que permite. .
lem para_ recensear-se na sua cidade de origem, por or- Ver os desígnios de Deus nos defeitos das pess9as
dem do imperador César Augusto. Ia acompanhado da à nossa volta é a primeira atitude que devemos ter. E a
esposa, que eSlava grávida. E aconteceu que estando atitude que nos levará a jamais pe~d~r a paz e a saber
ah, chegou 0 que fazer - se esperar, se comgtr, como procurar
. .a .hora do parto e Mar,·a deu a, 1uz ' o seu fi1-
lh0 pnmogemto saídas, de que modo neutralizar o mal objetivo - e a
e, envolvendo O em f: . .
- aixas, rec 1mou-o
78 79
redobrar de afeto por quem nos atingiu. Os episódios - hemos o que Maria pensou no seu íntimo,
que rodea~ .º Nat~l -: a boa n~va comunicada aos so. Nao soa duvidar de que só teve pensamentos de
pastores, o Jubiloso cantlco dos anJos, a posterior ado- mas com no Altíssimo? Mas podemos 1magmar • ·
o
ração dos. ~agos - demonstr~m que a aceitação da coo fiiança fi .
ue nós teríamos pensado e eito.
vontade d1vma produz frutos inesperados de paz de q o·1 t dos J·uízos desconfiados acerca dos nossos
bem e de evangelização. Da indiferença daqueles bele- ªº e
bons propósitos e intenç~e~,.d a ret1'd•a~ da ~ossa cond.~-
mitas, Deus tirou lições maravilhosas para começar- elidade ao mag1steno da IgreJa, diante da cnt1-
d fid1
mos a entender o que é o reino dos céus. Quantos li- c~ _apara não dizer discnmmaçao
ta · · -
a t' rancor -: Por
vros se terão escrito, quantas meditações se terão feito - pactuarmos com a degenerescencia escondida -
e continuarão a fazer-se em tomo do nascimento do ~!~ancarada - no "politicamente correto", que preç_o
Senhor do universo num local próprio de animais!: estamos dispostos a pagar? Sabemos ~tes de ma~s
humildade, pobreza, simplicidade, abandono confiante nada não "ir na onda", fugind? das ocas1oes,. e dep01s
nas mãos da Providência divina ... desarmar essas pessoas e ambientes de suspe1t~ e ma-
ledicência por uma vida coerente que pouco se importa
COM HERODES
com o que dirão? .
Bem cedo a Virgem expenmentou a dureza da per-
seguição, a mesquinhez do coração h~ano, mas sou-
Eis o texto evangélico: Um anjo do Senhor apare- be descobrir o sabor sobrenatural da 01tava bem~aven-
ceu em sonhos a José e disse-lhe: "Levanta-te, toma o turança que o seu Filho pregaria trinta anos ~~1s tar-
menino e sua mãe e foge para o Egito e fica lá até que de: Bem-aventurados os que sofrem persegu1ç_ao por
eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino amor da justiça, porque deles é o reino dos ceus (Mt
para o matar" (Mt 2, 13-15). 5, 10-11).
A Virgem Maria sofre agora com a arbitrariedade e
os desmandos de Herodes, que não são simples indife-
rença ou desinteresse, mas algo muito pior: a inveja, o COM OS QUE CRUCIFICARAM
ódio contra uma criança inocente e indefesa que nem O SEU FILHO
teve te'!lpo para se manifestar. O tirano quer extirpar
pela raiz a sombra que lhe podia vir a fazer um ho- O Evangelho refere-nos que j~nto da ~na estavam
mem cujo reino não seria deste mundo e que passaria de pê sua mãe, a irmã de sua mae, Mana, mu/~er de
por ele fazendo o _bem (cfr. At 10, 38). C/éofas, e Maria Madalena (Jo 19, 25). Mas n~o nos
Os to_rpes s~nhme~tos de Herodes obrigam a Vir- . mais,
d1z . na- 0 registra nenhuma
_ palavra.. det Maria
d nem
é"
ge?1 e Sao Jose_a fugir a horas intempestivas para um nenhum gesto especial a nao se~ que ~s ava e p .
pai~ desconhecido e_ lon~ínquo, a fim de pôr a salvo Nó odemos pensar que expenmentana os mesmos
a vida daquele Menino tido por indesejável e perigo- sen~i~entos do seu Filho em relação aos verdugos,
80 81
aos• escribas
., e fariseus.
. . Não é possível pensar Outra deu por Mãe. Erros e defeitos dos que convivem
c01sa, Ja que part1c1pou plenamente da obra redent nososco outras vezes simples diferenças de modo de
de Jesus. ora con outras
' · · · · e crue ld ades ... , que
ser, , verdadeirasd mJust1ças
. ?
Podemos_, pois, afirmar q~e sofreu indizivelmente proveito tiramos de tu o isso. .
c~m os sofrimentos do seu Filho, com a cruel ingrati- Há situações que humanamente parecem meme-
dao de u_m povo no meio do qual estavam os que Ele ti- diáveis e por vezes o são, por mais que demos exem-
nh~ ensmado, ~urado, alimentado, com a reação dos plo e tentemos ajudar com as advertências oportunas.
am1g?s que o tmham abandonado, com a injustiça das Pensemos, por exemplo, em casos como o daquele
au~ondades. Por o~tro lado, como duvidar de que, amigo que, pouco. depois de cas~do, percebeu que .a
unmdo-se ao perdao de Jesus, ela mesma perdoou sua mulher era v10lentamente cmmenta: nem podia
aquele tropel de gente que não sabia o que fazia? sair à rua com ela que não tivesse de ouvir-lhe depois
A Virgem Maria compreende, desculpa e perd~a os censuras azedas por não ter desviado os olhos de outra
h_omens com todas as suas fraquezas, ainda que sejam mulher que passava por eles. Pois bem, esse homem,
tão ~des que cheguem a deformar a verdade e 0 cuja vida poderia ter sido um inferno, aceitou esse de-
bem, a Julgar culpado o Inocente, malfeitor o Benfei- feito da esposa e com ele conviveu: os dois morreram
tor, pecador e blasfemo o três vezes Santo. em paz, ambos com perto de oitenta anos, sempre ca-
:'-lém disso, e~ contraste com a deserção dos rinhosos com os filhos e entre si.
Apost~los que, cheios de medo, deixam Jesus só no Maria, Aquela cuja vida foi um eco perfeito do fa-
~alváno, ~aria está junto da cruz, com uma coragem ça-se que pronunciou no momento da Anunciação, dá-
s~ngular: nao se lamenta, não desfalece, não desmaia: -nos a última receita - aliás, o denominador comum -
simplesmente acompanha de pé o Filho até os seus para aproveitarmos os defeitos alheios: a aceitação
derradeiros instantes: amorosa da vontade de Deus, que tudo permite para a
"Admi~ a firmeza de Santa Maria: ao pé da Cruz, nossa santificação, ainda que não compreendamos o
com a maior dor humana - não há dor como a sua porquê.
dor -, cheia de fortaleza.
"- E pede-lhe dessa fortaleza para que saibas tam-
bém estar junto da Cruz"12_ OS DEFEITOS DE DEUS
~s defeitos alheios muitas vezes nos machucam,
depn~em e des~speram. Não sabemos aguentá-los. E Na sua perfeição infinita, ~eus não tem defeitos.
esta e a ~nde hçao que_ aprendemos dAquela que Je- Mas às vezes parece-nos que sim:. que se esquec~ d~
sus, precisamente no meio do seu sofrimento e agonia, nós que nos abandona ao mal alheio, que afinal nao e
a s~prema Bondade e a fonte de todo o bem. Quantos
não há que, em face das fraq~e2:as dos outros que nos
(32) São Josemaria Escrivã, Caminho, n. 508. · am" , ou de males obJ1et1vos, se voltam contra
" mar1·mz
82 83
? Eis que teu pai e eu te procurávamos, cheios de
Deus e o interpelam asperamente: "Por que Ele per-
mite isto?, por que deixou que este meu filho se extra- zes~e:.. (Lc 2 41 e segs.). Mas, ao contrário do que se-
ajliçao
• de esperar,' Jesus mam'fiesta uma .msensiºb'l'd d
11 a e
viasse?, por que consentiu que não me compreendes-
sem, se eu só quero compreender os outros?, por que na dói· Por que me procuráveis? Não sabíeis que
que . . d p ·? A .
permitiu que me caluniassem?" devo ocupar-me das. c~1sa~ e '!'eu ai. " pa~ent~ m-
Essa aceitação de Maria que acabamos de ver dá- sensibilidade, ingrattdao, mdehcadeza:
. , defeitos de
-nos a chave para que nunca duvidemos de Deus. Jesus. Assim pensamos e reagimos nos.
O Senhor não poupou a Virgem das consequências E não foi só. Logo no inicio da vida pública, Jesus
dolor~sas dos defeitos alheios, como não poupou 0 parece-rejeitar a sua Mãe. Nas bodas de Caná, trata-a
seu Filho bem-amado: não enviou uma legião de anjos com uma "indelicadeza" que magoa: Mulher - não ?
para livrá-lo. Simplesmente, não interveio. chama mãe -. que temos tu e eu a ver com isso? A
Não dissera o anjo a Maria que o filho que ela con- mulher que o louva enaltecendo os peitos que o ama-
c~beria seria chamado o Filho do Altíssimo, que reina- mentaram, o Senhor antepõe a bem-aventurança dos
na eternamente na casa de Jacó? que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática. E
No entanto, Deus deixou que esse Filho que ela o mesmo proclama quando Maria, acompanhada dos
concebera nascesse num estábulo, e que pouco depois primos do seu Filho, quer ver Jesus: Tua mãe e teus
ela mesma tivesse de fugir com o Menino e José para irniàos estão lá fora e desejam ver-te. Ele disse-lhes:
escapar à sanha de Herodes. Deixou-a sofrer com as Minha mãe e meus irmãos são estes, que ouvem a pa-
notícias que lhe iam chegando da oposição dos escri- lavra de Deus e a observam (Lc 8, 19-21 ).
bas e fariseus à doutrina límpida, aos milagres porten- Episódios de aparente rejeição do vinculo filial...
tosos que o seu Filho ia semeando nos seus três anos Pode haver maior "defeito"? 33
de vida pública. E não interrompeu essa cadeia de res-
sentimentos e ódio, que foi in crescendo até desem- Não custa ver nestes "defeitos" de Deus, nestes
bocar na crucifixão e morte. Como podia Maria com- "defeitos" de Cristo, a mão providente do Senhor, que
preender que esse reinado sem fim prometido da parte não hesita em consentir os defeitos dos que nos cer-
de Deus acabasse como acabou? cam - nem em Ele mesmo parecer injusto e sem pie-
dade - para nos elevar ao plano da fé, acima das rela-
Mas mesmo o s~u ~ilho pareceu ter manifestado
Pª!'l com . ela 'lll1:1ª nsp1~ez e uma dureza incompatí-
veis com uma autude fihal de subm1·ssa~0 . No ep1so · , d'10 (33) Na aparente rudeza com que Jesus t?1ta a sua Mã~~ en_co!'tra-
em qu~, aos doz~ anos, por ocasião da festa da Páscoa mos O elogio cabal de Maria que, com a sua fe e a sua obed,_encta msu-
o Memno se deixou ficar no Templo sem . ' pcrávcis à vontade divina, "acolheu as palavras com que o Ftlho, pondo
· Mana
pais, · .sofire. eomove a pergunta prevemr
f: J os 0 reino ucima de todas as. relações de parentesco, proclamou ~i_n-ave~-
, 1o três •d'ias depois· Meu jilh
que az a esus turados todos os que ouve~! a palavra de ~us e a põem em prattca, coi-
ao encontra- A
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