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favores que dEle recebeu, e sente a necessidade de pe-

que se reconhece com defeitos-, perde toda a ~onta,de


dir-lhe perdão pelas suas inúmeras ingratidões e peca-
de julgar os outros. Jamais se compara com nmguem
dos. E a sua atitude para com o próximo é análoga: para se sentir superior, como na parábola do fariseu e
experimenta a necessidade de ser agradecido aos que
do publicano: 1
'
lhe fizeram algum bem, e de pedir perdão a quem ele
tenha ofendido ou tratado mal. Subiram dois homens ao templo para orar;
O primeiro efeito positivo que as falhas alheias po- um era fariseu e o outro publicano. O fariseu,
dem proporcionar-nos é levar-nos a examinar se nós em pé, orava no seu interior 1esta forma: "Gra-
próprios não incorremos nessas mesmas deficiências ças te dou, ó Deus, porque nao sou c:omo os de-
que tanto nos incomodam nos outros. Vejamos: mais homens: ladrões, injustos e adulteras; nem
como o publicano que está aí" {..]. O publicano,
* não é por eu ser invejoso que descubro inveja nos porém, mantendo-se à distâ~cia, não o~tsava s~-
outros? quer levantar o,s olhos ao cei~, mas batia ~o pei-
* não é por eu ser tacanho e egoísta que não suporto to, dizendo: "O Deus, tem piedade de mzm, que
as aparentes mesquinharias dos outros? sou pecador". Digo-vos: este voltou para casa
* não será que tenho a sensibilidade à flor da pele justificado, e não o outro (Lc 18, 9-14).
quando acuso os outros de falta de delicadeza?
* não me envergonha acusar os outros de mal-pensa- Por isso o humilde dá como dirigidas a si estas
dos, críticos, intransigentes, quando esse juízo tal- considerações do livro Caminho:
vez seja prova de que eu mesmo sou tudo isso?
* se vejo prepotência nos outros, não será porque me "Se és tão miserável, como estranhas que os
tiram espaço para eu mesmo me afirmar e domi- outros tenham misérias?" 15
nar?
"É mais fácil dizer que fazer. Tu ... que tens
essa língua cortante - de navalha -, experimen-
Os nossos olhos veem os dos outros, mas não se taste alguma vez, ao menos por acaso, fazer
veem a si mesmos. Com os defeitos acontece algo de «bem» o que, segundo a tua «autorizada» opi-
parecido: vemos a palha no olho do nosso irmão e não nião, os outros fazem menos bem?" 16
vemos a tr~ve no nosso (cfr. Mt 7, 3).
Os defeitos dos outros hão de~ er um forte estímu- E um terceiro ponto. A pessoa humilde está nas
lo para nos_ conhecermos como soQ_1os e começarmos condições ideais para ajudar os outros a vencer os seus
p~r varrer .ª noss_a ~orta. Assim cresceremos em hu-
~ildade, virtude mdispensável para a convivência pa-
cifica e para o progresso espiritual. (15) Silo Josemaria Escrivã, Caminho, n. 446.
Em segundo lugar, o humilde _ precisamente, por- ( 16) São Josemnria Escrivá, Caminho, n. 448.

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defeitos pelo exercício da correção fraterna: porque 0
seu desejo de ajudar por esse meio - uma prática que
remonta aos primeiros tempos do cristianismo - virá à O CUIDADO DOS PORMENORES
tona na cordialidade e no afeto com que adverte, sem-
pre consciente de que ela mesma pode cair no defeito
que se propõe corrigir no outro.
Disto falaremos mais adiante, mas desde já pode-
mos dizer que só uma pessoa humilde sabe como
exercer essa prova de fina caridade, porque ela mesma
procura, aceita e agradece que a ajudem a superar os
seus muitos defeitos. E assim como ela mesma deseja
ser advertida com delicadeza, sabe usar dessa mesma Ordinariamente, os defeitos dos nossos semelhan-
delicadeza quando é ela que cumpre esse dever para tes não são coisas grandes, capazes de causar um ho-
com os outros. micídio, de desfazer uma comunidade, uma empres_a
Para ~_humilde, os defeitos alheios não são, pois, ou uma família. Normalmente, manifestam-se em coi-
uma ocas1ao de enaltecer-se ou de desprezar - "eu não sas muito pequenas que, por si mesmas e a curto pra-
sou como os outros" -, mas diríamos de humilhar-se zo, não terão consequências trágicas.
p~nsa~do que, se. Deus o abandonasse, seria pior qu~ No entanto, como incomoda conviver com uma
nmguem. E com 1ss~ cresce numa virtude que lhe ga- pessoa que habitualmente descuida os pormenores! E
rante um lugar no ceu. Pode-se querer mais? como essas falhas pequenas podem azedar o relacio-
namento ou frustrar planos de importância!
Não se trata de pensar na nave espacial que se de-
sintegrou devido a uma falha tão pequena que nem os
olhos dos técnicos nem os aparelhos mais sofisticados
foram capazes de detectá-la, e que custou vidas huma-
nas. Trata-se de coisas tão corriqueiras como uma pa-
lavra a mais ou a menos numa conversa intranscen-
dente, de uma explosão de nervos a propósito de nada,
de uma extrema suscetibilidade quando se tocam cer-
tos assuntos, de desordem nos objetos pessoais, de
atrasos de cinco minutos nos compromissos... Nada
disso são deficiências próprias para desencadear, em
situações normais, um drama familiar e muito menos
uma tragédia nacional. Mas mortificam os que convi-
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vem conosco ou lhes tomam a vida menos grata. Que saem aos pais, devemos imitá-lo ou ao menos esfor-
partido podemos tirar dessa espécie de defeitos? çar-nos por imitá-lo. _
Em primeiro lugar, não aborrecer-nos, não ficar de Nos nossos dias, espalhou-se o que se poderia <le-
cara amarrada nem criticar, sequer interiormente, os sionar por lei do "assim já dá". Provas dela temo-las
que caem nessas fraquezas. As pequenas fraquezas todos os dias: um serviço de limpeza que não varre os
dos outros, que tantas vezes envenenam ou tiram o cantos ou todos os móveis, a revisão de um carro que
bom humor no convívio familiar ou profissional, de- pouco depois volta a enguiçar, o conserto de um ele-
vem ser sinais vermelhos que nos alertam para a ne- trodoméstico que resolve em parte ou por pouco tem-
cessidade de crescermos em magnanimidade, uma vir- po, um relatório encomendado pelo diretor da empresa
~de que nos faz muita falta em tantos outros campos. que não reúne todos os dados nem toca t?d~s _os pon-
E um bom exercício aproveitarmos essas picuinhas tos, a informação incompleta de um func10nano sobre
alheias para cultivar um espírito generoso que não dá os documentos necessários e que nos obriga a voltar
importância ao que objetivamente não a tem e que outro dia; e as esperas: pelo ônibus que não chega;
tantas vezes é mero produto de um modo de ser que pelo médico que marca hora de consulta e já se sabe
não é o nosso, ou de um descuido ou de um espírito que só seremos atendidos depois de folhearmos nervo-
desatento, de uma pressa ou precipitação, mas de ma- samente, na sala de espera, todas as revistas de há
neira nenhuma é mal-intencionada. As pequenas fa- mais de seis meses; pela única moça do caixa que,
lhas alheias incomodam-nos na medida em que vemos ainda por cima, se levanta e desaparece, e a fila vai
nelas uma intenção de incomodar-nos ou desrespei- engrossando; pela companhia do seguro de saúde, do
tar-nos, o que geralmente é uma injustiça. carro, dos serviços telefônicos, que manda ligar de nú-
Depois, devemos procurar nós mesmos esmerar- mero em número até que por fim ... é preciso recome-
-nos em viver pessoalmente esse cuidado em tudo o çar a tentativa, etc., etc.
que fazemos. Vale a pena, a este propósito, deter-nos Parece que a vida moderna, tão evoluída sob tan-
a pensar nas nossas obras de cada dia. tos aspectos, tão veloz em tantos outros - on-line, diz-
Se a alguma delas falta um detalhe é uma obra im- -se -, adoece de indelicadeza e da falta de humanida-
perfeit_a. Uma coisa perfeita é, por definição, aquela a de: de algum modo, desumanizou-se. E isso alastra-se
que nao falta nada, que está totalmente acabada. As e "contagia": contagia o empregado a quem o chefe
obras ª:abadas c~usam-nos uma grande satisfação; as não dá nem "bom dia", o aluno que vê o professor
que estao mal feitas ou por terminar causam-nos de- descuidado em preparar as suas lições, os filhos que
sassossego e mal-estar. não veem o pai fazer-lhes uma pergunta pessoal ou a
Mas a razão mais importante para não cairmos nós mãe que é a desordem personificada e se irrita com a
noDmau acabamento é que desse modo desagra damos moleza e a bagunça dos seus pequenos ...
• Jesus não cumpriu a sua missão dizendo "assim já
a eus, que e a suma perfeição· as suas ob
fi · ( f · ras sao per- dá": ensinei, fiz milagres, dei a conhecer Deus-Pai,
e1tas c r. Deut 32 ' 4) , e nós , como bons filh
1 os que
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que mais podia fazer? Pelo contrário, amou-nos até 0 do que é normal, o amor que tendes por Jesus
fim e deu o arremate à sua obra oferec~n~o-nos o ho- Cristo" 17 -
locausto da cruz, a sua morte e ressurre1çao, em teste-
munho da Verdade. Os espíritos rudes e raquí~icos n~o vêem os ~eta-
E insistiu-nos, Ele que era Deus, o Senhor do uni- lhes· os preguiçosos e comodistas nao querem ve-los.
verso: Quem é fiel no pouco também é fiel no muito Ma; os que procuram a maturidade e a perfeição pres-
(Lc 16, 10). E na parábola ~os talentos (Mt 25, 14-30) tam-lhes a máxima atenção e esforçam-se com garra
felicitou os servos que se tmham esforçado por fazer por não os deixar passar por alto em cada uma das
render o pouco que lhes entregara e indignou-se com suas obras. Compreendem que "as almas grandes têm
aquele que, por preguiça, o havia enterrado. muito em conta as coisas
'
pequenas "18 .
Há muitos homens que pensam que não vale a
pena deter-se em detalhes. Eles foram feitos para coi- "Xavier, de oito anos, estava preocupado. A
sas ..grandes"! Reproduzem à sua maneira a aventura sua mãe, mulher habitualmente alegre e otimista,
de Tartarin de Tarascon, o Quixote francês do roman- estava de cama passando os últimos dias de uma
ce de Alfonse Daudet, que se obcecou pela ideia de gravidez complicada. A preocupação do men.ino
caçar leões e, corno não os encontrava na sua terra era ver a mãe abatida. Queria fazer alguma coisa,
nem queria sair dela, se entregou à fantasia de caçá- mas o quê?
-los pelos corredores da sua casa. "Lembrou-se então de que seu pai oferecia de
vez em quando à mãe uma flor, e que isso a ale-
"Pensando naqueles que, com o passar dos grava. Foi ao seu quarto, esvaziou o mealheiro
anos, ainda andam sonhando - com sonhos vãos das suas economias e, com as poucas moedas na
e pueris, como Tartarin de Tarascon - em caçar mão, foi ao florista da esquina e pediu-lhe uma
leões pelos corredores da casa, onde porventura rosa. O dono, que conhecia o menino e a sua fa-
não há senão ratos e pouco mais; pensando neles, mília, mostrou-lhe uma rosa bonita, mas sem
insisto, recordo-vos a grandeza do caminhar à nada de especial. O rapazinho não se deu por sa-
maneira divina no cumprimento fiel das obriga- tisfeito e, apontando com o dedo um ramo de ro-
ções habituais da jornada, com essas lutas que sas escolhidas, disse:
cumulam de alegria o Senhor e que só Ele e cada "- Quero uma daquelas. É para minha mãe,
um de nós conhecemos. que está de cama.
"Con_vencei-vos de que, geralmente, não en-
contrareis espaço para façanhas deslumbrantes
porque, entre outras coisas, não costumam apre- ( 17) São Josemaria Escrivã, Amigos de Deus, 2ª ed., Quadrante,
s~~tar-se. Em contrapartida, não vos faltam oca- São Paulo, 2000, n. 8.
s1oes de demonstrar através do que é pequeno, (18) São Josemaria Escrivã, Cami11ho, n. 817.

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"- Essas rosas são muito caras. Tem dinheiro grandes. Um professor de uma zona rural ensinava aos
suficiente? seus alunos a importância dos pormenores com este
·•- É claro. Se não o tivesse, não teria vindo versos:
comprá-la.
"O florista tirou u!na das rosas do ramo, en- Pouquinho a pouquinho,
volveu-a em papel brilhante e deu-a ao menino. a velha tece a lã.
Com cara de satisfàção, Xavier entregou as moe- Gota a gota sem parar,
dinhas - não somavam dois reais - e foi-se, le- um tonel pode transbordar.
vando a rosa de vinte e cinco reais. Um cliente Palhinha a palhinha, o passarinho
que presenciou o diálogo, comovido, ofereceu-se faz o seu ninho.
para pagar a rosa: Letra a letra, por fim o menininho
"- Deixe-me pagá-la. Gostaria de conhecer a consegue aprender a ler.
mãe desse menino que é capaz de inspirar-lhe Trabalhando com carinho,
sentimentos tão nobres. quanto chegarás a saber!
"- De maneira nenhuma - respondeu-lhe o
florista-. Nunca vendi uma rosa com tanto gosto. Se vivermos com atenção e esmero os mil detalhes
"Quando o pai do menino regressou a casa e de que se compõe a vida ordinária, sem ficar à espreita
viu a rosa no quarto da esposa, foi imediatamente de que os outros o façam, sem os julgar se os es-
à loja para pagá-la, mas o florista recusou-se a quecem - levantar-se para ceder o lugar no ônibus, cui-
cobrar nada mais: dava-se por bem pago com as dar da ordem na sala de estar, ser pontual nos encon-
moedinhas" 19 • tros marcados, etc., etc. -, só com isso saberemos con-
tribuir para que os outros saiam do seu desmazelo.
Como resumo, poderíamos afirmar que as almas
"pequenas" só veem as coisas grandes, ao passo que
as "~ndes" têm_ul"I! â~gulo de visão tão aberto que
apre~1ai:n a magm~ce~c~a do que é gigantesco e a im-
portanc1a do que e mmusculo. Em uma coisa e outra,
encontram a pegada de Deus, que é tão grande que
cabe no pequeno .
. Viver e, com o exemplo, ensinar a viver o amor às
coisas pequenas, que são a porta que se abre para as

(19) Hojas culrura/es, n. 1602, pág. 4.

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vos e O deixam pelo menos de mau-humor . e irritadi-
? Se aquele meu amigo, homem virtuoso, escor-
SERENIDADE ;~gou numa casca de banana tã? corriquei~a, e além
disso pouco depois de ter atendido_ confissoes e per-
doado em nome e na pessoa de Cnsto, e de ter ceie-
brado a missa, que nao~ se passara' conosco ?.
Realmente, os defeitos alheios podem ser o detona-
dor de um momentâneo ou permanente estado de
guerra. Assim o vemos na vida das famílias e nos cí~-
culos de convivência: esposos que se tratam aos gn-
tos, filhos e pais que provocam ~ituações tens~s; vizi-
nhos do andar de cima ou de baixo que azucrmam os
Por ocasião da festa de Todos os Santos, fui ajudar nossos ouvidos; condiscípulos que sentem prazer ~m
outro sacerdote, meu amigo, que tem a seu cargo vá- ferir-se mutuamente com piadas que exasperam; dis-
rias paróquias. O seu inflamado zelo pastoral levou-o cussões nos bares, nos campos de esporte, em reu-
a programar um dia muito intenso de atos religiosos. niões de "trabalho", no Congresso Nacional ou no Su-
Recebeu-me com cara sorridente, como querendo di- premo Tribunal de Justiça; brigas ideológicas em polí-
zer-me: " Hoje, os dois juntos, vamos dar uma grande tica, nas empresas familiares; rivalidades agressivas
alegria ao Senhor". Depois de passarmos um bom no meio universitário, entre os docentes de história, de
tempo atendendo confissões e de termos celebrado a educação, de economia, nos clubes, nas associações de
missa, dirigimo-nos à casa paroquial para tomar o des- classe ...
jejum e combinar os atos do dia. Vive-se em estado bélico, de alfinetadas, de difa-
No entanto, mal abriu a porta, o rosto do meu ami- mações, de calúnias, que não só machucam os prota-
go alterou-se e saíram-lhe da boca umas palavras du- gonistas, mas envenenam o ambiente e a sociedade.
ras e. exal~adas. Eram contra uns rapazes que, no dia Se a pessoa é virtuosa, domina-se e consegue que as
antenor, ti~ham deixado a casa em completa desor- consequências não sejam demasiado desagradáveis; se
dem._E mais ~e acalorou quando viu que o padeiro não a sua virtude não é sólida, tem-se a impressão de que
lhe tmha traz1d? o pão. Procurei acalmá-lo e ele esfor- pode acontecer qualquer coisa.
çou-se por somr, embora me parecesse que fazia mais Você e eu temos de aproveitar os defeitos alheios
para compraz~r-me do que por vontade. Depois do al- para aumentar o nosso amor pela paz, para ser pacifi-
moço , despedi-me
. . , mas fiq ue1· com a 1mpressao
· ~ de que cadores, portadores de paz no nosso meio.
aqueles pnme1ros arrebatamentos não t· h Cristo é a nossa paz (Efes 2, 14) e veio trazê-la
gado de todo. · se m am apa- aos homens de boa vontade (cfr. Lc 2, 14). Não a paz
A quem as falhas dos outros na~o desa tam os ner- como a do mundo, que muitas vezes não é senão um
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equilíbrio de forças antagônicas, mas uma paz que . s temos para alcançar o autodomínio que
Que meio . b d d ? ve·a
resulta da unidade com Deus e com os demais ho- 1 d potências intenores em or ena as . J-
mens, e que, como consequência, se manifesta em se- resu ta asd1·z Georges Chevrot no seu livro As peque-
mos o que
renidade. nas virtudes do lar:
Diz Santo Agostinho que a paz é a tranquilidade da
ordem. Para tê-la e comunicá-la, é preciso que o nosso "A não ser que os destemperas e arr~?at~-
interior esteja em ordem, isto é, que as nossas ideias e mentos sejam ocasionados por uma defic1encrn
os nossos sentimentos obedeçam a uma hierarquia que fi1s1•ca, são indício de fraqueza, de vontade. A for-
. M t d
ponha em primeiro lugar o mais importante e valioso ça manifesta-se no, auto~omm10. _as o au o ~-
em segundo o que vem em segundo lugar, e assim su~ mínio não é inato; e preciso aprende-lo. a~qu1-
cessivamente. Essa ordem leva a pôr: re-se de duas maneiras: através das conv1cçoes e
através do exercício. . _
* Deus acima de tudo; "Em primeiro lugar, a conv1cçao. Uma -:ez
* depois, a nossa alma; que as nossas impaciências [as nossas e~plosoes,
* a seguir, o nosso próximo; diríamos neste caso] costum_am antec1pa~-se a
* depois, o nosso corpo; qualquer reflexão, importa_ cnarmos, ~m nos um
* por fim, as coisas ou seres irracionais. estado de espírito que facihte o dom1mo sobre os
nossos primeiros impulsos. .
_ Quando uma pessoa não respeita esta hierarquia, "A uma pessoa de fé, _eu aconselh_ar1a um
mstala-se a desordem dentro dela e daí nasce e ali- meio muito eficaz, que consiste em atuahzar com
menta-se no seu interior um estado de mal-estar e frequência o sentido da prese1_1ça ~e Deus e ~le
intranquilidade que muitas vezes é a causa dos confli- dirigir-se por um movimento mt~nor. Este hab1~0
tos que provoca ou que não sabe conter. Indo ao es- é excelente em si, pois, por mais breve que_ seJa
sencial, pode-se dizer que um homem que viva em es- uma elevação do espírito a Deus, const1tu1 um
tado de pecado, portanto de inimizade com Deus in- ato de adoração; por outro lado, situa-nos num
clinar-se-á a tratar os outros também como inimig~s - clima de serenidade, que amortece o c~oque
subjugando-os ou maltratando-os -, a ser duro com inesperado das contrariedades. [... ] Considera-
eles, a usar de uma violência que depois o deixará as- mos todos os acontecimentos como «mestres que
sustado a ele próprio. O mesmo se pode dizer dos ou- Deus nos envia», segundo o conselho de Pascal
tros degraus dessa escala de valores. Quem sacrifica [... ]. . ..
os bens da alma aos do corpo - à intemperança em "Temos assim criado o nosso chma espmtual.
qualquer campo - acaba por perder o autocontrole Trata-se agora de adotar dois exercícios de uso
com extrema facilidade, e com isso não será semea- quotidiano [... ]: calar-se e esperar. .
dor de paz, mas de discórdia. "Para aprendermos a calar quando nao e hora
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de falar, precisamos esforçar-nos sempre por não Tenhamos sempre diante dos olhos a "vingança"
falar antes de tempo. Deixemos os outros expri- de Cristo contra os que o odiaram e levaram à morte:
mirem os seus pensamentos [no nosso caso, os abriu-lhes serenamente os dois braços no madeiro, en-
motivos das suas exaltações] sem interrompê-los: quanto pedia a Deus: Pai, perdoa-lhes porque não sa-
depois, pensemos durante alguns segundos antes bem o que fazem (Lc 23, 34).
de responder-lhes. Este hábito, uma vez adqui-
rido, evitar-nos-á muitas respostas precipitadas.
Já que são necessários dois para brigar, a sabedo-
ria está em não sermos o segundo [... ]. Um agri-
cultor não semeia o trigo em dia de tempestade.
Falaremos esta noite, quando a calma tiver volta-
do. Deixemos para amanhã o que seria mal feito
hoje.
"E saber esperar. Este é outro exercício sau-
dável. Não é verdade, minha senhora, que se ti-
ver o marido ao seu lado, cheio de pressa para
que lhe pregue um botão, não será capaz nem de
enfiar a linha na agulha? E acabarão por impa-
cientar-se os dois" 2º.

A um homem com os sentimentos em ordem


ser-lhe-á fácil semear: '

: contra o clima de briga, o espírito de concórdia;


contra a exaltação, a palavra serena·
* contra O h"1stensmo,
· '
a calma e a ponderação·
: contra os que gritam, o silêncio; '
• contra os a~edo~ e amargurados, o sorriso;
* contra os vmgativos, a generosidade·
contra os rancorosos • a amabilidade ,e a s1mpat1a.
. .

iJ-1~~nas virtudes do lar, 4ª ed., Qua-


(20) Georges Chevrot, As e
drante, São Paulo, 1999, págs.
.

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de si mesmo, quem não se priva de nada e se obceca
MORTIFICAÇÃO em satisfazer o que lhe pedem o egoísmo, a carne, o
orgulho, a comodidade do supérfluo, contrariando os
mandamentos de Deus, não é de admirar que sofra
com os defeitos alheios: ao fim e ao cabo, são resis-
tências ao seu desenfreio de homem animal: O homem
animal não percebe as coisas que são do espírito de
Deus; são para ele loucura e não as pode entender ( l
Cor 2, 14) .
. Tudo o qu~ acaban:ios de ver, c?mo meio de apro- Tenho falado com frequência da necessidade do
veitar os defeitos alheios para praticarmos as virtudes domínio próprio a pessoas que de nada se privam,
a eles opostas, assenta numa peça fundamental que se imersas como estão num hedonismo asfixiante, e vi
pre~de com o _c?njunto do nosso processo de amadu- que reagiam com um sorriso trocista. São os mesmos
recimento espmtual. Essa peça chama-se espírito de que, por motivos puramente humanos e às vezes desu-
mortificação 21 • manos, se submetem a uma disciplina exigente à custa
Por que as fraquezas alheias nos machucam ou ma- de duros sacrificios. Muitos homens e mulheres fazem
goam tant?? Em grande medida, porque nos apanham por nada o que, feito com espírito de domínio desse
d~sprevemdo~. Estamos tão habituados a procurar o "homem animal" - para dar espaço aos valores does-
pírito e de obséquio a Deus-, lhes daria uma fortaleza
f~c1l, o a~davel aos sentidos, a posse e fruição hedo-
capaz de tomá-los imunes à dor que causam as fraque-
~1sta, o exito no que fazemos, que criamos uma pele
mcapaz de suportar a simples picada de um mosquito. zas alheias.
Esse autodomínio de que acabamos de falar desaba
::te a !11enor _contrarie~ade provocada pelos outros. E "Um hippie - ou os seus sucedâneos ou imita-
_do sao queixas, reaçoes destemperadas espírito de dores - não corta o cabelo. Os antigos nazarenos
vmgança
. ' impaciencias
·• · e mau-humor. Numa ' palavra deixavam o cabelo longo como sinal de pertença
sofrimento. ' a Deus, mas os hippies fazem-no por simples es-
Cll!11nhpr~~-se rigo!osa~ente as palavras de Santo pírito contestatário ou como compromisso com a
Agost1 o. Quem nao da a D moda. Hoje muitos jovens vão com roupas sujas,
o que deve dá-lh .eus O que deve, fazendo como um nobre medieval arrependido que, em
' e essas coisas sofrendo o que de-
reparação a Deus pelos seus muitos anos de pom-

(21) A este propósito, cfr. Luis F .


Quadrante, São Paulo, 2009. º
ema nd Cintra, A mortificação, (22) Santo Agostinho, De libero arbitrio, 3, 44.

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pas mundana~, se vesti~ com farrapos de mendi- ria para mortificarmos as nossas reações pura_mente
gos; mas hoJe faz-se isso mesmo por simples temperamentais diante de~sas fraquezas! J\:ias s? tere-
desmazelo e em nome da liberdade. Passar fome mos forças para nos dominarmos nessas s1tuaçoes se,
para domar o corpo e submeter os instintos é coi- à margem delas, nos precavermos acostumando-nos .ª
sa inconcebível para o homem contemporâneo· contrariar de vez em quando os nossos gostos, culti-
mas se o faz uma mulher para conservar a linha' var hábitos de austeridade n_o~ gast~s, de sobne~a~e
merece geral aprovação. Arrancou aplausos d~ no comer e no beber, de domm10 da lmgua, da cunos1-
admiração o jovem estudante de Praga que se dade, de amor ao aproveitamento do tempo ... Um ho-
suicidou ateando fogo à sua roupa para protestar mem assim está "blindado" contra todas .ª~ flechas
contra a invasão russa; mas não se entende que que lhe disparem os outros com as ~uas deb1hdade~. E
um homem faça penitência para combater a tira- sobretudo cresce na imitação de Cnsto, que prefenu o
nia das suas paixões" 23 • caminho árduo da cruz carregada pessoalmente para
libertar os homens da escravidão das suas fraquezas.
Não é que tenhamos de fazer sacrificios semelhan- O Senhor podia ter salvo o mundo por um SiJ?1ples
te~ aos dessas pessoas para suportar com garbo os de- ato da sua vontade. Seria igualmente eficaz se disses-
feitos _d?s outros. Mas são muitas as fraquezas do nos- se: "Quero que o mundo seja salvo neste instante", tal
so prox,mo que nos oferecem ocasiões constantes de como fez quando tirou o seu amigo Lázaro do sepul-
dominar-nos e "fazer do limão uma limonada" trans- cro, dizendo em alta voz: Lázaro, vem para fora! (Jo
formando o sinal negativo em positivo. ' 11, 43). Mas preferiu uma vida sacrificada: trinta anos
de trabalho sem brilho - antes de ir porque quis ao en-
Imagine que o seu marido é tacanho irascível de-
contro de uma morte sangrenta e humilhante -, três
sord7nado, indeciso, autosuficiente, chei~ de pequ~nas
manias ... anos de paciência para formar os Apóstolos.
Temos uma ideia do que lhe deve ter custado
. Ou que a sua esposa é queixumenta, gastadora, aguentar a inépcia, a mente estreita, os sentimentos
cmmenta, frívola ...
terra-a-terra daqueles Doze? Conviviam com Ele, ex-
Ou que ª sua nora é absorvente, displicente, sem- plicava-lhes as coisas, decifrava-lhes o sentido das pa-
pre do contra, desagradecida ...
rábolas, com um "autodomínio", digamo-lo assim, que
Ofiu que n~ sua_ empresa imperam o egoísmo a des- evitava as impaciências, as censuras destemperadas, as
con
lh 1ança: .a mve•a. J ' a dºistn·butçao
. . , . do• traba-
arb1trana recriminações ácidas, os gestos de desagrado e de de-
o, as cnt1cas as suas costas ...
cepção ... E eles não o entendiam ou entendiam-no ao
Quantas oportunidades não nos oferece a vida diá- contrário. E Cristo jamais se exasperou.
Por aí foi Ele e por aí temos nó,s que ir. Como ad-
(23) Fedcrico Suárez, Lapa• d . . verte sabiamente Santa Teresa de Avila: "Não queira-
83-84. · os e1o, Rialp, Madrid, 1973, págs. mos ir por caminho não andado, porque nos perdere-
62 63
mos" 24 • Esse andar por onde Cristo andou, em su de? (Jó 2, 1O). Deveríamos poder repetir as ~ala-
companhia, pode ser resumido em alguns aspectos: ª vras de São Paulo: Trazemos sempre em nos a
mortificação de Jesus, a fim de que a vida de Je-
l) progredir em atos de autodomínio mediante os pe- sus se manifeste na nossa carne mortal (cfr. 2 Cor
quenos exercícios. Os atletas, por exemplo não 4, 8-10).
param de tre_i~ar e, ao cabo de pouco tempo, ~lcan- 3) saber encontrar nesses pequenos mas constantes
çam uma ag1hdade que os faz ir superando as mar- atos de renúncia, ao comodismo e à satisfação dos
cas anteriores. A experiência demonstra que, quan- sentidos, um motivo de amor. Não são algo negati-
to mais concessões façamos ao nosso corpo e aos vo antes meio necessário para assegurarmos a per-
seus impulsos, mais exigentes se tornam. E vice- feita convivência com os homens, mas em primei-
-versa, quanto mais os dominemos, maior a leveza ro lugar a intimidade com Deus, que é a verdadei-
de espírito e a generosidade do coração para aco- ra raiz e fonte dessa convivência harmoniosa. "A
lher os outros com alma grande; alma sacrificada é um holocausto, uma hóstia; e
2) exercer autodomínio sobretudo no trato com os assim não somente o seu holocausto se une ao de
outros. E necessário saber dominar os estados de Cristo, mas funde-se com o dEle e é para Deus,
ânimo que nos fazem ser diferentes . consoante com Cristo, um único holocausto gloriosíssimo" 25 •
acordamos bem ou mal dispostos, conforme temos Do holocausto de Cristo, que não se explica senão
~as ou má~ notícias, o dia se apresenta bonito ou pelo amor com que Ele nos amou, a pessoa que
feio, tranquilo ou cansativo. A isso se chama equa- ama o sacrifício extrai o amor e a ternura que de-
nimidade. pois vaza na sua relação com os homens .
. Eis o elogio que uma testemunha fez de São
Vicente de Paulo, um santo sumamente atarefado
em º?ras de zelo: "Monsieur Vincent é sempre
m~nSieur Vincent", sempre o mesmo: risonho e
afavel, manso e confiante. São Francisco de Sales
fala-nos dos arrulhos da pom ba que tem • sempre a
mesma toada, tanto nos bons c~mo nos maus mo-

~e:s
men~s; e_~e Jó, que bendisse a Deus na bonança e
~enra~1 adde: Aceitamos a felicidade da mão de
, o evemos ace,·tar tam bem
. a infelicida-

(24) Santa Teresa de Jesus O st I . (25) Marie-Vincent Bemardot, De la Eucaristia a la Trinidad, Pa-
4, 12. ' ca e O interior, Sétimas moradas,
labra, Madrid, 1983, págs. 76-79.
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seus defeitos. A bondade substancial das pessoas não
fica comprometida pelas suas_ fraquezas.
AMOR,ORAÇÃO,EXEMPLO ' Impressiona ver como Cnsto retrata o desvelo do
bom pastor - Ele mesmo - na parábola da ovelha tres-
CORREÇAO FRATERNA malhada: quando a encontra, carrega-a aos ombros,
cheio de júbilo (Lc 15, 5), um júbilo que nunca tinha
experimentado até esse ponto com as outras, e devol-
ve-a carinhosamente ao aconchego e segurança do re-
dil. E o mesmo júbilo se vê na parábola do filho pró-
digo: uma alegria que leva o pai a ter com esse filho
pormenores que antes não tivera, e a fazer uma festa
pelo seu feliz regresso (Lc 15, 1-24). Por quê? Porque
havia no pastor e no pai um amor que se manifestou e
diríamos que cresceu diante das fraquezas .
Vemos isso a cada passo, quando a TV nos relata o
•A_ noss~ atitude ~m- face das debilidades do nosso amor de uma mãe pelo filho drogado, que gasta o que
prox1mo nao deve hm1tar-se à prática de umas virtu- tem e o que não tem para livrá-lo da dependência, ou
des que redundem apenas no nosso proveito, mas há pelo filho a quem visita sem falta na prisão, seja qual
te levar-nos~ procurar o bem dos que padecem dessas for o crime que ele tenha cometido. Por maiores que
~quezas. Nao podemos ficar indiferentes ante os de- sejam os desvios de conduta dessa pessoa, a mãe não
tiellos
• que .pe ssoas proximas
· · de nós, possivelmente
nd deixa de ser mãe: é ainda mais mãe.
mmto que ªs ou de relevo na vida pública arrastam E o mesmo vemos no tocante episódio dos filhos
tempos e tempos , pondo em nsco . '
a sua relação com
0 eus e o valor e eficácia da sua existência. de Noé: Noé, que era agricultor, plantou uma vinha.
- Como posso a· d' l ? , Tendo bebido vinho, embriagou-se e ficou nu na sua
veríamos f: ~u a- as·, e a pergunta que nos de- tenda. Então os filhos, Sem e Jafet, tomando uma
azer.
De diversos modo s, que podemos ver brevemente. capa, [... ] foram cobrir a nudez de seu pai, andando
de costas; e não viram a nudez do pai, pois tinham os
seus rostos voltados (Gên 9, 20-23).
Não esqueçamos que tendemos a pensar que nós
AMAR OS OUTROS COM
OS SEUS DEFEITOS somos o modelo e que os outros têm que ser como
nós. E assim erramos. Cada qual é único, tem o direito
de ser único, com os seus defeitos, mas com um fundo
Não devemos amar os d . de bondade que esses defeitos não anulam, ainda que
amar os outros com os seus defeitos
efe"t dos outros , mas
1 os, nao apesar dos às vezes o sufoquem. O único modelo é Cristo.
66
67
Como os filhos bons de Noé, devemos não ve m inauditos presságios de traição, de
a mo rte , Co • n
defeitos alheios: cobri-los com uma desculpa 0 / os
abando no , de imolaçao; a flconversa
. , apaga-se, e -
sorriso, evitar sublinhá-los ironicamente em públi~rn quanto a palavra de Jesus u1 contm_ua,_ nova, ex-
impedindo que o interessado se sinta humilhado 0 °' tre mamente
doce tensa em confidencias supre-
, "d "26
que c~i~ no ridic~lo_. E ale~-nos com as qualidade~ mas que adejam assim entre a v1 a e a morte .
e os_ ex1tos do prox1mo, c01sa_ custa mais do que
entnstecer-nos com as suas m1senas. E foi nesse clima que O Senhor nos ·deu o Manda-
. Jesus dá-nos exemplo de carinho e ternura espe- mento novo: Um mandamento novo vos d~u, qu~ vos
c_1almente nos momentos duros da despedida durante a ameis uns aos outros; como eu vos am_e,, amai-vos
Ultima Ceia. Pouco antes, como também naquelas também uns aos outros. Nisto conhecerao todos que
mesmas horas, os Apóstolos dão mostras de pouca sin- sois meus discípulos (Jo 13, 34-35). .
tonia com os sentimentos do Mestre, que os evangelis- Há uma consideração que nos pod~, aJ~d'.11" a esse
tas não escondem: a rivalidade entre eles, na ânsia de "amar os outros como Cristo !1ºs amou . D121amos no
saber quem seria o maior; o protesto de Pedro quando começo que muitos dos defeitos das pessoas ganham
o Senhor se ajoelha diante dele para lavar-lhe os pés; a corpo aos nossos olhos quando es5:1s pesso_as n~s
perplexidade aflita ante o anúncio de que um deles o caem mal. Como neutralizar esse sentimento difuso.
trairia: Cada um começou a perguntar: Sou eu, Se- A verdadeira solução para um cristão é encarar to-
nhor? (Mt 26, 21-22), sinal talvez de que não estives- dos - os que nos são antipáti~os tanto como os qu7
sem muito seguros da sua fidelidade; a traição de Ju- nos são simpáticos - com sentido sobrenatural. fe
das; o não terem compreendido que Ele e o Pai eram diz-nos que cada uma das pessoas com quem conv1~e-
um só; enfim, a estreiteza mental que provocou a sua- mos é, acima de tudo, tão filha de Deus_ como nos,
ve queixa: Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas amada por Ele como nós, com as suas virtudes e ~s
agora não as podeis suportar... (Jo 16, 12). seus defeitos. Essa condição deveria levar-nos a olha-
No entanto, o clima foi de total confiança. -la com respeito e mesmo com ad~iração. . .
Então substituiríamos a simpatia ou a ant1pat1a na-
."O p~óprio Senhor - diz o papa Paulo VI - turais por uma visão afetuosa como a das mães boas,
quis dar ~quela reunião tal plenitude de significa- que amam todos os filhos sem distinçà~.
do, tal nqueza de recordações, tal comoção de Sabemos muito bem que todos deseJamos uma pa-
palavras e de sentimentos, tal novidade de atos e lavra de alento quando as coisas não nos correm bem;
de preceitos, que nunca acabaremos de meditá- e a compreensão dos outros quando, apesar da boa
-los e ~xplorá-los. uma ceia testamentária; é vontade, voltamos a errar; e que reparem no que te-
uma ceia afetuosa e intensamente triste ao mes-
mo tem~ _que imensamente revelador~ de pro-
messas divinas, de visões supremas. Avizinha-se (26) Paulo VI. Honrilia da Sexta-Feiro Sa111a, 27.3.1975.

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mos de positivo • mais do..dque no que temos de negati-. coração, isto é, das energias e sentimentos que nele se
vo; e que seJamos ex1g1 os no nosso trabalho encontram: Oferece-me, meu filho, o teu coração, pe-
. . , ~i ,mas
com bons modos, . e que, nmguem 1a e mal pelas nossas de Deus (cfr. Prov 23, 26). Os defeitos não combatidos
costas; _e_ que haJa 1guem que nos defenda quando so- são consequência de o nosso ser - o nosso coração -
mos cnticados e nao estamos presentes ... não estar possuído por Deus, mas distraído e atraído
...Tanta coisa, em que, podemos e devemos tratar os pelo que passa, pelo efem,:ro, em ~ez de s~ o_rientar
ou~os como nos querenamos ser tratados! A isso n unitariamente para a relaçao patermdade-fihaçao que
obi:iga a segunda parte do primeiro mandamento
Lei de Deus: Amarás o próximo como a ti mesmo.
~! temos com o Senhor.
Nessa perspectiva, não importa tanto que tenhamos
muitos ou poucos defeitos, mas dar a batalha de reor-
denar as nossas capacidades intelectivas, afetivas e vo-
REZAR PELOS OUTROS litivas em direção à plenitude dos laços de filiação.
Daí resultará - como efeito - uma vida em que as fra-
A fé ensina-nos que o fator decisivo para a mudan- quezas serão encaradas como empecilho ao livre curso
ça das pessoas é a graça de Deus. do amor de filhos e nessa medida arrancadas ou pelo
menos amortecidas: Eis como sabemos que o conhece-
"O cristianismo não é um moralismo um sistema
mos - e não se pode conhecer a Deus sem amá-lo-:
ético. O cristianismo é antes de tudo um' dom", diz o
se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz
papa Bento XVJ2'. Se conhecesses o dom de Deus!
conhecê-lo e não guarda os seus mandamentos é men-
(cfr. Jo 4, 10), disse Jesus à samaritana que vivia em tiroso (1 Jo 2, 3-4). Os defeitos consentidos são a
estado de pecado. Não começou por falar-lhe da sua grande mentira da nossa vida, enquanto incongruência
conduta, por recriminá-la. Fê-la ter sede do Deus vivo, com relação ao amor de Deus que nos foi revelado em
a quem se adora em espírito e verdade. Esse é o pro-
Jesus Cristo.
blema dos defeitos em nós e nos outros: não reside Tudo isto centra o nosso olhar sobre os outros, por-
tanto em que mancham e aviltam o comportamento que o que realmente há de doer-nos neles não é que
mas em que sao - o esquecimento de um Deus que nos'
ama. violem umas regras e assim nos incomodem ou ma-
goem, mas que tenham o coração longe de Deus. E
Por isso,.ª luta contra os defeitos não se situa num para podermos ajudá-los a dar a batalha nessa raiz dos
camP? legahs13: de obediência ou desobediência a uns seus defeitos, a primeira coisa que temos de fazer não
preceitos
. · morais ' mas no aco1h1mento
. ou recusa do
dom divmo que nos ele · • é dirigir-lhes palavras bem alinhavadas e raciocínios
Deus em Cristo E . you a condição de filhos de esmagadores, mas obteF para eles a graça de Deus que
· isso e questão de uma entrega do muda os corações e faz aceitar o dom divino.
É preciso, pois, rezar pelas pessoas carregadas de
(27) Bento XVI, Homilia, 20.3.2008. defeitos: quanto mais graves e mais arraigados os te-
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nham, mais intens! deve se~ a_ oração por elas, não ao • m nós uma espécie de automatismo pelo qual, a
contrário. A oraçao de petiçao fa;i: de~terem-se os criar e , - ,
cada defeito que observassemos, nao reagissemos com
montes como cera (cfr. Sal 97, 5). E preciso pedir para crítica - por palavras ou mesmo em pensamento-,
essas pessoas a graça da conversão do coração com a uma _ . d'
com uma oraçao ime iata pe1a pessoa que o ma-
confiança e perseverança daquela mãe que aparece no mas
nifestou. E assim um d'ia e outro, meses e anos, se fior
Evangelho, a mulher siro-fenícia, cuja filha estava preciso ...
possuída pelo demônio. E o Senhor acabou por aten-
dê-la. Como acabou por atender à oração e lágrimas
de tantos anos de Santa Mônica pela conversão do seu O EXEMPLO
filho Agostinho, afundado na miséria de uma vida
desregrada. E junto com a oração, o ex~mplo na luta pessoal
Conta-nos o bispo de Hipona que a sua mãe, santa- por erradicarmos os nossos defeitos.
mente preocupada com a sua conversão, não cessava Não é um fator plenamente condicionante para que
de chorar e rogar por ele. Um dia, um bom bispo dis- possamos ajudar o próximo: se tivéssemos de esperar
se-lhe estas palavras que tanto a consolaram: "Vai em até não ter nenhum defeito para ir em ajuda dos ou-
paz, mulher!, pois é impossível que se perca o filho de } tros nunca teríamos. ocasião de praticar a caridade.
tantas lágrimas". Mais tarde, o próprio Agostinho dirá: Não se trata de chamar a atenção para a perfeição
"Se eu não pereci no erro, foi devido às lágrimas coti- da nossa conduta - o único modelo é Cristo, repeti-
dianas cheias de fé da minha mãe" 28 • mos - mas de dar testemunho suficientemente explí-
No fim da .sua vida, a santa mulher dizia ao seu fi- cito d~ que lutamos por combater os nossos defeitos:
lho: "Filho, pelo que me diz respeito, já nada me atrai o dever de dar bom exemplo começa por não dar mau
nesta vida. Já não sei o que faço nela nem por que es-:- exemplo.
tou aqui, morta para toda a esperança do mundo. Ha- É uma luta que, mais do que procurar alcançar uma
via uma só coisa pela qual desejava continuar um pou- utópica impecabilidade - afinal, morreremos com de-
co nesta vida, e era ver-te cristão católico antes de feitos-, põe o acento em crescer no amor, um amor
morrer. O ~eu Deus concedeu-me isto superabundan- que cubra as nossas misérias, que seja cautério.
temente, pois, desprezada a felicidade terrena, te vejo Isto é algo que muitas vezes se esquece. Esquece-
seu servo" 29• mos o episódio da mulher de má vida que entrou_ e!'1
Com essa fé confiante e perseverante, deveríamos casa do fariseu que recebera Jesus para uma refeiçao
e, ajoelhando-se aos pés dEle, s~ p_ôs a chorar e ba..
nhar-lhe os pés com as suas lagnmas, a enxuga-los
com os seus cabelos, a beijá-los e ungi-los com perfu-
(28) Cfr. Francisco Femández-Carvajal, Falar com Deus, 3ª ed.,
Quadrante, São Paulo, _2005, vol. 4, pág. 324. me. Ante os pensamentos escandalizados do fariseu,
(29) Santo Agostmho, Confissões, IO, l l , 26 _ Jesus disse-lhe: Vês esta mulher? Entrei em tua casa e
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não me deste água para lavar os pés; mas esta com a reitos Afinal de contas, insistimos, o amor é
seus de 1' •
suas lágrimas regou-me os pés e enxugou-os com / maior que as nossas falhas.
seus cabelos{ ... ) Por isso te digo: os seus muitos pe~
cados foram-lhe perdoados porque amou muito (Lc 7
36 e segs. ). ' A CORREÇÃO FRATERNA
. Desse ensin~e~to se. fará eco São João quando
disser na sua pnme1ra Epistola que, se o nosso cora- Na nossa preocupação por ajudar os nossos inn~os
ção nos censura, Deus é maior que o nosso coração a vencer os seus defeitos, desempenha um papel mu1t~
(cfr. Jo 3, 20). Do amor por ~le tiraremos forças importante a correção fra!e;.na, ~II.la das obras de,,m1-
pa~ ir superando os nossos defeitos, e esse é O pri- sericórdia espiritual, que e comg1r os que erram .
meiro exemplo que devemos dar aos outros, indican- Quantas vezes sucede que, ante os d:feitos q~e ~b-
do-lhes a verdadeira fonte de energias para que supe- servamos em alguém das nossas relaçoes, a pnmetra
rem os deles. coisa que nos ocorre é criticá-1~. E com qu~ frequên-
Mas não basta procurannos "afogar" no amor a cia não nos limitamos ao que vimos, mas d1fund1mos
Deus os nossos defeitos: esse amor dar-nos-á forças 0 que nos disseram sem tennos visto e sem verificar
também para adquirir as virtudes que nos faltam. San- se era verdade! E assim vamos dando a conhecer a
ta Teresa exprime assim essa meta às suas filhas: "É toda a gente as fraquezas reais ou imaginárias do nos-
mister não pôr o vosso fundamento apenas em rezar e so próximo, menos ao interessado, que era o único
contemplar; porque, se não procurais virtudes e não há que deveria sabê-las.
exercício nelas, sempre ficareis anãs, e praza a Deus Pelo contrário, deveríamos sentir verdadeira alergia
que não_ seja só não crescer, porque bem sabeis que, diante de frases tão manuseadas como esta: "Sabe?
quem nao cresce, decresce, pois tenho por impossível Disseram-me que fulano ..." O modo correto de proce-
que o amor~ con!ente em estar onde está" 3º. O que a der é o que nos indica Jesus Cristo: Se o teu irmão pe-
santa quer dizer e que o amor verdadeiro não está car contra ti, vai e corrige-o a sós (Mt 18, 15-17).
"quie!o", mas move a pessoa a lutar por adquirir no- Com frequência, as pessoas caem em faltas que po-
vas virtudes e aperfeiçoar as que tem. dem escandalizar e ser um mau exemplo para os ou-
Essa luta pelas virtudes dará à nossa vida de cris- tros. De umas não têm toda a consciência, de outras
tãos um tom eminentemente positivo e otimista e será têm consciência, mas não conseguem forças para reti-
esse o melhor modo de mostrarmos aos outrds pelo ficá-las. Que fazer?
exemplo' 0 camm · hO que devem seguir para superar
' os Depqis de estannos seguros de que se trata de uma
falta habitual - ou esporádica, mas que pode ter sérias
consequências imediatas -, começamos por rezar pela
(30) Santa Teresa de Jesus o . . pessoa e pedir a Deus que saibamos adverti-la da ma-
4, 9. • COS/e1O mter1or, Sétimas moradas,
neira mais adequada e no momento mais oportuno.
74 75
Depois, procuramos a ocasião em que o interessado o pela sua autoridade, mas como verdadeira
esteja bem disposto e, a sós, sempre a sós, comunica- menosPrez . · d b
• d E os superiores devenam sempre partir a ase
mos-lhe o que é do caso com as palavras imprescindí- aJU a. A · d
e têm defeitos ou se enganam. cettan o a~ cor-
de qu - so, nao
- perd em auton d a de
veis, com toda a clareza e com todo o afeto: "Quando reções e corrigindo-se, nao
é preciso corrigir, deve-se atuar com clareza e amabili- e prestígio, mas os aumentam. , . . •
dade; sem excluir um sorriso nos lábios, se for oportu- Isaac Newton ( 1642-1727), matemat1co mgles que
no. Nunca - ou muito raras vezes - aos berros"l•. As- descobriu a lei da gravitação ~niversal do~ co9>os ce-
sim o corrigido agradecerá a atenção que se teve com lestes, sentia um grande_ respeito p~los amma1s. Con-
ele e esforçar-se-á por combater essa falta ou, se já ti- tam que, na sua residência, tmha dois gatos: um grande
nha consciência dela, mas se via sem forças, agora e outro pequeno. Chegou um momento em que se preo-
sim, encontrará nessa correção a energia de que preci- cupou, porque esses animais ~stav~m ~empre encer-
sava. Se lhe dermos tempo e não insistirmos nesse rados na casa e não podiam sair ao Jardim. Chamou o
pont_o .a horas e a desoras, veremos como acaba por carpinteiro que cuidava da manutenção e disse-lhe:
comgir-se. - Faça dois buracos na porta, um para o gato ?T~-
Não é necessário que se faça a correção imediata- de e outro para o pequeno; assim cada um podera sair
mente depois da falta; pode-se esperar um ou mesmo ao jardim quando quiser.
vários dias. Uma correção feita no momento traz o ris- Perplexo, o carpinteiro quis replicar, mas não se
co de nos deixarmos levar pelos nervos ou pela preci- atreveu. Newton animou-o:
pitação, de não pensarmos nas palavras justas e exa- - Tem alguma coisa a dizer-me? Vê algum incon-
~• de ~ o s de ironia ou rispidez, com o que hu- veniente?
milhamos o mteressado, provocamos nele - se não é Timidamente, o carpinteiro respondeu ao insigne
m~ito humilde - um ressentimento dificil de apagar, e sábio: ·
n~s mesmos ~imos num defeito maior que o que de- - Acho que um só buraco grande seria suficiente,
SCJamos comgir. porque por ele poderiam sair o gato grande e o peque-
Não pense~os que a correção seja um dever unica- no.
mente d~s pais em rel~ção aos filhos, dos superiores - Mas é claro! Tem razão. Não tinha reparado. Fa-
em relaçao aos subordinados. Os pais deviam agrade- ça como diz!
cer qualquer observação sobre o seu comportamento Quem recebe bem uma correção não sai diminuído
que lhes façam a esposa ou os filhos, ainda que muitas e quem a faz sai engrandecido: venc~u o custo que su-
vezes sem 3:5 cautelas que acabamos de referir: não põe corrigir alguém que o supera muitas vezes em tan-
podem considerar essas observações como crítica ou tas coisas.

76
<31 ) São Joscmaria Escrivã, Sulco, n. 823.

l 77
'pio porque não havia lugar para eles na
num pre Se '
hospedaria (cfr. Lc 2, 8).
Em Belém, a yirgem Maria depa:ou com pess_o~s
A SANTÍSSIMA VIRGEM compreensivas com as necessidades do prox1-
PERANTE OS DEFEITOS DOS HOMENS poucoUma mulher consciente de que a qualquer mo-
rno ' , · d
· to pode chegar a hora de dar a luz, precisa e um
:~himento afetuoso, não somente por ela, mas s_o-
bretudo pelo filho que vai nascer. ~' no c~so de _Mana,
0 seu sentimento de dor deve ter sido mmto mais agu-
do porque sabi~ que o !ilho das s?a~ entranhas _era .º
Messias prometido, o Filho do Alt1ss1mo, que remana
eternamente na casa de Jacó (Lc 1, 32). Mas como
reagiu?
A Santíssima Virgem não teve nenhum pecado ou Criticou o imperador por aquela ordem que os
mesmo imperfeição; mas teve de relacionar-se com obrigara, a José e a ela, a ir da Galile~a até _à _J~deia;
pessoas que tinham muitas fraquezas. E depois da sua Censurou os conterrâneos pela sua msens1b1hdade.
Assunção aos céus, manteve-se de uma maneira sobre- Adivinhamos Maria sorrindo para José depois de este
natural ao lado dos homens, que também estão cheios receber um não, ajudando-o serenamente a encontrar
de fraquezas e defeitos. um lugar o menos inadequado possível e conforman-
Qual foi a sua atitude? Vale a pena finalizarmos do-se por fim com um estábulo. A sua atitude de:7e ter
estas páginas detendo-nos brevemente no que a nossa confortado José, evitando-lhe qualquer sensaçao de
Mãe do céu nos ensina a este respeito. Oxalá o seu fracasso.
exemplo seja um poderoso estímulo que nos leve a ver Não custa ver aqui como nos devemos comportar
como podemos tirar proveito dos defeitos dos outros. ante a falta de sintonia e a indiferença do próximo
para com as nossas carências e urgências. Não cor~-
preendem? Não estendem a mão? Rejeitam-n?s? Mm~
COM OS HABITANTES DE BELÉM to bem. Qual terá sido o pensamento de Mana e Jose
naquela circunstância? Sem ?úvida o de que Deus
, Relata São Lucas que São José foi de Nazaré a Be- sabe o que faz ou o que permite. .
lem para_ recensear-se na sua cidade de origem, por or- Ver os desígnios de Deus nos defeitos das pess9as
dem do imperador César Augusto. Ia acompanhado da à nossa volta é a primeira atitude que devemos ter. E a
esposa, que eSlava grávida. E aconteceu que estando atitude que nos levará a jamais pe~d~r a paz e a saber
ah, chegou 0 que fazer - se esperar, se comgtr, como procurar
. .a .hora do parto e Mar,·a deu a, 1uz ' o seu fi1-
lh0 pnmogemto saídas, de que modo neutralizar o mal objetivo - e a
e, envolvendo O em f: . .
- aixas, rec 1mou-o
78 79
redobrar de afeto por quem nos atingiu. Os episódios - hemos o que Maria pensou no seu íntimo,
que rodea~ .º Nat~l -: a boa n~va comunicada aos so. Nao soa duvidar de que só teve pensamentos de
pastores, o Jubiloso cantlco dos anJos, a posterior ado- mas com no Altíssimo? Mas podemos 1magmar • ·
o
ração dos. ~agos - demonstr~m que a aceitação da coo fiiança fi .
ue nós teríamos pensado e eito.
vontade d1vma produz frutos inesperados de paz de q o·1 t dos J·uízos desconfiados acerca dos nossos
bem e de evangelização. Da indiferença daqueles bele- ªº e
bons propósitos e intenç~e~,.d a ret1'd•a~ da ~ossa cond.~-
mitas, Deus tirou lições maravilhosas para começar- elidade ao mag1steno da IgreJa, diante da cnt1-
d fid1
mos a entender o que é o reino dos céus. Quantos li- c~ _apara não dizer discnmmaçao
ta · · -
a t' rancor -: Por
vros se terão escrito, quantas meditações se terão feito - pactuarmos com a degenerescencia escondida -
e continuarão a fazer-se em tomo do nascimento do ~!~ancarada - no "politicamente correto", que preç_o
Senhor do universo num local próprio de animais!: estamos dispostos a pagar? Sabemos ~tes de ma~s
humildade, pobreza, simplicidade, abandono confiante nada não "ir na onda", fugind? das ocas1oes,. e dep01s
nas mãos da Providência divina ... desarmar essas pessoas e ambientes de suspe1t~ e ma-
ledicência por uma vida coerente que pouco se importa
COM HERODES
com o que dirão? .
Bem cedo a Virgem expenmentou a dureza da per-
seguição, a mesquinhez do coração h~ano, mas sou-
Eis o texto evangélico: Um anjo do Senhor apare- be descobrir o sabor sobrenatural da 01tava bem~aven-
ceu em sonhos a José e disse-lhe: "Levanta-te, toma o turança que o seu Filho pregaria trinta anos ~~1s tar-
menino e sua mãe e foge para o Egito e fica lá até que de: Bem-aventurados os que sofrem persegu1ç_ao por
eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino amor da justiça, porque deles é o reino dos ceus (Mt
para o matar" (Mt 2, 13-15). 5, 10-11).
A Virgem Maria sofre agora com a arbitrariedade e
os desmandos de Herodes, que não são simples indife-
rença ou desinteresse, mas algo muito pior: a inveja, o COM OS QUE CRUCIFICARAM
ódio contra uma criança inocente e indefesa que nem O SEU FILHO
teve te'!lpo para se manifestar. O tirano quer extirpar
pela raiz a sombra que lhe podia vir a fazer um ho- O Evangelho refere-nos que j~nto da ~na estavam
mem cujo reino não seria deste mundo e que passaria de pê sua mãe, a irmã de sua mae, Mana, mu/~er de
por ele fazendo o _bem (cfr. At 10, 38). C/éofas, e Maria Madalena (Jo 19, 25). Mas n~o nos
Os to_rpes s~nhme~tos de Herodes obrigam a Vir- . mais,
d1z . na- 0 registra nenhuma
_ palavra.. det Maria
d nem
é"
ge?1 e Sao Jose_a fugir a horas intempestivas para um nenhum gesto especial a nao se~ que ~s ava e p .
pai~ desconhecido e_ lon~ínquo, a fim de pôr a salvo Nó odemos pensar que expenmentana os mesmos
a vida daquele Menino tido por indesejável e perigo- sen~i~entos do seu Filho em relação aos verdugos,
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aos• escribas
., e fariseus.
. . Não é possível pensar Outra deu por Mãe. Erros e defeitos dos que convivem
c01sa, Ja que part1c1pou plenamente da obra redent nososco outras vezes simples diferenças de modo de
de Jesus. ora con outras
' · · · · e crue ld ades ... , que
ser, , verdadeirasd mJust1ças
. ?
Podemos_, pois, afirmar q~e sofreu indizivelmente proveito tiramos de tu o isso. .
c~m os sofrimentos do seu Filho, com a cruel ingrati- Há situações que humanamente parecem meme-
dao de u_m povo no meio do qual estavam os que Ele ti- diáveis e por vezes o são, por mais que demos exem-
nh~ ensmado, ~urado, alimentado, com a reação dos plo e tentemos ajudar com as advertências oportunas.
am1g?s que o tmham abandonado, com a injustiça das Pensemos, por exemplo, em casos como o daquele
au~ondades. Por o~tro lado, como duvidar de que, amigo que, pouco. depois de cas~do, percebeu que .a
unmdo-se ao perdao de Jesus, ela mesma perdoou sua mulher era v10lentamente cmmenta: nem podia
aquele tropel de gente que não sabia o que fazia? sair à rua com ela que não tivesse de ouvir-lhe depois
A Virgem Maria compreende, desculpa e perd~a os censuras azedas por não ter desviado os olhos de outra
h_omens com todas as suas fraquezas, ainda que sejam mulher que passava por eles. Pois bem, esse homem,
tão ~des que cheguem a deformar a verdade e 0 cuja vida poderia ter sido um inferno, aceitou esse de-
bem, a Julgar culpado o Inocente, malfeitor o Benfei- feito da esposa e com ele conviveu: os dois morreram
tor, pecador e blasfemo o três vezes Santo. em paz, ambos com perto de oitenta anos, sempre ca-
:'-lém disso, e~ contraste com a deserção dos rinhosos com os filhos e entre si.
Apost~los que, cheios de medo, deixam Jesus só no Maria, Aquela cuja vida foi um eco perfeito do fa-
~alváno, ~aria está junto da cruz, com uma coragem ça-se que pronunciou no momento da Anunciação, dá-
s~ngular: nao se lamenta, não desfalece, não desmaia: -nos a última receita - aliás, o denominador comum -
simplesmente acompanha de pé o Filho até os seus para aproveitarmos os defeitos alheios: a aceitação
derradeiros instantes: amorosa da vontade de Deus, que tudo permite para a
"Admi~ a firmeza de Santa Maria: ao pé da Cruz, nossa santificação, ainda que não compreendamos o
com a maior dor humana - não há dor como a sua porquê.
dor -, cheia de fortaleza.
"- E pede-lhe dessa fortaleza para que saibas tam-
bém estar junto da Cruz"12_ OS DEFEITOS DE DEUS
~s defeitos alheios muitas vezes nos machucam,
depn~em e des~speram. Não sabemos aguentá-los. E Na sua perfeição infinita, ~eus não tem defeitos.
esta e a ~nde hçao que_ aprendemos dAquela que Je- Mas às vezes parece-nos que sim:. que se esquec~ d~
sus, precisamente no meio do seu sofrimento e agonia, nós que nos abandona ao mal alheio, que afinal nao e
a s~prema Bondade e a fonte de todo o bem. Quantos
não há que, em face das fraq~e2:as dos outros que nos
(32) São Josemaria Escrivã, Caminho, n. 508. · am" , ou de males obJ1et1vos, se voltam contra
" mar1·mz

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? Eis que teu pai e eu te procurávamos, cheios de
Deus e o interpelam asperamente: "Por que Ele per-
mite isto?, por que deixou que este meu filho se extra- zes~e:.. (Lc 2 41 e segs.). Mas, ao contrário do que se-
ajliçao
• de esperar,' Jesus mam'fiesta uma .msensiºb'l'd d
11 a e
viasse?, por que consentiu que não me compreendes-
sem, se eu só quero compreender os outros?, por que na dói· Por que me procuráveis? Não sabíeis que
que . . d p ·? A .
permitiu que me caluniassem?" devo ocupar-me das. c~1sa~ e '!'eu ai. " pa~ent~ m-
Essa aceitação de Maria que acabamos de ver dá- sensibilidade, ingrattdao, mdehcadeza:
. , defeitos de
-nos a chave para que nunca duvidemos de Deus. Jesus. Assim pensamos e reagimos nos.
O Senhor não poupou a Virgem das consequências E não foi só. Logo no inicio da vida pública, Jesus
dolor~sas dos defeitos alheios, como não poupou 0 parece-rejeitar a sua Mãe. Nas bodas de Caná, trata-a
seu Filho bem-amado: não enviou uma legião de anjos com uma "indelicadeza" que magoa: Mulher - não ?
para livrá-lo. Simplesmente, não interveio. chama mãe -. que temos tu e eu a ver com isso? A
Não dissera o anjo a Maria que o filho que ela con- mulher que o louva enaltecendo os peitos que o ama-
c~beria seria chamado o Filho do Altíssimo, que reina- mentaram, o Senhor antepõe a bem-aventurança dos
na eternamente na casa de Jacó? que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática. E
No entanto, Deus deixou que esse Filho que ela o mesmo proclama quando Maria, acompanhada dos
concebera nascesse num estábulo, e que pouco depois primos do seu Filho, quer ver Jesus: Tua mãe e teus
ela mesma tivesse de fugir com o Menino e José para irniàos estão lá fora e desejam ver-te. Ele disse-lhes:
escapar à sanha de Herodes. Deixou-a sofrer com as Minha mãe e meus irmãos são estes, que ouvem a pa-
notícias que lhe iam chegando da oposição dos escri- lavra de Deus e a observam (Lc 8, 19-21 ).
bas e fariseus à doutrina límpida, aos milagres porten- Episódios de aparente rejeição do vinculo filial...
tosos que o seu Filho ia semeando nos seus três anos Pode haver maior "defeito"? 33
de vida pública. E não interrompeu essa cadeia de res-
sentimentos e ódio, que foi in crescendo até desem- Não custa ver nestes "defeitos" de Deus, nestes
bocar na crucifixão e morte. Como podia Maria com- "defeitos" de Cristo, a mão providente do Senhor, que
preender que esse reinado sem fim prometido da parte não hesita em consentir os defeitos dos que nos cer-
de Deus acabasse como acabou? cam - nem em Ele mesmo parecer injusto e sem pie-
dade - para nos elevar ao plano da fé, acima das rela-
Mas mesmo o s~u ~ilho pareceu ter manifestado
Pª!'l com . ela 'lll1:1ª nsp1~ez e uma dureza incompatí-
veis com uma autude fihal de subm1·ssa~0 . No ep1so · , d'10 (33) Na aparente rudeza com que Jesus t?1ta a sua Mã~~ en_co!'tra-
em qu~, aos doz~ anos, por ocasião da festa da Páscoa mos O elogio cabal de Maria que, com a sua fe e a sua obed,_encta msu-
o Memno se deixou ficar no Templo sem . ' pcrávcis à vontade divina, "acolheu as palavras com que o Ftlho, pondo
· Mana
pais, · .sofire. eomove a pergunta prevemr
f: J os 0 reino ucima de todas as. relações de parentesco, proclamou ~i_n-ave~-
, 1o três •d'ias depois· Meu jilh
que az a esus turados todos os que ouve~! a palavra de ~us e a põem em prattca, coi-
ao encontra- A

sa que Ela fazia fielmente (lume11 Gen.tmm, n. 58).


• z o, que nos fi-
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ções e reações naturais: Tamo quanto o céu está aci-
ma da terra, tanto a minha conduta ultrapassa a vos-
sa e os meus pensamentos estão acima dos vossos (Is
55, 9).
Deus chama-nos a uma vida de filhos seus, de
membros muito amados da sua Família. E para nos
transplantar das nossas atitudes temperamentais para
essa vida tão radicalmente acima da nossa, faz ou per-
mite que soframos com as faltas alheias, e parece não
socorrer-nos. Mas Ele não dorme.
Só falta que nós, como as criancinhas de colo,
adormeçamos nos seus braços fortes de Pai, no regaço
dAquela que nos deu por Mãe. Se as faltas alheias nos
levarem a esta atitude de absoluto descanso em Deus,
aí estarão em última instância as forças para sabermos
como lidar com as imperfeições conscientes ou incons-
cientes do nosso próximo, como ajudá-lo a vencê-las,
como tirarmos o maior proveito delas ... , ao mesmo
tempo que o tiramos das nossas, que são tantas.

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