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12 de Outubro de 2022

David Copperfield e o Direito: Como a literatura nos ajuda


a compreender o comando constitucional da vedação de
prisão por dívida civil - Parte 2.

Uma análise doutrinária do inciso LXVII do Artigo 5º da Constituição


Federal brasileira.

Publicado por Lauber Vinícus há 11 horas  1 visualizações

Fonte da imagem: encurtador.com.br/gA126

A prisão civil por dívida é positivada no Brasil desde 1850, constando


com permissibilidade no Código Comercial daquela época. Sua vedação
somente ocorreu em sede Constitucional, tendo guarida inicial sob a
Constituição de 1934, e, excetuando as constituições de 1824, 1891 e a
de 1937, que não trouxeram previsão legal sobre o assunto, nas demais
Constituições a matéria possuiu um lugar reservado, assim como na
atual Constituição de 1988. A respeito de seu conceito técnico, a
emérita doutrina dos professores Gilmar Mendes e Paulo Branco Gonet
Branco nos ensina que:

"A prisão civil diferencia -se da prisão penal, na


medida em que não consubstancia uma resposta
estatal à prática de infração penal, mas antes
corresponde a um meio processual reforçado de
coerção do inadimplente, posto à disposição do
Estado para a execução da dívida. Não possui,
portanto, natureza penal, destinando -se apenas a
compelir o devedor a cumprir a obrigação contraída,
persuadindo -o da ineficácia de qualquer tentativa
de resistência quanto à execução do débito"[1].

O que eram, as King’s Bench Prisons, pois, senão instrumentos


(desproporcionais) de coação a inadimplentes? [2] Não estamos
afirmando que o inadimplemento é desejável. Pelo contrário. O que se
busca evidenciar (ainda mais), é que as Prisões Civis por dívidas são
formas contrárias à própria concepção de dignidade da pessoa humana
preceituado em nossa Constituição Federal (Art. 1º, III).

Imagine se, em um País com mais de 62,6 milhões de inadimplentes,


tivéssemos este verdadeiro método (cruel e desumano) de coação para
o adimplemento de alguma obrigação? Isso, claro, somado ao fato do
Brasil ser o 3º país que mais possui encarcerados no mundo [3], e sem
contar com o grande impacto nas despesas públicas para a manutenção
destas prisões. Portanto, percebe-se, felizmente, a grande evolução que
o tema ganhou em nível nacional e internacional:
"Atualmente, a proibição da prisão civil é um
princípio adotado em todos os países cujos sistemas
constitucionais são construídos em torno do valor da
dignidade humana, constando expressamente nos
textos constitucionais e em tratados e convenções
internacionais de direitos humanos.à liberdade do
indivíduo como meio de coerção ao pagamen Há
consenso a respeito da desproporcionalidade da
restrição to da dívida e, ao mesmo tempo, como
retribuição ao prejuízo causado ao credor. Considera
-se a existência de outros meios menos gravosos para
compelir o devedor à quitação adequada do débito,
como a execução civil. Mais uma vez, o exame da
proporcionalidade cumpre aqui papel relevante na
verificação da legitimidade constitucional das
intervenções na esfera de liberdade individual" [4].

Em seara internacional, a concepção sobre a impossibilidade de prisão


civil por dívidas de há muito possui positivação. Flávia Piovesan, em
sua doutrina, coleciona o belo voto do Juiz do extinto Primeiro
Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo, Antonio Carlos Malheiros,
na Apelação n. 613.053-8, onde expõe que:

"Diante de tais ensinamentos, pode-se concluir, com


razoável tranquilidade, que os princípios emanados
dos tratados internacionais, a que o Brasil tenha
ratificado, equivalem-se às próprias normas
constitucionais. Isto exposto, lembra-se que a
Convención Americana sobre Derechos Humanos,
melhor conhecida como Pacto de San José, ratificada
pelo Brasil em 25 de setembro de 1992 em seu art. 7º,
parágrafo 7º, reza: ‘Nadie será detenido por deudas.
Este principio no limita los mandatos de autoridad
judicial competente dictados por incumplimientos de
deberes alimentarios’"[5].
No mesmo sentido, e de forma aprofundada, o professor Ingo
Wolfgang Sarlet, em obra conjunta, leciona que:

"no plano do direito internacional dos direitos


humanos, as limitações postas em relação à prisão
civil, especialmente no caso da prisão por dívidas,
são mais contundentes. O Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos, de 1966, veda que alguém
seja preso apenas por não poder cumprir com uma
obrigação contratual (art. 11), ao passo que a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(Pacto de São José da Costa Rica, de 1969), no seu
art. 7.º, n. 7, dispõe que ninguém deve ser detido por
dívidas, ressalvando os casos de prisão por dívida
alimentar devidamente decretados por autoridade
judiciária competente. A Convenção Europeia dos
Direitos Humanos (art. 1.º do Protocolo 4), por sua
vez, a exemplo do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos, afirma que ninguém pode ser
privado da sua liberdade pela única razão de não
poder cumprir uma obrigação contratual.

(...)
Na perspectiva da dupla dimensão defensiva e
prestacional dos direitos fundamentais, a vedação
da prisão civil, em primeira linha, consiste no direito
de qualquer pessoa de não ser privado da liberdade
em virtude do descumprimento de obrigação, direito
este que exige uma posição de respeito e de abstenção
do Estado e dos particulares. Assim, como direito de
defesa, a proibição de prisão civil opera como uma
barreira, invalidando todos os atos atentatórios a
esta garantia constitucional, independentemente da
natureza pública ou privada destes atos, sejam eles
normativos ou não. A dimensão defensiva
(negativa), como é sabido, não dispensa uma postura
ativa do Estado, justamente para proteger a
liberdade da pessoa, impedindo que esta seja
violada, inclusive pelo próprio Estado ou por
iniciativa de particulares, com destaque para o dever
de tutela jurisdicional, mas também por meio de
prestações jurídicas (normativas) ou mesmo por
meio de outras formas de tutela da liberdade pessoal
e meios alternativos de proteção dos direitos que se
pretendeu tutelar com a possibilidade da prisão" [6].

Portanto, como demonstrado à exaustão ao longo das 2 partes deste


artigo, a previsão contida no inciso LXVII do artigo 5º detém uma
densidade histórica e normativa no plano internacional e no
ordenamento jurídico pátrio que justificam sua inserção em nossa
atual Constituição Federal, sendo a prisão civil por dívida um
retrocesso civilizatório que, aos poucos, vai desaparecendo, pois, o
direito que o suporte fático da lei visa tutelar (o adimplemento de
alguma obrigação) ganha paulatinamente outros meios (proporcionais)
aos fins visados, como é o caso, por exemplo, das disposições previstas
nos artigos 139, conjugado com o artigo 782, parágrafo §º 3, no 528,
parágrafo §º 1 (no caso do devedor de alimentos) e no 529, todos do
código de processo civil brasileiro de 2015, desde que respeitado,
óbviamente, o devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV).
Referências Bibliográficas

[1] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso


de Direito Constitucional.13. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva
Educação, 2018. E-book.ISBN 978-85-472-1681-8. Disponível em:
https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:616104. Acesso em:
30/05/2021.

[2] PORTAL EXPONENCIAL. Inadimplência: a saga dos milhões de


brasileiros negativados. Disponível em:
https://www.creditas.com/exponencial/inadimplencia-no-brasil/.
Acesso em: 02/06/2021.

[3] CONECTAS. Brasil se mantém como 3º país com maior população


carcerária do mundo. Disponível em:
https://www.conectas.org/noticias/brasil-se-mantem-como-3o-pais-
comamaior-populacao-carceraria-do-.... Acesso em: 02/06/2021.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso


de Direito Constitucional.13. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva
Educação, 2018. E-book.ISBN 978-85-472-1681-8. Disponível em:
https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:616104. Acesso em:
30/05/2021.

[5] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Direito Constitucional


Internacional [livro eletrônico]. 14. ed., rev. e atual. – São Paulo :
Saraiva, 2013. E-book. ISBN: 978-85-02-20849-0.

[6] SARLET, Ingo Wolfgang. MARINONI, Luiz Guilherme.


MITIDIEIRO, Daniel. Curso de Direito Constitucional [livro
eletrônico]. 8. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019. E-Book. ISBN:
9788553606191.
Disponível em: https://laubervinicius.jusbrasil.com.br/artigos/1661320145/david-copperfield-e-o-
direito-como-a-literatura-nos-ajuda-a-compreender-o-comando-constitucional-da-vedacao-de-
prisao-por-divida-civil-parte-2

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