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A colonização espiritual: catequese e missão no Império

Gadelha, Regina Maria. “Os jesuítas no Itatim, cap. 1, As reduções jesuíticas do Itatim, e
cap. 2, Economia e organização das reduções do Itatim”. In: Gadelha, Regina M. As
missões jesuíticas do Itatim: estruturas sócio-econômicas do Paraguai colonial, séculos XVI
e XVII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, pp. 235-285.
A Política Indigenista Portuguesa

• “Contraditória, oscilante, hipócrita: são esses os adjetivos empregados, de forma unânime,


para qualificar a legislação e a política da Coroa portuguesa em relação aos povos
indígenas do Brasil colonial” (Beatriz Perrone-Moisés, “Índios livres e índios escravos...”)

• A Coroa oscilava ao tentar conciliar projetos incompatíveis, embora igualmente importantes


para os seus interesses

• “Pode-se seguir uma linha de política indigenista que se aplica aos índios aldeados e
aliados e uma outra, relativa aos inimigos, cujos princípios se mantêm ao longo da
colonização. Nas grandes leis de liberdade, a distinção entre aliados e inimigos é anulada e
as duas políticas se sobrepõem” (Perrone-Moisés)
– 1609, 1680 e 1755
Os primeiros tempos

• Nativos
– pareciam inocentes e dispostos a abraçar a causa do cristianismo
– “essa gente é boa e de boa simplicidade, e imprimir-se-á neles, ligeiramente,
qualquer cunho que lhes queiram dar” (Caminha)
– “nenhuma criatura adoram por Deus, somente os trovões cuidam que são Deus,
mas nem por isso lhes fazem honra alguma, nem comumente têm ídolos nem
sortes”. (Anchieta)
– tema recorrente nas primeiras correspondências dos padres da CJ
• Entusiasmo com as cerimônias de batismo em massa e casamentos (Luis da
Grã: aldeia de São Pedro, 1150 batismos e 150 casamentos: “contabilidade”
• Derrotados por Mem de Sá, consideram os jesuítas seus protetores (“Eles
tremem de medo do Governador, um medo que, embora não perdure por
toda a vida, é suficiente para os convertermos”): campanhas de 1557,
resultando em 11 aldeamentos c/ 34.000 índios.
– Primeiras preocupações CJ:
• Impor normas de condutas aos colonos
• Instruir missionários na língua (“o que a mim me foi muito estranho, e deu o
que falar e murmurar por ser uma coisa tão nova e nunca usada na Igreja” –
bispo D. Pedro Frz. Sardinha, 1552)
– Pois a prática da evangelização repousava na oralidade (ao contrário do
Oriente – gramáticas)
• Antropofagia, poligamia, feitiçaria
• Índios interessados no cristianismo pelas vantagens imediatas que ele oferecia:

– Proteção contra os colonos


– Música e cerimonial
– Atenção dos jesuítas
– Os presentes recebidos
– A mágica do culto do homem branco

• Dentre as novas configurações étnicas e sociopolíticas que surgiram após a conquista,


destacam-se em primeiro lugar aquelas articuladas de algum modo com o projeto
colonizador, seja como aliados, inimigos ou mesmo refugiados. O envolvimento em guerras
coloniais, em rivalidades intra-européias ou no crescente tráfico de cativos indígenas
mostrou-se uma importante estratégia para vários grupos que buscaram resguardar a sua
autonomia, paradoxalmente através desta ‘colaboração’ (John Monteiro, “Tupis, tapuias e
historiadores...”, p. 62/3).
Percepção da necessidade da força

• Tão rápido quanto os missionários imprimiam suas doutrinas na “página em branco” dos
nativos e cumpriam os rituais de conversão, o ensinamento evaporava: como escrever nas
areias de uma praia, limpas pela primeira onda.
• Curiosidade dos índios para com as novidades como sinal de que seus corações estavam
abertos para receber a fé cristã.
• “Assim que por experiência vemos que por amor é muito dificultosa a sua conversão,
mas, como é gente servil, por medo fazem tudo; e, posto que nos grandes, por não
concorrer sua livre vontade, presumimos que não terão fé no coração, os filhos
criados nisto ficarão firmes cristãos, porque é gente que, por costume e criação com
sujeição, farão dela o que quiserem, o que não será possível com razões nem
argumentos” (irmão Antonio Blásquez, Bahia, 1556, ao elogiar o esforço de Duarte da
Costa em reprimir algumas lideranças indígenas)

• Percepção de que as missões junto às tribos são inúteis; é fundamental desenraizá-los: “o


que eles precisam é de maior exposição ao modo de vida cristão” (Luis da Grã para
Ignácio de Loyola)
Reforma de Nóbrega

• Após 6 anos de esforço missionário: Diálogo sobre a Conversão do Gentio (1556-57) e


Plano Civilizador (1558).
• Conceito central da reforma projetada por Nóbrega: o medo
• índios aceitariam a fé pelo medo: substituição da imagem dos índios vivendo em um
estado de inocência pela imagem de selvagens bestiais
• Ainda em 1550: “talvez eles sejam convertidos mais rapidamente pelo medo do que
pelo amor”.

• “Diálogo”: Nóbrega consciente da linha tênue que separa força e persuasão.


– Através do medo, os índios consentiriam em se submeter à autoridade dos padres e,
em um segundo momento, seriam convertidos pela persuasão.
– O medo não era coerção, mas sim uma forma de persuasão.
– Inversão do discurso da inocência: “como esse gentio não adora a coisa alguma,
nem crê em nada, tudo o que lhe dizeis se fica em nada”

• Diálogo (Padre Gonçalo Alvarez): “Por demais hé trabalhar com estes; são tão bestiais,
que não lhes entra no coração cousa de Deus; estão tão incarniçados em matar e
comer, que nenhuma outra bem aventurança sabem desejar; pregar a estes, hé
pregar em deserto de pedras”
• Desanimado em relação à via da persuasão (a sujeição pelo amor), Nóbrega propõe
(método da sujeição):
– Proibição de comer carne humana
– Proibição de guerrear sem licença do governador
– Proibição da poligamia
– Obrigatoriedade do vestuário, pelo menos aos cristãos
– “Não podemos deixar de dar a roupa que trouxemos a estes que
querem ser cristãos, repartindo-lhes até ficarmos todos iguais com
eles, ao menos para não escandalizar aos meus irmãos de Coimbra,
se souberem que por falta de algumas ceroulas deixa uma alma de ser
cristã e conhecer seu Criador” (Nóbrega).
– Eliminação dos feiticeiros
– Aplicação da justiça régia tanto nas comunidades indígenas como nas relações destas
com os colonos.
– Fixação em aldeamentos, sedentarizando-os.

– O fato de o plano de reforma ter como elemento chave a intervenção da autoridade


secular do governo colonial criou a necessidade da elaboração de uma justificação
política que legitimasse o emprego desse recurso: Plano Civilizador (carta enviada ao
Provincial português, 1558)

– 1558: Mem de Sá, novo governador, concorda em aplicar a reforma: “ [o Governador]


tem um modo diverso de proceder que não havia sido usado anteriormente”
(carta de Antônio Blásquez, 1558)
• Nas aldeias, os índios eram forçados a viver de acordo com a lei natural e as leis civis, e,
em contrapartida, estavam protegidos da escravidão nas mãos dos colonos.

• Aldeamento: fixação do índio seminômade; fora da missão, a terra agora pertencia aos
portugueses.
– Controle do ciclo-de-vida: choque cultural (horário controlado)
– A sujeição oferecia uma outra vantagem: os índios “pacificados” seriam o braço forte
para o engrandecimento da Coroa e dos empreendimentos coloniais.
– Aceitação da força como elemento crucial

– Nóbrega: benefícios das aldeias:


• S. Majestade teria grandes proventos e a terra povoada
• Colonos teriam escravos justos, e serviço e vassalagem dos aldeados
• Deus ganharia muitas almas: meta a qualquer custo, mesmo contra os desejos,
costumes e liberdade.

– Pero Rodrigues: vantagens dos aldeamentos:


• P/ índios, que se tornam civilizados e salvos
• P/ portugueses, cujos inimigos temiam mais as flechas do que os arcabuzes
• Contra os negros (escravos), que podem ameaçar por seu grande número
• P/ os colonos, pelo serviço índio regulamentado
Carte de la capitainerie de l’Espírito Santo, selon João Teixeira Albernaz I, in Rezão do Estado do Brasil, attribué à
Diogo de Campos Moreno, ca. 1616. (Castelnau-L’Estoile, Charlotte de. Les ouvriers d’une vigne stérile)
Rio Grande, selon João Teixeira Albernaz I, in Rezão do Estado do Brasil, attribué à Diogo de Campos Moreno, ca.
1616. (Castelnau-L’Estoile, Charlotte de. Les ouvriers d’une vigne stérile)
Índios amigos - aldeados
• Descidos, catequizados e civilizados = vassalos úteis
• Importância: roças próprias, roças dos colonos, novas descidas, defensores

• Descimentos: sem violência (missionários sempre presentes, às vezes comandando)

• Aldeamento:
– Facilitar o contato, próximos das povoações
– Locais estratégicos
– Garantia da posse da terra
– Moram índios e missionários, ou administradores leigos

• Administração:
– Inicialmente, jesuítas
– Objeto de muitas discussões: ocorre grande oscilação
• Administrador investido de duas motivações básicas e contraditórias:
– A conversão e civilização dos índios
– A utilização como mão-de-obra essencial
• Trabalho:
– Aldeamento = realização do projeto colonial
• Garantia de conversão
• Ocupação do território
• Defesa do território
• Reserva de mão-de-obra constante

– Repartição:
• Legislação reiterada = difundido desrespeito às normas de sua repartição e
utilização, por parte de moradores, que tentam manter índios das aldeias como
escravos.
• Colonos procuraram ressaltar os atributos bárbaros e bestiais dos índios, para
reforçar sua natureza servil e concebê-los como escravos naturais.

– Justiça:
• Procuradores dos índios mencionados desde 1566
• Ouvidores gerais verificam cumprimento das ordens
• Juntas das Missões julgam e fiscalizam
A Guerra Justa

• 1570: liberdade para os índios, mas guerra justa e resgate de antropofagia

– Povos que não têm conhecimento da fé não podem ser tratados como infiéis
– Causas legítimas de guerra justa:
• Recusa à conversão ou o impedimento da propagação da fé
• Prática de hostilidades contra vassalos e aliados (preexistência)
• Quebra de pactos celebrados
• Salvação das almas e antropofagia: ofensa à lei natural (impedir), ou defesa de
inocentes (salvar) = não justifica a guerra, mas é um agravante

– Jesuíta Luis de Molina (1593) afirmava não poderem ser os infiéis obrigados a abraçar
o cristianismo, embora fossem obrigados a permitir sua pregação.
– Dúvida da época: salvação das almas justificaria guerra?
– Para evitar que se movessem guerras injustas, os reis vão limitando as possibilidades
de declará-las – e somente eles podem declarar
– Colonos “construíam” os inimigos para obter autorização: “fereza”, “crueldade”,
“barbaridade”, “aleivosias”, “extorsões”, “ruim inclinação”, “ofensas”, “insolências”,
“terror”, “atrozes delitos”
– Resgate: cativos libertos dos índios, devem trabalhar como escravos para pagar seu
preço.
A “submissão voluntária”

• Restrições da guerra justa: escravistas podiam alegar que seus cativos haviam sido
vendidos por suas tribos, em adição aos pretextos usuais de “resgate” de execução ritual,
ou apenas guerras.
• A submissão voluntária às vezes representava uma maneira conveniente de se proteger
contra ataques dos colonos, e também evitar a integração forçada às aldeias  nas
fazendas, podiam preservar seus costumes (John Monteiro)

• Na Summa de São Tomás de Aquino, o conceito de ‘extrema necessidade’ aparece na


discussão do direito de propriedade: seres humanos têm o direito de roubar em caso de
extrema necessidade porque essa situação restitui ao homem sua condição natural, onde
todos podiam se apropriar das coisas da natureza para fins de sobrevivência. O mesmo
argumento justifica o direito de uma pessoa se desfazer de sua liberdade em caso de
extrema necessidade. Para Aquino, tanto a liberdade quanto a propriedade eram preceitos
secundários da lei natural, coisas que a natureza não prescreve aos seres humanos, mas
apenas os inclina em sua direção. A necessidade extrema, portanto, também desobriga a
pessoa em relação à liberdade que lhe é dada por Deus. Em suma, mesmo que não seja
ordenada pela natureza, a escravidão é uma instituição aceitável. (José Eisenberg)
• (o jesuíta) Caxa conclui que o direito natural não pode ser para proibir uma pessoa de
vender sua própria liberdade: a escravidão voluntária ficava, então, justificada mesmo em
casos onde não houvesse extrema necessidade
• resposta de Nóbrega: a pessoa deve vender sua liberdade somente quando a extrema
necessidade fosse racionalmente confirmada = versão dominicana na inalienabilidade da
liberdade humana.
– Nóbrega diz ainda que quando duas leis naturais são conflitantes, a mais forte
prevalece. Portanto, a lei que comanda a preservação da própria vida, por ser
superior à que comanda a preservação da liberdade, deve ter precedência.
– “E, como neste caso se tenha experiência de quão fáceis sejão estes gentios
pera se enganarem quando tem sujeição e medo, justamente se deve presumir
engano em as taes vendas de si mesmo”. Pior ainda, reclama Nóbrega, mesmo nos
casos em que os índios vendem sua liberdade compelidos por extrema penúria e
fome, essas necessidades são, na maioria das vezes, produto da ação de colonos
ávidos por comprar a liberdade dos nativos: escravidão voluntária seria uma farsa
criada pelos colonos.

• Junta da Bahia (Mem de Sá, 1566): admite o caráter voluntário: vendendo voluntariamente
sua liberdade e a de seus parentes em caso de extrema necessidade
– Mesa de Consciência e Ordens, “em caso de grande necessidade”

• 1570: D. Sebastião promulga lei proibindo a escravidão voluntária, exceto em caso de


guerra justa; sob pressão, transfere a competência sobre esse assunto às autoridades
coloniais e, em meados da dec. 1570, legaliza a escravidão voluntária.
• Início da União Ibérica marca o início da decadência das atividades jesuíticas
– Governo de Manuel Teles Barreto
• Preferia dar dinheiro a uma escola de turcos do que aos jesuítas
• Preferia não ir para o paraíso pois sabia que os jesuítas estariam lá

• 1587 – Felipe II ordena que os jesuítas acompanhassem as expedições para decidir sobre
a justeza da escravização
• e também lei que dá aos jesuítas o monopólio da autoridade legal para trazer índios livres

• jesuítas pouco a pouco perdem o controle sobre o excesso de expedições


• 1609, Felipe II – todos os índios incondicionalmente livres
• 1686, Regimento das missões do Estado do Grão-Pará e Maranhão
• Diretório dos Índios, 1757-58: abolido em 1798
– “vassalos livres”
– Abole-se a tutela religiosa das aldeias: laica, diretores
Bibliografia

CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Les ouvriers d’une vigne stérile. Les jésuites et la
conversion des Indiens au Brésil, 1580-1620. Lisbonne/Paris, Centre Culturel Calouste
Gulbenkian; Commission Nationale pour les Commémorations des Découvertes
Portugaises, 2000.
COUTO, Jorge. A construção do Brasil. Ameríndios, portugueses e africanos, do início do
povoamento a finais de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos, 1998.
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno. Encontros
culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Humanitas, 2000.
HEMMING, John. Red Gold. The conquest of the Brazilian Indians. London: Papermac, 1995.
MONTEIRO, John. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do
indigenismo. Tese de Livre-docência em Antropologia: Campinas: IFCH-Unicamp, 2001.
MOREAU, Filipe Eduardo. Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo:
Annablume, 2003.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação
indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da
(org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Fapesp/SMC/Companhia das Letras, 1992,
pág. 115-132.
RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização. A representação do índio de Caminha a Vieira.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

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