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EIXO II – Os espaços e materiais a serviço do desenvolvimento da linguagem infantil

EIXO II
Os espaços e materiais a serviço do
desenvolvimento da linguagem infantil

Vamos começar a conversa sobre este eixo observando três cenários:


Cenário 1: Na escola X ocorrem muitos conflitos entre os alunos durante o recreio.
Entre os fatores que concorrem para explicar o fenômeno, podemos citar: a
qualidade das interações com e entre as crianças, a adequação do espaço e dos RECREIO E
DESENVOLVIMENTO
materiais escolares e a organização da equipe pedagógica para cuidar deste DA LINGUAGEM
momento da rotina. Vamos olhar para cada um deles com mais vagar.

Qualidade das interações:


Dado o foco do projeto, a primeira questão a considerar diz respeito à relação
entre o recreio e o desenvolvimento da linguagem infantil.
No recreio, as crianças têm a oportunidade de brincar e desenvolver sua
sociabilidade, estreitando e ampliando laços afetivos. Para construir vínculos,
propor (jogos ou brincadeiras), aceitar ou não propostas, fazer combinados,
comunicar algo que não gostaram, compartilhar um objeto, pedi-lo emprestado,
emprestá-lo ou não, agradecer, desculpar-se, entre outros, as crianças precisam
se valer da linguagem, até mesmo quando ainda não pronunciam palavras3.
Algumas ações acima listadas podem ser traduzidas de modo simples - quer
brincar?, empresta?, por favor, obrigado -, enquanto outras, como a resolução de
um conflito, por exemplo, movem conhecimentos verbais mais complexos.

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No caso dos bebês, a professora é peça fundamental para ajudar na comunicação (observando
e interpretando seus sinais, verbalizando gestos, apresentando palavras e expressões, oferecendo
alternativas, etc.).

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Reestabelecer o vínculo diante de um conflito não é uma questão trivial e,


por esse motivo, as crianças precisam da mediação de parceiros mais experien-
tes que conheçam suas possibilidades de compreensão/produção, ofereçam
parâmetros de atuação e favoreçam a construção do discurso.

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Ao pensar, portanto, sobre o que ocorre no recreio da escola X, poderíamos


levantar as seguintes perguntas:
• as crianças têm contato com modelos de cortesia e são ajudadas a participar
dos variados contextos em que ela cumpre propósitos específicos (pedir,
agradecer, etc.)?
• as crianças têm oportunidade de compreender o que ocorreu e de falar sobre
o que se fez ou o que se sentiu em determinada situação?
Imaginemos que as respostas sejam afirmativas e que na escola X o clima das
salas seja geralmente tranquilo, as crianças participem bem dos jogos e brinca-
deiras propostos em sala (pela professora ou por um colega) e consigam resolver
eventuais conflitos com a ajuda da professora ou até mesmo de modo mais
autônomo.
Levando em conta este dado, a compreensão do que ocorre no recreio exige
que se coloque lente de aumento em outros aspectos:

Adequação do espaço do recreio e dos materiais:


• as dimensões do pátio são adequadas para comportar a quantidade de
crianças?
• é possível fazer movimentos mais amplos (correr, saltar, etc.) sem se chocar
com outras crianças?
• elementos da natureza estão presentes?
• há brinquedos grandes (como gangorra, balança, escorregador, amarelinha)?
Há brinquedos menores (corda, bola, pás, baldes, bichinhos de plástico)?
A quantidade de ambos é satisfatória?
• os brinquedos estão à disposição dos alunos? São bem organizados? Estão
em bom estado?
Organização da equipe pedagógica:
• que adultos cuidam do recreio?
• a quantidade de adultos é adequada ao número de crianças que dele par-
ticipam?
• os adultos que cuidam do recreio estão preparados para atender às exigências
deste momento, considerando que sempre há crianças que se machucam,
que têm mais dificuldade de socialização, que ainda não conseguem empres-
tar, que ainda não sabem explicar sozinhas certa brincadeira, etc.?
A coleta de dados sobre os aspectos anteriormente apresentados confere
maior precisão ao olhar e subsidia a análise da questão que se busca compreen-
der. O fenômeno (muitos conflitos no recreio) pode ter uma ou mais explicações
e, cada uma delas, implica diferentes encaminhamentos.

Cenário 2: Na escola Y as crianças de 2 anos não demonstram interesse por


escutar leituras em voz alta.
O desinteresse dos alunos pode ter motivos diversos – as histórias escolhi-
das não são adequadas à faixa etária, a forma como se conduz a atividade não
LEITURA E os ajuda a sustentar a atenção, a grande maioria da turma não está habituada
DESENVOLVIMENTO
DA LINGUAGEM a participar de situações de leitura, há pouca oferta de livros para crianças de
2 anos, o ambiente ou o horário não são propícios à realização da atividade,
entre outros.

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Alguns motivos têm relação específica com o trabalho docente e aqui vale
lembrar o que diz Solé (1998) - “o interesse também se cria, se suscita e se
educa e em diversas ocasiões ele depende do entusiasmo e da apresentação
que o professor faz de uma determinada leitura e das possibilidades que seja
capaz de explorar”4 - mas, outros nos levam a considerar questões que estão
além deste campo.
Dadas as imensas desigualdades sociais, econômicas e culturais de nosso
país, cabe considerar que muitas crianças chegam à escola sem ter vivido a
experiência de escutar leituras em voz alta.

A expansão da educação escolar, e apenas nos primeiros anos do fundamental


I, só começou a se realizar nos anos 50. Mesmo assim, ao final da década, o
déficit de atendimento era enorme - 50% das crianças em idade escolar não
eram acolhidas pelas redes de ensino. Os não acolhidos eram os menos favore- NÍVEL DE ESCOLARIDADE
cidos social e economicamente. Análises procedidas nos anos 80 e 90 também DOS ADULTOS
evidenciam o não atendimento educacional escolar às camadas populares e o
grande número de evasões e repetências – apenas 30% dos matriculados no
início do fundamental I conseguiam concluí-lo.5

Além disso, nas escolas, as práticas de ler para os alunos desde bebês e de
favorecer o livre manuseio dos livros por crianças de todas as faixas etárias é
relativamente recente. Assim, uma primeira questão a se pensar diz respeito às
oportunidades oferecidas anteriormente para as turmas de 2 anos da escola Y.

Uma criança que desde a mais tenra idade teve a oportunidade de ouvir his-
tórias e manusear livros tem condições de participar de uma leitura em voz alta
a ela dirigida de modo bastante diferente do que outra criança a quem essas
oportunidades não foram dadas.
No caso da primeira criança, procedimentos leitores (olhar a capa de um livro,
folheá-lo ou escutar atentamente a leitura) parecerão familiares e o fato de ela DIFERENÇAS ENTRE AS
estar em um espaço organizado intencionalmente para a sua aprendizagem CRIANÇAS
lhe oferecerá novos desafios ajustados à sua capacidade de enfrentá-los. No
caso da segunda criança, tudo lhe será novidade e, embora algum grau de in-
teresse até possa ser suscitado, inseguranças frente ao desconhecido têm
probabilidade de vir à tona e desafios podem se transformar em grandes obs-
táculos.

A relação entre escola e família será aprofundada no Eixo III. Mesmo assim,
por agora vale dizer que, como instância pública de socialização cuja função CULTURA LETRADA E
precípua é ensinar, cabe à escola apresentar aos alunos a cultura letrada e tomar ESCOLA
a iniciativa de dar os primeiros passos em direção aos familiares, reconhecendo-os
como importantes mediadores de conhecimento, mesmo que em condições
precárias de escolaridade.
Outras questões a se considerar dizem respeito:

4
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Porto Alegre: ArtMed,1998.
5
GATTI, Bernardete. Desafios para a qualidade da educação básica. In: Justiça pela qualidade na
Educação. São Paulo: Saraiva, 2013.

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Ao acervo de livros da escola:


• está em bom estado?
• é organizado de modo a favorecer o acesso dos professores e o acesso das
crianças?
• os livros têm qualidade (boas editoras, bons autores e bons títulos) e diversi-
dade (trava-línguas, parlendas, contos, poemas, lendas, etc.)?
• a quantidade de livros é compatível com as necessidades do trabalho docen-
te?
• o interesse das diferentes faixas etárias que a escola atende é contemplado?
Ao ambiente ou horário em que se realiza a atividade de leitura:
• o espaço é adequado, acolhedor e confortável? Permite que todas as crianças
escutem a leitura e enxerguem o livro lido pela professora?
• o momento da rotina em que ocorre a atividade está de acordo com o ritmo
infantil?
• a duração da atividade está de acordo com a possibilidade de manter atenção
que crianças de 2 anos têm?
Como podemos observar, diferentes questões podem explicar a ausência de
interesse dos alunos da escola Y pela leitura de histórias, daí a importância de
um olhar atento e capaz de ler a realidade em toda sua complexidade.
Cenário 3: Na escola Z a hora do almoço funciona muito bem.

Além de se alimentarem, na hora do almoço as crianças têm a oportunidade


de conversar (entre si e com adultos), de escolher o que comer, de experimentar
novos alimentos, aprender seus nomes, entre outros.
O refeitório da escola em que agora vamos entrar tem espaço, luminosidade
e ventilação adequados. Seu mobiliário (mesas e cadeiras) e utensílios para
comer são limpos, organizados e de acordo com as dimensões das crianças em
suas diferentes faixas etárias. A localização da comida e o esquema de serviço
permitem que as pequenas contem com a ajuda de adultos e as maiores se
sirvam sozinhas. Na frente de cada alimento é colocada uma plaquinha com o
nome das comidas (macarrão, frango, feijão, arroz, etc.). Junto à pia coletiva há
panos para limpar o que for derrubado no chão ou na mesa. Sempre que possí-
vel, a cozinheira aparece para falar com as crianças – conta o que preparou,
pergunta se está gostoso, etc. Em alguns dias da semana a diretora coloca uma
música tranquila de fundo. As professoras se rodiziam entre as mesas e no es-
quema de serviço, aproveitando para promover a autonomia e a interação com
as crianças.

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Identificar cada um dos aspectos que fazem a hora do almoço desta escola
ser um momento tranquilo e prazeroso é muito diferente de passar pela cena e
ficar com impressões gerais (as crianças se comportam bem, por exemplo). Mas
para que identificá-los se tudo vai bem?
Em primeiro lugar, para valorizar o trabalho de todos os envolvidos e, em
segundo, para aprender com um bom modelo e transferir essa aprendizagem
para outras escolas em situação diferente.
Em síntese: quando o acompanhamento da situação dos espaços e dos
materiais escolares tem foco específico e engloba um conjunto de questões
previamente planejadas, boas condições se instauram para o reconhecimento
de problemas, busca de soluções conjuntas, comemoração de conquistas, etc.

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PARA SABER MAIS


“10 brincadeiras para experimentar com as turmas da creche e da pré-escola”, dis-
ponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/4153/10-brincadeiras-para-expe-
rimentar-com-as-turmas-da-creche-e-da-pre-escola>. Acesso em: 13 fev. 2018.

Comunidade Educativa CEDAC. O que revela o espaço escolar? Um livro para direto-
res de escola. São Paulo: Moderna, 2013.

“Recreio deve ser momento de convivência”, disponível em: <http://portaldoprofes-


sor.mec.gov.br/conteudoJornal.html?idConteudo=1005>. Acesso em: 13 fev. 2018.

“Um prato cheio de aprendizagens”, disponível em: <http://avisala.org.br/index.


php/assunto/jeitos-de-cuidar/um-prato-cheio-de-aprendizagens/>. Acesso em:
13 fev. 2018.

VÍDEO
“Visita à creche inspirada em Reggio Emilia”, disponível em: <www.youtube.com/
watch?v=Z2CTr-5Bnsc>. Acesso em: 13 fev. 2018.

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