Se Otto von Bismarck queria um sistema previdenciário que,
amparando os trabalhadores e suas famílias, protegesse os capitalistas de si mesmos, obrigando-os a compreender o que são seus próprios interesses de classe, os britânicos, liderados pelo Lord Dawson de Penn, foram ainda mais longe. Em maio de 1920, veio a público o Dawson Report , um documento que havia sido encomendado um ano antes a Dawson de Penn por Christopher Addison, ministro da saúde britânico. A proposta partia do seguro social proposto por Bismarck na Alemanha do século XIX, mas ia muito além, pois detalha as características do que deveria ser e como deveria funcionar um sistema de saúde. Essas unidades de saúde são a base do sistema e se conectam com hospitais para o terceiro nível de atenção, por meio de referência e contrarreferência. A eclosão da Segunda Guerra Mundial interrompeu aquele processo, mas, tão logo a guerra acabou, a Grã- Bretanha instituiu o seu Serviço Nacional de Saúde, o NHS, em 1948. Isto era apenas uma parte de um conjunto mais amplo e integrado de ações de proteção social que seria caracterizado como Welfare State e que, no entender de Beveridge, estava orientado ao enfrentamento e superação dos cinco grandes males que afligem as sociedades: a escassez, a doença, a ignorância, a miséria e o desemprego. Ainda nos dias atuais, apesar das crescentes dificuldades que o sistema enfrenta para preservar suas características originais, obrigando os movimentos sociais e os próprios trabalhadores da saúde a defenderem o NHS em atos públicos, o NHS, por sua história e os serviços que presta à sociedade, desfruta de enorme prestígio e reconhecimento social. De repente, aparece diante de nós, em uma grande festa nacional e mundial, o National Health Service como um personagem principal. Nenhum direito é mais universal do que esse. Enquanto, nos outros, podemos justificar alguma desigualdade, nada justifica a desigualdade no caso da saúde. A proposta de um sistema universal de saúde contida no Plano Beveridge animou pessoas e países a tomarem esse rumo. Todos queriam um estado de proteção social. A disposição de assegurar direitos não bastava. Não havia qualquer dúvida quanto às intenções desses governos em assegurar a todos o acesso aos cuidados de saúde. Cuba, que dispunha de apenas 6 mil médicos para 7 milhões de habitantes em 1959, viu metade desses profissionais saírem do país após a vitória da revolução. Alma-Ata, no extremo sul do país, ainda era a capital da república socialista soviética do Cazaquistão quando sediou, em 1978, a Primeira Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada pela Organização Mundial da Saúde em conjunto com o Fundo das Nações Unidas para a Infância, UNICEF. Buscava-se, também, diminuir as desigualdades nos níveis de saúde, entre os países e dentro deles. Partia-se, portanto, do reconhecimento de que o padrão da oferta de cuidados que caracterizava o NHS não era possível, naquele contexto histórico, à maioria dos países, embora o princípio de equidade e acesso universal que caracterizava o sistema britânico fosse um objetivo a ser perseguido em qualquer situação. A Declaração de Alma-Ata possibilitou também que a atenção primária à saúde fosse compreendida para muito além do mero nível de atenção a que o Relatório Dawson, de algum modo, a confinava. Entre nós, a estratégia de APS teria de ser ajustada ao que o país vinha desenvolvendo. As intervenções de saúde pública realizadas no Brasil desde meados do século XIX, aprimoradas e desenvolvidas no século XX com as experiências lideradas, entre outros, por Oswaldo Cruz, Geraldo de Paula Souza, Carlos Chagas, Clementino Fraga, Belisário Penna, Vital Brazil, Adolpho Lutz, Mário Magalhães da Silveira, Samuel Pessoa, Noel Nutels e com a criação do Serviço Especial de Saúde Pública no contexto da Segunda Guerra Mundial possibilitaram formar especialistas e técnicos que colocaram suas experiências a serviço do desenvolvimento institucional do Ministério da Saúde, criado em 1953. Mas a ruptura institucional de março de 1964 impactou fortemente e negativamente, os rumos do sistema de saúde brasileiro. Houve uma importante fragilização do Ministério da Saúde, cuja atuação ficou limitada ao controle de epidemias e endemias por meio de vacinação e educação sanitária. Esta política registrou uma forte crise de financiamento nos anos 1970 e foi se formando um consenso quanto à inviabilidade da expansão da cobertura da assistência médico-hospitalar nos moldes em que vinha sendo realizada. Não se vislumbrava, no modelo vigente, qualquer perspectiva sustentável de universalização do acesso. A crise levou à reorientação da medicina previdenciária, e ganharam repercussão e apoio às propostas que buscavam a aproximação e a integração dos recursos da previdência e da saúde pública investidos na saúde da população. E rejeitou as concepções de APS como uma espécie de atenção primitiva, de segunda ou terceira classe, para os pobres das zonas urbanas e as populações rurais. Incumbido da palestra sobre o tema central da 7 CNS, Carlyle Guerra de Macedo conceituou o que no Brasil se vinha considerando «serviços básicos de saúde» e propôs que o país criasse um «programa de serviços básicos» que incluísse, parcialmente, o «atendimento terciário». O Sistema Nacional de Saúde, que fora criado em 1975 pela lei 6.229, constituía a base institucional que viabiliza o PREV-SAÚDE. Foi «um natimorto», escreveu Carlos Gentile de Mello.