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A VENDA DE IMÓVEL E O REGISTRO

A VENDA DE IMÓVEL E O REGISTRO


Revista de Direito Imobiliário | vol. 20/1987 | p. 73 - 77 | Jan - Dez / 1987
Doutrinas Essenciais de Direito Registral | vol. 3 | p. 673 - 679 | Dez / 2011
DTR\1987\208

Afrânio de Carvalho
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Área do Direito: Imobiliário e Registral


Sumário:

1. Modalidades de venda no Código Civil (LGL\2002\400) e no Projeto de Código Civil


(LGL\2002\400) - 2. Incompatibilidade da venda ad mensuram com o Registro de Imóveis. Exclusão
da venda ad mensuram na hasta pública - 3. Prevalência da venda ad corpus no tráfico jurídico.
Retificações de área - 4. Analogia entre a posse e a propriedade acerca da exigência de corpo certo
para a respectiva proteção - 5. Conveniência da reformulação do preceito sobre a venda de imóvel
no futuro Código Civil (LGL\2002\400).

O Código Civil (LGL\2002\400) prevê, no art. 1.136, duas modalidades de venda de imóvel, com
conseqüências diferentes, ambas relacionadas com a área escriturada, tornando uma sujeita à
instabilidade, enquanto a outra ganha desde logo estabilidade. A primeira determina a área e sua
ligação com o preço total ou com o preço unitário, facultando ao comprador, caso se verifique ser
menor a medida, exigir o complemento da área, rescindir o contrato ou obter o abatimento do preço
(venda ad mensuram). A segunda supõe, ao contrário, que o imóvel seja vendido como coisa certa e
discriminada, sendo apenas enunciativa a referência às dimensões (venda ad corpus), em relação à
qual esclarece ainda que se presume enunciativa quando a diferença encontrada não exceder a um
vigésimo da área total enunciada, o chamado vigésimo de tolerância.

O Projeto do Código Civil (LGL\2002\400), 634-B, de 1975, na sua redação final, no art. 500, prevê
as mesmas modalidades de venda com as mesmas conseqüências, suprindo, no seu enunciado,
uma lacuna do Código atual, que se atém à falta, sem se estender ao excesso de área. Trata-se,
como se vai ver, de um aperfeiçoamento inócuo, mas, de qualquer modo, a disposição acrescenta
algo que, a rigor, inutiliza implicitamente a primeira modalidade de venda, formulando um preceito
que, por si só, basta para cobrir toda e qualquer venda de imóvel:

"§ 3.º Não haverá complemento de área, nem devolução do excesso, se o imóvel for vendido como
coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a referência às dimensões, ainda que não
conste, de modo expresso, ter sido a venda ad corpus."

Ora, por imperativo legal, todo imóvel, para ser objeto de matrícula, há de ser vendido como coisa
certa e discriminada, isto é, com a sua cabal identificação, feita mediante a indicação de suas
c:aracterísticas e confrontações, localização, área e denominação, se rural, ou logradouro e número,
se urbano, e sua designação cadastral, se houver ( Lei 6.015/73, art. 176, § 1.º, II, n. 3). Sem que o
imóvel vendido traga no título de venda os limites e confrontações, o traçado inequívoco de seu
perímetro, de modo a formar um corpo certo, que se distingue de qualquer outro no universo
fundiário que o rodeia, esse imóvel não pode ser matriculado.

À míngua de caracterização, feita da maneira indicada, de modo a singularizá-lo, tornando-o


inconfundível, o imóvel se acha ipso facto excluído do Registro. Está visto, pois, que ninguém mais
se expõe a celebrar um negócio de imóvel a não ser que este se apresente cabalmente identificado
como corpo certo, visto como esta é a exigência legal, aliás notória, a ponto de tornar redundante o
final ajuntado ao § 3.º do Projeto do Código Civil (LGL\2002\400), " ainda que não conste, de modo
expresso, ter sido a venda ad corpus".

Se o princípio do parágrafo já prevê que a venda seja feita como coisa certa e discriminada, tendo
sido apenas enunciativa a referência às suas dimensões, é de primeira evidência que a venda é feita
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ad corpus. O primeiro enunciado, com um fraseado analítico, importa no segundo, com um fraseado
sintético, em que entra a vulgarizada locução latina ad corpus.

Aliás, conquanto a venda seja geralmente de corpo certo, cujo âmbito o comprador conheceu
previamente, pelo que aceita o traçado de seu perímetro lançado na escritura, não consta que nesse
título se lance ainda a menção cautelar ad corpus. Se bem seja esta a modalidade de venda corrente
no mundo dos negócios, o certo é que se exterioriza tão-só pela identificação do imóvel mediante
dados próprios, notadamente os limites e confrontações, vale dizer, pela descrição correta de seu
perímetro, com um ponto de partida ostensivo na superfície até onde, corridos todos os seus
segmentos, chegará de novo a linha perimétrica para fechar o contorno do corpo certo.

Se se observa que não ocorre na prática a venda do imóvel por medida, ad mensuram, é porque
existe visível incompatibilidade entre a sua figura e o Registro de Imóveis. O nosso sistema jurídico,
não obstante a disposição permissiva dual, só admite deveras a venda ad corpus, única que pode ter
ingresso no Registro de Imóveis. A venda ad mensuram não passa de uma cogitação acadêmica,
que, vinda de doutrina no passado, foi acolhida no atual Código Civil (LGL\2002\400) como
transplante do vício redibitório, mas que, na verdade, não mais pode assumir feição concreta, por
contrapor-se a um mandamento legal de suma importância para a ordem jurídica e para a
coexistência pacífica em sociedade. Para que serve um título de venda que, pelo seu teor, não tem
força para ultrapassar as partes, inscrever-se no Registro e valer contra terceiros?

De duas, uma. Ou a venda se efetua como corpo certo, com a descrição do perímetro, e então valerá
para ingresso no Registro, ou não se efetua dessa maneira, e então ficará excluída do Registro. Já
havia consignado essa observação quando escrevi os comentários sobre o Registro, advertindo, ao
discorrer sobre o princípio de especialidade, que o art. 1.136 do CC não condiz com a sistemática
registral. Ao tratar da retificação do registro em uma revista especializada, renovei a advertência,
dizendo que a transmissão ad mensuram não se coaduna com o sistema registral brasileiro, que
exige inequivocamente para a tabulação do título que o imóvel seja descrito como corpo certo, em
obediência ao princípio de especialidade. Aí insisti em que a identificação do imóvel há de conduzir
ao espírito do leitor de sua descrição uma figura geométrica definida, porque impõe a indicação, não
apenas de sua situação no quadro administrativo, de seu nome e de sua área, mas ainda de suas
características, limites e confrontações. 1

Sem ser como coisa certa e discriminada nenhum imóvel pode ser vendido, até porque, com essa
deficiência, perderia a individualidade, impossibilitando o comprador de conhecê-lo e em seguida
fechar o negócio. Ninguém se dispõe a adquirir uma coisa incerta e difusa, insuscetível de ser
reconhecida em meio a outras coisas do mesmo gênero. Demais, essa coisa incerta e difusa não
teria préstimo para tornar-se um bem imóvel qualificado para obter a chancela registral que lhe dá
valor jurídico.

Tão rigorosa é essa regra de cabal individuação do imóvel, que há de ser obedecida até na venda de
quinhão ideal, ou de sua incorporação ao capital de uma sociedade, que se equipara à alienação
(CC, art. 623, III). Embora o quinhão ideal, pelo fato de o ser, só exista na representação mental, não
admitindo a caracterização como coisa certa e determinada, nem por isso esta deixa de aparecer na
venda, o que acontece pela descrição do todo ao qual o quinhão pertence, exarada na escritura para
posterior lançamento da parte vendida na matrícula do todo condominial.

Essa forma prevalece também na alienação de quinhão ideal realizada em juízo, pois aí não se
dispensa que, para identificação daquele, se caracterize o todo condominial, de modo que o
arrematante, ou eventual condômino adjudicatário, saiba exatamente o que vai adquirir. Como é
notório, o condômino tem preferência para chamar a si o quinhão, o que o habilita a, mesmo depois
da arrematação, antes de assinado o auto, requerer-lhe a adjudicação pelo valor do lanço do
estranho ( CPC (LGL\1973\5), art. 1.118).

Os dois casos de venda ad mensuram figurados por João Luiz Alves nas suas anotações ao art.
1.136 do CC revestem, na atualidade, caráter puramente teórico, já que não existe, e nem deve
existir, exemplo deles na prática. O primeiro determina a área e o preço total: "vendo a minha
propriedade com cinqüenta hectares pelo preço de cinqüenta contos"; o segundo a determina,
ligando-a ao preço unitário: "vendo a minha fazenda com cinqüenta hectares ao preço de um conto
de réis o hectare". Ocorrendo diferença para menos na área, o comprador tem a faculdade de pedir o
complemento da área e, se não for possível, o abatimento do preço, ou a rescisão do contrato com
restituição do preço e perdas e danos. 2
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Porque ambos os casos são atualmente teóricas? Porque um e outro omitem os limites e
confrontações, vale dizer, o perímetro do imóvel, sem o qual impossível se torna o seu ingresso no
Registro de Imóveis. Essa impossibilidade acarreta o desinteresse das partes por um negócio que se
revela afinal vão e ilusório.

A reiteração abstrata da venda ad mensuram no Projeto de Código Civil (LGL\2002\400) advém da


tendência, que têm os legisladores, de repetir os preceitos da lei anterior, sem refletir sobre se eles
se justificam na lei nova. Talvez tenha contribuído para isso também a circunstância de o Código
Civil (LGL\2002\400) Italiano de 1942, no título relativo aos contratos, Cap. I, Seção III, dedicada à
venda de imóveis, conter os mesmos preceitos sobre a venda ad mensuram e ad corpus (arts. 1.537
e 1.538).

Cada sistema jurídico, porém, tem suas peculiaridades. Nem se diga que a escritura de venda ad
mensuram pode, entre nós, ser corrigida, quando o comprador tentar o seu ingresso no Registro de
Imóveis, que então exigirá a sua re· ratificação. É que a escritura de re-ratififcação será, na
realidade, uma escritura completamente nova, em que o imóvel terá cabal identificação, com a
descrição dos limites e confrontações, em suma, uma escritura de venda... ad corpus!

Assim se reconduz a venda ad mensurmn à única venda suscetível de ganhar existência tabular e,
por conseguinte, completar-se para valer contra terceiros, a saber, a venda ad corpus. Aliás, o
próprio Código Civil (LGL\2002\400) atual já desacredita, em outro artigo, a venda ad mensuram,
impedindo que seja invocada para o fim de qualquer reclamação, quando a venda se operar em
hasta pública (art. 1.106).

A prevalência da venda ad corpus no tráfico jurídico demonstra que as partes, neste ponto, andam
mais acertadas do que a lei. Para que prever na lei uma modalidade de venda insuscetível de atingir
sua finalidade, que é a transmissão do imóvel do vendedor para o comprador? Essa previsão legal,
longe de enriquecer o texto, o desvaloriza com uma contradição com o nosso sistema jurídico,
agravada com o inconveniente de dobrar as despesas cartorários e criar uma sementeira de
questões, que talvez cheguem ao desfazimento do negócio.

Tudo leva a crer, porém, que a previsão permanece letra morta. Tanto assim que as retificações de
área,· colecionadas nos repositórios de jurisprudência, se contêm todas intra muros, vale dizer,
dentro do contorno dado ao imóvel no título de venda, processando-se internamente nesse recinto a
vistoria ou perícia destinada a apurar a medida superficial certa. Nessa conformidade, os julgados
mandam então consignar no registro a área verdadeira verificada pela perícia, que pode agora
inserir-se em processo administrativo, e não necessariamente judicial, bastando para a retificação da
área sejam citados os confrontantes e alienantes, conforme permite a nova Lei de Registros Públicos
( Lei 6.015/73, art. 212, § 2.º).

A diferença de área que enseja a retificação pode ser para menos ou para mais, mas, qualquer que
seja o seu sentido, se torna imprescindível que o comprador prove o erro por planta ou perícia, com
a anuência de confrontantes e alienantes. Como se vê, até na diferença para menos não basta argüir
o erro, cumprindo ainda evidenciá-lo com memorial descritivo subscrito por profissional, que mostre a
sua existência atual, como a sua preexistência ao tempo do registro do imóvel (Ac. da 2.ª CC de TJ
do Paraná de 22.2.84 na Revista de Direito Imobiliário, n. 14, p. 113).

No caso de diferença para mais, a sa ber, de excesso da área real relativamente à registrada,
repetem-se os mesmos requisitos, mas, nesse caso, surge, não raro, uma impugnação, sob o
argumento de que a retificação não constitui meio de adquirir a propriedade, apontando-se ao
comprador o caminho do usucapião (CC, arts. 530 e 550). Essa impugnação parte do Ministério
Público que, como fiscal da lei, tem agora a faculdade de recorrer ( CPC (LGL\1973\5), art. 499, §
2.º), mas, com todo o acerto, é rejeitada geralmente pelos tribunais, porque, estando o terreno há
muito totalmente delimitado, descabe falar em aquisição nova (Ac. da TC do TJ de MS de 1.11.83 na
Rev. de Dir. Imobiliário, n. 12, p. 101; ac. da 3.ª CC do TJ do Paraná de 20.9.83, na Rev. cit. n. 13, p.
69; ac. da 3.ª CC do TJ do Paraná de 16.8.83 na Rev. cit. n. 16, p. 126 etc.)

Assim como no primeiro caso não há diminuição do terreno, no segundo não há aumento, havendo
em ambos apenas a mudança da tradução numérica da área, a fim de conformar o registro com a
realidade fática. (CC, art. 860). Outro tanto se diga quando se pretende a retificação para mudar a
expressão de medida antiga (alqueire) para medida métrica atual (hectare ou metro quadrado).
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A própria "posse" precisa recair sobre coisa certa e determinada, vale dizer, ser localizada com seus
limites e confrontações para ser garantida pelos interditos (Ac. da 3.ª CC do TJ de Santa Catarina de
16.3.82 na Rev. de Dir. Civ., SP, v. 34, p. 282). Do contrário, o possuidor perderá o seu tempo se
tentar obter a proteção dela em juízo. Neste tanto, cabe lembrar a definição de von Ihering, para
quem a posse é a exterioridade ou visibilidade da propriedade, pelo que, em correlação com esta,
precisa ser provada com o exato contorno territorial sobre que se exerce, a saber, os seus limites e
confrontações.

Dir-se-á que, numa venda de imóvel, o vendedor pode dar no título a garantia da área vendida. Essa
é uma hipótese que apenas se aventa, porque dificilmente ocorrerá, por não ser encontradiça na
prática comum dos negócios, dado que a medição nunca é feita pelo próprio vendedor. Via de regra,
o vendedor apenas menciona a área havida como verdadeira, sem dar garantia desta, que advém de
falível estimativa ou de medição igualmente falível do agrimensor.

Quando, porém, essa hipótese se verificasse, então a venda do imóvel ensejaria, se a área não
correspondesse à escriturada, o direito de reclamar do comprador. Daí a conveniência, que já
acentuei anteriormente, de, na reforma do Código Civil (LGL\2002\400), reformular o preceito do art.
1.136 para positivar que, na venda de imóvel, sempre individuado, só caberá reclamação do
comprador por falta de área declarada, se o vendedor lha tiver assegurado expressamente na
escritura. 3

Aliás, não fui o primeiro a dizê-la, porque Serpa Lopes já se antecipara em sugerir que se adotasse o
preceito do Código Civil (LGL\2002\400) Alemão, de acordo com o qual "quando o vendedor de um
imóvel se obrigar perante o comprador por um conteúdo determinado, toma-se responsável por esse
conteúdo como o seria por uma qualidade assumida" (§ 468). Ainda está em tempo de adotar essa
feliz sugestão. 4

Seja como for, não se compreende que o atual Código Civil (LGL\2002\400), seguido pelo Projeto do
futuro, em vez de tratar da venda comum, que é a de corpo certo ( ad corpus), lhe anteponha uma
venda, senão imaginária, pelo menos raríssima, que é a por medida ( ad mensuram). Oxalá o futuro
Código Civil (LGL\2002\400) elimine a modalidade ad mensuram, sem correspondência na vida real,
adotando, na venda ad corpus, a responsabilidade do vendedor pela área, quando a tiver garantido
expressamente no título.

1. Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, ed. Forense, Rio, 3.ª ed., p. 248; "Retificação do
registro" na Rev. de Dir. Imobiliário n. 13, p. 16.

2. J. Luiz Alves. Código Civil (LGL\2002\400), ed. Briguiet, Rio, 1926, anot. ao art. 1.136.

3. Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, ed. Forense, Rio, 3.ª ed., p. 248.

4. Serpa Lopes, Registros Públicos, 2.ª ed., Rio, v. 3, n. 530, p. 301.

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