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LMuia. EiIna FtrmacOOB~

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CAPíTULO 20 - PORQUÊ INTERPRETAR SONHOS NA TERAPIA


COMPORTAMENTAl?
Maria Augusta Miranda dos Santos' & Lue Vandenberghe2

INTRODUÇÃO

A análise dos sonhos é um dos métodos mais antigos da psicoterapia.


No entanto, algumas abordagens contemporâneas, entre elas a terapia com-
portamental, fazem pouco uso dela. O presente texto versa sobre motivos
concretos para que os terapeutas comportamentais incluam esta prática no
seu repertório profissional. São relatadas duas análises de sonhos de uma
cliente com quadro depressivo, em que se identificam três tipos de utilidade
clínica: (1) ajudar a cliente a conectar-se com assuntos clinicamente relevan-
tes que não conseguiu expressar ou assumir anteriormente; (2) esclarecer
necessidades da cliente e delinear novas metas para o trabalho terapêutico;
(3) trabalhar de maneira vivencial dificuldades evocadas pelo material do so-
nho, enquanto estas ocorrem. Estas três contribuições são também motivos
para se dedicar mais tempo à análise de material onírico de clientes.

CONSTRUÇÕES CULTURAIS E CLÍNICAS DO SONHO.

A análise dos sonhos faz parte da história das psicoterapias desde os


seus primórdios e, na realidade, precede-as. O interesse por este assunto
remonta, talvez, ao início das civilizações. Na Antiguidade, os gregos,
assim como os egípcios, acreditavam que os sonhos eram parte de um

1 Psicóloga, Consultório particular Goiânia - Goiás, Brasil; Alameda das Orquídeas Qd. 03 Lt.;
17/18 Jardins Viena; Aparecida de Goiânia - GO; CEP: 74935-182; Tel: (62) 84261500; E-mail:
rnampsíeyehoo.corn.br
2 Doutor em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia - Goiás, Brasil; Caixa
Postal 144; Agência de Correio Centr-al; Praça Cívíca; Goiânia - GO; CEP 74001-970; Tel: (62)
96193751; E-mail: luc.m.vandenberghe@gmail.com
Mudançase:-=
326

mundo sobrenatural, e neles procuravam sinais divinos. Porém, esses da psique, ~


povos antigos também reconheceram as suas preocupações do quotidia- sentido latem
no no conteúdo dos seus sonhos (Shushan, 2006). ínconscienze
1920/1996).
Assim, desde o início, existiam duas maneiras de interpretar os so-
de umap ·ra~
nhos que se iam desenvolvendo em duas compreensões da sua natureza.
teúdos ameaa
Há um entendimento do sonho como fenómeno misterioso, qualitativa-
mente diferente da vivência do quotidiano. Por outras palavras, há uma Baseado ~
descontinuidade entre o sonho e as experiências da vida real. Num outro e em tradícões
entendimento, os sonhos encaixam-se no mesmo mundo profano que as forças que a:.:J
nossas outras experiências. De acordo com esta segunda acepção, há uma volviment in
continuidade entre os conteúdos e processos do quotidiano e do sonho. é negligenciad
busca do ec..:::..
A oniromancia está presente nas religiões do tronco semítico: Jacó,
respeito de 2:S(
José e Daniel interpretaram sonhos. São José é advertido em sonho pelo
anjo Gabriel dê que sua esposa traz no ventre uma criança divina. Tam- O fundad
bém em sonhos, um anjo o aconselhou a fugir para o Egito e, mais tarde, sonhos dos di
a retornar a Israel (Biblia Sagrada, 1971). Na cultura islâmica, os sonhos, nitivos pelos ~
às vezes, trazem mensagens divinas, enquanto os pesadelos ou sonhos produzidos d
imorais podem ser armadilhas de satã (Alakili, 1992). interpretações
para acessar cr
Em contraste, Aristóteles (2001) postulou que os sonhos proféticos
o cliente proa
não passam de coincidências. Sustentava que os sonhos são produto dos
acontecirnentc
mesmos processos psicológicos que a percepção, a recordação e a aluci-
percebe o seu
nação. Os processos pelos quais vivenciamos a vida real são também res-
no. As mesma
ponsáveis pela produção dos sonhos. Porém, algumas gerações depois, o
pessoa tem .z ;
adivinho romano Artemidoro (2009) consolidou as auras místicas que
tinham cercado o significado do sonho. Grafou um manual de análise de Alguns tera
sonhos para desvendar informações codificadas na sua simbologia. Esse e Guilharài (:~
trabalho alimentou durante séculos a crença numa descontinuidade pro- clien te a de_'€D
funda entre o sonho e a vida real. (no caso, o s
Aprender a iàe
Na modernidade, a teoria da continuidade encontrou seu mais obsti-
os seus sonhos
nado defensor no médico francês Maury (1865), cujos estudos sustenta-
Delitti (1999) ê
ram que os processos que subjazem o sonho possuem as mesmas qualida-
ameaçador par.
des daqueles que dominam no estado de vigília. Descreveu, por exemplo,
quotidiano. Os
como as entradas sensoriais durante o sono influenciam os conteúdos do
tos, e o cliente
sonho e afirma que tentamos dar sentido a essas entradas da mesma for-
evocam menos
ma, tanto durante o sono como enquanto acordados. A tese fundamental
de Maury é que sonhamos o que vivemos e desejamos no nosso quotidia- A terapia co
no. O caráter de originalidade dos sonhos é enganoso, e provém de vivên- vivencial. Iraba
cias esquecidas às quais a pessoa não tem acesso consciente direto. são, oferece mai
ocorrem fora da
Uma geração depois, Freud (1900/1996) trouxe respeitabilidade
Kanter, Holman
científica à interpretação do sonho. Para ele, os sonhos têm a função de
hoje, pouco e:xp
realização de desejos. No enredo onírico haveria um sentido manifesto
e Delitti (1993.
(a fachada) e um sentido latente. A fachada serve para despistar o censor
Mudanças e Transições: Pessoas em Contextos 327

da psique, que determina o que se torna consciente ou não, enquanto o


sentido latente, acessível pelo método psicanalítico, revelaria o desejo
inconsciente do sonhador. De acordo com teorização posterior (Freud,
1920/1996), os sonhos pós-traumáticos e certos sonhos que decorrem
de uma psicanálise revelariam tentativas inconscientes de dominar con-
teúdos ameaçadores.
Baseado na observação dos seus pacientes, em experiências próprias
e em tradições místicas antigas, Jung (1943/1974) apontou nos sonhos
forças que auxiliam a pessoa no processo de individuação e no desen-
volvimento integral da personalidade. Quando algum aspecto da vida
é negligenciado, os sonhos funcionam como ferramenta da psique em
busca do equilíbrio. Por meio deles, sabedorias ancestrais alertam-nos a
respeito de escolhas iminentes.
O fundador da terapia cognitiva (Beck, 1967; 1971) propôs que os
sonhos dos clientes são produtos dos mesmos esquemas e processos cog-
nitivos pelos quais pensamentos automáticos e distorções cognitivas são
produzidos durante o estado de vigília. Examinar os seus conteúdos e as
interpretações que os clientes lhes atribuam torna-se, assim, um meio
para acessar crenças irracionais subjacentes aos problemas para os quais
o cliente procura tratamento. A maneira como a pessoa interpreta os
acontecimentos nos sonhos e se posiciona perante eles, mostra como ela
percebe o seu quotidiano e como ela distorce a sua vivência do quotidia-
no. As mesmas temáticas que filtram e enviesam a compreensão que a
pessoa tem do seu dia-a-dia estão evidentes nos relatos de sonhos.
Alguns terapeutas comportamentais brasileiros, como Delitti (1993)
e Guilhardi (1995), vêem na análise do sonho um exercício que ajuda o
cliente a desenvolver a sua capacidade de relatar o seu comportamento
(no caso, o sonho) e as variáveis que controlam esse comportamento.
Aprender a identificar as contingências do quotidiano que determinam
os seus sonhos contribui para o desenvolvimento do autoconhecimento.
Delitti (1999) aponta que explorar conteúdos de sonhos pode ser menos
ameaçador para o cliente do que abordar diretamente problemas do seu
quotidiano. Os conteúdos dos sonhos são irreais e, muitas vezes, abstra-
tos, e o cliente não pode ser responsabilizado pelos mesmos. Por isso,
evocam menos comportamentos de esquiva.
A terapia comportamental contemporânea possui uma forte vertente
vivencial. Trabalhar as emoções ao vivo, enquanto estão a ocorrer na ses-
são, oferece mais oportunidades do que discutir respostas emocionais que
ocorrem fora da sessão (Hayes,Strosahl & Wilson, 2012; Tsai, Kohlenberg,
Kanter, Holman & Laudon, 2012). A análise do sonho tem um potencial, até
hoje, pouco explorado para facilitar tal trabalho vivencial.Callaghan (1996)
e Delitti (1993, 1999) apontam várias formas em que a análise dos sonhos

©~5i~a5amEl_'
-----_.
328 Mudanças e Tran.sic:5es:

pode evocar comportamentos clinicamente relevantes, e, assim, torná-los As transcríc - :


disponíveis para trabalho ao vivo. Pelas temáticas que emergem na sessão lho com os 50!l........
durante a discussão do sonho, evocam-se respostas emocionais. Logo, é pos- res, durante _
sível abordá-las "in loco", enquanto o cliente está intensamente em contacto um melhor - -
com elas, permitindo um trabalho vivencial. Além disso, relatar um sonho distinguiram-se -
pode ser um recurso metafórico pelo qual o cliente refere informações que recurso de anâãs
não consegue expressar diretamente, inclusive dicas ou demandas subtis di- discussão d ~~
rigidas ao terapeuta. E, finalmente, muitas vezes, os problemas emocionais
e interpessoais do cliente atrapalham o trabalho com os sonhos, ou seja,
RESULTADOS
os problemas do quotidiano do cliente manifestam-se na interação com o
terapeuta. Entretanto, também têm a vantagem de permitir ao terapeuta
Durante :-=::-
observar estes problemas emocionais e interpessoais enquanto ocorrem no
gastava os seus =
consultório, obtendo-se, assim, uma amostra da forma como esses proble-
gras absolutas :u.c
mas prejudicam a vida do cliente fora daquele ambiente. Desse modo, ao
versidade de ex?_ç
ocorrerem no consultório, na interação com o terapeuta, este tem a opor-
estas regras comz
tunidade de trabalhar esses problemas ao vivo, enquanto estão a acontecer.
com as pessoas e-
Apesar dessas entradas na literatura profissional, a análise dos so- outros: "Eu sou .:
nhos não goza de aceitação generalizada na terapia comportamental. Foi pre a ditar "core
necessária coragem para defender esse recurso na comunidade behavio- em si. Expressava
rista (Delitti, 2009). O propósito do presente artigo é ilustrar, a partir de forma velada, -.:::.
material clínico, alguns benefícios que se pode esperar dessa prática. As-
O mesmo pari:!
sim, pretendemos destacar bons motivos para que os terapeutas optem
peuta. Esta torna:
por dedicar tempo aos relatos de sonhos dos seus clientes.
a cliente não se =
expressão das _~
MÉTODO
não serem cumpri
Foi a discussão -
PARTICIPANTE as sessões da .~S:
três temas: a 5<;. •.•:
A cliente cujos sonhos são relatados foi atendida pela primeira autora. de aproveitar o. - ~
Neste artigo, é chamada de Ana, tem 46 anos, é casada, tem quatro filhos tentativas de conr
adolescentes, possui formação superior. Buscou a psicoterapia após uma
A análise dos -
cirurgia de cancro de mama, sentindo-se depressiva, com dificuldade de
que ajudou a cia::'
relacionamento no trabalho e problemas familiares.
seus padrões de e:s
a terapeuta a ~
PROCEDIMENTO
melhor os alvos :?ii
abordagem vívenc
Colhemos o material durante um tratamento, com dois atendimen- O sonho c.om ~
tos de 50 minutos por semana, durante oito meses. Quando a cliente Relato. A cliez
relatava um sonho, a terapeuta pedia que ela contasse o que o sonho sig- irmão A e minha -
nificava para ela. Num momento posterior, a terapeuta fazia perguntas, parecido com UD
estimulando a cliente na construção de novas interpretações. o que era. [Ana cc:
nossa tia C. Ela ;:
Mudanças e Transições: Pessoas em Contextos
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As transcrições dos relatos de sonhos e as anotações sobre o traba-


lho com os sonhos durante as sessões foram discutidas pelos dois auto-
res, durante reuniões, com a intenção de beneficiar o tratamento com
um melhor uso do material dos sonhos. De um ponto de vista técnico,
distinguiram-se durante estas discussões três contribuições distintas do
recurso de análise dos sonhos. Estas são apresentadas a partir de uma
discussão do trabalho com o material onírico.

RESULTADOS

Durante os primeiros meses da terapia, evidenciou-se que Ana des-


gastava os seus relacionamentos interpessoais devido ao seu apego a re-
gras absolutas, nas quais se apoiava com rigidez para enfrentar uma di-
versidade de exigências da vida. As pessoas próximas a ela consideraram
estas regras como imposições. Ela sofria por estar sempre em conflito
com as pessoas e por não ser correspondida, apesar de se doar muito aos
outros: "Eu sou útil para eles, desde que não questiono". Por estar sem-
pre a ditar "como as coisas devem ser", ela parecia ser forte e confiante
em si. Expressava as suas dores e as suas necessidades emocionais de
forma velada, dificultando, assim, que os outros as levassem em conta.
O mesmo padrão tornou-se evidente no relacionamento com a tera-
peuta. Esta tornava-se mais uma pessoa próxima e disponível, com quem
a cliente não se abria. Ana falava sobre "como as coisas devem ser" e a
expressão das suas emoções se limitou à dor e à desilusão por suas regras
não serem cumpridas. Tal rigidez dificultou tornar a terapia produtiva.
Foi a discussão dos conteúdos dos sonhos que, finalmente, distanciou
as sessões da insistência nesses conteúdos. Das discussões emergiram
três temas: a saudade pelos valores perdidos no passado; a dificuldade
de aproveitar oportunidades na vida atual; a dificuldade de abrir mão de
tentativas de controlo rígido ao tentar dar conta do quotidiano.
A análise dos sonhos contribuiu para esse tratamento, na medida em
que ajudou a cliente a entrar em contacto com as emoções, superando os
seus padrões de esquiva de sentimentos e de conteúdos difíceis. Ajudou
a terapeuta a entender melhor as necessidades da cliente e a delinear
melhor os alvos para o tratamento. E ofereceu oportunidades para uma
abordagem vivencial das suas dificuldades emocionais.
O sonho com o quarto comprido.
Relato. A cliente relatou, na sessão 18, o seguinte sonho: Eu, meu
irmão A e minha irmã [de criação] B entramos em um quarto comprido
parecido com um corredor. Lembrava um "closet", não sei precisar bem
o que era. [Ana compara com o consultório]. Entrámos, acompanhando
nossa tia C. Ela parecia ansiosa em me fazer entender o que ela queria
330 Mudanças e Transidies.

que eu fizesse. Engraçado que eu entrei com os dois [A e B], mas, após Interpret.lJflil
certo momento, eu sabia que estavam ali, mas acho que não os via. sonho caracterize
C pediu para eu dizer à minha prima D [a filha de C] que limpasse este nhar, a cliente a..::
quarto, que tirasse tudo dali, que era para ela me dar cinco cadeiras que da sessão interr ..• ::
estavam ali - uma na entrada e as outras quatro no meio do quarto. En- continuar a é5...-;::
tão eu disse que já me havia dado quatro cadeiras. Tinha algumas coisas três sessões SEb~
espalhadas, porém não lembro o que era. Ela pegou uns saquinhos tipo O realce da - .
embrulho. Foi me mostrando e dizia para D que arejasse aquele local. Ela dade do irmão E ~
abriu um daqueles saquinhos e me mostrou que por dentro havia uma de aconchego. - .
colcha rosa cor de terra, que tinha babados [folhos] nos três lados da cia do passado E as
colcha, e era toda enfeitada de bonecas. Pediu então que eu não me es- va ambientado - _
quecesse de dizer à D que era para dar [a colcha] para a neta, de presente. resgatar coisas _ _
Neste momento, ela parecia nervosa ou ansiosa é falou várias vezes que como símílaricazà
era para minha prima cuidar, vigiar, proteger a neta. Eu sentia a presen- uma janela gra' ~!ê

ça da C e da D, mas não as via. Avista tão _'_Coi


Então, C falou, virando-se para o lado, e mostrou o armário antigo e sua família, aleza
grande da casa da nossa avó [Anacompara com o armário do consultório] e num convento.
pediu que o organizasse, limpasse. Tinha também uma janela bem grande, biente, ao mesmo'
parecida com a que havia na casa da minha avó. [Anaaponta para a janela do o sentimento de ~
consultório]. Esta janela dava de frente para a catedral. Não havia nenhum deslocada em relaç
prédio que impedisse a visão da torre da igreja. Era linda esta visão! para limpar o arm
Este sonho foi bem longo, acho que ele durou várias horas. Neste pe- tirar o que estava r
ríodo, eu fui duas vezes ao banheiro e três vezes ao filtro beber água, e prido assemeiaava-
quando eu voltava a dormir, o sonho continuava no mesmo ponto em que O embrulho,
estava ao me levantar. Quando acordei pela manhã estava exausta, mas va conter uma co ~
confesso que gostei do sonho, porque pude estar ao lado da Cpor uns bons tiu discutir com ê
momentos. Ela era muito preciosa, uma boa tia. Tenho saudades dela. Muitas vezes. ex::g
Interpretação inicial pela cliente. A cliente sentiu que o sonho pode- para enfrenra-I 5.
ria ser um tipo de "aviso",em relação às recomendações de cuidar. Relacio- fizeram pensar em
nou o sonho com o seu passado, que, segundo ela, "era melhor". Disse que talhes pouco re..c:",
ficou parada no tempo durante os anos mais recentes. A prima D conti- Ana relacio
nuava muito próxima dela. Eram muito unidas na adolescência, e a cliente lá, à lembrança Ce
acobertava muitos erros da prima para a tia. Às vezes, também escondia frentar problemas,
factos em que ela mesma estava envolvida, para não ficar "enrascada". temente com a sua
Ao referir-se às cadeiras, disse que, nas partilhas da avó, esta tia e sair da cama só de .
outra foram mais beneficiadas do que a sua mãe, e que o desejo da tia em Na sessão 28, a
lhe dar as cadeiras podia ser uma forma de reparação pelo que aconteceu. cinco cadeiras__""15 I
Quando crianças, a cliente e D brincavam às escondidas atrás do armário ressaltando que as
da avó. No sonho, o armário parecia pesado para o ambiente, como se dicar um novo irrid
estivesse deslocado. Ana havia pedido este armário, mas a prima disse familiar. No sonne
não poder entregá-lo porque o usava para guardar roupas não passadas. família), enquan-- .
ou o armário da ria
Mudanças e Transições: Pessoas em Contextos
331

Interpretação construída junto com a terapeuta. O conteúdo do


sonho caracterizou-se por dar continuidade a algo interrompido. Ao so-
nhar, a cliente acordou e voltou a sonhar do ponto onde parou. E o fim
da sessão interrompeu a interpretação do sonho. A terapeuta pediu para
continuar a discuti-lo, mas a cliente trouxe assuntos urgentes para as
três sessões seguintes. A discussão do sonho só ocorreu na sessão 22.
O realce da importância da tia em sua vida, como também a proximi-
dade do irmão e da prima no sonho, aponta que Ana estava a sentir falta
de aconchego, hoje. A terapeuta sugeriu que o sonho aludiu à importân-
cia do passado e às suas tradições de família para a cliente. O sonho esta-
va ambientado num lugar parecido com o consultório, onde ela buscava
resgatar coisas boas do seu passado. Ao ser questionada, a cliente relatou
como similaridades físicas, entre outros, o formato comprido da sala,
uma janela grande com vista para uma catedral, um armário pesado.
A vista tão linda referia-se à religião, que era muito valorizada por ela e
sua família, além de ser importante na sua história, pois morou um tempo
num convento. O armário, que era demasiadamente "pesado" para o am-
biente, ao mesmo tempo em que a remetia para o passado, evocou em Ana
o sentimento de que ela não se encaixava na sua vida atual. Ela sentia-se
deslocada em relação aos seus papéis atuais. Ao conversar sobre o pedido
para limpar o armário, Ana refletiu também sobre a sua necessidade de
tirar o que estava ruim na sua vida. A necessidade de arejar o quarto com-
prido assemelhava-se à necessidade de se soltar da sua rigidez.
O embrulho, no sonho, a princípio, parecia miúdo e depois revela-
va conter uma colcha grande, volumosa e cheia de detalhes. Isto permi-
tiu discutir como a cliente estava a lidar com os seus problemas atuais.
Muitas vezes, exigiam soluções simples, e ela utilizava meios exagerados
para enfrentá-los. Os detalhes da colcha de folhos e bonecas também
fizeram pensar em como a cliente era demasiadamente exigente com de-
talhes pouco relevantes, perdendo os seus objetivos principais de vista.
Ana relacionou o facto de não ver pessoas, embora elas estivessem
lá, à lembrança de se ter escondido da tia, quando criança, para não en-
frentar problemas. Isto assemelhava-se com o que estava a viver recen-
temente com a sua família. Dizia que, certos dias, tinha vontade de não
sair da cama só de pensar em enfrentá-los.
Na sessão 28, a cliente trouxe uma nova interpretação a respeito das
cinco cadeiras. As mesmas poderiam ser seus quatro filhos e o marido,
ressaltando que as quatro ela já havia ganho, faltava a quinta. Poderia in-
dicar um novo início, se ela conseguisse incluir o marido, de facto, na vida
familiar. No sonho, ela já tinha as cadeiras (na vida real, os membros da
família), enquanto o armário pesado (na vida real, a felicidade do passado,
ou o armário da tia ao qual achava que tinha direito), não lhe pertencia.

_-_.
©~5i~050ma"
....•.
332 MudançaseT=

o sonho com a rua de cascalho. nar flexíveis a.


Relato. Na sessãd 25, a cliente trouxe outro sonho: Eu estava numa os seus sentirr
rua de cascalho, parecia que tinha mais pessoas, mas não as reconhe- pouco retorno
cia. Vi uma poça de sangue ralo (como água) no chão. Quando entrei em sou cego r até
casa, vi que o sangue saía de lá. Pensei que poderia ser do F [o marido da posso ver a bel
cliente], que estava deitado. O sangue saía do peito dele e era mais gros- Trêsmom
so. Fiquei agoniada, porque me lembrei que ofereci para ele tomar um Uma das CO!!:
comprimido de MS, à noite, porque estava com o peito cheio. Em caso a oportunidade
de dengue, [esse remédio] pode provocar hemorragia. Sangue é vida! difíceis. Foi pas
[Fala com um olhar distante]. fazendo a rrans
Interpretação inicial da cliente. "Esta rua parecia com a rua da sonhos. Analisa
minha casa de infância, no interior. Eu senti, tive uma sensação muito aprender a 2Xp!!
ruim ... a vida da gente indo embora. Quando eu entrei no quarto e vi dade de élSSU!!lÍI
que jorrava do peito dele, é como se ele estivesse a morrer. O sangue pela terapeuta,
ralo é como se eu não tivesse domínio. Os pais dirigem a casa. Os filhos so para Ana aa:::
vão crescendo e passam a ajudar. Lá em casa, é um barco sem leme". família, enquan
[Refere-se ao papel pouco ativo do marido e às tentativas frustradas de rica em valores .
ela exercer controlo]. nhos, algumas
Interpretação construída junto com a terapeuta. Ao ser questio- logáveis, como (
nada, Ana disse que a rua da sua casa de infância trazia boas recorda- para tentar rn;m
ções, de quando ela não tinha tantas preocupações. No entanto, aparece Uma seguné
a poça de sangue ralo, como água, que indicava o momento que vivia pia. Antes da di
atualmente, como se a sua vida estivesse "a escorrer" das suas mãos. Na a sua necessida.
semana do sonho, comemorou o aniversário do seu casamento, que a Ela chegava a d
levou a observar que esse sangue sai da sua casa, que é o seu porto, onde deseja. Falar sai
está a sua família, o seu maior valor. do seu sentime
A imagem do marido deitado evocou sentimentos de solidão e permitiu lhe estava a esc
discutir com a terapeuta como, sem ajuda do marido, tantas coisas estavam setting terapênt
a fugir do controlo. Ela via-o como sempre, passivo. Ter-lhe dado o remédio ca. É na terapia
angustiava-a, pois ela, sozinha, seria responsável pelas consequências. que emergem d
complementare
A terapeuta apontou que a cliente sabia que há pessoas nessa rua,
da Ana, os nov
mas não as reconhecia. Porque será? Ana respondeu que havia pesªoas
terapêutico. De
ao seu redor, seu marido, seus filhos, sua família, que eram seus aliados
o objetivo de
na sua luta pela sua vida. Ao tentar assumir os papéis que os outros não
passo a passo pc
preenchiam, da forma que a cliente queria, e ao centralizar as responsa-
claro que a GÍa
bilidades, ela escondia as suas fraquezas, distribuindo tarefas e dando
aprender a aren
ordens em vez de expressar as suas necessidades. A cliente tinha boas
lhar com queo '
intenções ao tentar monopolizar o controlo de tudo, mas isso colocava-a
dor, com os setl:!
frente a uma tarefa impraticável. Enquanto envolvida nesta briga para
meta de t:rahaIh
alcançar o controlo inatingível, parecia que a vida lhe escapava.
alvo mostrar-se
Essa discussão esclareceu que a cliente desejava inverter a sua atitude a relação com
face ao quotidiano. A cliente podia partilhar com os que ela amava, tor-
Mudanças e Transições: Pessoas em Contextos
333

nar flexíveis as suas exigências, dar menos instruções e expressar mais


os seus séntirnentos. Ela contou uma metáfora sobre um cego que teve
pouco retorno pedindo dinheiro com uma placa que dizia: "Ajude-me,
sou cego!" até que trocou os dizeres para: ''A primavera chegou e não
posso ver a beleza das cores!", sendo a partir daí mais beneficiado.
Três motivos para analisar sonhos
Uma das contribuições da análise dos sonhos para o tratamento de Ana foi
a oportunidade que ofereceu à cliente de se conectar melhor com conteúdos
difíceis. Foi possível discutir abertamente as dificuldades do seu quotidiano,
fazendo a transposição entre o que ela estava a viver e o conteúdo dos seus
sonhos. Analisar o sonho junto com a terapeuta foi um meio para a cliente
aprender a expressar e aceitar sentimentos e necessidades que tinha dificul-
dade de assumir. Tratava-se de assuntos que, quando abordados diretamente
pela terapeuta, evocaram respostas de esquiva da parte da cliente. Foi doloro-
so para Ana admitir que ela não partilhava os seus problemas nem com a sua
família, enquanto alguns elementos nos sonhos apontam para a sua história
rica em valores famíliares expressivos. Porém, no contexto da análise dos so-
nhos, algumas observações emocionalmente ameaçadoras tomaram-se dia-
logáveis, como o facto de a cliente impedir as pessoas que poderiam ajudá-la,
para tentar manter o controlo sobre elas com tanta rigidez.
Uma segunda contribuição foi a identificação de novos alvos para a tera-
pia. Antes da discussão do sonho, a cliente tinha dificuldades em expressar
a sua necessidade de reavaliar as suas prioridades e reorganizar a sua vida.
Ela chegava a chorar várias vezes quando a terapeuta perguntava o que ela
deseja. Falar sobre as suas necessidades parecia estar dificultado pelo peso
do seu sentimento de responsabilidade e pela sensação de que o controlo
lhe estava a escorregar das mãos. A aproximação que a cliente faz entre o
setting terapêutico e o ambiente do primeiro sonho não é meramente físi-
ca. É na terapia que ela busca reorganizar e renovar a sua vida. Objetivos
que emergem de uma análise de sonhos podem ser incluídos como metas
complementares, ou podem mudar até a direção do tratamento. No caso
da Ana, os novos objetivos ajudaram a sair de um impasse no processo
terapêutico. Depois da interpretação do primeiro sonho, a cliente adotou
o objetivo de buscar soluções mais pragmáticas, respeitando progressos
passo a passo para os desafios do seu quotidiano. Do segundo sonho, ficou
claro que a cliente queria libertar-se das tentativas rígidas de controlo e
aprender a aceitar o fluxo da sua vida. Ela precisava aprender a comparti-
lhar com quem estava mais próximo dela e a apreciar as pessoas ao seu re-
dor, com os seus pontos fortes e fracos. Dos dois sonhos juntos, emergiu a
meta de trabalhar o relacionamento conjugal. O delineamento deste novo
alvo mostrar-se-ia importante, e, numa fase posterior, o trabalho focando
a relação com o marid~_tornou-se a parte mais valiosa da terapia.
334 Mudanças e TransX:õa::

Uma terceira razão para analisar sonhos refere-se à oportunidade que REFERÊNCIAS 3~J

oferece para trabalhar diretamente, de maneira vivencial, as dificulda-


Al-Akili, M. (:!.?
des, enquanto estas estão a ser evocadas pelo material que surge durante
traditions Z:
o trabalho. A discussão de material tão íntimo como o conteúdo de so-
Aristóteles. :!_
nhos evocou em Ana sentimentos positivos e de confiança na terapeuta. publicado zc
Porém, evocava também angústia ao ver que o controlo desejado pela Artemidoro. 1.
cliente era inalcançável. Isto possibilitou trabalhar de maneira vivencial, Zahar. C:rr:.
enquanto os sentimentos estavam "quentes". A intensificação do vinculo Bíblia Sagrada, -:
com a terapeuta, durante este trabalho, contribuiu para o desenvolvi- grego, hEm:.
mento de novas habilidades, como a confiança no outro, ou a tolerância Maredsous ~
com opiniões diferentes. Além disso, ela arriscou um estilo menos rígido Beck, A. T. ':95
ou defensivo e mais recíproco e aberto com a terapeuta. A cliente expe- New York; c:.
Beck, A. T.:~i:
rimentava as novas atitudes ao vivo, nos seus diálogos com a terapeuta,
Massermaz,
antes de transferi-las para seus relacionamentos com as pessoas mais
pp. 2-7;. ~iE
próximas dela no seu dia-a-dia. Callaghan, G M..
Ao trazer a metáfora do cego como chave para decodificar o segundo so- perspecrr-s, !
nho, a cliente identificou a sua dificuldade de deixar as suas necessidades Delitti, M. '::::'='3.
claras para as pessoas mais próximas. Porém, a cliente demorou a familia- em psicolsgis;
rizar-se com o novo comportamento, dentro do relacionamento seguro Delitti, 1~. (i'~?=

com a terapeuta, antes de se arriscar no mundo fora do consultório. As comportazaer


cognição.
mudanças noutros relacionamentos, que espelharam as mudanças ocorri-
Delitti, ~~. ',:::
das no relacionamento com a terapeuta, demoraram a manifestar-se. Foi c. (Org,
a partir da 32a sessão que a cliente relatou mudanças no seu estilo de lidar André: :::,S:_!
com as pessoas importantes na vida dela. Ela começou a negociar aberta- FreucI, S. (l~.=
mente com os familiares o que ela precisava deles. Começou a atentar nas psicomg:~ a;
oportunidades de interação positiva com eles, e, em geral, despertou-se Janeiro: !=.:-
pela possibilidade de melhorar a qualidade dos seus relacionamentos. Freud, S. ::~-=:3
psicologzc» c:
Se, por um lado, os autores desejam estimular a atenção à análise de
Janeiro. --=,:-
sonhos como um recurso terapêutico, por outro, reconhecem que é pre-
Cuilhardí, ~. IL C!
ciso uma prática mais ampla, em conjunto com pesquisas clínicas, para, In: B. ~T"'=~_
no futuro, se pronunciarem sobre a validade do mesmo. 257-257). Ci::::
Hayes, S. C.; ,5...

Porto: 12V"-!:::5
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Individual ;u:;.:
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