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Processos Físico-Químicos no Biofilme

Dentário Relacionados à Produção da Cárie

Karina Imaculada Rosa Teixeira, Audrey Cristina Bueno e Maria Esperanza Cortés

A presença do biofilme na cavidade oral é o principal fator etiológico da cárie dental. Diversas teorias têm sido
levantadas sobre a participação específica das bactérias na produção do ácido e na relação causal destas com
essa doença. Contudo, existe consenso que além da frequência de ingestão de carboidratos, a concentração
de bactérias, a presença de saliva, a capacidade tampão e a duração dos efeitos são, em associação, fatores
determinantes para o estabelecimento e a progressão do biofilme. Quimicamente vários fatores – tais como pH,
tensão de oxigênio, entre outros – influenciam na formação e no desenvolvimento do biofilme, portanto, torna-se
complexo ter total controle das reações químicas intrabucais e, consequentemente, a dificuldade em tratá-las
aumenta. O objetivo deste artigo foi descrever os fenômenos físico-químicos no interior do biofilme que envolve
a formação e o desenvolvimento do biofilme dentário e como este pode interferir na formação da cárie dentária.

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biofilme, cárie, placa dental

Recebido em 25/05/09, aceito em 12/03/10

A
placa dental pode ser defini- com a formação da placa madura após a higienização destes. Em
da como um aglomerado de (Fejerskov e Kidd, 2005; Thylstrup e seguida, as bactérias começam
bactérias aderidas aos tecidos Fejerskov, 2001). Assim, durante o a sintetizar exopolissacarídeos
duros e moles da boca, embebidas desenvolvimento da placa bacteriana, (EPS) insolúveis, sendo que
em uma matriz extracelular (polissa- são reconhecidas diferentes etapas esse processo garante a ade-
carídeos, exopolissacarídeos) e saliva (Figura 1): rência delas em uma matriz
(Marinho e Araújo, 2007). Hoje, a tridimensional denominada bio-
placa bacteriana, em uma nova visão, 1. Adsorção de bactérias na super- filme, que se torna maduro pelo
passou a ser chamada de biofilme fície do dente. Nessa fase, as acúmulo de EPS e a reprodução
após análises feitas na Conferência bactérias se adsorvem à superfí- bacteriana. A matriz de EPS tem
em Ecologia Microbiana. Biofilme é cie do dente, formando uma fina importante função também em
uma comunidade cooperativa, bem película imediatamente após o armazenar nutrientes e água em
organizada, de células microbianas aparecimento do dente na boca função dos radicais neutros e
aderidas a uma superfície úmida e (erupção dentária) e também com carga dos polissacarídeos,
aglomerada por matriz de polissa-
carídeos (Nascimento e cols., 2006).
Na boca, o biofilme é composto
por microorganismos sobre uma
camada de proteína denominada pelí-
cula, que é constituída por glicoprote-
ínas salivares, fosfoproteínas, lipídeos
e componentes do fluído gengival. O
desenvolvimento da placa bacteriana
na boca pode ser dividido em vários
estágios, sendo a primeira fase a
formação da película e terminando Figura 1: Diagrama simplificado de formação do biofilme bacteriano.

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além de proteger bactérias de A eficiência das interações zem doenças) e comensais (relação
resposta imune, predadores e metabólicas entre as bactérias ecológica entre duas espécies que
agentes antimicrobianos que na cadeia alimentar pode ser vivem próximas) são capazes de se
poderiam estar presentes na aumentada se elas estiverem manter em transição entre o ambiente
boca. Por isso, um dos métodos em estreito contato. O aumento e o hospedeiro humano, bem como
mais eficazes para prevenir a da densidade do biofilme, com de se adaptar a mudanças súbitas na
formação do biofilme é evitar o tempo, implica em importan- disponibilidade de nutrientes e reagir
ou reduzir a aderência inicial da tes mudanças no metabolismo a respostas imunológicas do hospe-
bactéria à superfície do dente. bacteriano. Eventos fisiológicos deiro. Os mecanismos de adaptação
Contudo, os mecanismos dessa diferentes ocorrem nas diferen- que os microrganismos utilizam para
aderência à superfície ainda não tes partes do biofilme de acordo sobreviver no biofilme incluem adap-
foram totalmente esclarecidos com o tipo de microorganismo tação genética, mutação e recombi-
(Leite e cols., 2006). predominante, assim o biofilme nação genética e aquisição de novo
As comunidades pioneiras, funciona como um sistema material genético (transformação) ou
modelos da flora bacteriana complexo (Silva e cols., 2008; regulação da expressão de material
comensal, são compostas por Leite e cols., 2006; Soncini-Jr e genético existente. A flexibilidade na
poucas células e representam o cols., 2003). expressão genética bacteriana permi-
crescimento diário da biomassa 4. Multiplicação dos microorganis- te a sobrevivência em ambientes com
desse biofilme que se desen- mos, levando ao crescimento condições instáveis, sendo as bac-
volve entre as escovações. A e formando uma superfície térias particularmente adaptáveis a
promoção e a manutenção tridimensional e funcionalmente quase todos os nichos ambientais do
dessas bactérias comensais na organizada. A produção de nosso planeta (Nascimento e cols.,
superfície dental podem apre- polímeros resulta na formação 2006). Esses biofilmes estabelecidos
sentar elementos cruciais para a complexa de matriz extracelular, podem tolerar agentes antimicrobia-
prevenção da colonização tardia compondo glucanos solúveis nos em concentrações de 10~1000
146 por bactérias que causam do- e insolúveis, frutanos e hete- vezes maiores que a concentração
enças (Marinho e Araújo, 2007; ropolímeros. Essa matriz pode bactericida para bactérias genetica-
Kolenbrander e cols., 2005). As ser biologicamente ativa, reter mente equivalentes e também são
primeiras comunidades têm a nutrientes, água e enzimas no extremamente resistentes à fagoci-
vantagem de ser facilmente ob- biofilme oral. tose, tornando a eliminação destes
tidas intactas, em comparação 5. As bactérias podem responder extremamente difícil (Leite e cols.,
com as camadas de biofilme a sinais do meio ambiente e se 2006; Pereira e cols., 2006).
que aparecem após vários dias destacar da superfície, permitin-
(Almeida e cols., 2002). Existem do que colonizem outros locais Concentração de oxigênio
evidências de que bactérias (Romeiro e cols., 2009; Silva As bactérias colonizadoras das
pioneiras se ligam seletivamen- e cols., 2008; Almeida e cols., mucosas da boca estão expostas
te à superfície do esmalte do 2002). ao oxigênio durante a maior parte
dente por meio de receptores do tempo. As que colonizam a parte
presentes na saliva (película) e O processo simples de adsorção interna do biofilme ou do interior da
são encontradas em pequenos dos transportadores sólidos é o gengiva são predominantemente
aglomerados de células (Leite e principal mecanismo de fixação de anaeróbicas. Os estreptococos, prin-
cols., 2006; Souto e cols., 2006; muitas espécies bacterianas. A carga cipais microrganismos envolvidos na
Kolenbrander e cols., 2005). da matriz extracelular, a sua composi- cárie dental, são capazes de adaptar
2. Interação físico-química das ção e a morfologia são os principais seu metabolismo para trabalhar tanto
bactérias com o biofilme. As parâmetros que influenciam essa sobre condições aeróbicas quanto
bactérias orais possuem mais adesão bacteriana. Existem três anaeróbicas (Marinho e Araújo, 2007;
de um tipo de proteína de ade- tipos de imobilização microbiana Thylstrup e Fejerskov, 2001).
são na sua superfície celular conhecidas: adesão, fixação química Existem diferenças em relação
(adesinas) e participam de vá- em meios sólidos e encapsulamento ao acúmulo de biofilme até mesmo
rias interações com moléculas em matrizes de gel. A maior parte num mesmo dente, bem como em
presentes na boca e também das pesquisas mostra que a fixação diferentes partes da boca, onde se
com receptores de outras bac- microbiana passa por duas fases observa uma disponibilidade de oxi-
térias. (Soncini-Jr e cols., 2003). gênio variável. Assim, o acúmulo de
3. Adesão entre outros micror- As espécies bacterianas que são biofilme nos dentes, nas superfícies
ganismos colonizadores, in- capazes de colonizar os seres huma- próximas da língua, é maior devido
teragindo com receptores de nos são especialmente criativas nos à menor concentração de oxigênio,
adesão específicos e aumen- seus processos reguladores. Muitas demonstrando que existe um padrão
tando a densidade do biofilme. bactérias patogênicas (que produ- de crescimento diferenciado do bio-

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filme nas diferentes regiões da boca no do ácido carbônico e vice-versa) cesso-tampão é dinâmico, e os com-
e dos dentes. Essa menor concentra- pode ser escrito da seguinte forma: ponentes-tampão são adicionados
ção também pode ser observada no por meio do influxo da saliva recente-
interior da gengiva (sulcos gengivais) a) CO2 (g) + H2O (l)  H2CO3 (aq) mente secretada, que também diluirá
(Marinho e Araújo, 2007). o ácido. A modificação da película
As limitações de difusão causadas b) H2CO3 (aq) + H2O (l)  salivar durante condições estimula-
pela estrutura do biofilme resultam HCO3- (aq) + H3O+ (aq) das pode ocorrer várias vezes em
em variações locais na disponibili- um minuto. Portanto, a depleção de
dade de nutrientes, pH e tensão de O valor de pKa para o sistema substâncias inorgânicas-tampão só
oxigênio. Assim, as bactérias dentro ácido carbônico/bicarbonato está em predominará por um breve período.
de biofilmes são inevitavelmente torno de 6,1, sendo que o bicarbonato Esses mecanismos constituem um
heterogêneas com relação à sua é capaz de captar íons hidrogênio importante mecanismo de defesa
expressão genética. Muitos biofilmes para formar ácido carbônico. O au- para a integridade da mucosa depois
são compostos por uma variedade mento da concentração do ácido de uma repentina exposição a ácidos
de espécies bacterianas e alguns carbônico causará mais saída de nocivos (Fejerskov e Kidd, 2005).
ainda contêm misturas de bacté- dióxido de carbono da saliva, tornan- Depois de certa quantidade de
rias e fungos. Os membros desses do possível que mais bicarbonato se ácido ter sido adicionada à saliva, o
biofilmes mistos têm necessidades ligue a íons hidrogênio. Essa troca pH começa a diminuir rapidamente.
diferentes e têm diferentes funções no equilíbrio ácido-base é chamada Essa rápida diminuição é causada
metabólicas, tornando o comensa- “fase tampão”, pois envolve a trans- pelo esgotamento do bicarbonato
lismo um fenômeno muito comum missão de íons dissolvidos para a e fosfato inorgânico. Na faixa de pH
nos biofilmes (Silva e cols., 2008). fase gasosa. em torno de 4, a curva de titulação
Por exemplo, em regiões em que os Na cavidade oral, esse mecanis- inclina-se, mostrando aumento da
primeiros colonizadores da cavidade mo é complicado pelo fato de que o capacidade-tampão. A capacidade-
oral são microrganismos aeróbicos ar expirado tem aproximadamente a tampão da saliva nessa faixa de pH
ou anaeróbios facultativos, a difusão mesma concentração de CO2 que a é causada principalmente pelas ma- 147
limitada do oxigênio por meio do saliva e, assim, a direção da reação cromoléculas, tais como as proteínas,
biofilme cria um ambiente que for- se volta para a evaporação do CO2, porém sob condições normais. As
nece as condições necessárias para o que variará de acordo com o fluxo macromoléculas não são tão impor-
posterior colonização por anaeróbios de ar que transita sobre a fina cama- tantes como as substâncias-tampão
obrigatórios. da salivar (Fejerskov e Kidd, 2005; na saliva. Inversamente, há locais
Thylstrup e Fejerskov, 2001). onde macromoléculas são encontra-
Capacidade tampão da saliva O sistema fosfato é menos im- das em altas concentrações como,
O mais importante sistema tam- portante na saliva estimulada por por exemplo, em revestimentos da
pão na saliva é o sistema ácido carbô- causa da sua baixa concentração. mucosa e dos dentes. Nesses micro-
nico/bicarbonato. A concentração do Todavia, na saliva não estimulada, ambientes, as macromoléculas são
íon bicarbonato depende fortemente a concentração de fosfato é quase as que mais predominam dentre as
do fluxo salivar e a termodinâmica igual à concentração de bicarbonato, substâncias tampão, especialmente
desse sistema é complicada pelo fato e assim esses dois sistemas-tampão porque as concentrações de bicar-
de envolver o gás carbônico dissol- contribuem quase que na mesma bonato e fosfato são baixas. Além
vido na saliva. A pressão parcial de extensão para a capacidade-tampão, disso, a capacidade-tampão da sa-
dióxido de carbono na saliva é muito ao passo que, sob condições de liva é complicada pelo transporte de
mais alta que na atmosfera. Esse estimulação, o sistema-tampão de bi- sustâncias-tampão entre os muitos
gradiente de concentração facilita a carbonato é responsável por cerca de compartimentos da cavidade oral.
saída de dióxido de carbono da sali- 90% da capacidade-tampão salivar. O O transporte depende principalmen-
va. Assim, o valor da pressão parcial mecanismo da capacidade-tampão te da morfologia da cavidade oral
de dióxido de carbono (PCO2) quase do fosfato inorgânico na variação de (Fejerskov e Kidd, 2005; Thylstrup e
independe do fluxo salivar, e o dióxido pH da saliva 6 a 8 está relacionado à Fejerskov, 2001).
de carbono está presente na forma habilidade de o íon fosfato secundário
Fenômenos físico-químicos no interior do
de bicarbonato na saliva estimulada. HPO42- se ligar a um íon hidrogênio
biofilme
O dióxido de carbono está presente e formar um íon fosfato primário,
na boca como um gás dissolvido, e H2PO4‑. Essa reação ácido-base tem Os biofilmes são resistentes às
apenas uma fração muito pequena valor de pKa na faixa de 6,8~7,2, forças físicas como a produzida pela
dele está combinada com proteínas. significando que o sistema de fos- circulação e pelo escoamento do
O equilíbrio completo simplificado (no fato possui sua capacidade-tampão sangue e a ação da saliva na boca.
qual a enzima anidrase carbônica, máxima em valores de pH próximo à Microorganismos no interior dos bio-
que está presente na saliva, catalisa neutralidade (Peruzzo e Canto, 2006). filmes também estão menos expostos
a reação, formando dióxido de carbo- Na película fina de saliva, o pro- a carências nutricionais, mudanças de

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pH, radicais de oxigênio, desinfetantes Subprodutos do carbono podem atividade catabólica poderia levar ao
e antibióticos do que organismos do induzir a regulação genética dos mi- esgotamento do suprimento celular
ambiente. Biofilmes são também re- crorganismos encontrados no biofil- de arginina utilizada para biossíntese.
sistentes à fagocitose, e os fagócitos me e desempenham um papel essen- Globalmente, parece que a produção
que tentam atacá-los ainda podem cial na formação deste. A expressão de radicais alcalinos é um fator im-
causar mais danos aos tecidos do de exopolissacarídeos e a elaboração portante na ecologia do biofilme oral
organismo do que ao próprio biofilme. do biofilme são nitidamente reforça- e que poderia permitir a manipulação
A natureza de certas infecções crôni- das em certas bactérias, incluindo a dos sistemas de controle ou preven-
cas é complexa devido ao desenvol- Pseudomona, Veilonella cholerae e ção da doença (Silva e cols., 2008).
vimento desses sistemas resistentes. Escherichia coli, quando a glicose ou Ao contrario da cárie na doença
A invulnerabilidade de certos biofilmes outra fonte de carbono são abundan- periodontal, patologia que destrói os
não está completamente entendida, tes. Nessas condições, predominam tecidos de suporte do dente, provo-
mas é provavelmente dependente de os estafilococos e estreptococos cando o seu amolecimento e possível
características específicas, incluindo (grupos aeróbios). Quando os nu- queda, ocorre maior alcalinização do
crescimento lento e microrganismos trientes acabam, as bactérias se sulco gengival pela amônia produzida
presentes. Outra importante caracte- desprendem da matriz e tornam-se pelo metabolismo dos aminoácidos
rística que aumenta a resistência dos não aderidas, o que sugere que a encontrados no fluido gengival e
biofilmes é a presença de matrizes privação de nutriente é um sinal para liberado nos tecidos, elevando o pH
adesivas que possam conter DNA e avançar em busca de um ambiente acima de 8,0. Bactérias capazes de
outros polímeros, predominantemente melhor (Nascimento e cols., 2006; se adaptar a esse pH – como, por
composto por exopolissacarídeos Souto e cols., 2006). exemplo, o Fusobacterium nucleatum
(Pereira e cols., 2006). O sistema de produção da urease (F.n) – proliferam e modificam sua
Além disso, quando um grupo de por bactérias orais é até o momento expressão genética. Sob condições
bactérias presentes numa comunida- o mais conhecido. A urease é um de pH neutro ou alcalino, ocorre um
de polimicrobiana atinge uma con- sistema oligomérico contendo níquel aumento na utilização de glicose
148 centração crítica, vai induzir a expres- que catalisa a hidrólise da ureia para associada com a regulação de enzi-
são de certos genes relacionados à duas moléculas de amônia e uma mas envolvidas na conservação de
resistência desses microrganismos de dióxido de carbono, segundo a energia, podendo explicar a presença
(Soncini-Jr e cols., 2003). equação a seguir: dessa bactéria nos canais dos den-
O papel da glicose na indução tes após tratamentos com Ca(OH)2.
da produção de exopolissacarídeos H2N-CO-NH2 (aq) + H2O → Esse microorganismo promove mu-
(EPS) pode ter várias funções. É 2NH3 (aq) + CO2 (aq) danças físico-químicas no sulco
possível que a glicose simplesmente gengival, permitindo que sucessores
sirva como um substrato da síntese Algumas bactérias utilizam a ure- patogênicos possam se estabelecer
de EPS. A segunda possibilidade, que ólise para proteção contra os ácidos e proliferar (Ribeiro e cols., 2006;
suporta o biofilme como um modo presentes no ambiente, incluindo Almeida e cols., 2002). Bactérias
de defesa, é que a bactéria pode ter Helicobacter pylori e Streptococcus predominantemente produtoras de
evoluído para interpretar níveis eleva- salivarius. Na placa dentária, a ca- H2S que sobrevivem no biofilme da
dos de glicose como um sinal para se pacidade de se ligar eficazmente à língua são apontadas como uma
proteger do sistema imunológico do ureia em baixas concentrações pode das principais causas do mau hálito
nosso organismo. Alternativamente, oferecer a essas bactérias ureolíticas ou halitose, entre elas espécies de
a produção de polissacarídeo pode uma vantagem competitiva, porque Veillonella e Actinomyces (Marinho e
funcionar apenas como um mecanis- protege os organismos da ação Araújo, 2007).
mo de armazenamento dessa glicose bactericida dos ácidos e pode pro-
(Romeiro e cols., 2009; Soncini e cols., porcionar uma fonte de aminoácidos Cárie dental
2003) (Figura 2). e nitrogênio (Silva e cols., 2008). O desenvolvimento da cárie den-
Elementos da resposta imune, in- tal, uma das principais doenças da
cluindo as imunoglobulinas (IgG, IgA, boca, ocorre devido à união de quatro
IgM), linfócitos, citocinas e o sistema fatores que são o biofilme dental,
complemento, poderiam chegar à dieta, saliva e a susceptibilidade do
boca por meio do fluido crevicular hospedeiro. O processo envolve a
(FCG) encontrado na gengiva e exer- desmineralização do esmalte dental
cer um efeito protetor. devido a altas concentrações de
A produção de radicais alcalinos ácidos produzidos pelas bactérias
deve ser rigorosamente regulada presentes nos biofilmes em presença
porque um ambiente excessivamen- de carboidratos.
Figura 2: Representação de exopolis- te alcalinizado poderia ser letal na Os dentes sofrem contínuos pro-
sacarídeos formados a partir da glicose. boca ou até mesmo uma elevada cessos de desmineralização seguida

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por remineralização e restabeleci- (5,3~5,5) para desmineralização da
mento da integridade do esmalte superfície do dente, assim induzin-
dentário devido ao controle do biofilme do uma mudança no equilíbrio do
dentário, presença de saliva, entre processo natural desmineralização-
outros fatores. Esse fenômeno está remineralização (DES-RE) e oca-
representado pela equação da reação sionando a perda de minerais. A
reversível de dissociação da hidroxia- desmineralização, em última análise,
patita na saliva ilustrada a seguir: resultado do amolecimento da estru-
Figura 5: Fórmula molecular da clorexi­
tura do dente (Figura 3), permite, em
dina.
Ca10(PO4)6(OH)2(s)  seguida, mais colonização do sítio
doente por outras espécies, incluindo cos altamente carregados, ela pode
10Ca2+(aq) + 6PO43-(aq) + 2OH-(aq) lactobacilos. A produção contínua de promover a aderência bacteriana
ácidos e a tolerância ao meio ácido em concentrações superiores à sua
A cárie dentária ocorre quando a proporcionam uma grande vantagem concentração mínima inibitória. A Cx
fase de acidificação (desmineraliza- competitiva para o Streptococcus afeta a viabilidade bacteriana, mas
ção) não consegue ser controlada mutans, lactobacillus e uma variedade não inibe a formação do biofilme,
pela fase de tamponamento (re- de outros membros da comunidade indicando o seu efeito como agente
mineralização) (Silva e cols., 2008; do biofilme comum na cárie dentária antibacteriano (Teixeira e Cortés,
Almeida e cols., 2002). Na Figura 3, (Silva e cols., 2008, Souto e cols., 2005; Almeida e cols., 2002).
estão apresentadas amplas áreas de 2006, Almeida e cols., 2002). Ressalta-se que é necessário o
desmineralização (áreas esbranqui- Quimicamente vários fatores po- acompanhamento pelos profissionais
çadas e opacas) de esmalte dentário dem influenciar na formação e no da área em relação à indicação preci-
provocadas pela alta frequência de desenvolvimento do biofilme e con- sa da utilização de agentes químicos
ingestão de carboidratos. sequentemente na cárie dental (Figura para inibir os processos que levam
4), sendo, dessa forma, muito com- ao desenvolvimento da doença cárie.
plexo ter total controle das reações Contudo, o sucesso da prevenção 149
químicas intrabucais e, em função baseia-se em medidas preventivas
disso, fica difícil o estabelecimento amplas, enfatizando a adoção de há-
do tratamento. Assim, são de grande bitos saudáveis que incluem higiene
importância os estudos químicos, bucal, controle da dieta, frequência
biológicos e moleculares dos fatores das refeições e controle da ingestão
associados à etiopatogenia da cárie de carboidratos.
para seu melhor entendimento. Moni-
torar a bactéria patogênica dentro da Conclusão
Figura 3: Áreas de desmineralização
em superfície de esmalte de dentes placa dentária tem sido crucial para Pode-se concluir que o processo
anteriores. avaliar o risco à cárie ou o estado da de formação do biofilme bacteriano
doença (Souto e cols., 2006). oral é complexo devido ao grande
A ingestão de carboidratos favore- número de fatores físicos, químicos e
ce a proliferação bacteriana no biofil- biológicos interagindo de forma conti-
me de uma variedade de organismos nua e organizada. Em função disso, a
produtores de ácido (acidogênicos) atividade dos antimicrobianos usados
e não acidogênicos. A hierarquia da como agente antibiofilme é limitada
formação da placa com relação aos às fases iniciais de sua formação,
microorganismos inclui acidogênicos quando o nível de complexidade
e que toleram o meio ácido. O pri- desse sistema ainda é baixo.
meiro organismo a ser implicado na
etiologia da cárie foram os lactobaci-
Karina Imaculada Rosa Teixeira (karinart_2000@
los (Silva e cols., 2008; Leite e cols., yahoo.com.br), graduada e mestre em Odontologia
2006; Silva e cols., 2001). pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é
A capacidade do Streptococus doutoranda em Clínica Odontológica pela UFMG. Au-
mutans e outras espécies envolvidas drey Cristina Bueno (audreybueno@ig.com.br), gra­
na cárie, para produzir quantida- Figura 4: Diagrama de Keyes (Newbrun, duada em Odontologia pela Pontifícia Universidade
des excessivas de ácido láctico na 1983). Católica de Minas Gerais, mestre em Odontologia
pela UFMG, é doutoranda em Clínica Odontológica
presença de fontes de açúcares
pela UFMG. Maria Esperanza Cortés (mecortes@ufmg.
fermentáveis, são consideradas uma A clorexidina (Cx) (Figura 5) é br), graduada em Odontologia pela Universidad Del
das principais causas de perda de um dos mais eficazes agentes an- Valle Del, mestre e doutora em Odontologia pela
dentes. Esses ácidos podem diminuir tibacterianos em odontologia, mas Universidade de São Paulo, é professora do Depar-
o pH em valores abaixo do pH crítico devido aos seus domínios catiôni- tamento de Odontologia Restauradora da UFMG.

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em doenças sistêmicas. Revista. ABO F.C. e ARAÚJO, D.A.M. Detecção de riologia Clínica. 2. ed. São Paulo: Santos,
Nacional, v. 14, n. 2, p. 117-122, 2006. estreptococos orais em biofilme dental 2001.

Abstract: Physico-chemical processes in dental biofilms related to the caries development. The presence of biofilm in the oral cavity is the main etiological factor of tooth cavity. Several theories have
been raised about the specific participation of bacteria in the acid production and in the causal relationship among those with this disease. However, there is also consensus that the frequency of
intake of carbohydrates, the bacteria concentration, the presence of saliva, the buffer capacity and duration of effects are, in combination, determining factors for the establishment and progression
of the biofilm. Chemically different factors such as pH, oxygen tension, among others, could influence the formation and development of the biofilm. Thus, being very complex, having total control
of intra-oral chemical reactions and therefore are difficult to treat them. The aim of this paper was to describe the physical and chemical phenomena within the biofilm surrounding the formation and
development of dental biofilms and how it may interfere with the formation of dental caries.
Keywords: Biofilm, tooth cavity, dental plaque.

Chamada de propostas para os Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola


Na 63ª sessão da Assembléia Geral da Organização das Nações Uni-
das (ONU), foi aprovado e proclamado, para 2011, o Ano Internacional da
Química, conferindo à Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (UNESCO) e à União Internacional de Química Pura
e Aplicada (IUPAC) a coordenação das atividades mundiais. O objetivo é
a celebração das grandes descobertas e dos últimos avanços científicos e
tecnológicos da química.
Diversas iniciativas estão em andamento no âmbito da Sociedade
Brasileira de Química, entre elas esta chamada de propostas de Cadernos
Temáticos de Química Nova na Escola que serão consideradas para publi-
cação durante o próximo ano.
Os interessados em participar da chamada devem enviar as propostas
contendo as informações listadas abaixo para qnesc@sbq.org.br (Assunto:
AIQ-2011/CT QNEsc) até 1º de dezembro deste ano.

Título do Caderno Temático de Química Nova na Escola;


Nomes dos editores;
Justificativa (até 1500 caracteres);
Títulos dos artigos, autores e sumários com até 300 caracteres.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Processos Físico-Químicos no Biofilme Dentário Relacionados à Produção da Cárie Vol. 32, N° 3, AGOSTO 2010

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